O Que Está Vivo e o Que Está Morto no Manifesto Comunista?
A prova da história

Jacob Gorender


Fonte: Estudos Avançados. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo..

O grau de influência certamente significativa da doutrina de Marx e Engels pôde ser aferido pelo encontro internacional realizado em Paris, em maio deste ano, o qual reuniu muitas centenas de marxistas de algumas dezenas de países e deu ensejo à publicação de doze coletâneas de artigos e ensaios celebrando o sesquicentenário Ao Manifesto do Partido Comunista. Com relação ao Brasil, basta notar que sua delegação ao encontro de Paris foi numerosa e expressiva (a mais numerosa, depois da francesa) e que, só em 1998, foram publicadas quatro novas traduções do Manifesto, incluindo a desta edição da revista Estudos Avançados. O que não pode deixar de ser avaliado nas circunstâncias da dissolução da União Soviética e do desmoronamento dos regimes comunistas do Leste Europeu.

Enquanto perdurar, o capitalismo suscitará tendências anticapitalistas. O escrito de dois jovens intelectuais alemães, publicado em fevereiro de 1848, em nome de uma obscura Liga dos Comunistas, deu a partida precisamente à trajetória secular de uma destas tendências. A teoria que recebeu o nome de marxismo (rejeitado pelo próprio Marx) inspirou partidos políticos poderosos e veio a ser a doutrina oficial de um sistema de Estados durante dois terços do século XX. Hoje, entretanto, tampouco se pode deixar de constatar que o marxismo atravessa uma situação de crise, certamente a pior de sua trajetória. No texto breve e juvenil do Manifesto, podemos encontrar aqueles pontos fortes do marxismo que explicam o seu impulso vitorioso, mas também as teses que vieram a ser contestadas pelo desenvolvimento histórico.

Marx e Engels acertaram em cheio quando identificaram no proletariado a classe social que devia antagonizar o domínio da burguesia. O proletariado não só era a classe explorada pela burguesia, criadora da riqueza que esta convertia em capital, como era a classe que crescia com o próprio capital. A observação da Revolução Industrial na Inglaterra — então, o único país capitalista plenamente constituído — permitia fazer a inferência acerca do potencial social de crescimento do proletariado, em contraste com os camponeses, os artesãos e os pequeno-burgueses. O grande giro estratégico do Manifesto consistiu em propor ao movimento operário a substituição da utopia pela política com fundamentação na ciência. Ao invés de seitas conspirativas apolíticas, guiadas pela miragem de imaginárias sociedades perfeitas, era preciso levar à luta por objetivos políticos concretos a própria massa da classe operária. O objetivo final deveria ser a conquista do poder do Estado e a implementação de um programa radical de transformação comunista da sociedade. A sociedade capitalista, com o seu ethos baseado na competição egocêntrica, seria desfeita para ceder lugar a uma associação guiada pelo supremo princípio moral do desenvolvimento livre de cada indivíduo como condição para o livre desenvolvimento de todos.

Durante mais de um século, o processo histórico confirmou a previsão marxiana a respeito do potencial do proletariado. Este cresceu e incrementou sua capacidade de auto-organização à medida que crescia o capitalismo. A acumulação de capital também era uma acumulação de operários, o que produzia incoercível incremento da luta de classes anticapitalista. A previsão marxiana se confirmou igualmente na sucessão de crises e catástrofes que marcaram o caminho percorrido pela burguesia e impuseram sacrifícios imensos à humanidade.

Não obstante, o processo histórico seguiu um rumo essencialmente diverso daquele antecipado por Marx e Engels. Justamente o proletariado mais forte, nos países capitalistas economicamente mais avançados, rejeitou a revolução socialista e deu preferência à conquista de benefícios reformistas no quadro do regime burguês. As revoluções de inspiração socialista somente foram vitoriosas nos países de predominância camponesa, onde o proletariado era fraco. O fato de ser a classe organicamente explorada pelo capital não fundamentou necessariamente a propensão revolucionária do proletariado.

Demais disso, enquanto as relações de produção capitalistas se formaram, de maneira espontânea, nas entranhas da sociedade feudal, de tal maneira que as revoluções burguesas não precisaram construir o capitalismo, as revoluções pretensamente socialistas não encontraram relações de produção socialistas objetivamente constituídas e precisaram se jogar na sobre-humana tarefa de construir o socialismo. Se o modo de produção capitalista surgiu pronto e acabado diante dos revolucionários burgueses triunfantes, porque já existia antes que houvessem tomado o poder, o modo de produção socialista só contava com imprecisas premissas materiais, antes e depois da conquista do poder pelos revolucionários comunistas. Já por precisar ser construído, o socialismo revelou-se problemático.

A questão do sujeito da revolução socialista tomou-se ainda mais controversa a partir da década dos 70 do século XX, com a acentuação da disjunção entre crescimento do capitalismo e crescimento do proletariado industrial. O fato de que este se encontra submetido a um processo de encolhimento e de perda de força social coloca diante dos marxistas o desafio da definição do sujeito da revolução socialista nas novas condições do terceiro milênio. Hão só o proletariado recebe uma configuração muito diferente daquela conhecida por Marx e Engels, como a estrutura da sociedade capitalista atual se revela muito mais complexa e diversificada do que registraram no Manifesto.

A este desafio se acrescenta o da atualização da metodologia marxista. Se teve uma concepção dialética da ciência, superior ao positivismo imperante no século XIX, Marx não foi imune, contudo, à ideia determinista das sequências inevitáveis, que fez do comunismo a culminância absoluta da aventura da espécie humana sobre o planeta terra. No entanto, as ciências chamadas de exatas — a física, a química, a biologia — impregnam-se cada vez mais da concepção de que a evolução da matéria inclui o casual, o caótico e o imprevisível. Os sistemas só podem existir com a presença de conexões internas deterministas, mas a sucessão entre sistemas se processa com um grau variável, porém substancial, de incerteza. Torna-se impraticável qualquer pretensão de ciência social que não tenha em vista a mesma linha de pensamento.

A indeterminação do futuro não exclui a possibilidade e a necessidade de fundamentação científica da ação política. Sob este aspecto, o marxismo continuará ferramenta intelectual de primeira ordem para todos os movimentos anticapitalistas. Mas só poderá dar a certeza da luta, nunca dos seus resultados.

A sociedade pós-revolucionária não será mais tão-somente uma imposição de leis históricas impessoais, porém, conjuntamente, a encarnação de decisões subjetivas. Dos agentes revolucionários se exige, ao mesmo tempo, o conhecimento abrangente das condições objetivas e a responsabilidade moral, plena e integral, pelas opções escolhidas.


Inclusão 18/02/2015