Os Espiritualistas Perante a Paz e o Marxismo
ou A Perfectibilidade do Espírito, pelo Socialismo

Eusínio Gaston Lavigne


IX - Cristianismo e Espiritismo


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É muito comum ouvirmos dizer, já em periódicos, já em livros, já em discursos, que o Espiritismo é uma religião. Alguns, prevendo as consequências de tal assertiva, procuram remediá-la com uma ligeira modificação, que não me parece alterar o sentido da frase, e declaram que o Espiritismo é a Religião. Ora, o Espiritismo possui apenas uma parte religiosa.

Outros restringem, ainda mais, o terreno das atividades doutrinárias e ensinam que o Espiritismo é o Cristianismo, que todo espírita é cristão, ou que não há Espiritismo fora da Bíblia.

Essas denominações, a nosso ver, têm o inconveniente de pôr balizas à extensão do nosso campo, de lindar a nossa expansão doutrinária, quando o Espiritismo abrange, não somente a religião ou uma religião: quando não fica encortelhado num só catecismo religioso, com desprezo por todos os demais, senão que abraça todos os sistemas, todas as grandes Mensagens, todas as Revelações, igualmente enviadas ao Orbe pelo Senhor, como faróis disseminados por toda a parte, e em todos os tempos, para iluminar o caminho que devemos percorrer.

O Espiritismo, estudando e ventilando, comentando todas as religiões, com forte razão se ocupa com o Cristianismo, porque ée era a religião dominante na região em que nasceu, quer se trate da parte fenomênica, que começou a atrair, nos Estados Unidos, a atenção dos modernos pesquisadores; quer se trate da codificação, apresentada pelos Espíritos na trança, ao grande Iniciado, que foi Allan Kardec.

Vindo, portanto do Ocidente, as mais impressionantes lições dos Espíritos, e natural que estas se reportassem de preferência à religião que ali imperava e nos apresentassem, como princípios morais, os postulados do Cristo, inegavelmente de inteiro acordo com as prescrições que nos traziam em referência à conduta humana.

Grande número de nossos confrades, trabalhados por muitos séculos de Cristianismo, esquece se, entretanto, de que a doutrina espírita é universal, que compreende todos os credos, quando eles não se afastam da Lei; que pode vicejar em todas as regiões sem suscetibilizar as respectivas doutrinas, porque possui um fator comum a todas, visto que, emanadas de Deus, trazem os ensinos que nos devem guiar aos altos fins a que fomos destinados.

Não obstante, a tendência de muitos é a de enfileirarem o Espiritismo numa seita cristã; é transformá-lo numa entre as muitas religiões já existentes, com seus dogmas seus pontos de fé, suas vedações, seus mistérios, suas interpretações escriturísticas, suas prescrições sem base, suas proscrições sem justiça seus livros intocáveis, embora lhes falte a prova e o argumento; seus ensinos à base da fé, em vez da base da demonstração, e, consequentemente com as diversas ramificações e divisões e subdivisões, consoante a diversidade de interpretações testamentárias, a variedade exegética e a multiplicidade dos modos especiais de ver de cada sociedade, cada comunidade ou mesmo de cada individuo.

Nesse declive, iremos acompanhando os erros ancestrais e breve teremos as fulminações e os anátemas tão comuns à intolerância sectária. Cada uma estabelecerá a salvação de acordo com seus cânones; a verdade já não flui do fato, nem da concordância do ensino espírita no tempo e no espaço, nem da sua generalidade nem do cadinho das provas e experiências senão das respectivas cartilhas, das respectivas cabeças, ou das respectivas iluminações, que soem baixar sobre uns tantos privilegiados, como a pomba do Espírito Santo sobre certos protegidos do Senhor.

Dá-se um fato mais, muito a nosso desfavor, se procurarmos comparar o novo credo, oriundo do Cristianismo Espírita ou do Espiritismo Cristão, com as demais disciplinas religiosas, é que se procura excluir nas festas espíritas tudo que é belo, e já vemos a proibição de flores, de música, de ornamentos, de produções literárias, de poesia, de qualquer manifestação artística. E como se não bastasse, temos ainda os sacerdotes da nova fé com a cara fechada para risos e sorrisos; a alegria passou a ser um pecado como o era a limpeza em certas comunidades. E enquanto as demais religiões conseguem ainda atrair as multidões pela solenidade de suas procissões, pela profusão das luzes, pela majestade dos templos, pela suntuosidade das cerimônias, pela beleza do conjunto, dir-se-ia que procuram os novos levitas tornar tediosas as reuniões, pela sua monotonia; fúnebres pelo seu aspecto; desagradáveis pelo seu caráter; vazias pelo seu programa; incompreensíveis pelas dissertações, agrestes pela intransigência. Seria a interdição das dádivas da natureza, da revelação do bom gosto, das fórmulas de arte, de progresso, de fraternidade, de beleza.

Prisioneiros em seus currículos, não percebem que o Espírito também progride pela Arte, e quanto maiores forem os seus pendores artísticos, tanto melhor poderá compreender as belezas da Natureza que o cerca. Esse conhecimento artístico é um grande passo na Espiritualidade.

Fechados, ainda, nos textos neotestamentários, afastam, clara ou veladamente, as demais faces do ensino espírita, e passam a compartir de erros seculares, que a pátina do tempo vai avolumando.

Põem, assim, de lado, toda a parte filosófica, a única que nos poderia fazer compreender as desigualdades que vemos espalhadas por toda a Terra, as injustiças que parecem dominar no seio das sociedades, o sofrimento que coube ao gênero humano, o que tudo nos faria descrer do Criador, ou da sua obra ou do seu propalado amor às criaturas. E esta dúvida é caminho certo para o ateísmo.

Nada há nas Escrituras que nos explique porque devem ir uns de roldão para a esquerda e outros para a direita de Deus-Padre, ou para os extremos da beatitude e do infortúnio, quando é infinita a gradação das faltas. E tanto assim o entendeu a Igreja, que foi obrigada a instituir o Purgatório, a fim de preencher a lacuna doutrinária; contra essa novidade, entretanto, se insurge o Protestantismo, que nela não vê base escriturística.

Não se poderia, ainda, explicar a condenação do réprobo, e muito menos aquela divisão sem compartimentos, sendo tão curta a vida terrena e tão precários os meios de aperfeiçoamento humano.

Só a noção das leis que regem a vida, a compreensão do que seja o adiantamento progressivo, o conhecimento da Evolução, permitem perceber tudo o que forma essa parte filosófica, tão necessária ao esclarecimento dos mistérios que nos envolvem; só a Filosofia nos dará a chave dos problemas que abrangem o ser, o destino, a dor, o livre arbítrio, os problemas da vida; só ela nos fará ver Deus por outro prisma, que não oda entidade arbitrária, distribuidora de graças e desgraças, conforme não se sabe o quê, e isto, por certo, fará que não vejamos nele o Justo, como o proclamam.

Toda esta parte esclarecedora é desdenhada pelos neófitos, que a julgam dispensável quando não inútil, diante dos textos. E a relegam a segundo plano ou a plano nenhum.

Há, ainda, a parte científica, aquela onde, pela observação e pela experiência, vamos possuir a certeza; aquela pela qual podem todos pensar da mesma forma, porque a Ciência suprime as incertezas e a variedade dos pareceres.

Esquecem-se de que a “Nova Revelação” veio com o caráter da prova, não só para distinguir-se das revelações anteriores, já inadequadas à nossa época, onde predomina a investigação, como para que o homem possua um sucedâneo seguro que o ponha ao abrigo das vacilações, das situações dúbias, como vem acontecendo até agora, onde os guias são os livros sagrados cujas raízes se perdem na noite das idades e para os quais não há documento que lhes prove a autenticidade, nem há por onde descobrir o veio capaz de resolver as dificuldades de que estão inçados.

As demonstrações, em matéria espírita, libertam-nos de dar tratos ineficientes à imaginação; já não há opiniões contraditórias, nem axiomas indecifráveis, nem princípios indemonstráveis; já não existe o areal movediço das crenças, as dunas varridas pelos temporais das lutas religiosas; já não há as colisões irrefreáveis, a multiplicidade de proposições colidentes; já não se pode falar da variedade quase incrível de crenças e de crentes. A prova reduz tudo a princípios incontestáveis. Eles não são ditados pela força coercitiva de um Chefe, mas pela imposição das leis naturais. Aquela desaparece com o Chefe, ou se modifica com outros Chefes, ou se apaga com o tempo; a estas o tempo revigora e os fatos fortalecem.

Tudo isto, porém, é esquecido por aqueles a quem a corrente da fé estabeleceu na alma sulcos profundos. E de tal forma, que a crítica histórica, o poder convincente da lógica ou a força probante dos fatos esmaecem, deixando em seu lugar as convicções muitas vezes insustentáveis, quase sempre injustificáveis, nenhumamente prováveis.

Dai a afirmativa de que o Espiritismo é o Cristianismo, sem maiores explicações; dai os discursos exaustivos em que a extensa gama doutrinária é afastada para ficar o autor repisando nos textos, interpretando textos, decifrando textos, adivinhando textos...

Dessa cristianização exagerada, entretanto, não proviria mal, se se mantivessem todos dentro dos axiomas morais, embora a restrição impedisse os vôos para maiores altitudes e melhores esclarecimentos, visto que não chegaremos a alturas muito elevadas se confinarmos o nosso saber e não exercitarmos o nosso raciocínio.

O pior, porém, está na paixão sectária a que nos conduz o excesso de religiosidade. Ele não só nos leva ao desprezo de tudo que possa trazer a certeza, como nos induz a profundas cincas doutrinárias. Exemplifiquemos.

Temos visto grande entusiasmo pelos ensinos de Paulo. Por mais, porém, que admiremos esse grande vulto apostólico, pela sua coragem, pelo seu sacrifício e pela sua atividade na propaganda de um ideal, não podemos entretanto, aceitar muitos de seus princípios, inteiramente ao arrepio da lógica, e, sobretudo, das lições basilares do Espiritismo.

Assim é que ele nos ensina que, “justificados pela fé, temos paz com Deus”. (Rom. 5, 1); que, “ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, sua fé lhe é imputada pela sua justiça”: (Rom. 4, 5-8); que, “assim como pela desobediência de um só homem, foram todos constituídos pecadores. assim também pela obediência de um só todos serão constituídos justos”; (Rom. 5, 19); que “aquele que não conheceu pecado o fez pecado por nós para que nos tornássemos justiça de Deus”. (Cor. 5, 21); que “só se morre uma vez”; (Hebr. 9, 27); II Cor. 5, 10; Rom. 14, 10-12). E ainda mais.

Sem derramamento de sangue não se faz remissão”; (Hebr. 9,22); “Jesus com um único sacrifício de si mesmo aniquilou o pecado”. (Hebr. 26, 28); “Deus suportou os vasos de ira preparados para a perdição e os vasos de misericórdia que de ANTEMÃO preparou para a glória”. (Rom. 9, 22); “de graça sois salvo pela fé e isto não vem de vós, é de dom de Deus”. (Ef. 11, 8); “não há quem faça o bem”; (Rom. 3, 11); “porque todos pecaram”. (3, 23).

Já está longa a lista. Em suma, afirmando que o Espiritismo é o Cristianismo pomo-los como sinônimos; ficam no mesmo pé de igualdade com as mesmas proporções e de tal ponto identificados que não há distingui-los.

Ora, vimos das citações de Paulo, que os seus ensinos se acham em completa oposição aos princípios espíritas; não podem, portanto estar aqueles no mesmo pé em que estão estes. E só citamos Paulo, em poucos textos, para não alongar demasiadamente este trabalho.

O Novo Testamento está cheio de lapsos que é preciso elucidar e corrigir. São inúmeras as causas de erro, e por mais longe que lancemos a sonda perquiridora não encontramos por vezes a fonte do distúrbio.

Com um pouco mais de estudo veremos, ainda, que os princípios religiosos dominantes já se encontravam emreligiões mais antigas, sem que isto, aliás, venha em desabono do Cristianismo, visto que o Cristo já assegurava que não veio destruir a lei, mas dar-lhe cumprimento. Entendemos que falava da lei moral, pois esta é que a grande Lei, a única que se poderá impor para o progresso espiritual da humanidade.

Queremos mostrar que, se as leis que o Cristo nos trouxe já existiam em outras doutrinas, em outros códigos, em outras religiões, não se compreende o exclusivismo cristão. Por que o Espiritismo só se haveria de ocupar com uma, e tê-la como o caminho único a seguir?

O que nos leva a esta digressão não é buscar expelir dos nossos quadros o estudo do Cristianismo; nosso escopo é evitar a criação de novo credo, é impedir que nos encerremos dentro de uma seita; que transformemos o Espiritismo em mais uma religião como as outras, e contra as outras constantemente empenhada num duelo de versículos; que apaguemos as luzes trazidas pela Filosofia e destruamos a base da prova em que assenta todo o nosso edifício doutrinário.

Não é possível restringirmo-nos aos textos do Cristianismo, quando há outros princípios religiosos perfeitamente enquadrados no Espiritismo e até de melhor feição.

O símbolo budista da roda das vidas sucessivas é a reencarnação em sua máxima clareza; não se pode comparar ao dogma do Céu e Inferno, ao da ressurreição, a de lobos e ovelhas irremissivelmente separados.

O Nirvana, com a paz espiritual e a felicidade pela tranquilidade do espírito, cabível a todos os seres depois da experiência planetária, está muito mais de acordo com os nossos ensinos do que a monotonia da mão direita de Deus Padre e as desventuras eternas da mão esquerda.

A tese do progresso pelo esforço próprio, após as quedas e soerguimentos, que Buda pregava, não se pode comparar à salvação pela fé, ou pela graça, ou pelo prévio arbítrio da escolha divina, conforme a pregação de Paulo.

O amor a todos os seres, neles compreendidos os animais, conforme as religiões do Oriente, é mais curial que o simples e único amor humano. Pedro, entretanto, chega a aconselhar que matemos os animais e os comamos.

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É imprescindível o ensino espírita para que escoimemos os velhos textos das impurezas que lhes foram acrescentadas, ou lhes forneçamos os elementos necessários que lhes faltam nesta altura dos nossos conhecimentos.

O Cristianismo estacionou; o que se aduzir ao Novo Testamento já será o Consolador Prometido; já é a parte que compete ao Espiritismo, e o Espiritismo tem uma amplitude que só longos anos de estudo farão compreender e atingir.

Em síntese, o Espiritismo não é o Cristianismo, tout court, senão que o Cristianismo é uma parte do Espiritismo, inegavelmente de real e indiscutível valor, pelos ensinos que nos trouxe o Grande Missionário, mas para os quais são indispensáveis os esclarecimentos que os Espíritos vêm acumulando.

O Cristianismo é parte de um todo. Tê-lo unicamente como o Espiritismo ou po-lo a par do Espiritismo é transformá-lo em Protestantismo, é conservá-lo numa das muitas divisões da Reforma. Seria mais uma seita com tinturas de: reencarnação e manifestação de mortos.

Isto é que era preciso deixar patente.

Carlos Imbassahy


Inclusão 15/08/2018