Karl Marx

Eleanor Marx

Maio de 1883


Primeira edição: “Karl Marx I” Progress, May 1883, pp.288-294.
Fonte:
Mouro - Revista Marxista. Núcleo de Estudos d'O Capital.
Tradução: Ligia Kimie Yamasato.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.

capa

Não se passou muito tempo, talvez muito pouco, para escrever a biografia de um grande homem quase que imediatamente após sua morte, e a tarefa é duplamente difícil quando recai sobre uma pessoa que o conhecia e o amava. Para mim, neste momento, só é possível apresentar um breve resumo da vida do meu pai. Vou me limitar a uma simples demonstração de fatos, e não vou sequer tentar fazer uma exposição de suas grandes teorias e descobertas; teorias que são a base do Socialismo Moderno — descobertas que estão revolucionando toda a ciência da Economia Política. Espero, contudo, poder fazer futuramente uma análise para a Progress da grande obra do meu pai, “O Capital”, e das verdades nela contidas.

Karl Marx nasceu em Trier, em maio de 1818, de pais judeus. Seu pai — um homem de grande talento — era advogado, muito influenciado pelas ideias francesas do século XVIII sobre religião, ciência e arte; sua mãe era descendente de judeus húngaros que no século XVII se estabeleceram na Holanda. Entre seus amigos de infância mais antigos estavam Jenny — que mais tarde tornou-se sua esposa — e Edgar von Westphalen. Com o pai deles, o Barão von Westphalen — meio escocês — Marx aprendeu a gostar da “Escola Romântica” e, enquanto seu pai lia Voltaire e Racine, Westphalen lia Homero e Shakespeare, que se tornaram seus escritores preferidos.

Muito amado e, ao mesmo tempo, temido por seus colegas de escola — amado por suas travessuras e temido por sua aptidão para escrever versos sarcásticos e difamar seus inimigos — Karl Marx teve uma rotina escolar normal, e depois seguiu para as Universidades de Bonn e Berlim, onde, para agradar seu pai, cursou Direito por algum tempo, e para satisfazer a si mesmo foi estudar História e Filosofia. Em 1842, Marx estava prestes a habilitar-se como “Livre Docente” em Bonn, mas o movimento político que surgia na Alemanha desde a morte de Frederick William III em 1840 levou-o para outra carreira. Os líderes da burguesia liberal renana — Kamphausen e Hansemann — haviam fundado a Gazeta Renana em Colônia, com a colaboração de Marx, cuja crítica brilhante e ousada do parlamento provinciano causou tanta comoção que, embora tivesse apenas vinte e quatro anos de idade, lhe foi oferecido o cargo de redator-chefe do jornal. Ele aceitou, e com isso começou sua longa luta contra todas as tiranias e, particularmente, contra a tirania prussiana. Obviamente o jornal estava sob a supervisão de um censor — mas o pobre censor se via impotente. A Gazeta invariavelmente publicava todos os artigos importantes, e o censor nada podia fazer. Então um segundo censor, um “especial”, foi enviado de Berlim, mas mesmo esta dupla censura não teve êxito e, finalmente, em 1843 o governo simplesmente proibiu todo o jornal. No mesmo ano, em 1843, Marx casou-se com sua velha amiga de infância, com quem havia sido noivo por sete anos, Jenny von Westphalen, e com sua jovem esposa mudou-se para Paris. Lá, junto com Arnold Ruge, publicou os Anais Franco-Alemães, iniciando sua longa série de artigos socialistas. Sua primeira contribuição foi uma crítica sobre a “filosofia do direito” de Hegel; a segunda, um ensaio sobre a “Questão Judaica”. Quando os Anais deixaram de existir, Marx contribuiu para o periódico Vorwärtz, do qual ele era tido como editor. De fato, o cargo de editor deste jornal, que também contou com a colaboração de Heine, Everbeck, Engels etc., era um tanto irregular, e um editor realmente responsável nunca existiu. A próxima publicação de Marx foi “A Sagrada Família” escrita com Engels, uma crítica sarcástica dirigida contra Bruno Bauer e sua escola de idealistas hegelianos.

Apesar de, naquela época, dedicar a maior parte de seu tempo para o estudo de Economia Política e Revolução Francesa, Karl Marx continuou a travar uma guerra raivosa contra o governo da Prússia e, por essa razão, este governo exigiu de M. Guizot — conforme relato da agência de Alexander von Humboldt em Paris — a expulsão de Marx da França. E a essa exigência Guizot atendeu com firmeza, e Marx teve de deixar Paris, mudando-se para Bruxelas, e lá, em 1846, publicou em francês o “Discurso sobre o livre comércio”. Proudhon havia publicado “Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria” e escreveu a Marx, dizendo que aguardava sua “férula crítica”. Ele não teve de esperar muito tempo, pois, em 1847, Marx publicou “Miséria da Filosofia, resposta à Filosofia da Miséria de Proudhon” e a “férula” foi aplicada com uma austeridade que Proudhon provavelmente não esperava. Neste mesmo ano, Marx fundou uma Associação dos Operários Alemães em Bruxelas e, o mais importante, participou, junto com seus amigos políticos, da “Liga dos Comunistas”. Toda a organização da Liga foi modificada por ele; de uma conspiração secreta passou a ser uma organização para a propaganda dos princípios comunistas, e só era secreta porque as circunstâncias existentes na época faziam do sigilo uma necessidade. Onde houvesse uma associação de operários alemães, a Liga também existia, e este foi o primeiro movimento socialista de caráter internacional, que tinha como membros ingleses, belgas, húngaros, poloneses, escandinavos. Esta foi a primeira organização do Partido Social Democrata. Em 1847 foi realizado um Congresso da Liga em Londres, onde Marx e Engels assistiram como delegados; e eles foram convocados para escrever o célebre “Manifesto do Partido Comunista” — publicado pela primeira vez imediatamente antes da Revolução de 1848, e posteriormente traduzido em quase todas as línguas europeias.

O manifesto começa com uma análise das condições existentes da sociedade. E passa a mostrar como pouco a pouco a velha divisão de classes feudal desapareceu, e como a sociedade moderna foi dividida em apenas duas classes — a dos capitalistas, ou classe burguesa, e a dos proletários; dos expropriadores e dos expropriados; da classe burguesa em posse da riqueza e do poder sem nada produzir e da classe trabalhadora que produz riqueza, mas não possui nada. A burguesia, após usar o proletariado para lutar em suas batalhas políticas contra o feudalismo, usou o poder então adquirido para escravizar o proletariado.

Para a acusação de que o Comunismo visa “abolir a propriedade”, o Manifesto respondeu que os Comunistas visam apenas abolir o sistema burguês de propriedade, porque para nove décimos da Comunidade a propriedade já está abolida; para a acusação de que os Comunistas visam “abolir o casamento e a família”, o Manifesto respondeu perguntando que tipo de “família” e “casamento” eram possíveis para os operários, já que para eles o verdadeiro significado dessas palavras nunca existiu. Quanto a “abolir a pátria e a nacionalidade”, essas estão abolidas para o proletariado e, graças ao desenvolvimento da indústria, para a burguesia também. A burguesia tem feito grandes revoluções na história; ela revolucionou todo o sistema de produção. Sob suas mãos, foram desenvolvidos a máquina a vapor, o tear mecânico, o martelo-pilão a vapor, as ferrovias e navios a vapor de nossos dias. Mas a sua produção mais revolucionária foi a produção do proletariado, de uma classe cujas próprias condições de existência obrigam-na a destruir toda a sociedade real. O Manifesto termina com as palavras:

“Os comunistas recusam-se a esconder seus propósitos e suas opiniões. Declaram abertamente que os seus objetivos só poderão ser alcançados através da derrubada violenta de todas as condições sociais existentes. Deixem que as classes dominantes estremeçam diante de uma revolução comunista. Nela, os proletários nada têm a perder a não ser suas próprias correntes. Eles têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!”

Entretanto, Marx continuou no jornal Brusseler Zeitung seu ataque contra o governo da Prússia e, novamente, o governo prussiano exigiu sua expulsão — mas, em vão, a Revolução de Fevereiro organizou um movimento entre os operários belgas, quando Marx, sem recusa alguma, foi expulso pelo governo da Bélgica. Entretanto, o governo provisório da França, através de Flocon, convidou-o a retornar a Paris, e este convite foi aceito. Em Paris ele permaneceu durante algum tempo, até depois da Revolução de Março, em 1847 quando retornou para Colônia, e lá fundou a Nova Gazeta Renana — o único jornal que representava a classe trabalhadora e tinha ousadia para defender os rebeldes de Junho de Paris. Em vão, vários jornais revolucionários e liberais denunciaram a Gazeta por sua audácia em atacar tudo aquilo que é sagrado e que desafia toda a autoridade — e que se encontra em uma fortaleza prussiana! Em vão, as autoridades, em virtude do Estado de Sítio, suspenderam o jornal por seis semanas. Este apareceu novamente sob os olhos da polícia. Sua reputação e circulação crescia à medida que os ataques lhe eram feitos. Após o Golpe de Estado de Novembro da Prússia, a Gazeta, nas manchetes de cada número, convocava as pessoas a recusarem os impostos e encontrarem a força pela força. Por isso, e por conta de certos artigos, o jornal foi duas vezes processado — e absolvido. Finalmente, após a revolta de maio (1849) em Dresden, Províncias Renanas e Alemanha do Sul, a Gazeta foi violentamente proibida. O último número - impresso em vermelho - foi publicado em 19 de maio de 1849.

Marx retornou a Paris, mas algumas semanas após a manifestação de 13 de junho de 1849, o governo francês deu a ele a opção de se retirar para a Grã-Bretanha ou deixar a França. Ele preferiu a última alternativa, e foi para Londres — onde viveu por trinta anos. Foi feita uma tentativa de publicar a Nova Gazeta Renana na forma de uma análise, publicada em Hamburgo, mas esta não foi bem sucedida. Imediatamente após o golpe de estado de Napoleão, Marx escreveu seu “18 Brumário de Luis Bonaparte” e, em 1853, “Revelações sobre o Processo dos Comunistas de Colônia” — onde revelou as tramas infames do governo e da polícia da Prússia.

Após a condenação dos membros da Liga Comunista em Colônia, Marx afastou-se da vida política ativa durante algum tempo, dedicando-se aos seus estudos económicos no Museu Britânico, contribuindo com editoriais e correspondências à Tribuna de Nova Iorque, e escrevendo panfletos e prospectos atacando o regime de Palmerston, amplamente divulgados por David Urquhart.

Os primeiros frutos de seus longos e dedicados estudos sobre a Economia Política surgiram em 1859 na “Crítica à Economia Política” — uma obra que apresenta a primeira exposição de sua Teoria de Valor.

Durante a Guerra Italiana, Marx, no jornal alemão “O Povo”, publicado em Londres, denunciou o Bonapartismo, que se escondia sob a aparência da aprovação liberal para as nacionalidades oprimidas, e a política prussiana que, sob o disfarce de neutralidade, pretendia pescar em águas agitadas. Naquela ocasião, foi preciso atacar Carl Vogt que, a serviço do “assassino da meia-noite”, estava incentivando a neutralidade alemã. Deliberadamente caluniado por Carl Vogt, Marx respondeu a ele e a outros cavalheiros de sua laia em “Herr Vogt”, em 1860, acusando Vogt de estar a serviço de Napoleão. Só dez anos mais tarde, em 1870, comprovou-se que esta acusação era verdadeira. A Defesa Nacional do governo francês publicou uma lista de mercenários bonapartistas e abaixo da letra V apareceu: Vogt, recebeu, em agosto de 1859, 10.000: francos”. Em 1867, Marx publicou em Hamburgo sua principal obra: “O Capital”, uma reflexão que retomarei no próximo número da Progress.

Entretanto, o movimento operário havia avançado tanto que Karl Marx poderia pensar em executar um plano há muito tempo almejado — a fundação de uma Associação Internacional dos Trabalhadores em todos os países mais avançados da Europa e América. Em abril de 1864, foi realizado um encontro público para expressar solidariedade com a Polônia. Esse encontro trouxe operários de várias nacionalidades e, então, decidiu-se fundar a Internacional. E, em 28 de setembro de 1864, foi realizado um encontro, presidido pelo Professor Beesley no St. James’ Hall. Foi eleito um conselho geral provisório, e Marx redigiu o Discurso Inaugural e as Medidas Provisórias. Neste discurso, após um terrível quadro de miséria das classes trabalhadoras, mesmo nos anos da chamada prosperidade comercial, ele evoca os operários de todos os países para se associarem, e, quase vinte anos antes no Manifesto Comunista, ele concluiu com as palavras:

“Proletários de todos os países, uni-vos!” As “Medidas” afirmam as razões para a fundação da Internacional:

“Considerando,

Que a emancipação das classes trabalhadoras deve ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras; que a luta pela emancipação das classes trabalhadoras significa não uma luta por privilégios e monopólio de classe, mas por direitos e deveres iguais, e a abolição de todo regime de classe;

Que a submissão econômica do operário ao monopolizador dos meios de trabalho, ou seja, as fontes de vida, está na base da servidão em todas as suas formas de miséria social, degradação mental e dependência política;

Que a emancipação econômica das classes trabalhadoras é, portanto, o grande objetivo para o qual todo movimento político deve estar subordinado como um meio;

Que todos os esforços que visam o grande final fracassaram até agora por falta de solidariedade entre as várias divisões de trabalho em cada país e pela ausência de laço de união fraternal entre as classes trabalhadoras de diferentes países;

Que a emancipação do trabalho não é um problema local nem nacional, mas um problema social que engloba todos os países onde existe a sociedade moderna, e que depende da sua solução sobre a concorrência, prática e teórica, dos países mais avançados;

Que a renovação das classes trabalhadoras nos países mais industrializados da Europa, ao despertar uma nova esperança, adverte solenemente contra uma recaída nos antigos erros e clama pela associação imediata dos movimentos ainda desunidos.

Por essas razões

Foi fundada a Associação Internacional dos Trabalhadores.”

Para dimensionar a importância de Marx na Internacional seria preciso escrever uma história da própria Associação — pois, além de ser secretário correspondente da Alemanha e Rússia, ele foi o espírito de liderança de todos os conselhos gerais. Os Discursos, com raríssimas exceções — desde o Inaugural ao último — sobre a Guerra Civil na França”, todos foram escritos por ele. Neste último discurso, Marx explicou o real significado da Comuna — “essa esfinge que tanto atormenta o espírito burguês”. E com palavras tão fortes quanto belas, ele qualificou o governo corrupto de “deserção nacional que abandonou a França nas mãos da Prússia”, denunciou o governo de homens como o falsário Jules Favre, o agiota Perry e o três vezes infame Thiers, esse gnomo monstruoso. Após contrastar os horrores perpetrados pelos Versailistas e a devoção heróica dos operários parisienses, que morreram pela preservação da república da qual M. Perry agora é o Primeiro-Ministro, Marx conclui:

“A Paris dos operários com sua Comuna será para sempre celebrada como o arauto glorioso de uma nova sociedade. Seus mártires são consagrados no grande coração da classe trabalhadora. A história de seus exterminadores já está pregada naquele pelourinho eterno do qual nem todas as orações de seus padres vão resgatá-los”.

A queda da Comuna colocou a Internacional em uma posição impossível. Era preciso mudar o Conselho Geral de Londres para Nova Iorque, e essa decisão, por sugestão de Marx, foi tomada pelo Congresso de Haia em 1873. Desde então, o movimento tomou outra forma; a relação contínua entre os proletários de todos os países — um dos milhares frutos da Associação Internacional — mostrou que já não há mais necessidade de uma organização formal. Mas de qualquer forma, o trabalho continua e deve continuar enquanto existir as atuais condições da sociedade.

Até 1873, Marx havia se dedicado quase que totalmente ao seu trabalho, embora este tivesse sido postergado por alguns anos por problemas de saúde. O segundo volume d’O Capital, sua principal obra, será editado pelo seu mais velho, mais verdadeiro e mais querido amigo, Frederick Engels. Há outros volumes d’O Capital que também poderão ser publicados.

Limitei-me nos detalhes estritamente históricos e biográficos do HOMEM. De sua personalidade marcante, sua imensa erudição, seu espírito, humor, gentileza e compaixão não dá para falar. Para somar todos

“os elementos
tão misturados nele que a Natureza poderia se levantar,
E dizer a todo o mundo, Este era um Homem!”

Eleanor Marx.


Inclusão 17/04/2013
Última alteração 13/04/2014