Introdução à Política I

Fernando Luso Soares


VIII — Elementos e Aparelhos do Estado


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No decurso deste capítulo veremos a razão de ser da distinção que o título «Elementos e Aparelhos do Estado» representa.

Classicamente, os teóricos usaram dizer — e hoje essa ainda se mostra a doutrina dominante ou mais habitual nos manuais — que o Estado tem três elementos:

  1. território;
  2. população;
  3. ordenamento político e administrativo («governo» num sentido muito amplo).

Esta distinção, porem, não nos parece harmónica. Para já, ela não atende a uma rigorosa noção do que seja um «elemento» e assim acaba por baralhar coisas distintas. Eis então, preliminarmente, aquilo de que vamos tentar um breve esclarecimento, procurando reter duas noções diferentes. Retiro-me, por um lado, ao conceito de elemento (para vermos depois o que é isso de elementos do Estado) e por outro ao conceito de aparelho (para compreendermos o que são e quais são os aparelhos do Estado).

«Elemento» é palavra que vem do termo latino elementum e significa «substância primária». Este conceito básico chega-nos por agora. Em contrapartida, o vocábulo «Aparelho» procede igualmente de um termo latino (appariculu) e exprime uma ideia de funcionamento, aliás contida no geral dos dicionários: — «preparo, disposição para alguma coisa; conjunto de peças, instrumentos e utensílios necessários para a execução de qualquer obra, ou que são inerentes ao exercício de uma profissão ou arte; conjunto de órgãos que concorrem para uma função determinada».

Conseguida a clarificação desta diferença (entre «elemento» e «aparelho»), atingimos a possibilidade de uma separação operada no seio dos três elementos do Estado que acabamos há pouco de referir (território, população e ordenamento político-jurídico). Separação esta que parece aliás satisfazer um maior rigor: — o território e a população constituem efectivos elementos do Estado já que o primeiro delimita-lhe substancialmente o espaço geográfico, e o segundo corporiza o agrupamento humano onde se opera a diferenciação entre' governantes (detentores do poder político) e governados. O território e a população são pois substâncias primárias, as condições materiais de um Estado fisicamente revelado, existente. E é neste palco da cena estadual (o território) e com aqueles actores do respectivo drama (a população), que se instituem, organizam e representam as funções estatais. É aí que se movimenta o ordenamento político e administrativo, o qual não é mais do que o esquema de aparelhos do próprio Estado. Permitir-me-ei portanto reformular a teoria habitual dos três elementos do Estado (território, população e ordenamento) segundo esta outra distinção que me parece mais exacta, correspondente, afinal, àquilo que apuramos quanto ao problema da natureza do Estado:

  1. são elementos ou pressupostos (substanciais) do Estado, a população e o território;
  2. são aparelhos (funcionais) do Estado, todos os órgãos pelos quais se diversifica o ordenamento político e administrativo do mesmo Estado.

A propósito de tal diferenciação (entre elementos e aparelhos do Estado) é oportuno recordar aquela frase de Max Weber, que vimos em «O Político e o Cientista», e o leitor tem presente no termo do 4.° capítulo deste livro. Aí se diz que o território é um elemento só definidor, restando como único elemento ou dado substancial do Estado a comunidade humana, a população. O território segundo essa tese, somente situa, na geografia do globo terrestre, aquela comunidade. E há quem assim pense, já o veremos. Há quem entenda que o território não é essencial ao Estado. Trata-se, contudo, de problemas que também vamos desde já esclarecer pois para nós, ao contrário de semelhante doutrina, o território constitui, mais do que simples campo meramente definidor, um elemento básico do Estado.

Leon Duguit — sociólogo do Direito, discípulo de Augusto Comte com larga projecção no estudo destas matérias desde uma óptica positivista — foi dos que sustentaram que, do ponto de vista objectivo, o território não constitui elemento necessário ou essencial do Estado. Podemos ler, por exemplo, alguns dos seus textos num caderno editado pela «Inquérito» sob o título «Os Elementos do Estado». E a pág. 44, designadamente estas palavras:

— «O território não é elemento indispensável à formação do Estado, isto é, pode conceber-se perfeitamente que se produza uma diferenciação política numa sociedade que não esteja fixada num território determinado. No sentido geral da expressão, existirá aí um Estado».

Dir-se-ia, em suma, que para Duguit o território também constitui um elemento só definidor das sociedades sedentárias, isto na exacta medida em que é povo sedentário todo aquele que vive fixado a determinado território. A verdade, porém, é que o próprio Duguit, logo em seguida reconheceria expressamente que o nomadismo vale hoje, e cada vez mais, uma excepção insignificante:

— «...as sociedades modernas — ressalvou Duguit - estão fixas em territórios e a acção dos governantes exerce-se em território determinado».

Só poderíamos conceber como Estado uma tribo nómada se acaso, na sua vida deambulatória, ela não caminhasse sempre por territórios de diversos Estados. Tal tribo está constantemente sujeita às leis e ao ordenamento político, à aparelhagem estadual dos territórios que atravessa. A sua deambulância é incompatível com a acção repressiva da máquina do Estado em termos significativos, quer do ponto de vista da diferenciação de classes sociais, quer da detenção dos meios de produção por uma delas (a exploradora) sobre a outra (a explorada). Ressalvadas as reservas evidentes que tal autor nos merece, permitir-me-ia transcrever aquela afirmação categórica de Wilhelm Sauer, que foi professor da Universidade de Konisberga e escreveu uma «Filosofia Jurídica y Social» onde, a págs. 193 da edição espanhola da Editorial Labor, 1933, tradução de Legaz Lacambra, podemos ler:

— «Ao requisito do poder coactivo acrescenta-se um outro: o território; os membros de um Estado tem de ser sedentários. As tribos primitivas, as hordas emigrantes, os povos nómadas não constituem um Estado; vivem simplesmente uma comunidade sujeita a costumes (mas também este segundo requisito é discutido)». E assentando, enfim, na natureza imprescindível do Território como elemento do Estado, Sauer tiraria esta definição (págs. idem): — «Do que fica dito resulta que é possível formular as definições seguintes: o Estado é a comunidade sedentária sujeita a um ordenamento e dotada de poder coactivo supremo; o Direito é o ordenamento de uma comunidade sedentária dotada de poder coactivo supremo».

Convenhamos, pois, na essencialidade do elemento territorial do Estado. Mas este, já o vimos, é um produto das irredutíveis contradições de classe.

«Aparece — escreveu Lenine — onde, quando e na medida em que tais contradições não podem ser objectivamente conciliadas».

Unicamente podemos falar de Estado — como aliás afirma O. V. Kuusinen e outros, autores conjuntos do «Manual de Marxismo-Leninismo» das edições Grijalbo, colecção «Ciências Económicas y Sociales», 1962, págs. 161 — quando o poder político de uma ou outra classe se estende a determinado território e afecta a população que ali vive — cidadãos ou súbditos».

Do ponto de vista histórico, porém, o território nem sempre foi encarado do mesmo modo. Os gregos da Antiguidade Clássica, por exemplo, consideravam a Cidade como o tipo ideal de Estado. Depois, com o estabelecimento do Império Romano gerou-se e alimentou-se a concepção de um Estado que abrangeria todo o Universo, dominando secularmente os homens. E nos tempos modernos, com largo predomínio sobre certas teorias defensoras de um federalismo mundial, considera-se como tipo mais perfeito o Estado nacional, baseado numa unidade étnica e geográfica (se bem que às vezes degenerado pela concepção absorvente de impérios coloniais).

Depois de estudarmos a População como segundo elemento do Estado, iremos analisar as relações entre os conceitos de Estado, Povo e Nação. Nesse momento dir-se-á o suficiente para realçar a ideia do que é e do que vale, numa perspectiva moderna, o Estado Nacional.

A população é o conjunto de pessoas que vive num dado território. Trata-se, evidentemente, de conjunto determinado por uma unidade. Cada pessoa do agregado populacional tem, com todas as outras do mesmo, um conjunto de relações que as vincula como membro de um corpo uno. A população, aliás, constitui essa unidade sob dois aspectos:

  1. o aspecto económico-social — porque a população é um conjunto de pessoas que entre si mantêm relações sociais;
  2. o aspecto biológico — porque a população é um conjunto de indivíduos biológicos.

Mas a população constitui, em face do primeiro aspecto que agora distinguimos, o somatório das classes sociais.

«Chamamos classes — ensinou Lenine, em «Obras Completas», 19.° volume, págs. 388 — aos grandes grupos de pessoas que se diferenciam pelo lugar que ocupam num sistema de produção historicamente determinado, pela sua relação (na maioria dos casos legalmente referendada) relativamente aos meios de produção, pelo seu papel na organização social do trabalho e, por conseguinte, pelo modo de obtenção e o volume da parte de riqueza social de que dispõem. As classes são grupos de homens dos quais um pode apropriar-se do trabalho de outro graças aos diferentes lugares que ocupam num determinado sistema de economia social».

Insistimos pois: — em face deste conceito, a população de um Estado representa o somatório das classes nos limites do respectivo território. E, sendo assim, como categoria económico-social a população abarca (num Estado de formação capitalista):

  1. os produtores de bens materiais;
  2. os exploradores da produção alheia;
  3. e os velhos e crianças (ou não-produtores).

É preciso, entretanto, acentuar que a população não está sujeita a leis perpétuas e imutáveis. Porém, a tese contrária — a da imutabilidade e da perpetuidade — foi e é sustentada pelo pensamento burguês, designadamente pela teoria de Malthus, que justificou e pretende continuar a justificar a exploração capitalista e a opressão dos povos coloniais. Dada a gravidade dos seus erros e a sua persistência teórica actual, abrimos um curto parêntesis para inserir, a propósito, uma pequena notícia crítica.

O malthusianismo é uma teoria anticientífica. Formulada por Malthus, clérigo inglês falecido em 1834, ela sustentava que o aumento da população se verifica segundo uma progressão geométrica, enquanto o desenvolvimento dos meios de subsistência se opera a ritmo mais lento, conforme uma progressão aritmética. Mas esta desarmonia de crescimentos (da população e dos recursos económicos para satisfação das necessidades do homem) corrige-se, segundo Malthus, de forma natural. Eis então, vistas como singular benefício, as guerras, as epidemias, a limitação da natalidade, enfim, todos os processos que tendam para cercear o aumento populacional. Eis, em suma, dada como fatalidade imutável a chamada «lei biológica da superpopulação relativa».

Mas para o quadro ainda ser pior, ou mais negro, acontece que alguns dos malthusianos modernos consideram que a crescente desproporção entre o número de pessoas e o volume dos meios de subsistência se deve não só aos preços «demasiado baixos» dos bens de consumo, mas muito particularmente ao nível demasiadamente «alto» dos salários dos trabalhadores. Os malthusianos de hoje entendem que toda a população do globo — et pour cause, excepção feita aos anglo-saxões — forma parte do grupo de indivíduos «sobrantes», gente condenada ao extermínio por sua própria natureza. E o que resulta daqui, em retrato de terrível relevo, é que o malthusianismo serviu e afinal continua a servir para legitimar a exploração capitalista e a política do imperialismo. A partir daquela «natural»(?) legitimação do extermínimo, o neomalthusianismo chega a concluir por certos inconvenientes sociológicos da medicina: — enquanto Malthus encontrava a causa da superpopulação relativa no índice de natalidade excessivamente elevado das massas, o neomalthusianismo surpreende-a no facto de a mortalidade humana ser «excessivamente baixa» mercê dos êxitos médicos e terapêuticos.

Bastaria este argumento para se poder ajuizar de mérito. Trata-se de uma teoria anticientífica, como disséramos na abertura deste parêntesis. Contra ela, Marx e Engels demonstraram que a superpopulação (e a miséria, com esta conexionada) deve-se unicamente ao regime capitalista. Não há que culpar nem as progressões desiguais, nem a biologia, nem as «sabotagens» com que a medicina impugna uma «justa mortalidade». De tal sorte, Marx e Engels puseram a nu o carácter reaccionário do malthusianismo. Os progressos da ciência e da técnica implicam enorme aumento das forças produtivas, aceleram a produção social, tudo isto com rapidez superior ao aumento da população. Poder-se-á mesmo acrescentar que o carácter historicamente transitório da superpopulação resultou insofismável, patente, mercê das experiências já efectuadas nos países socialistas da Europa.

Poder-se-á considerar injustificável, num estudo político sobre os elementos do Estado, este parêntesis que versou a transitoriedade das leis da população. Dir-se-á então que só importa, à disciplina de «Introdução à Política», saber que a população é um elemento do Estado. Mas eu responderei de contrário. Vindo nós a desenhar o Estado desde a questão das suas origens, desde a definição da sua natureza como problema de carácter económico, desde enfim as suas relações (no tempo) com diferentes e sucessivas formações económico-sociais, importava sem dúvida explicitar que a população, como elemento do Estado, se modifica (mesmo biologicamente quanto a saúde, natalidade, regime de reprodução, etc.) quando se modificam as condições económico-sociais, e que ela tem leis próprias relativamente a cada formação económico-social, transitórias portanto — como, por exemplo, no capitalismo a atrás referida lei da superpopulação relativa.

Posto isto, vejamos em que medida a população de um Estado constitui uma Nação. Por forma interrogativa: — é acaso a Nação o mesmo que Povo ou População? Constitui a Nação um elemento do Estado?

População ou Povo, por um lado, e Nação por outro, não representam a mesma ideia, se bem que ambos os conceitos correspondam ao agregado humano que é elemento do Estado. Para que se possa falar de Nação é necessário considerar um certo grau de uma cultura própria. Quer isto dizer que, respeitando os dois conceitos a uma mesma realidade material (o agregado humano), a Nação é um fenómeno próprio das fases mais avançadas da evolução cultural de um povo. Ao contrário, o Povo (a população) é um produto social primário.

Os vínculos que tornam coesa uma nacionalidade, expressão de uma cultura acoplada na massa do povo, são relativamente estáveis. Isso é óbvio. Todavia, cumpre-nos observar que as relações nacionais, tal como as relações de classe, não existiram sempre. As relações de classe, já o sabemos, surgiram com o aparecimento do Estado. A Nação, essa, formar-se-á mais tarde. É que as nações constituem produto cultural de um longo desenvolvimento histórico.

No regime da comunidade primitiva, a forma fundamental da convivência humana era a gens e a tribo. O traço que unificava os membros destes grupos, e os separava dos restantes, arrancava de uma origem familiar comum, o parentesco consanguíneo., E só quando se desintegra a comunidade primitiva, se debilita o significado dos vínculos de sangue. Por isso Kuusinen, que encabeça a autoria colectiva da obra citada neste capítulo (págs. 156) terá escrito assim:

— «A união de várias federações de tribos dá lugar à nacionalidade. Os homens a esta pertencentes já não estão relacionados por laços de sangue. Os traços que lhes são próprios (comunidade de língua, de território, de cultura) têm agora uma origem social histórica. Mas o carácter uno da nacionalidade é ainda muito precário. Nem dentro do regime esclavagista, nem do feudal, podia existir a unidade de vida económica, condição necessária quer para uma unidade territorial duradoura, quer para uma comunidade estável de cultura. Só na época em que se estrutura o capitalismo, quando este põe fim à dispersão feudal e origina a formação de um mercado nacional único, só então surgem as premissas necessárias para que apareça a Nação».

Parece dispensável advertir que a comunidade nacional não se pode identificar com a raça, — não obstante isso ser coisa pretendida por alguns sociólogos burgueses. A divisão em raças — nas três grandes raças que a ciência antropológica conhece: a indoeuropeia (branca), a negróide (negra) e a mongolóide (amarela) — guia-se por diferenças morfológicas hereditárias, por exemplo a cor da pele, a forma do crâneo, o tipo de cabelo. Os caracteres rácicos são de natureza biológica, resultado de uma longa adaptação do organismo ao meio ambiente. Noutro plano, porem, os caracteres nacionais são de ordem cultural, sociológica, histórica. Basta reparar que a uma mesma raça (a branca) pertencem várias nações (Portugal, Espanha, França, etc.) e que há nações que englobam várias raças (os brancos, negros e índios dos países íbero-americanos).

O carácter unitário da comunidade nacional não, pode obviamente, suprimir as diferenças sociais de classe. Quer isto dizer que uma unidade de cultura não exclui os antagonismos classistas. Mas este facto, mal interpretado e analisado por certos teóricos de esquerda, estimulados ainda pelas desastrosas consequências de certos nacionalismos imperialistas, não significa de modo nenhum que a Nação valha um conceito historicamente ultrapassado. Denis e Kanapa reparavam, em «Pour ou Contre l'Europe», que até os mais acérrimos paladinos de uma cidadania mundial nunca puderam evitar, cruzando vários países, que fossem «imediatamente reconhecidos, no estrangeiro, quanto à sua nação, através do comportamento, da linguagem, do seu modo de vida e de pensar». Toda a Nação, na verdade, ainda que o processo da sua formação implique elementos acidentais ou arbitrários, exprime ao mesmo tempo uma unidade (a do povo) e uma diferença (relativa às outras nações). A este propósito, numa carta dirigida a Engels, escrevia Marx (em 20/6/1866) com a sua proverbial ironia:

«Ontem houve discussão no Conselho da Internacional sobre a guerra (...) Os debates, como era de esperar, centraram-se sobre a questão das nacionalidades e a nossa posição a esse respeito. Os representantes da «Jeune France» (que não eram trabalhadores) — o sublinhado é de Marx — defenderam um ponto de vista segundo o qual a nacionalidade e a própria Nação são preconceitos ultrapassados. «Stirnerismo» proudhoniano!... Os ingleses riram-se muito quando comecei o meu discurso dizendo que o nosso amigo Lafargue, e os outros defensores da abolição da nacionalidade, se nos dirigiam em francês, ou seja, numa língua incompreensível para nove décimos da assistência...»

Assentemos que o conceito de nacionalidade não está ultrapassado pela História. Ele constitui, ao contrário, uma ideia verdadeiramente moderna, revelando designadamente um conteúdo progressista na medida em que a reivindicação e a defesa de uma nacionalidade própria representa para muitos povos africanos e asiáticos parte integrante da sua luta contra o imperialismo. Escreveram Denis e Kanapa no texto atrás referido:

— «Bem podem certos homens de esquerda apodar de «reaccionário» o apego à independência nacional; porém o imperialismo, o americano particularmente, com mais razão classifica de «revolucionários» os movimentos populares que se manifestam na América Latina, na Ásia, em África, enquanto lutam por uma independência real. Se certos homens de esquerda negam, em teoria, o facto nacional, deveriam no entanto tomar consciência de que o imperialismo, esse, nega-o praticamente, atentando por sistema contra a soberania de dezenas de povos».

Passamos agora a analisar o chamado ordenamento político e administrativo do Estado. Para uns, sob a designação de «governo» (em sentido muito amplo), ele constitui o terceiro dos elementos do Estado. Para nós, porém — que só concebemos, como tais, o Território e a População — este ordenamento (ou governo) representa antes o aparelho repressivo do Estado. É o que vamos ver.

Lenine escreveu no seu ensaio sobre «O Estado»:

— «Os homens dividem-se em governados e especialistas na arte de governar, os quais (estes últimos) se situam acima da sociedade e se chamam governantes ou representantes do Estado. Este aparelho, este grupo de homens que governa outros, serve-se sempre de instrumentos de repressão, de coacção, quer esta seja exercida pela clava na idade primitiva, por armas mais aperfeiçoadas na época da escravatura, por armas de fogo aparecidas na Idade Média, quer enfim por armas modernas que são, no século XIX, verdadeiros prodígios, inteiramente báseados nas últimas realizações da técnica».

Em sentido amplo, portanto, o conceito de «governo» abrange todo o aparelho repressivo do Estado, todos os órgãos de domínio de uma classe sobre outra: — o Chefe do Estado, os Ministros, o Parlamento e a Administração Pública, englobando esta os Tribunais, as Polícias e, por absurdo que pareça (como função repressiva), até os próprios Serviços Públicos. É efectivamente óbvio que estes últimos, não obstante «servirem o público», fazem-no segundo a orgânica de uma sociedade em que a classe dominante reprime e oprime a dominada.

A enumeração destes órgãos integrantes do aparelho repressivo do Estado permite-nos uma distinção interna que tem, como veremos, importância de relevo. E possível, com efeito, distinguir na generalidade .do aparelho repressivo do Estado órgãos que são de função política e órgãos que são de função administrativa. Teremos pois o binómio seguinte:

  1. por uma parte, o aparelho repressivo político (Chefe do Estado e Ministros ou «governo» em sentido restrito);
  2. por outra, o aparelho repressivo administrativo (Administração Pública em geral, Administração Pública judiciária, policiária, etc...).

Mas qual será, afinal, o interesse desta distinção?

Num pequeno volume muito recentemente publicado em Portugal pela Presença — «Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado» — lê-se (a págs. 37) esta importante afirmação do seu autor, Louis Althusser:

— «Sabemos que o aparelho de Estado pode permanecer intacto, como o provam as «revoluções» burguesas do século XIX em França (1830, 1848), os golpes de Estado (o 2 de Dezembro, Maio de 1958) ou as quedas do Estado (queda do império em 1870, a queda da 3.ª República em 1940), a ascensão política da pequena burguesia (1890-95 em França), etc., sem que o aparelho de Estado seja afectado ou modificado por este facto: ele pode permanecer intacto apesar dos acontecimentos políticos que afectam a detenção do poder de Estado».

E logo a seguir:

— «Mesmo após uma revolução social como a de 1917, grande parte do aparelho de Estado permaneceu intacta após a tomada do poder de Estado pela aliança do proletariado e dos camponeses pobres: Lenine não se cansou de o repetir».

Tais frases podem lançar em confusão o leitor mais desprevenido. O esclarecimento começará, no entanto, a sobressair quando repararmos que Althusser chama «poder de Estado» àquilo que viemos designando por «aparelho repressivo político do Estado» e denomina «aparelho de Estado» a engrenagem que identificámos como «aparelho repressivo administrativo do Estado». E, na verdade, o que uma revolução faz imediatamente cair é o aparelho político do Estado (como agora aconteceu no nosso País com o 25 de Abril), mantendo-se, porém, durante um mais ou menos longo tempo de transformações, o aparelho repressivo administrativo desse mesmo Estado que foi politicamente derrubado. Subsistem os Tribunais, a Administração e os Serviços Públicos. Todo este último esquema vai sendo progressivamente adaptado à nova organização política revolucionariamente instaurada.

Trata-se de uma distinção fundamental, muito nítida em Marta Harnecker, no seu livro «Os Conceitos Elementais do Materialismo Dialéctico», de que transcrevo duas ou três breves passagens.

A págs. 116, no n.° 2 («A dupla função do Estado») do 7.° capítulo, «Estrutura jurídico-Política», afirma Marta Harnecker:

— «O Estado tem uma dupla função: técnico-administrativa e de dominação política. Esta última é a que define propriamente o Estado, sobredeterminando a função técnico-administrativa, isto é, orientando-a ao serviço da função de dominação política».

E no n.° 3 do mesmo capítulo («A Extinção do Estado»), acrescenta (págs. idem):

... «Por outro lado, a distinção destas duas funções ajuda-nos a compreender a tese marxista à cerca de extinção do Estado, que se opõe à tese anarquista da supressão do Estado. Os marxistas sustentam que, quando o proletariado busca o amparo do poder político, não pode o Estado desaparecer de um dia para outro. É preciso destruir o aparelhamento político anterior e construir um novo, de carácter proletário, porque a luta de classes continuará e, portanto, necessitar-se-á de um aparelhamento que cumpra as funções de repressão das classes que se oponham à construção do socialismo. Os anarquistas sustentam, pelo contrário, que é imprescindível fazer desaparecer imediatamente todo o aparelho «burocrático», permitindo a livre organização da população a nível das suas frentes de massa».

Esta transcrição, conjugada com a anterior que fiz de Althusser, justifica plenamente a distinção entre «aparelho repressivo político do Estado» e «aparelho repressivo administrativo do Estado». Só o primeiro a revolução elimina de imediato. O segundo, «a administração das coisas e a direcção dos processos de produção», ir-se-á transformando paulatinamente, progressivamente, até à extinção total, final, do Estado como aparelho genérico repressivo.

Antes de rematar esta matéria, volto ainda a chamar a atenção do leitor para o título do há pouco aludido ensaio de Althusser: — «Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado». É que o Estado, além de ser um aparelho ou máquina de repressão, também se revela como aparelho ou máquina de ideologia. Mas esta matéria fica reservada para o capítulo em que estudarmos o problema das ideologias.

continua>>>


Inclusão 15/12/2014