Em toda parte do mundo fala-se com insistência sobre a guerra que se aproxima, e a pergunta: “Quando, ao seu ver, explodirá a guerra?” constitui tema favorito dos diálogos cotidianos. Mas, embora todos brinquem com a ideia do futuro conflito, quase ninguém, no Ocidente — excetuando os habitantes dos Estados fascistas — a leva por inteiro a sério, assim como se vive e se faz planos sem considerar seriamente a própria morte, embora ela seja inevitável. Na União Soviética, porém, cada indivíduo conta com a iminência da guerra como se esta fosse uma certeza absoluta. “Nossa própria existência, — dizem os soviéticos — cada vez mais pujante dia após dia, é refutação tão manifesta de todas as teorias fascistas que, se os Estados fascistas quiserem continuar existindo, precisarão destruir-nos. Do mesmo modo que artesãos arcaicos, ameaçados pelas máquinas, se ergueram e com violência investiram contra elas, assim os Estados fascistas, em última instância, se lançarão contra nós. E ainda que os líderes fascistas tenham consciência de que uma guerra contra a URSS resultará certamente em sua própria destruição, serão forçados a iniciá-la. As dificuldades econômicas por eles acumuladas conduzirão a esse desfecho. Nenhum governo pode — como faz o alemão — privar seu povo de manteiga, de comida e de bens de primeira necessidade ao longo dos dias, prometendo que as armas que fabricarão no lugar restaurarão tudo em abundância, e depois manter essas armas como meras exibições vazias”.
Não é fácil descrever a imagem mental que o cidadão soviético médio projeta sobre os fascistas. Ele concebe os súditos de Hitler, Mussolini e Franco como uma espécie de povos primitivos, bárbaros, portadores de armas tecnicamente modernas, mas despidos dos fundamentos da civilização. Entende ele que, para o fascista, a civilização é o inimigo mais perigoso e que o plano consiste em exterminar o cidadão soviético como expoente dessa civilização hostil. Uma epigrama dos fascistas alemães causou especial impacto entre o povo soviético: estampado num calendário oficial alemão, espalhou-se por toda a Alemanha e alcançou o Oriente. Dizia: “Um verdadeiro alemão jamais pode ser um intelectual”. E como ser intelectual constitui a aspiração de cada cidadão soviético — seja ele camponês, operário ou soldado — veem no fascista alemão a encarnação do princípio hostil. Não nutrem exatamente ódio por ele, mas sim a repulsa que se tem por um inseto desagradável e venenoso.
Um a cada seis rublos do orçamento total da URSS destina-se à defesa contra o fascismo. É um sacrifício pesado. Os soviéticos sabem que muitas das carências que hoje tornam a vida na URSS mais difícil do que nos países ocidentais teriam sido eliminadas há tempos, se aqueles rublos estivessem à sua disposição. Cada indivíduo poderia vestir-se melhor, morar com mais conforto. Mas eles sabem também que fora de suas fronteiras existem tolos maliciosos prontos para atacá-los — e que essas fronteiras precisam ser defendidas com firmeza. Por isso avançam na construção de sua economia socialista — como os judeus construíram seu segundo templo — com uma mão segurando a colher de pedreiro e a outra o sabre. Falam da guerra não mais como possibilidade remota, mas como realidade concreta e iminente. Encaram-na como uma amarga necessidade: irritante, mas justa, tal como se encara a perspectiva de uma operação dolorosa cuja eficácia, porém, é certa.
Naturalmente, busca-se adiar o início do conflito o mais possível ou até, contrariando todas as probabilidades, evitá-lo por completo. A URSS tem interesse agudo em preservar a paz até o último instante. Está ocupada em pôr sua casa em ordem: os cômodos tornam-se mais habitáveis e ela própria enriquece e fortalece-se a cada dia. Deseja usufruir da casa nova quando estiver concluída, sem conflitos com o vizinho desagradável; e sabe que quanto mais adiar a guerra, mais forte será, e menor será o custo da vitória final.
Mas, tendo decidido que a guerra virá, inevitavelmente, e talvez já amanhã, adaptam-se a ela — e essa mentalidade de guerra explica muitos fenômenos que, de outra forma, seriam incompreensíveis. Já mencionei os dramas e filmes de guerra que dominam os repertórios, e a vasta literatura que celebra o heroísmo de quem lutou na guerra civil ou durante a intervenção estrangeira. Jamais se poderia ter visto, na Primeira Guerra Mundial, tanto conflito, morte e destruição como tudo aquilo que assisti, em cerca de dez semanas em Moscou, em teatros e cinemas.
Mas essa mentalidade está mais claramente revelada na situação do Exército Vermelho. É, de modo singular, um exército nacional: se alguma tropa no mundo é verdadeiramente “nossa”, é ele. A afeição com que o povo fala de “nosso exército” deve ser ouvida para se crer. Mantém-se contato estreito entre o exército e o povo. A grande maioria de seus oficiais provém do proletariado e do campesinato, de modo que lideranças, soldados e civis compartilham a mesma mentalidade, criando uma aliança próxima entre a população civil e as forças armadas. Os soldados têm acesso livre aos clubes operários; os diferentes corpos patrocinam organizações culturais e esportivas e, além disso, cada seção do exército mantém ligação com facções específicas da cidade, com um distrito ou com uma entidade operária ou camponesa. O exército não desfila isoladamente nas grandes manifestações, mas integra seus contingentes aos dos civis.
Tal como o exército romano, o Exército Vermelho considera a ocupação e a educação do povo entre suas funções principais. Construiu teatros, bibliotecas magníficas e apoia com vigor o cinema. Publica jornais e revistas de conteúdo cultural. Numa recepção oferecida a mim pela Znamya (A Bandeira), prestigiada revista literária moscovita, encontrei inesperadamente muitos oficiais — fui informado de que essa publicação é patrocinada e editada pelo próprio Exército.
A versatilidade de muitos desses militares é notável — seu interesse pela literatura é profundo. Leon Trotsky, escritor por formação, foi um dos organizadores do Exército Vermelho; até hoje escritores ainda ocupam posições importantes nele. Conheço generais que exercem funções de destaque tanto no âmbito militar quanto jornalístico. Muitos autores participaram das guerras imperialistas e civis; muitos mantêm seu posto de oficiais no Exército até hoje; e quase todos os escritores soviéticos dedicam-se também a assuntos militares. Um dos líderes do Exército, que lembra o tipo do melhor oficial prussiano da antiga escola, tornou-se notável como poeta lírico: seus versos, inclusive em sua própria versão alemã, são uma literatura excelente. Além disso, um escritor russo contribuiu significativamente para o progresso da causa republicana na Espanha. Não conheço outro país onde o talento literário elevado seja tão comumente associado à aptidão militar. Numerosos autores e editores estariam prontos para abandonar a escrita e comandar um regimento.
No Exército Vermelho, pouco se fala entre oficiais ou soldados. Talvez isso decorra do fato de todos saberem que enfrentarão uma guerra que demandará deles mais do que mera técnica militar.
A vantagem psicológica que o Exército Vermelho terá sobre seus oponentes em caso de guerra reside no fato de que seus soldados lutarão por uma causa que lhes é cara não apenas por instinto patriótico, mas sobretudo por convicção racional.