O marxismo é actual em termos de interpretação da realidade

Carlos Nelson Coutinho

11 de novembro de 2011


Primeira publicação: Punto Final, edição nº 746, 11 de novembro de 2011.
Fonte da presente tradução: Sur y sur: El marxismo es actual en cuanto a la interpretación de la realidad.
Tradução para o português da Galiza: José André Lôpez Gonçâlez. Outubro 2023.
HTML: Lucas Schweppenstette.


Pesquisador do Centro de Filosofia e Ciências Humanas e da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Nelson Coutinho é um destacado marxista, considerado um dos principais conhecedores da obra de António Gramsci e também especialista do filósofo húngaro György Lukács, com quem manteve contacto até pouco antes da sua morte. | HERNÁN SOTO(1).

Ao mesmo tempo, teve uma vida militante activa em partidos de esquerda. Visitou o Chile por ocasião do seminário Marx no Século XXI. Validade do(s) marxismo(s)? É autor de numerosos livros que vão da ciência política à crítica literária, entre os quais foram traduzidos para o espanhol Estruturalismo e a Pobreza da Razão, Introdução a Gramsci e, agora, “Marxismo e Política”, publicado pola LOM., que foi apresentado durante a sua participação na reunião.

— O que você destaca sobre o marxismo hoje?

— Destaco a sua amplitude e flexibilidade. A sua teoria económica é claramente actual, desde antes do Manifesto Comunista que antecipou a globalização do capitalismo e, portanto, a globalização actual, até chegar às suas abordagens sobre as crises. Contudo, o marxismo não é algo que possa ser dividido, dado o seu carácter unitário. Embora a divisão entre o materialismo histórico e o materialismo dialético pareça superada, os seus conteúdos são integrados no marxismo verdadeiramente criativo.

“Na minha opinião, todo o marxismo é actual no que diz respeito à interpretação da realidade do ponto de vista da totalidade, especialmente quando o chamado pós-modernismo postula o abandono das grandes narrativas para se concentrar apenas em casos específicos. Para o marxismo a ideia de totalidade é o centro metodológico fundamental. O método criado por Marx também me parece relevante.”

— E neste sentido, o senhor propõe que o ateísmo, na visão materialista, poderia ser considerado uma parte dispensável do marxismo, como demonstra a Teologia da Libertação, que reconcilia partes do cristianismo com elementos do marxismo numa síntese muito valiosa.

- Sim e não. A Teologia da Libertação era muito forte no Brasil e atualmente está em declínio. Foi e é muito importante porque abre caminhos de entendimento entre setores progressistas da sociedade. No entanto, penso que se alguém é consistentemente marxista, também é ateu. Porém, faço uma ressalva: a palavra ‘ateísmo’ tem para mim um significado negativo que confunde, porque o marxismo é uma posição afirmativa da imanência do homem, da sua autonomia, da sua capacidade de transformar a realidade sem a intervenção de forças não terrenas.

Gramsci disse que o marxismo era um humanismo absoluto e também um historicismo absoluto.”

— Dentro desta concepção ampla, que caráter têm as chamadas leis históricas?

— Todas as supostas leis absolutas no campo social têm caráter tendencial, podendo ou não ser cumpridas. Alguns viram no discurso de Engels por ocasião da morte de Marx uma assimilação entre as leis naturais e as leis da sociedade. É uma analogia complicada. Isso levou Karl Kautsky a uma confusão entre Darwin e Marx.

"O método científico nas ciências naturais é diferente do método nas ciências sociais. Para mim, a essência do método de Marx reside na sua capacidade de revisão. Não se trata do revisionismo liquidacionista de Bernstein, mas se pensarmos, por exemplo, sobre Lenine, Lenine revisou o marxismo. Marx sustentou que a revolução proletária começaria nos países capitalistas desenvolvidos, especialmente na Alemanha. Lenine postulou, em vez disso, que a revolução ocorreria no elo mais fraco do sistema.

Gramsci desenvolveu uma teoria do Estado e da revolução de acordo com as novas exigências da realidade. Pode-se dizer que a única cousa ortodoxa no marxismo é o método. E segundo isso, podemos e devemos abandonar muitas afirmações concretas feitas ao longo de mais de 150 anos, quando muitas das cousas que hoje constituem a nossa realidade nem existiam, o que exige um esforço profundo de compreensão e ação.

Mariátegui já disse: o socialismo na Indo-América não pode ser nem cópia carbono nem imitação servil, mas sim uma criação original”.

— Não existe um certo eurocentrismo no marxismo, que leva a prestar pouca atenção aos revolucionários de outras origens?

- Isso é verdade. Embora recorra novamente a Mariátegui, que disse que a maior e mais fecunda aprendizagem foi feita na Europa e que sem as ideias ocidentais e europeias não teria sido capaz de pensar a Indo-América.

"Reitero que você tem razão e acho que é mais importante agora, quando a questão do multiculturalismo é levantada com tanta força. Na América Latina é algo decisivo. No Brasil, 50% da população é branca e os outros 50% são não-brancos.

“O continente tem três raízes centrais. Branca, negra e indígena. Além disso, em certas áreas há forte presença de indianos (da Índia) e também de chineses. Em pouquíssimos países não existem negros, mas existem indígenas. De qualquer forma, esta é uma questão crucial que ganha cada vez mais força. O multiculturalismo corre o risco de dissolução das luitas em áreas parciais, o que nos faz perder de vista a dimensão geral da luita. E o que é verdade para o multiculturalismo também é verdade, e mais ainda, para a existência e acção dos movimentos sociais. Há também evidências da necessidade duma ideologia integradora, que destaque a importância da política e dos partidos.

“Ainda hoje o partido político acolhe as reivindicações dos diferentes sectores, dá-lhes uma dimensão geral e acaba por propor soluções articuladas no contexto geral da sociedade. Portanto, a forma partidária continua a ser essencial para evitar a fragmentação que pode ocorrer, e garantir a permanência ou continuidade no desenvolvimento e crescimento das demandas e necessidades setoriais.”

Gramsci no Brasil

— Como Gramsci entrou no marxismo brasileiro?

Gramsci chegou ao Partido Comunista Brasileiro, que era permeável às ideias do teórico italiano, o que explica por que foi um processo rápido. No entanto, o PC brasileiro deixou de ser hegemônico na esquerda na década de 1960. Vários intelectuais, inclusive eu, fizeram o esforço interno, mas entramos em conflito com a direção do partido. No início dos anos 80 fomos acusados ​​de sermos eurocomunistas e abandonámos o PC.

“Entrei no PT, que tinha uma forte corrente de esquerda. Quando o PT implementou uma política neoliberal, especialmente nos dous governos Lula, que seguiu o rumo de Fernando Henrique Cardoso excepto por uma política de bem-estar social que lhe deu grande apoio popular, nós retiramo-nos e fundamos um pequeno partido: Socialismo e Liberdade, que tem, no entanto, três deputados. A vida para os partidos de esquerda não é fácil hoje no Brasil, devido à grande influência que o PT tem nos movimentos sociais. Ligamos socialismo e liberdade, que nos parecem indissolúveis.

Mas voltemos a Gramsci. Não há dúvida de que foi um grande pensador e um ser humano notável. Os seus pensamentos hoje parecem mais relevantes do que antes. Especialmente nos países centrais e nos mais integrados na globalização. Nesses países é muito mais difícil – ou mesmo impossível – uma revolução armada.

"O Partido Comunista Italiano compreendeu rapidamente a necessidade de mudar a estratégia revolucionária nos países democráticos desenvolvidos, aqueles países que Gramsci chama de 'ocidentais' (não propriamente no sentido geográfico), em vez de nos países 'orientais', onde é muito difícil imaginar formas de luita que não sejam armadas, como ocorre, por exemplo, nos países árabes, onde não existe uma sociedade civil forte. Palmiro Togliatti teve grande papel no conhecimento e divulgação da obra de Gramsci, que formulou a ideia de democracia progressista, ou seja, uma base para o socialismo que ocorre dentro das democracias constitucionais, através de reformas estruturais profundas.

Togliatti transformou as ideias gerais de Gramsci em estratégia política concreta. Pietro Ingrao e Nikos Poulantzas também foram muito importantes.

“Tudo isto torna mais difícil explicar o que aconteceu em Itália. Quando eu vivia em Itália, o PC tinha 34% dos votos, que juntamente com os socialistas e alguns pequenos partidos ultrapassavam os 50%. Actualmente não há um único deputado comunista no Parlamento. Todos os partidos de esquerda combinados não obtêm o mínimo para aceder ao Parlamento.

“Acho que há muito tempo começou na Itália um processo de regressão política que atingiu extremos trágicos. Neste processo regressivo a influência da mídia tem sido muito importante. E a certa altura, as pressões dos Estados Unidos, que temiam a dissolução da OTAN, e do Vaticano, que se voltou contra a esquerda.

Gramsci diz que existe uma ‘pequena política’ no mundo, que é composta pola administração do que existe e pola alternância entre centro-esquerda e centro-direita, e que existe também uma ‘grande política’, que busca mudar estruturas, as mudanças fundamentais, a constituição de sujeitos sociais cuja ação é decisiva. As cousas, no entanto, parecem estar mudando, mas devemos também ter em mente 'o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade' de que falou Gramsci, aludindo ao realismo que a política deveria inspirar”.

América Latina hoje

— O que você acha da situação actual na América Latina?

— Esta é uma situação emocionante. Embora em meados e finais dos anos 70 houvesse processos muito esperançosos no Brasil, na Bolívia, no Chile, no Peru e na Argentina, agora é diferente. Não sei bem o que está acontecendo na Venezuela, na Bolívia, no Equador e em outros países, mas estes são, sem dúvida, processos mais profundos e sólidos. Não só porque são verdadeiras reconstruções após grandes derrotas, mas porque há uma incorporação muito activa dos movimentos sociais indígenas, dos trabalhadores e da juventude, mas também porque há perspectivas socialistas.

“Os governos destes países estão a elevar o socialismo como uma questão de grande política. Não é certo que terão sucesso total, mas o simples facto de postular a questão, de a discutir, de organizar o povo e abrir o caminho para novos partidos é tremendamente importante, como faz o presidente Chávez com o seu projecto de socialismo do século XXI.

“A situação económica também favorece transformações. No Peru, com a vitória de Ollanta Humala, abre-se um período de espera, e há até indícios de que poderia tentar seguir os passos de Lula e do PT brasileiro. E é uma situação preocupante. Lula prometeu muito e não fez, muito menos transformações socialistas, mas nem mesmo mudanças modernizadoras significativas, como na questão fundiária.

“O neoliberalismo é forte mas não invencível. Uma novidade adicional no caso da Venezuela é que as transformações ocorrem num país muito rico, o que significa enormes recursos para as transformações sociais e, sobretudo, para as bases duma economia socialista com novas características.

— O Brasil é hoje um imperialismo?

— Na minha opinião, o Brasil é subimperialismo, no sentido de que faz parte do sistema hegemónico do imperialismo norte-americano. É a sétima maior economia do mundo e poderá tornar-se a quinta ou sexta nos próximos dous ou três anos. As empresas brasileiras são grandes multinacionais que actuam na América Latina e na África. Tem praticamente dous centos milhões de habitantes, é economicamente forte e possui grandes riquezas naturais. Mas, ao mesmo tempo, tem enormes fragilidades derivadas do grande latifúndio, da concentração da riqueza e da pobreza de grande parte da população.

“Por outro lado, mantém uma política externa bastante digna, que vem do passado e que se intensificou com Lula, porque tem uma espécie de vocação de grande potência. O que já era perceptível na ditadura militar: o Brasil foi o primeiro país no mundo que reconhecia o governo marxista de Angola. Praticava-se então o 'pragmatismo responsável', porque era interessante abrir caminho para investimentos naquele país. Na América Latina, o papel do Brasil é cada vez mais importante."

— E o que você acha da China?

— Tenho uma visão muito cética, apesar da presença do Partido Comunista no governo. As políticas económicas são claramente neoliberais e há uma superexploração da força de trabalho e uma falta de democracia real. A China também tem uma política externa de grande potência, no sentido negativo da palavra.

“A queda da União Soviética criou uma situação muito perigosa no mundo, na qual os Estados Unidos se instalaram como uma grande potência hegemónica, sem qualquer adversário. E penso que ainda demorará muito até que surja uma potência alternativa. Se a União Soviética existisse, é muito provável que o que está a acontecer na Líbia não teria acontecido. Diz-se que com o seu poder económico, a China tornará o socialismo possível. "Não me parece um argumento convincente."

Notas marxistas

“(…) é importante lembrar que o socialismo nunca foi tão necessário, dada a crescente destrutividade do sistema capitalista, mas ao mesmo tempo tão difícil.

"As condições objectivas são favoráveis. As crises do capitalismo agravam-se e conduzem-nos cada vez mais à barbárie. Além disso, graças ao extraordinário desenvolvimento das forças produtivas, tornou-se possível que, em vez do aumento do desemprego estrutural, como está a acontecer no capitalismo, torna-se realista uma proposta de redução drástica da jornada de trabalho. E esta redução, como nos diz Marx em O Capital, é a base da passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade, ou seja, para o comunismo (… ).

“Mas as condições subjectivas são desfavoráveis. Por muitas razões, a consciência da necessidade do socialismo enfraqueceu drasticamente nas últimas décadas. Por um lado, o colapso do”socialismo real” (...) espalhou a crença de que o socialismo era uma cousa do passado.

“Mas o mais importante me parece o facto de que as grandes mudanças no mundo do trabalho tornaram difícil a formação duma consciência de classe. O sujeito revolucionário não é mais apenas a classe operária fabril, mas todos aqueles que vivem do seu trabalho, criando mais-valia para o capital.

“Certamente ainda é um problema em aberto – e um grande desafio para os marxistas – definir quem faz parte do possível sujeito revolucionário hoje.”

(Da apresentação do livro Marxismo e política).


Nota de rodapé:

(1) Jornalista (retornar ao texto)

Inclusão: 13/10/2023