Contribuição para o Estudo da Questão Agrária

Álvaro Cunhal

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Um Obstáculo Que Não se Remove


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O carácter supérfluo da propriedade privada da terra revela-se com nitidez através das duas importantes formas de dissociação entre a propriedade e exploração agrícola, que se acabam de referir. Mas os próprios proprietários rurais, os grandes proprietários rurais, vivendo completamente e ostensivamente à margem da exploração agrícola e apropriando-se, sob a forma de renda, de parte considerável do valor criado na agricultura, se encarregam de mostrar, aos olhos dos que não estudam economia, a sua completa inutilidade no processo de produção e, consequentemente, a inutilidade da instituição que os caracteriza como classe social. Quando vivem afastados das suas propriedades, quando vivem em cidades distantes ou mesmo no estrangeiro, revelam aos olhos de todos que a sua "participação" na produção e na troca se resume a receber a renda.

Não são estes casos excepcionais ou sequer invulgares. Eles constituem a situação normal predominante dos grandes proprietários. Regra geral, o grande proprietário não se ocupa da exploração: ou a arrenda, ou a entrega a administradores assalariados.

Na freguesia de Santo Ildefonso do concelho de Eivas, 10 grandes propriedades, no total de 26, estavam arrendadas em 1934, e nas outras grandes que não o estavam o mais frequente era encontrarem--se feitores à frente da exploração agrícola(33). No total de 118 proprietários existentes na freguesia, 33 não eram lavradores e, destes 33, 20 viviam fora do concelho, a maior parte em Lisboa(34). Que este é o panorama habitual por todo o Alentejo mostram-no os números seguintes relativos a dois distritos estudados uns anos atrás no seu todo.

No distrito de Évora, 471 sobre 1095 grandes proprietários, ou seja, 43%, arrendavam tudo quanto possuíam. No distrito de Portalegre o mesmo sucedia com 372 no total de 809 grandes proprietários, ou seja, 46%(35). Contando apenas estes proprietários, que arrendavam todas as terras, e que, portanto, nem sequer nominalmente eram lavradores, vemos que os absentistas subiam a quase metade de todos os grandes proprietários de dois distritos caracterizados precisamente pelo predomínio de grandes propriedades. E, quando se repara que estes 843 grandes proprietários absentistas tinham arrendados 327.000 ha, só em propriedades de mais de 60 ha (pois muitas outras possuíam de menos de 60 ha que aqui não são contadas), quando se repara que menos de tal extensão têm os distritos de Aveiro, de Braga, de Lisboa, do Porto ou de Viana do Castelo, bem se compreende a reprovação quase geral do absentismo e como os absentistas comprometem as justificações ideológicas da sua própria classe. Além dos que arrendam as terras, muitos outros há que, embora designados como proprietários explorando a terra "por conta própria", são igualmente absentistas. Isso sucede em especial com os maiores proprietários, pois as muito grandes propriedades lhes permitem, pela sua riqueza, pagarem a administradores e outro pessoal de direcção, de forma a manterem-se permanentemente afastados das suas propriedades, fazendo-lhes ou não, de longe em longe, rápidas visitas de turista.

O absentismo não é fenómeno específico do Alentejo: ele é comum a todo o território nacional em relação à grande propriedade. "O proprietário da terra — diz-se falando de regiões beiroas — tem no geral ocupações que desta o afastam em absoluto, não podendo, não sabendo e não querendo, na maioria das vezes, preocupar-se demasiadamente com ela. Ele tem principalmente em vista e prefere sempre receber anualmente sem mais incómodos o juro desse capital (sic) representado neste caso pela renda da terra."(36)

O absentismo torna acessível aos espíritos mais simples o significado profundo da dissociação da propriedade e da exploração, bem patente nas hipotecas e no arrendamento. Aquele não poder, não saber e não querer, o afastamento completo do proprietário, a sua vida alheia à exploração e tendo como único laço ligando-o a ela o direito à renda (o direito de propriedade) põem imediatamente a questão do seu inútil papel no processo de produção capitalista.

Deve, porém, sublinhar-se que o absentismo não faz senão tornar mais chocante, mais visível, a superfluidade da propriedade particular do solo no processo de produção capitalista, mas nada acrescenta de novo à dissociação da propriedade e da exploração e nada acrescenta aos obstáculos levantados pela instituição ao desenvolvimento do capitalismo. Sob o ponto de vista económico é tão inútil no processo de produção o proprietário absentista como aquele que calça botas, veste samarra, põe chapéu mais ou menos rústico e se exibe assim pelos seus campos, dirigindo ou não de facto os trabalhos. Sob o ponto de vista económico o carácter supérfluo da propriedade privada da terra na economia capitalista existe da mesma forma, seja o proprietário um absentista ou não o seja, seja ou não lavrador o proprietário.

Contra o que julgam muitos economistas, o proprietário rural, que é ao mesmo tempo o lavrador das suas terras, o chamado proprietário-empresário, não deixa por esse facto de receber a renda, ou seja, o excedente do lucro médio. Se o proprietário rural explora directamente as suas terras, se é "lavrador", isso significa que ele é ao mesmo tempo proprietário e capitalista. Como capitalista explora as terras e recebe o lucro médio; como proprietário recebe o excedente desse lucro médio, ou seja, a renda.

É comum reconhecer-se que o absentismo compromete a instituição da propriedade privada do solo e pretender-se, em contrapartida, absolver esta, quando a produção é efectuada por "conta própria". Ao mesmo tempo que se reconhece que "o proprietário absentista abdica do desempenho de uma função social" afirma-se que "o proprietário de terras se eoloca inteiramente a coberto dos sólidos argumentos que justificam a apropriação privada do solo agrícola quando se constitui empresário de uma exploração agrícola"(37).

Esta diferença entre o proprietário absentista que arrenda todas as suas terras e o proprietário--lavrador não oferece, porém, qualquer base consistente. Quando o proprietário é absentista não abdica de qualquer função social, pois a sua única "função social" é receber a renda, e isso nunca deixa de o fazer. E quando o proprietário "se constitui empresário de uma exploração agrícola", não se mostra que o proprietário rural é necessário na economia capitalista, mas sim que o capitalista (seja ou não proprietário rural) é indispensável na economia capitalista, o que é uma tautologia que não consta ninguém tenha pretendido negar.

O arrendamento (assim como as hipotecas) evidencia como o capitalismo poderia (no terreno puramente económico) dispensar os proprietários rurais, o absentismo ilustra esta situação, mas, mesmo sem o absentismo, mesmo sem o arrendamento, mesmo quando o proprietário é também o lavrador, é também o capitalista — mesmo então a propriedade privada da terra (e o seu monopólio), engendrando a renda absoluta, impossibilitando por esse facto que a mais-valia criada na agricultura participe na formação da quota média de lucro, refreando a acumulação de capital, impedindo investimentos de capital na exploração agrícola, obrigando à paralisação importantes capitais correspondentes ao preço da terra, não deixa de ser o mesmo obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo. Mesmo então o proprietário da terra (não nos referimos à pessoa, mas à categoria social, à instituição) é um peso morto no processo de produção.

O capitalismo não só podia dispensar essa instituição como teria necessidade de dispensá-la para acelerar o seu desenvolvimento. Se o Estado burguês se substituísse aos proprietários rurais, isto é, se nacionalizasse a terra, nenhuma dificuldade seria, por esse facto, criada à produção. Pelo contrário: com o termo do monopólio dos proprietários rurais, acentuar-se-ia a acumulação do capital, mobilizar-se-iam grandes capitais hoje paralisados em virtude do preço da terra, baixaria o preço das matérias-primas de origem agrícola e dos meios de subsistência, a produção receberia novo e vigoroso impulso e, para proveito e alegria dos burgueses, aumentaria consideravelmente a quota de lucro.

Sendo assim, porque não remove o Estado burguês esse obstáculo? Porque, ao contrário, defende com energia crescente, no terreno teórico e no terreno da prática, essa instituição contrária ao seu próprio desenvolvimento?

Por várias razões isso sucede.

A primeira é que a nacionalização da terra excederia largamente nos seus efeitos o objectivo em vista. Como Marx e Lénine sublinharam, a nacionalização da terra, além de pôr termo ao monopólio dos proprietários agrícolas, "tocaria noutro monopólio que, nos nossos dias, é particularmente importante e 'sensível': o monopólio dos meios de produção em geral"(38). Como Engels notou, "atacar qualquer forma de propriedade seria atacar todas". Por isso, o capitalismo, embora contrariado no seu desenvolvimento pela propriedade privada da terra, declara o carácter eterno desta forma de propriedade como o de qualquer outra e indica o dever de respeitá-la. "O direito de propriedade — diz-se falando-se da agricultura — é uma emanação do direito natural e fruto da experiência de séculos."(39) A Propriedade privada — diz-se, falando-se da propriedade da terra — é uma "verdadeira instituição "e direito natural, intangível na sua existência"(40). Na época do ascenso revolucionário do proletariado a defesa da propriedade privada, em geral, não consente se abra uma excepção à propriedade da terra.

A segunda razão é que, na evolução do capitalismo, o capital industrial e o bancário se ligam de forma crescente à propriedade agrícola. Há, ainda, é certo, contradições de interesses entre capitalistas e proprietários rurais que encontram eco, de quando em quando, em reclamações várias. Reclamam os proprietários contra o alto preço dos produtos industriais, contra as elevadas taxas de juro, contra os monopólios no tratamento industrial dos produtos agrícolas; reclamam os industriais contra os altos preços das matérias-primas agrícolas e das subsistências alimentícias, porque aumentam os preços de custo e encarecem a força de trabalho; pedem os capitalistas o agravamento da contribuição predial rústica que consideram proporcionalmente inferior à industrial; e reclamam medidas limitativas do direito de propriedade da terra para obrigar os proprietários rurais a acelerar "planos de fomento" (irrigação, colonização, etc.) que apressem o desenvolvimento do capitalismo. Tais reclamações contraditórias são, porém, cada vez mais tímidas, dada a ligação crescente de capitalistas e proprietários rurais. As hipotecas dão aos bancos e outros prestamistas o direito à renda, que é a substância do direito de propriedade da terra. Os capitalistas tornam-se também proprietários rurais e os proprietários rurais tornam-se capitalistas. Uns e outros acabam por aproximar-se e fundir no essencial os seus interesses. E, por isso, embora o desenvolvimento mais rápido do capitalismo exigisse a nacionalização de terras, os capitalistas passam a estar interessados na sua defesa. Tais são as duas razões fundamentais que se conjugam para que o capitalismo mantenha e defenda uma instituição que contraria o seu desenvolvimento.

Esta situação reflecte-se no campo da teoria económica com a substituição das três velhas "fontes de renda" ou "factores da produção" (terra, trabalho e capital), por uma nova arrumação em que a "terra" se funde com o "capital" e aparece um novo "factor" — o "empresário". O significado deste arranjo verbal, hoje tanto em moda, é o facto de traduzir o recebimento da renda, do juro e do lucro (todos formas da mais-valia), não já por duas entidades ou classes sociais separadas e divergentes — proprietário rural e capitalista — mas pela entidade "capitalista-proprietário" e "capítalista-empresário", por vezes duas pessoas diferentes numa só verdadeira. Estes economistas não se apercebem da diferença essencial existente entre a terra e o capital: que, enquanto a primeira não é produto do trabalho, não tendo por isso valor, o segundo é única e exclusivamente produto do trabalho, é "mais-valia acumulada". A evolução do capitalismo, com a aproximação de interesses de capitalistas e proprietários da terra, determinou, porém, essa incompreensão. E, por isso, quando estes economistas integram a forma "renda" na forma "juro", como remuneração do "capital", mal imaginam a fidelidade com que, no seu erro, reflectem a alteração das relações entre o capital e a propriedade da terra provocada pela evolução do capitalismo.

Mantendo as principais causas do atraso da agricultura, o capitalismo não pode superá-lo. Daí resulta o carácter hesitante do seu desenvolvimento na agricultura, a sua lentidão e até as suas aparentes pausas e os seus aparentes retrocessos. Entretanto, embora em ritmo mais lento do que na indústria, esse desenvolvimento prossegue incessantemente, generalizando-se nos campos as relações de produção capitalista em substituição das relações de produção vindas da sociedade feudal.


Notas:

(33) Inquérito à Freguesia de Sto. Ildefonso, p. lh_. (retornar ao texto)

(34) Ibid., p. 56. (retornar ao texto)

(35) Na base de elementos de E. C. Caldas, Formes de Exploração, pp. 142-143. (retornar ao texto)

(36) Teles de Vasconcelos, cit. por Lima Basto, Alguns Aspectos, p. 97. (retornar ao texto)

(37) E. C. Caídas, Formas de Exploração, pp, 153, 154. (retornar ao texto)

(38) Lénine, Karl Marx. (retornar ao texto)

(39) Cit. por J. G. Pereira Caldas, O Povoamento do Sul, em J. C. I., Problemas de Colonização, I, p. 14. (retornar ao texto)

(40) Parecer da Câmara Corporativa, Diário das Sessões de 4 de Março de 1952, p. 391. (retornar ao texto)

Inclusão 24/07/2006