História do Mundo
Volume II - O Período Moderno

A. Z. Manfred


Capítulo XV - A Rússia depois da Abolição da Servidão - Da Reforma à Revolução


O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia
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Os anos que decorreram entre a abolição da servidão (1861) e a Primeira Revolução Russa de 1905 foram descritos por Lenine como «a linha divisória da história da Rússia».

Este período foi assinalado pelo desaparecimento das velhas tradições feudais que tinham caracterizado a Rússia antes da grande reforma e pelo nascimento de novos padrões sociais típicos da sociedade burguesa. Depois da abolição da servidão surgiram grandes fábricas em muitas partes do país. No espaço de vinte anos, o trabalho mecanizado já desalojara o trabalho manual na maior parte da indústria russa.

Novos centros industriais, além de Moscovo e os Urais, apareceram no mapa. A exploração das minas de carvão foi desenvolvida em larga escala na região do Donbas e do ferro na região de Krivoi Rog. Nas estepes, antes estéreis da Ucrânia do Sul, foram erguidas grandes fábricas de metalurgia à volta das quais cresceram grandes cidades, tais como Yuzovka (depois chamada Donetsk), que originalmente era apenas um pequeno agrupamento de trabalhadores duma destas fábricas nas estepes perto do mar de Azov. Velhas cidades costeiras tais como Taganrog, Mariupol (depois chamada Zhdanov) e Odessa mudaram tanto que ficaram irreconhecíveis. Em 1900, os centros industriais do Sul já davam à Rússia mais de metade do seu ferro em lingotes, relegando os Urais, local original desta indústria, para o segundo lugar.

A Rússia era o maior país do Mundo. Em meados do século XIX, o império russo ocupava um nono da área de terra do globo. Este vasto país tinha grandes reservas naturais que, devido à servidão, ainda não tinham sido exploradas. Depois da reforma de 1861, foram construídos milhares de quilómetros de carris de ferro que ligavam as regiões centrais do país às fronteiras mais remotas, dando à indústria russa um fácil acesso às riquezas minerais do Cáucaso, do Casaquistão e da Sibéria. Baku, no Azerbeijão, tornou-se um importante centro de petróleo, e mais tarde exploraram-se novos campos petrolíferos à volta de Grozny no Norte do Cáucaso. Minas de cobre foram abertas em Jazkargan (Casaquistão) onde havia ricos depósitos praticamente virgens. A exploração das minas de carvão foi também desenvolvida em larga escala na bacia do Kuznetsk na Sibéria.

As fontes de combustível e de minerais da Rússia eram inesgotáveis. Em 1860, a população era quase um quarto da população total da Europa e em 1900 quase um terço. Isto representava um aumento populacional de 80 por cento (de 74 para 133 milhões) durante 40 anos — de 1860 a 1900. Os capitalistas russos desse período tinham uma reserva de mão-de-obra ilimitada à sua disposição, milhões de camponeses, que ou tinham lotes de terra extremamente pequenos ou não tinham terras algumas, e estavam prontos a trabalhar em quaisquer condições. Além disso, o capitalismo russo nascente pôde utilizar a experiência industrial já adquirida pelos países capitalistas avançados do Ocidente, e aprender muito com eles.

De 1860 a 1900, a produção industrial subiu mais de sete vezes enquanto os números correspondentes em França e em Inglaterra eram duas vezes e meia e pouco mais de duas vezes. A produção russa de ferro em lingotes triplicou no curso de apenas dez anos (1886- 1896). Para conseguir uma subida semelhante, a França precisou de vinte e oito anos, os Estados Unidos de vinte e três e a Inglaterra de vinte e dois.

A escala de concentração da indústria era também maior na Rússia do que no Ocidente. Em 1890, quase metade da força de trabalho industrial total foi utilizada em grandes fábricas com quinhentos homens e mais.

Contudo, em relação à produção «per capita» a Rússia estava ainda muito atrás dos países capitalistas avançados. A Inglaterra produzia cinco vezes mais ferro em lingotes por ano «per capita» do que a Rússia.

A Sobrevivência das Práticas Feudais na Vida Rural

O desenvolvimento industrial e a expansão urbana aumentaram a procura de matérias-primas e alimentação. Como resultado, a agricultura e a criação de gado iam assumir um carácter comercial cada vez mais acentuado depois da reforma de 1861: quantidades cada vez maiores de alimentos eram produzidas para os mercados.

A pobreza e a falta de terras empurraram os camponeses russos das regiões centrais do país para o Sul e para o Leste. Esta migração recuperou para o cultivo de extensas terras virgens na Ucrânia, no Norte do Cáucaso, na margem oriental do Volga e na Sibéria. A população nativa destas regiões, sob influência dos novos colonos russos, começou ela também a semear mais cereais.

Em algumas regiões afastadas da parte asiática do país, onde as tribos locais de caçadores e pastores não tinham experiência de agricultura arável, os camponeses russos fizeram um trabalho pioneiro no cultivo das novas terras.

A Reforma de 1861 não tinha conseguido eliminar muitas práticas feudais na vida rural russa, e a mais importante era a continuação da existência de grandes propriedades. Depois da abolição da servidão alguns proprietários, particularmente nas regiões do Ocidente e do Sul, tentaram adaptar-se às novas relações económicas que surgiram como resultado da reforma. Compraram máquinas, contrataram trabalhadores e começaram a introduzir métodos capitalistas de agricultura nas suas propriedades, transformando-as em fábricas de carne e cereais. No entanto, a maioria dos proprietários, especialmente os da Rússia Central, não mostravam qualquer desejo de renunciar às vantagens inerentes à sua posição privilegiada de donos de grandes terras. Preferiam alugar parte das terras em pequenas parcelas a camponeses sem terra na condição de estes últimos cultivarem o resto das terras sem remuneração ou de lhes darem metade da colheita anual. Este sistema de arrendamento da terra era muito semelhante ao que tinha existido antes da reforma, quando os camponeses pagavam rendas fixas pela terra que tinham autorização de cultivar e prestavam serviços específicos de trabalho em troca dela.

Como o trabalho dos camponeses que arrendavam parte das suas terras não lhes custava nada, os agrários não viam razão para comprar máquinas caras ou para usar técnicas agrícolas mais actualizadas. Quanto aos camponeses, é claro, que não tinham fundos suficientes para o fazer, onerados que estavam por causa das rendas e dos impostos que tinham de pagar.

Em geral, os cereais com que os camponeses ficavam disponíveis, depois de pagarem tudo aos seus senhores, eram insuficientes para durar até à próxima colheita seguinte, e eles e as suas famílias passavam fome. Os seus filhos eram frequentemente atingidos por doenças. Epidemias de tifo, cólera e disenteria eram frequentes na Rússia rural daquele tempo.

Com tão pequenos recursos, os camponeses não podiam comprar muitos produtos manufacturados. E como o campesinato constituía a parte mais numerosa da população, o baixo poder de compra das massas camponesas atrasaria necessariamente o crescimento do mercado interno do país. Assim, os restos de práticas feudais na agricultura foram um travão para o progresso económico nas áreas rurais e também na indústria, impedindo o desenvolvimento capitalista da Rússia.

Isto não quer dizer, é claro, que todos os camponeses russos estavam expostos a condições igualmente duras. Mesmo antes das reformas camponesas ricos e pobres tinham vivido e trabalhado lado a lado e depois de 1861, à medida que o comércio passou a exercer uma maior influência nos padrões da agricultura, o empobrecimento da grande massa dos camponeses e o aparecimento de núcleos de camponeses ricos ocorreram com maior rapidez. Os camponeses ricos que exploravam os trabalhadores assalariados começaram a constituir uma nova classe capitalista, enquanto os camponeses pobres proprietários de pequenas parcelas insuficientes para se alimentarem e às suas famílias foram obrigados a vender o seu trabalho. Assim, os camponeses pobres deixaram praticamente de serem camponeses no verdadeiro sentido da palavra, passando a trabalhadores agrícolas possuidores de pequenas parcelas individuais.

Assim ia desaparecer na Rússia o padrão de vida patriarcal. Novos grupos, com interesses diferentes, começaram a aparecer nas aldeias russas e em pouco tempo se encontram lado a lado, a burguesia agrícola e o proletariado agrícola. O número de camponeses médios diminuiu consideravelmente. Diante da ruína, a maioria do campesinato pobre juntava-se ao proletariado urbano ou aos trabalhadores assalariados das aldeias. Só muito poucos de entre o estrato do campesinato conseguiram aguentar a dura competição no campo agrícola posterior à reforma.

A Evolução do Proletariado Industrial

O crescimento da indústria capitalista da Rússia levou a um maior número de trabalhadores assalariados, que deixaram a agricultura e a pequena indústria para vir trabalhar nas grandes empresas industriais. Pouco a pouco apareceu um poderoso e novo proletariado industrial que estava destinado a desempenhar o principal papel na transformação revolucionária da sociedade.

Uma característica distintiva do aparecimento do proletariado industrial na Rússia foi a migração dos camponeses para os centros industriais: à medida que os antigos padrões da vida rural se desintegravam, estes acorriam às cidades à procura de trabalho. Ao proletariado juntaram-se também os artífices arruinados, mas a grande maioria dos operários das fábricas eram antigos camponeses.

Embora estes operários industriais estivessem agora separados das suas antigas casas nas aldeias, mantiveram-se em contacto com os parentes que lá tinham ficado. Este íntimo contacto entre operários e camponeses foi um factor importante na formação do desdobramento das forças de classes da Rússia daquele tempo. Tornou possível a posterior aliança entre a classe operária e o campesinato.

Em nenhum outro país europeu a classe operária foi sujeita a condições tão desumanas como na Rússia. Em parte alguma da Europa, os trabalhadores tinham tão poucos direitos ou tinham tantas dificuldades em unir legalmente as suas forças na luta contra os capitalistas. Nestas intoleráveis condições de vida e de trabalho, a consciência de classe e o fervor revolucionário desenvolver-se-iam desde logo nas fileiras da classe operária. A concentração do proletariado industrial do país em grandes empresas deu aos operários a possibilidade de oferecer uma resistência particularmente pertinaz à exploração capitalista.

A classe operária russa, ligada como se sabe ao campesinato, estava claramente destinada a ser um poderoso aliado e líder do campesinato russo. A indústria russa estava concentrada sobretudo na parte central do país, em S. Petersburgo, Moscovo, Ivanovo e Tula, e nos arredores destas cidades. Contudo, quando se abriram novos centros Industriais no Sul e no Oriente do país, os trabalhadores russos seguiram os camponeses no seu êxodo para as mais distantes partes do país.

Apareceram também grupo de operários industriais entre os habitantes locais desta região, e como resultado do íntimo contacto com os trabalhadores russos ficaram desde logo sob a sua influência ideológica. O proletariado da Ucrânia era constituído por antigos camponeses pobres ucranianos e russos. Havia um grande número de trabalhadores russos nas fileiras do proletariado nas províncias do Báltico, na Bielo-Rússia, no Cáucaso e na Ásia Central. Tal situação era característica do império russo. Não havia trabalhadores ingleses na Índia nem trabalhadores holandeses na Indonésia. Em nenhum dos impérios coloniais o proletariado da nação-mãe desempenhou um papel organizacional tão importante ou exerceu tão ampla influência no movimento de libertação dos povos súbditos como o proletariado russo nas regiões periféricas do império russo.

O envolvimento dos trabalhadores das minorias nacionais na luta revolucionária do proletariado russo foi condição vital para a criação de uma frente unida dos povos da Rússia contra o colonialismo czarista e para a sua inevitável libertação nacional como resultado da vitoriosa Revolução Russa de 1917.

Capitalismo de Estado na Rússia

Depois da reforma de 1861, os desenvolvimentos capitalistas não se observaram só nos escalões mais baixos da sociedade mas também na política posterior do governo czarista e nas medidas que este decretou de cima. O governo czarista tinha sempre lutado para manter o domínio político da nobreza privilegiada e para consolidar o domínio económico e militar do império, melhorando as comunicações e encorajando a construção de minas e fábricas. Neste período específico, era importante para o governo encorajar a concentração do capital e canalizá-lo para os sectores da economia em cujo desenvolvimento tivesse investido interesses.

Ao proteger a indústria local da competição estrangeira por meio de barreiras alfandegárias, o governo desempenhou um papel activo na vida económica do país, colocando as grandes encomendas nos donos das grandes fábricas a preços vantajosos, e ao mesmo tempo dedicando grandes somas à expansão dos caminhos de ferro. O Banco do Estado fazia empréstimos que iam até aos milhões aos poderosos capitalistas em condições muito favoráveis. Os capitalistas individuais ficaram desde logo devedores ao Banco de Estado de cinco milhões de rublos.

Já antes da Reforma de 1861, o Tesouro Público controlava um importante sector oficial da economia do país, proprietário que era, de vastas terras e florestas, minas e fábricas. Depois de 1861, o sector oficial assumiria também um cariz capitalista. A acrescentar a isto, o governo czarista começou a construir caminhos de ferro à sua custa ou a comprar linhas do caminho de ferro do país que eram propriedades privadas. Em 1894, mais de metade da rede dos caminhos desferro do país estava nas mãos do Estado. Ao mesmo tempo, o Estado também adquiriu de vários empresários particulares grandes oficinas de engenharia de caminho de ferro e fábricas de armas.

Muitos funcionários públicos e até ministros compraram acções nas empresas capitalistas. E como por este processo tinham interesses nos lucros dessas empresas, não se poupavam a esforços para lhes garantir encomendas vantajosas e empréstimos a longo prazo. Foi através destes funcionários públicos que os poderosos capitalistas puderam exercer uma influência concreta na política seguida pelo governo czarista.

Para acelerar o desenvolvimento industrial o governo czarista mais tarde permitiu a importação de capitais estrangeiros, empreendimento que se revelou muito proveitoso para os financeiros estrangeiros, que se aproveitaram desta nova concessão. No final do século XIX, este facto tinha levado a que franceses, belgas, alemães, ingleses e outros controlaram as grandes empresas industriais, particularmente indústria mineira e na indústria metalúrgica russas.

Estas medidas destinadas a promover a expansão industrial fizeram realmente avançar o desenvolvimento capitalista na Rússia. Entretanto, a introdução do capitalismo «de cima» cerceava a iniciativa da burguesia russa, que se tinha habituado a subornar o governo. Além disso, como consequência dos grandes investimentos estrangeiros, uma parte significativa dos lucros industriais estava a deixar o país. O lucro das fábricas do Estado e do caminho de ferro era gasto pelo governo czarista em empreendimentos que pouco tinham em comum com as necessidades vitais do povo russo.

A Cultura Russa no Final do Século XIX

O final do século XIX assistiu a um grande florescimento da literatura, da arte e da ciência na Rússia. Os escritos de Leão Tolstoi (1828-1910) iam ter um enorme impacto sobre os homens de todas as nações. As obras de Fyodor Dostoyevsky (1821-1881), de Ivan Turgeniev (1818-1883) e Ánton Tchekhov (1860-1904) iam tornar-se famosas em todo o Mundo. Neste período, a Rússia também deu ao Mundo a grande música de Tchaikovsky (1840-1893), Mussorgsky (1839-1881), Rimsky-Korsakov (1844-1908) e Borodin (1833-1887). As telas de artistas realistas como Perov (1853-1882), Kramskoy (1837-1887) e Repín (1844-1930) iam exercer poderosa influência social sobre os homens do seu tempo.

As principais figuras na esfera das ciências naturais deste tempo foram Dmitry Mendeliev (1834-1907) que inventou a Tábua Periódica dos Elementos, o notável físico Stoletov (1839-1896) e os talentosos biologistas Mechnikov (1845-1916) e Timiryazev (1843-1920).

O Movimento Populista

As revoltas camponesas eram ainda frequentes, mesmo depois da abolição da servidão. Os camponeses agora protestavam contra as condições que resultaram desta reforma que na prática, serviu os interesses dos proprietários. Os camponeses não estavam dispostos a reconciliarem-se com o encurtamento das suas terras e exigiram a devolução das que lhes tinham sido tiradas e entregues aos nobres, e a liquidação dos pagamentos de remissão que eram completamente impraticáveis. A agitação camponesa continuou, ora aumentando, ora diminuindo, por todo o país, pois o povo lutava ainda contra práticas feudais obsoletas.

A progressista intelligentzia russa mostrava profunda simpatia pelos camponeses sem terras. Muitos deles estavam convencidos de que seria uma tarefa simples reunir milhões de camponeses numa revolta única através de toda a Rússia, eliminar a exploração e assegurar ao povo uma vida de felicidade e liberdade. Seguindo os passos de Tchernyhevsky e Herzen, a nova geração da Inteligentzia democrática russa imaginava que comunas, onde se reunissem todos os habitantes de cada aldeia, seriam o núcleo de uma sociedade socialista na qual os camponeses começariam a viver e a trabalhar colectivamente. Foram teorias como esta que fizeram surgir a ideia de que se podia fazer uma transição imediata para o socialismo, sem passar pelo capitalismo, e também um grave erro na avaliação da importância vital de tomar o poder político.

Além disso, os camponeses, cuja consciência social e de classe não estava desenvolvida, não estavam ainda preparados para uma acção conjunta. Não havia igualdade nas comunidades rurais e os interesses das massas pobres não tinham nada de comum com os dos camponeses opulentos. O único caminho dos trabalhadores para a liberdade da exploração estava numa aliança com o proletariado industrial, numa luta comum chefiada por este último.

Alguns revolucionários russos nesta altura já conheciam as obras de Marx e Engels. No tempo em que tinham vivido no estrangeiro puderam observar a ascensão do movimento operário, tinham sido testemunhas oculares das batalhas revolucionárias do proletariado, ou haviam tomado parte nelas. Em 1870, um grupo de revolucionários russos no exílio na Suíça tinham-se declarado «sector russo» da Primeira Internacional. Nesse mesmo ano o revolucionário russo Herman Lopatin (1845-1918) foi eleito para o Conselho Geral da Internacional. Com a ajuda dos seus amigos, Lopatin traduziu o primeiro volume de O Capital para russo. Esta obra tem sido traduzida desde então para um enorme número de línguas, mas esta edição russa foi a primeira tradução que apareceu. Acerca deste revolucionário inteligente, ousado e activo, escreveu Marx:

«Há poucas pessoas de quem eu gosto tanto e por quem tenho tanta admiração.»

Em 1871, a pedido de Marx, o Conselho Geral da Internacional, então em Londres, mandou a revolucionária russa Yelizaveta Dmitriyeva como sua representante oficial da Comuna de Paris. Esta conseguiu chegar à cidade cercada e pôde tomar parte activa na obra da Comuna.

Contudo, apesar do seu conhecimento da actividade e das obras de Marx e Engels, os revolucionários russos deste período ainda não tinham aceitado plenamente as ideias do marxismo revolucionário. A principal razão de tudo isto era o atraso da Rússia: o desenvolvimento capitalista estava ainda numa fase muito primitiva e o proletariado industrial mal tinha acabado de nascer. Assim, era natural que muitos membros da Inteligentzia russa não estivessem ainda em posição de avaliar o papel histórico da classe operária e ainda persistissem na sua visão errada de que a principal força revolucionária da Rússia era o campesinato.

Em 1874, cerca de mil jovens russos vestidos de camponeses partiram para as aldeias, uns na esperança de incitarem os camponeses à revolta e de organizarem uma revolta à escala nacional; outros, para propagarem ideias socialistas. Esta nova ofensiva por parte da juventude revolucionária russa veio a ser conhecida como «a ida para junto do povo». Mais tarde, aqueles que tinham tomado parte nela e os seus simpatizantes foram chamados narodniki. (de palavra narod, que significa povo) ou populistas.

Os Populistas e a sua Luta contra o Domínio Czarista

Os camponeses não responderam aos apelos dos narodniki.. Não estavam preparados para uma revolta à escala nacional, e ainda menos para adoptarem ideias socialistas. Depois deste fracasso, alguns narodniki. perderam o entusiasmo e abandonaram o movimento, enquanto outros decidiram continuar o seu trabalho de propaganda, estabelecendo-se como artífices, pequenos comerciantes e assistentes dos médicos em áreas rurais durante períodos consideráveis. Compreendendo a necessidade de unirem os seus esforços, estes jovens revolucionários fundaram uma organização secreta chamada Zemlya e Volya (Terra e Liberdade). Organizaram uma imprensa clandestina para publicar um jornal ilegal que expunha a política do governo czarista como incompatível com os interesses do povo.

Não tardou muito, porém, que muitos narodniki. não perdessem a fé na eficiência da sua propaganda nas aldeias. Os mais activos, que não tinham adoptado uma táctica correcta nas suas lutas iam agora advogar uma táctica de conspirações contra o governo czarista, considerando o assassínio político como supremo método de luta. Pensavam eles que o assassínio de um grupo de ministros czaristas e do próprio czar seria suficiente para espalhar o pânico entre os círculos dominantes da Rússia, depois do que a tomada do poder político já não apresentaria grande dificuldade. A decisão de os narodniki em empreenderem uma luta política era absolutamente justificada, mas o tipo de luta política que escolheram estava errado. A ideia de que alguns actos terroristas e o assassínio de vários altos oficiais tornariam possível mudar a estrutura política do Estado não tinha qualquer fundamento, como se ia verificar pelos acontecimentos posteriores.

Em 1879, os terroristas narodniki, fundaram uma nova organização secreta chamada Narodnaya Volya (A Vontade do Povo). Era chefiada por revolucionários experientes, incluindo Andrei Thelyabov, Sofia Perovskaya e Alexandre Mikhailov. Os membros desta nova organização dedicaram a sua inesgotável energia e todo o seu talento e conhecimento à realização de actos terroristas. Conseguiram assassinar alguns altos funcionários de Estado e depois pronunciaram a sentença de morte do próprio czar. A partir desse momento, durante um ano e meio, Alexandre II teve sobre si uma constante ameaça de morte. Disparavam sobre ele quando saía a passear, colocavam minas nos comboios reais e chegou a explodir dinamite, em certa ocasião, debaixo da casa de jantar do seu palácio no centro de S. Petersburgo. As simpatias dos progressistas de todo o Mundo estiveram do lado destes valentes opositores ao despotismo czarista, embora nem todos aprovassem o programa narodniki. e a sua táctica.

Finalmente, em 1 de Março de 1881, fizeram-se planos para assassinar o czar quando ele seguia por uma das ruas de S. Petersburgo. A primeira bomba que foi atirada à sua carruagem fê-la explodir, e a segunda, atirada por Ignaty Grinevitsky, feriu fatalmente o czar e o seu assassino. Ambos morreram daí a poucas horas. O filho e herdeiro do czar Alexandre III deixou a capital e dirigiu-se para o palácio real de Gatchina fora de S. Petersburgo e rodeou-se de guardas armados e de polícias. Fora da Rússia chamavam ironicamente ao novo czar «o prisioneiro de Gatchina».

No entanto, o regime político que imperava na Rússia não mudou. O governo czarista continuou a seguir a sua antiga política e apenas tomou medidas mais rápidas para suprimir os elementos revolucionários do que tinha feito antes. Em vão o comité executivo de Narodnaya Volya mandou um apelo ao czar pedindo uma amnistia e uma convocação dos representantes do povo, em troca do que prometiam pôr fim à sua actividade terrorista. O czar não lhe deu ouvidos, enquanto a polícia submetia os revolucionários a uma perseguição selvática. Quatro foram enforcados e os outros tiveram longas penas de prisão. Nesta altura, a organização estava completamente derrotada e as tentativas de a reconstruir não tiveram êxito! O irmão mais velho de Lenine, Alexandre Ulyanov, pagaria com a vida a sua participação num atentado posterior contra a vida do novo czar. Foi preso e executado antes de o plano ser posto em prática.

O destino da Narodnaya Volya e dos seus membros demonstrou que a coragem e determinação pessoais não eram suficientes para assegurar o sucesso de uma organização revolucionária. Era essencial uma teoria revolucionária que mostrasse o caminho correcto para a vitória, e os narodniki. não tinham tal teoria. A conspiração e os assassínios isolados não podiam alcançar êxito revolucionário.

As Primeiras Organizações Operárias

Nos anos em que os narodniki. espalharam a sua propaganda nas aldeias, os protestos em massa dos operários da indústria começaram a ganhar importância.

Os funcionários do governo e a polícia fizeram todos os esforços para proteger os interesses dos capitalistas, e os operários desta época foram privados de direitos políticos. Qualquer movimento de protesto seu contra os seus patrões era encarado pela polícia e pelas autoridades czaristas como «insubordinação» ou «rebelião». As greves eram consideradas crimes contra o Estado: os organizadores de greves eram presos, os participantes, despedidos dos seus empregos e literalmente atirados para fora dos edifícios das fábricas.

Apesar disso, o número de greves na Rússia continuou a aumentar juntamente com o sentido da necessidade de união dos operários.

Neste fundo de crescente agitação industrial, em 1875, foram estabelecidas duas organizações secretas: a União dos Operários do Sul da Rússia, no porto de Odessa, e a União dos Operários do Norte da Rússia, em S. Petersburgo. A primeira foi organizada por um intelectual narodniki, Yevgeny Zaslavsky, e a segunda por dois trabalhadores, o ajustador Victor Obnorsky e o marceneiro Stepan Khalturin. Estes eram representantes do sector do proletariado progressista que não aprova o programa e a táctica narodniki. e que estava ansioso por procurar novas formas de luta. Obnorsky lia muito e tinha estado no estrangeiro três vezes: tinha tido oportunidade de estudar a experiência das organizações operárias da Europa Ocidental e tinha contactado com vários líderes do movimento trabalhista internacional. Khalturin também lia muito para se instruir. Ambos exigiam um alto grau de organização na luta dos operários e exortavam os operários a empreenderem uma campanha pelos seus direitos políticos. As ideias propagadas pela Primeira Internacional deixaram a sua marca no programa de acção da União dos Operários do Norte da Rússia, que eles elaboraram.

Estas duas uniões de operários foram as primeiras organizações revolucionárias independentes do proletariado russo. Iam durar pouco. Contudo, sendo embora esmagadas pela polícia, os chefes que escaparam à perseguição continuaram o seu trabalho de propaganda revolucionária entre as massas, promovendo uma maior coesão do proletariado e aumentando a sua consciência política.

A cada década o movimento operário russo crescia consideravelmente, e pouco a pouco os protestos dos operários tornaram-se mais organizados. Em 1885, oito mil operários têxteis da fábrica Morozov, em Orekhovo-Zuyevo, perto de Moscovo, fizeram greve. Um grupo de operários progressistas chefiados por antigo membro da União dos Operários do Norte da Rússia, Pyoth Moiseyenko, elaborou a lista de reivindicações dos grevistas. A principal era a abolição do sistema de multas arbitrárias a que os operários estavam sujeitos aos arbítrios dos patrões. Um documento com as reivindicações dos operários foi entregue ao governador principal quando veio à fábrica com uma escolta de soldados. Quando o governador deu ordem para que os líderes dos trabalhadores fossem presos, os grevistas tentaram salvar os seus camaradas e seguiu-se uma amarga luta. O resultado foi a expulsão da cidade de mais de 800 operários e trinta e três processos levantados aos organizadores.

Esta greve das fábricas têxteis de Morozov aterrorizou de tal modo o governo que no ano seguinte, Alexandre III promulgou uma lei que limitava as multas que os donos das fábricas podiam exigir aos seus empregados. Era a primeira grande concessão arrancada ao governo czarista pelo movimento operário. A classe operária da Rússia estava a afirmar-se e mesmo os jornalistas reaccionários já não podiam ignorar aquilo a que, alarmados, chamavam a «questão operária».

Do Populismo ao Marxismo

A história antecedente do proletariado tinha vindo a preparar o caminho para finalmente assumir a chefia do movimento democrático russo. O número crescente de manifestação de operários, as decididas lutas grevistas e a activa campanha para dar unidade e coesão ao movimento operário exerceriam grande influência na vida pública e no desenvolvimento do pensamento público no país.

Depois de a Narodnaya Volya ter sido dispersa, um número considerável de narodniki, desistiu da luta revolucionária e em vez disso canalizaram as suas energias para as esferas do iluminado liberal. Entretanto, os que se mantiveram fiéis às suas tradições revolucionárias começaram a estudar as obras dos principais pensadores ocidentais e a experiência de luta política noutros países europeus na sua busca de uma sólida teoria revolucionária. Depois de lerem as obras de Marx e Engels e de observarem a vaga crescente dos protestos proletários revolucionários, estes intelectuais começaram a centrar a sua atenção no movimento operário.

Em 1882, um antigo narodniki, Georgi Plekhanov, traduziu o Manifesto Comunista para russo, e, em 1883, em Genebra, na Suíça, ele e os seus camaradas fundaram a primeira organização social-democrata russa, a que chamaram o Grupo da Emancipação do Trabalho. Os seus membros haviam de realizar um amplo trabalho de propaganda e publicar traduções russas das grandes obras de Marx e Engels, e os seus próprios panfletos destinavam-se a popularizar as ideias marxistas e a expor a inconsistência do programa dos narodniki e a sua táctica errada. Este desenvolvimento representou um passo importante do populismo para o marxismo.

Plekhanov e os seus camaradas demonstram que na Rússia como noutros países a classe operária estava destinada a desempenhar o papel de chefia no movimento revolucionário e que o caminho para a vitória exigia luta política da parte da classe trabalhadora e a tomada do poder político. No seu discurso proferido no Primeiro Congresso da Segunda Internacional em Paris em 1889, Plekhanov declarou:

«O movimento revolucionário na Rússia só pode triunfar se se tornar um movimento revolucionário dos operários.»

Os membros do Grupo da Emancipação do Trabalho trabalhavam em íntima ligação com os marxistas revolucionários da Europa Ocidental. Engels seguiu de perto a avanço do movimento revolucionário na Rússia e recebeu com alegria a notícia da criação da primeira organização social democrática. Dois anos depois da sua fundação, escrevia:

«Tenho orgulho em saber que há um partido entre os jovens da Rússia que aceita francamente e sem equívoco as grandes teorias económicas e históricas de Marx... o próprio Marx teria tido o mesmo orgulho se tivesse vivido um pouco mais.»

Contudo, havia algumas inconsistências no programa do Grupo, que tinham origem no facto de os seus membros substituírem o potencial revolucionário dos camponeses e praticarem uma oposição exagerada à burguesia liberal, a qual, embora criticasse a polícia reaccionária do governo czarista, não podia apoiar o movimento revolucionário por causa da sua instintiva hostilidade aos movimentos populares.

Além do Grupo da Emancipação do Trabalho, que tinha a sua sede no estrangeiro, começaram a aparecer na própria Rússia grupos sociais-democratas, primeiro em S. Petersburgo e depois noutras grandes cidades.

Um destes grupos marxistas da cidade de Kazan, no Volga, contava entre os seus membros um jovem estudante e ardente campeão da teoria revolucionaria marxista, Vladimir Lenine. Seria ele quem infligiria o golpe final à influência das ideias populistas no movimento revolucionário russo.

A Primeira Actividade Revolucionária de Lenine
Vladimir Ilych Lenine, 1900

Lenine nasceu em 1870, um ano antes da Comuna de Paris e cinco antes de a primeira união de trabalhadores ser estabelecida na Rússia. O seu pai, Ilya Ulyanov, foi um professor que dedicou todas as suas energias à divulgação da instrução entre o povo, e sua mãe, que também era professora, era uma mulher extremamente instruída. Dominava bem o francês, o inglês e o alemão e era versada na literatura universal e na música clássica e inspirou aos seus filhos um profundo amor pelo conhecimento.

Lenine passou a sua infância na pequena cidade de Simbirsk (depois chamada Ulyanovsk), no Volga. Quando andava ainda na escola pôde observar as duas condições de vida e de trabalho a que estavam sujeitos quer os camponeses que vinham para os cais ganhar dinheiro como estivadores quer as minorias que habitavam a área do Volga, como os Chuvash e os Tártaros.

Aos dezassete anos, depois de completar a sua educação secundária com distinção, Lenine matriculou-se na Universidade de Kazan. Não muito tempo antes seu irmão mais velho Alexandre tinha sido executado por ter tomado parte numa falhada conspiração narodniki. para assassinar o czar. Quando soube da morte do irmão, Lenine decidiu: «Seguiremos um caminho diferente.»

Não tardou que Lenine fosse expulso da Universidade de Kazan por tomar parte em movimentos políticos estudantis e mandado para uma aldeia remota. Um agente da polícia, com instruções para interrogar Lenine, perguntou-lhe com ar condescendente: «Por que diabo te revoltas, rapaz? Não compreendes que estás a lutar contra uma parede?». Lenine retorquiu sarcasticamente: «Sim, uma parede, mas podre; um pontapé e ela vai abaixo.»

Enquanto esteve no isolamento do campo, Lenine não perdeu o entusiasmo. Leu muito e estudou as obras de Marx e Engels. Quando voltou a Kazan alistou-se num dos grupos sociais-democratas clandestinos e quando mais tarde teve de ir para Samara (hoje Kuibichev) ele próprio organizou lá um grupo semelhante. Depois de trabalhar sozinho para preparar os seus exames finais, Lenine formou-se com altas classificações na Faculdade de Direito da Universidade de S. Petersburgo onde se tinha inscrito como estudante externo. Em 1893 deixou Samara em direcção à capital.

O Socialismo Científico no Movimento de Trabalhadores

Quando Lenine veio para S. Petersburgo, havia nada menos de uma vintena de grupos sociais-democratas clandestinos na cidade. Entretanto, embora se dedicassem a divulgar as ideias marxistas entre os sectores progressistas do proletariado, estes grupos não estavam a trabalhar em íntima colaboração com o movimento operário de massas. Logo que começou a tomar parte no trabalho de propaganda dos sociais-democratas de S. Petersburgo, Lenine fez algumas conferências criticando os conceitos teóricos a que tinham aderido os narodniki.. Estas conferências seriam mais tarde coligidas num livro e publicadas sob o título O que são os Amigos do Povo e como eles combatem os sociais-democratas. Com esta crítica, Lenine minou finalmente a influência das ideias populistas, demonstrou o princípio de que o papel principal no movimento revolucionário russo devia desempenhado pela classe operária, e apontou a necessidade vital de fundar um partido de trabalhadores marxistas, unido. Uma sólida fé na missão histórica do proletariado ressaltava nesta primeira obra em que Lenine escreveu:

«...então o operário russo, erguendo-se à frente de todos os elementos democráticos, derrubará o absolutismo e levará o proletariado russo (lado a lado com o proletariado de todos os países) pela estrada direita da luta política aberta até à revolução comunista vitoriosa».

Lenine dedicou também grande parte das suas energias à educação política e ideológica dos operários, espalhando as ideias socialistas e unindo os trabalhadores para a acção revolucionária. Falava aos trabalhadores sobre os seus problemas, sobre as suas condições de vida e de trabalho e depois escrevia folhetos em que descrevia em linguagem simples, os objectivos que os trabalhadores deviam ter na sua luta diária contra os capitalistas. Seguindo o exemplo de Lenine, os membros dos outros grupos sociais-democratas também começaram a estabelecer laços mais íntimos com as massas proletárias e a desempenhar um papel activo no movimento operário.

No Outono de 1895, por sugestão de Lenine, todos os grupos sociais-democratas de S. Petersburgo uniram-se numa nova organização, a Liga de Luta pela Emancipação da Classe Operária. Isto era um passo importante para a criação de um partido de trabalhadores revolucionários marxistas na Rússia. Pouco depois, grupos sociais-democratas até aí distribuídos por Moscovo, Tula, Rostov-no-Don e outros centros industriais da Rússia uniram-se em organizações ligadas e mais poderosas. Os sociais-democratas, que nesta altura estavam a tomar parte activa no movimento de greves industriais tentaram dar-lhe maior organização e consciência política. Gradualmente, o socialismo científico ia ser adoptado como teoria revolucionária do movimento operário.

Não tardou que a policia czarista perseguisse e prendesse Lenine, mas os seus camaradas ainda em liberdade continuaram a seguir o curso que ele planeara. Em 1896 organizaram uma greve de massas nas fábricas têxteis de S. Petersburgo que envolveu trinta mil trabalhadores. Esta greve foi a maior e mais bem organizada a que o proletariado russo assistira. Teve um tremendo impacto na sociedade russa em geral, tendo demonstrado a força da classe operária e a razão da teoria revolucionária marxista. Trabalhadores de outros países começaram a coligir fundos para ajudar os grevistas russos.


Inclusão 17/11/2016