Moscou, 1937

minha visita descrita para meus amigos

Lion Feuchtwanger


3. Democracia e Ditadura


Chegamos agora àquela que é, talvez, a questão mais controversa que emerge das discussões sobre a Moscou de 1937: como anda a “liberdade” na União Soviética?

Quando se conversa com cidadãos soviéticos sobre esse tema, eles sustentam que apenas eles possuem uma democracia efetiva, ao passo que, nos países chamados democráticos, essa democracia existe apenas na forma, e não no conteúdo. E perguntam: se democracia significa o governo do povo, como esse povo pode governar de fato, se não possui os meios de produção? Nos países ditos democráticos, afirmam, o povo é, na melhor das hipóteses, governante apenas no nome; o poder real está nas mãos daqueles que controlam a produção material da vida. E indagam ainda: no que se resume essa suposta liberdade democrática, se a examinarmos mais de perto? A uma liberdade de vociferar impunemente contra o governo e os partidos de oposição, e a lançar, de três em três ou quatro em quatro anos, um pedaço de papel numa urna eleitoral sem ser espionado. Mas em nenhum lugar tais “liberdades” garantem ou mesmo possibilitam que a vontade da maioria seja efetivamente realizada. O que pode ser feito com a liberdade de opinião, de imprensa, de reunião, se o povo não possui controle sobre os jornais, as gráficas e os salões de encontro? E em que país as massas têm controle sobre tais instrumentos? Onde podem expressar suas opiniões de modo eficaz e encontrar representação real? A Constituição de Weimar, da antiga república alemã, é tida como uma das mais livres do mundo. Mas será que o parlamento, eleito de acordo com esse direito constitucional, conseguiu impor a vontade manifesta do povo? Foi capaz de impedir a ascensão da ditadura de uma minoria fascista? Assim, concluem os soviéticos, todas essas chamadas liberdades democráticas permanecerão fictícias enquanto não estiverem alicerçadas na liberdade verdadeira do povo, a qual só pode existir quando os meios de produção estiverem sob controle da coletividade.

“Você sabe”, — disse-me um alto estadista soviético, — “os políticos das democracias burguesas perceberam, tão cedo quanto nós, que, diante da ameaça de guerra das potências fascistas, a única política eficaz seria o rearmamento. Mas como estavam presos a eleições, parlamentos e a uma opinião pública artificialmente fabricada, tinham que esconder a verdade que viam — ou, na melhor das hipóteses, expressá-la de maneira ambígua e cautelosa. Por vias indiretas, tinham que coagir e bajular suas opiniões públicas e parlamentos para obter o que era necessário. Se não fôssemos nós, se não tivéssemos nos armado, a guerra fascista já teria começado há muito tempo. A atividade dos parlamentos das democracias tem consistido, em grande parte, em tornar a vida difícil para quem está no poder e em dificultar, ou mesmo impedir, a adoção das medidas necessárias. O resultado líquido desse sistema parlamentar chamado democrático, com sua chamada liberdade de imprensa, é que qualquer figura pública tem que se acostumar a ser constantemente coberta de insultos — ou a arriscar a própria vida para refutá-los. Em vez de se ocuparem de trabalho realmente construtivo, os ministros de um estado parlamentar têm que gastar a maior parte do tempo respondendo a perguntas irrelevantes e a objeções ridículas levadas ao absurdo.”

Confesso que esse retrato não me parece uma simples caricatura. Durante grande parte da minha vida, valorizei as liberdades democráticas, e a liberdade de opinião e de imprensa me era, como a qualquer escritor, profundamente cara. A famosa máxima de Anatole France, segundo a qual a democracia consiste no direito igual do rico e do pobre de dormir sob as pontes do Sena, sempre me pareceu um aforismo exagerado — tão encantador quanto ridículo. Essa minha convicção democrática sofreu seu primeiro abalo durante a guerra, quando percebi que, apesar de toda a retórica democrática, a guerra continuava contra a vontade da maioria do povo. Nos anos seguintes, as lacunas das constituições democráticas tornaram-se cada vez mais evidentes para mim, e hoje inclino-me a crer que as liberdades civis constitucionais são, em boa medida, uma isca para permitir que a vontade de uma pequena minoria se realize.

Quanto à União Soviética, estou convencido de que ela avançou consideravelmente no caminho da democracia socialista. É fato consumado que lá o povo, e não indivíduos isolados, detém a posse dos meios de produção, e é também fato que, enquanto as nações ditas democráticas, com sua conversa vazia sobre desarmamento e seus compromissos constantes, encorajavam os Estados fascistas a cometer sucessivos atos de agressão, a União Soviética, com seu rearmamento sistemático, impedia que o fascismo iniciasse uma guerra contra um mundo despreparado. Assim, não apenas estão certos os dirigentes soviéticos ao enfatizarem, com certa ironia, que somente suas “medidas antidemocráticas” tornaram possível a sobrevivência das democracias da Europa Ocidental; eles criaram, ademais, uma democracia real, ao transferirem os meios de produção para a coletividade e ao forjarem instrumentos efetivos para salvaguardar essa condição.

Os opositores da União Soviética gostam de brandir, como uma arma, o famoso dito de Lênin: “Liberdade é um preconceito burguês”. Mas o fazem de forma incorreta. Na realidade, a sentença afirma justamente o oposto do que lhe atribuem. Ela provém do tratado As Falácias Sobre a Liberdade, onde Lênin fala da:

“Irreverente desmontagem dos preconceitos democráticos da pequena-burguesia acerca da liberdade e da igualdade. Enquanto as classes não forem abolidas, — diz ele, — toda fala sobre liberdade e igualdade é autoengano. Enquanto a questão de a propriedade dos meios de produção permanecer sem solução, não pode haver liberdade real para a individualidade humana, tampouco igualdade verdadeira entre os homens, mas apenas a liberdade de classe dos proprietários, a igualdade hipócrita entre os que têm e os que não têm, entre os satisfeitos e os famintos, entre exploradores e explorados.”

Essa concepção de liberdade tornou-se um axioma para o cidadão soviético. A liberdade de criticar abertamente o governo pode ser uma boa liberdade — mas ele a considera bem inferior à liberdade de não temer o desemprego, a miséria na velhice, ou o futuro incerto de seus filhos.

Stálin deu expressão popular a esses pensamentos num discurso dirigido aos trabalhadores stakhanovistas:

“Infelizmente, — disse ele, — a questão não se resolve apenas com a liberdade. Se há falta de pão, de manteiga, de gordura, de tecidos, se as condições de moradia são ruins, então a liberdade, por si só, serve de pouco. É muito difícil, camaradas, viver apenas de liberdade. Para viver bem e feliz, é necessário que os bons frutos da liberdade política sejam complementados por bens materiais.”

Neste ponto, não posso deixar de citar as observações céticas de um filósofo injustamente pouco conhecido, Fritz Mauthner, sobre a ideia de liberdade democrática:

“Um estado democrático, — diz ele, — é um estado cujos cidadãos são politicamente livres. Apenas se decide, por tradição antiga ou por alguma superstição moderna, como as leis devem surgir: pela decisão dos mais ricos, dos mais velhos, dos que têm mais tempo de casa, ou mesmo da maioria. Em nenhum lugar está dito expressamente que liberdade política consiste em o povo ignorante fazer as leis que todos devem obedecer. A liberdade política nasce, normalmente, por meio de uma revolução — isto é, pela negação das restrições legais. Mas como tal negação é uma utopia — uma ordem social sem restrições legais é impensável —, então a primeira tarefa da nova ordem social é negar a negação e instituir novas restrições, que então passam a ser chamadas de liberdade.”

Voltando à União Soviética: a constituição soviética prevê, no Artigo 125:

“Em conformidade com os interesses dos trabalhadores, e com o objetivo de consolidar o sistema socialista, os cidadãos da URSS têm garantidos por lei:

a) Liberdade de palavra;

b) Liberdade de imprensa;

c) Liberdade de reunião e de organização de encontros;

d) Liberdade de procissões de rua e de manifestações.

Esses direitos dos cidadãos são garantidos pelo fato de que as gráficas, o papel, os edifícios públicos, as ruas, os serviços postais e telegráficos, e outras condições materiais necessárias para o exercício desses direitos, são colocadas à disposição dos trabalhadores e de suas organizações.”

Este artigo soa muito tranquilizador; ele não se contenta, como os dispositivos semelhantes de outras constituições, em prometer liberdade de expressão e de imprensa — ele especifica aquilo que assegura essa promessa. No entanto, a prática demonstra que, apesar dessa segurança formal, a situação da liberdade de imprensa e de palavra na União Soviética está longe de ser ideal. Como já mencionei, muitos escritores têm razões para se lamentar do zelo excessivo das autoridades políticas, e o fato de que Platão tenha querido banir os poetas de sua república é um consolo muito pobre para aqueles afetados por tais medidas.

Por mais que lamente o fato de que o Artigo 125 da Constituição Soviética não esteja, por ora, plenamente em vigor, consigo, por outro lado, compreender que a União Soviética não deseje percorrer precipitadamente o pequeno trecho que ainda a separa da realização plena do Estado socialista. A URSS jamais teria sido capaz de conquistar o que conquistou se tivesse se entregado a uma democracia parlamentar moldada à maneira das concepções da Europa Ocidental. A construção do socialismo nunca teria sido possível sob um regime em que o direito irrestrito à crítica destrutiva estivesse garantido. Nenhum governo, sujeito a ataques constantes no parlamento e na imprensa, e dependente do resultado de eleições, conseguiria impor ao povo os sacrifícios necessários que, e só eles, tornaram viável a edificação socialista. Diante da escolha entre desperdiçar grande parte de sua força respondendo a ataques fúteis e maliciosos ou concentrar toda essa energia na tarefa colossal de erguer a nova ordem, os dirigentes da URSS optaram por restringir o “direito ao vitupério”.

Mas o hábito de resmungar, queixar-se e alarmar-se é algo que muitos prezam quase tanto quanto a própria vida. Toda língua tem uma miríade de palavras para tais atividades, e posso imaginar com clareza que, para muitos, essa limitação ao “direito de maldizer” deve parecer puro despotismo. Por isso, há quem diga que a União Soviética é o exato oposto de uma democracia, e alguns vão ainda mais longe, sustentando que não há qualquer diferença entre a URSS e as ditaduras fascistas. Tal cegueira é lamentável. No fundo, a ditadura soviética se restringe a proibir a propagação de duas opiniões, seja por palavras, ações ou escritos: primeiro, que a construção do socialismo na URSS seria impossível sem uma revolução mundial; segundo, que a União Soviética estaria fadada a perder a guerra que se aproxima. A meu ver, deduzir dessas duas proibições uma equivalência plena com as ditaduras fascistas é ignorar uma distinção fundamental: a União Soviética proíbe a agitação em favor da ideia de que dois mais dois são cinco, ao passo que as ditaduras fascistas proíbem a afirmação prática de que dois mais dois são quatro.

Falando seriamente, o povo soviético desejaria, é claro, livrar-se das imperfeições que ainda mancham sua vida pública. Que esse é o seu desejo, prova-o a aceitação entusiástica da nova Constituição. Mas trata-se de um povo prudente, metódico, e assim como decidiram aumentar a produção de bens de consumo apenas depois de terem suprido a deficiência de matérias-primas e de máquinas, também querem garantir ao indivíduo o pleno usufruto dos direitos democráticos socialistas apenas quando a estabilidade dessa democracia estiver assegurada — seja pela vitória, seja pela eliminação da ameaça de guerra. “Não, camarada,” disse-me um dos dirigentes da URSS quando falávamos dos defeitos que ainda desfiguram a democracia socialista, “nós somos um batalhão em marcha. Primeiro devemos vencer; depois, podemos considerar se os botões do nosso uniforme ficariam melhores um pouco mais altos ou um pouco mais baixos”.

Tratando do mesmo tema, um filólogo soviético disse-me, em tom de brincadeira: “O que mais você quer? Democracia é o governo do povo, ditadura é o governo de um indivíduo. Mas se esse indivíduo representa o povo de maneira ideal, como é o nosso caso aqui, não se tornam democracia e ditadura uma só e mesma coisa?”

Há um fundo de seriedade nesse comentário. O culto a Stálin — essa veneração desmedida que o povo soviético dedica ao dirigente — é uma das primeiras coisas que salta aos olhos do estrangeiro que visita a URSS. Por todo o país, em lugares apropriados e inapropriados, encontram-se bustos e retratos gigantescos de Stálin. Qualquer discurso que se tenha a oportunidade de ouvir — seja político, artístico ou científico — está entremeado de louvores ao dirigente, e, não raro, essa idolatria assume formas pouco atraentes aos olhos ocidentais.

Alguns exemplos: os bustos espalhados pelas salas da Exposição de Arquitetura — que, aliás, elogiei — talvez não sejam inteiramente descabidos, já que Stálin é um dos idealizadores da reconstrução integral de Moscou. No entanto, é absolutamente incompreensível a presença de um busto gigantesco e feio de Stálin na Exposição de Rembrandt, de outra forma tão primorosamente organizada. E fiquei surpreso ao escutar, durante uma palestra sobre a “Técnica do Drama Soviético”, um conferencista inteligente e sóbrio explodir, de súbito, num cântico enfático em louvor de Stálin.

Não há dúvida de que, na maioria esmagadora dos casos, essa veneração exagerada é genuína. O povo sente necessidade de expressar sua gratidão e admiração ilimitadas. Acreditam, de fato, que devem a Stálin tudo o que têm e são. E por mais incongruente e, às vezes, desagradável que tal idolatria possa parecer a nós, ocidentais, em nenhum momento encontrei indícios de que ela seja artificial ou forjada. Ao contrário, ela brotou organicamente, paralela aos resultados efetivos obtidos na reconstrução econômica. O povo é grato a Stálin por seu pão e sua carne, por sua ordem, por sua educação e pela criação do Exército Vermelho que protege seu bem-estar recém-conquistado. Precisam de alguém a quem possam agradecer pelas transformações visíveis — uma abstração como “o comunismo” não basta. É preciso uma figura concreta, e essa figura é Stálin. O russo é propenso à exuberância verbal e gestual, e sente prazer em derramar seu coração. Essa homenagem excessiva talvez nem se dirija tanto a Stálin, o indivíduo, mas sim a Stálin enquanto símbolo visível da construção econômica bem-sucedida. Quando o povo diz “Stálin”, pensa, no fundo, em prosperidade crescente e em cultura ascendente. Quando dizem “Amamos Stálin”, querem dizer: aceitamos de bom grado nosso destino econômico, aceitamos o socialismo, aceitamos o regime.

Além disso, Stálin é carne da carne do povo. Filho de um sapateiro camponês, manteve intacto seu vínculo com os trabalhadores e camponeses. Pode-se dizer dele, com mais verdade do que de qualquer outro estadista que conheço, que fala a linguagem do povo. Definitivamente, não é o que se chamaria de um grande orador. Fala com hesitação, sem brilho, de forma quase monótona, como quem se esforça. Seus argumentos se desenvolvem vagarosamente, apelando ao bom senso sólido de um povo que entende as coisas a fundo, ainda que lentamente. Mas, acima de tudo, Stálin possui senso de humor — um senso de humor camponês, circunstanciado, astuto, confortável e, por vezes, bruto. Gosta de citar anedotas de escritores populares russos, aprecia essas histórias com gosto e mostra seu sentido prático. Em certos momentos, seus discursos lembram inscrições de calendários antigos. Quando fala com seu sorriso matreiro e tranquilo, apontando com o dedo indicador, Stálin não ergue uma barreira entre ele e o público, como tantos oradores fazem. Não se coloca numa posição dominante diante da multidão, mas estabelece rapidamente uma aliança, uma intimidade com os ouvintes. Como são feitos da mesma matéria, seus ouvintes se deixam persuadir pelos argumentos, e ambos, orador e público, riem com gosto das mesmas histórias simples.

Não posso resistir à tentação de citar um exemplo da eloquência popular de Stálin. Em um discurso sobre a Constituição, ele faz troça da Korrespondenz alemã semioficial, que afirmava que a Constituição soviética não podia ser considerada uma verdadeira constituição, já que a URSS não passava de uma ideia geográfica.

“Como é possível entender-se com ‘críticos’ como esses?”, — pergunta Stálin à plateia bem-humorada, e então oferece uma parábola — Num de seus contos, o grande escritor russo Shchedrin descreve um alto funcionário administrativo, tão limitado e simplório quanto vaidoso e obstinado. Um dia, esse funcionário avista, ao longe, a América — um país não muito importante, mas governado de maneira curiosa, onde existiam certas liberdades que inflamavam o povo —, e o funcionário, tendo avistado a América, fica aborrecido. Que país é esse, de onde surgiu, com que direito existe? Ah, foi descoberto por acaso há alguns séculos, foi? Não se poderia cobrir novamente esse lugar, para que não haja mais nada ali? Então nosso funcionário administrativo pensa e ordena: ‘A América deve ser redescoberta — ou melhor, indescrita’.

Parece-me, — diz Stálin à assembleia, — que o ‘crítico’ da Korrespondenz alemã semioficial e o funcionário administrativo de Shchedrin se assemelham como duas gotas d’água. A União Soviética é para ele, há muito tempo, um espinho cravado na carne. Durante dezenove anos, ela permaneceu aqui como um farol, contagiando os trabalhadores de todo o mundo com o espírito da emancipação e despertando a fúria dos inimigos da classe operária. E verifica-se que esta União Soviética não apenas existe, mas está crescendo; e não apenas crescendo, mas também florescendo; e não apenas florescendo, mas apresentando-se com uma nova constituição — uma constituição que agita as consciências e infunde nova esperança nas classes oprimidas. Como, então, o crítico da Korrespondenz alemã semioficial poderia não se indignar? ‘Que país é este?’, esbraveja ele, ‘com que direito existe? E se foi ‘descoberto’ em Outubro de 1917, por que não pode ser ‘encoberto’ de novo, de forma que não reste mais nada dele?’ É isso que ele pensa, e emite o decreto: ‘A União Soviética deve ser redescoberta — ou melhor, indescoberta. Declaro, formal e oficialmente, que a União Soviética já não existe como Estado, sendo meramente uma ideia geográfica’.

No entanto, mesmo com toda a sua tolice, o funcionário administrativo de Shchedrin, após emitir o decreto segundo o qual a América deveria ser recoberta, demonstra possuir suficiente senso de realidade para acrescentar, para si mesmo: ‘Ainda assim, creio que isso não é da minha conta’. Não sei se o crítico da Korrespondenz alemã semioficial é inteligente o bastante para concluir, também ele, que é possível até ‘encobrir’ este ou aquele Estado no papel, mas que, na prática, ‘isso não é da sua conta’.”

Assim é, pois, como Stálin fala ao seu povo. Pode-se perceber que seus discursos são circunstanciados, didáticos e, até certo ponto, elementares; mas em Moscou é necessário falar com muita clareza e em voz alta, se se quer ser compreendido até Vladivostok. Portanto, Stálin fala em voz alta e clara, e todos compreendem suas palavras e se alegram com elas, e seus discursos instauram uma sensação de parentesco entre o povo que o escuta e o homem que os profere.

Além disso, Stálin, ao contrário de outros governantes, é notoriamente reservado. Não assumiu nenhum grande título, sendo chamado simplesmente de Secretário do Comitê Central. Aparece em público apenas quando é absolutamente necessário. Por exemplo, não compareceu à grande manifestação realizada na Praça Vermelha, em Moscou, para celebrar a aprovação da Constituição que é popularmente batizada com seu nome. Praticamente nada da sua vida privada chega ao conhecimento do público. Centenas de anedotas são contadas sobre ele, exaltando o quanto ele se importa com o destino de cada indivíduo, como, por exemplo, quando teria enviado um avião à Ásia Central carregado de medicamentos para salvar uma criança doente, ou ainda quando, quase à força, teria presenteado um escritor recatado e modesto com uma moradia ampla e bela. Contudo, essas histórias circulam apenas oralmente; apenas em casos excepcionais um jornal ousa publicá-las. Da vida íntima de Stálin, de sua família e de seus hábitos, não se sabe praticamente nada. Ele proíbe as celebrações públicas de seu aniversário e, quando homenagens lhe são dirigidas em público, insiste que tais gestos referem-se exclusivamente à sua política, e não à sua pessoa. Assim, quando o Congresso aprovou a Constituição por ele proposta e, ao final, redigida, e lhe prestou uma ovação entusiástica, ele mesmo aplaudiu com os demais, demonstrando que aceitava tal homenagem apenas como reconhecimento de sua política, e não como expressão de veneração pessoal.

É manifesto que a idolatria de que é alvo lhe é, muitas vezes, incômoda, e, ocasionalmente, ele zomba dela. Conta-se que, num jantar íntimo oferecido no Dia de Ano Novo a um grupo de amigos, ele teria erguido seu copo e dito: “Brindo à saúde do incomparável líder do povo, do grande gênio, o camarada Stálin. Aí está, camaradas; e esta é a última vez que serei brindado aqui este ano”.

De todos os homens de poder que conheço, Stálin é o mais despretensioso. Falei-lhe francamente sobre o culto vulgar e excessivo que se faz de sua figura, e ele respondeu-me com igual franqueza. Queixou-se, disse ele, do tempo que é forçado a perder com funções meramente representativas — e é fácil acreditar nisso, pois Stálin é, como inúmeros exemplos bem documentados me mostraram, de uma laboriosidade prodigiosa e atento aos mínimos detalhes, de forma que realmente não dispõe de tempo para bajulações e cerimônias supérfluas. Em média, permite que se responda a apenas um de cada cem telegramas de homenagem que recebe. Ele próprio é extremamente objetivo, beirando por vezes a rispidez, e aprecia que seu interlocutor seja igualmente objetivo.

Encolhe os ombros diante da vulgaridade do culto imoderado à sua pessoa. Desculpa seus camponeses e operários, alegando que tiveram tanto com que se ocupar que não tiveram tempo de desenvolver também o bom gosto, e ri, com leve ironia, dos milhares de retratos imensos de um homem de bigode que dançam diante de seus olhos durante as manifestações. Apontei-lhe que, no fim das contas, até mesmo homens de gosto irrepreensível instalaram bustos e retratos seus — de qualidade artística mais que duvidosa — em locais nos quais eles definitivamente não pertencem, como na Exposição de Rembrandt. Aqui, ele se tornou sério. Suponha-se, disse ele, que por trás de tais extravagâncias esteja o zelo de indivíduos que apenas recentemente aderiram ao regime e que agora se esforçam ao máximo para provar sua lealdade. É possível até, conjecturou, que a “oposição” estejam por trás disso, em tentativa de desacreditá-lo. “Um tolo servil”, disse ele com irritação, “faz mais dano do que cem inimigos”. Se ele tolera todas essas aclamações, explicou, é porque conhece a alegria ingênua que o alvoroço das festividades proporciona àqueles que as organizam, e tem plena consciência de que tais manifestações não são dirigidas a ele como indivíduo, mas ao representante do princípio segundo o qual a construção da economia socialista na União Soviética é mais importante do que qualquer revolução permanente.

Além disso, os comitês do Partido em Moscou e em Lêningrado já adotaram resoluções nas quais condenam duramente “a prática equivocada de saudação desnecessária e sem sentido aos dirigentes do Partido”, e os telegramas derramados de homenagem desapareceram dos jornais.

Afinal, a nova constituição democrática que Stálin conferiu à União Soviética não deve ser descartada com um encolher de ombros, como se fosse mero espetáculo. Ainda que os métodos utilizados por ele e por seus camaradas tenham sido, com frequência, obscuros — a astúcia foi tão indispensável quanto a coragem na grande luta revolucionária —, Stálin é sincero quando descreve a realização da democracia socialista como seu objetivo final.