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O Capital
Crítica da Economia Política
Karl Marx

Livro Primeiro: O processo de produção do capital

Sétima Seção: O processo de acumulação do capital

Vigésimo quarto capítulo: A chamada acumulação original


5. Retroacção da revolução agrícola sobre a indústria. Edificação do mercado interno para o capital industrial


capa

A expropriação e expulsão do povo do campo, por sacões mas sempre renovadas, forneciam, como vimos, à indústria citadina repetidamente massas de proletários que estavam totalmente fora das relações corporativas, uma sábia circunstância que leva o velho A. Anderson (a não confundir com James Anderson), na sua história do comércio[N213], a acreditar numa intervenção directa da Providência. Temos ainda de nos demorar um momento sobre este elemento da acumulação original. A rarefacção do povo do campo, independente e trabalhando para si, não correspondeu só a condensação do proletariado industrial, [tal] como Geoffroy Saint-Hilaire explica a condensação da matéria do mundo, aqui, pela sua rarefacção, além(230). Apesar do número mais pequeno dos seus cultivadores, a terra deu tanto ou mais produto do que antes, porque a revolução nas condições da propriedade fundiária foi acompanhada por métodos de cultura melhorados, maior cooperação, concentração dos meios de produção, etc., e porque os operários assalariados rurais não só foram postos a trabalhar mais intensivamente(231) como também o campo de produção em que eles trabalhavam para eles próprios se contraiu cada vez mais. Com a parte do povo do campo libertada, foram também libertados os seus anteriores meios de subsistência. Transformaram-se agora em elemento material do capital variável. O camponês posto na rua tem de comprar o valor deles ao seu novo senhor, o capitalista industrial, sob a forma de salário. O que acontece com os meios de vida, acontece também com a matéria-prima agrícola doméstica da indústria. Transforma-se num elemento do capital constante.

Suponhamos, p. ex., uma parte dos camponeses da Vestefália, que no tempo de Frederico II fiavam todos linho — se bem que nenhuma seda —, violentamente expropriados e expulsos da terra; e a outra parte restante transformada, porém, em jornaleiros de grandes rendeiros. Ao mesmo tempo, erguem-se grandes fiações de linho e tecelagem em que os «deixados livres» trabalham agora assalariadamente. O linho tem precisamente o mesmo aspecto que antes. Nenhuma fibra se alterou nele, mas entrou-lhe no corpo uma nova alma social. Ele forma agora uma parte do capital constante dos senhores da manufactura. Repartido anteriormente entre uma quantidade enorme de pequenos produtores, que o cultivavam eles próprios e o fiavam em pequenas porções com as suas famílias, está agora concentrado nas mãos de um capitalista, que manda outros fiar e tecer para ele. O trabalho extra despendido na fiação de linho realizava-se anteriormente em rendimento extra de inúmeras famílias de camponeses ou também, no tempo de Frederico II, em impostos pour le roi de Prusse(1*). Realiza-se agora em lucro de poucos capitalistas. Os fusos e teares, anteriormente repartidos pela superfície do país, estão agora reunidos em poucas grandes casernas de trabalho, como os operários, como a matéria-prima. E fusos e teares e matéria-prima estão doravante transformados de meios de existência independente para fiandeiros e tecelãos em meios para comandar(232) e para lhes sugar trabalho não pago. Não se vê é que as grandes manufacturas, tal como as grandes quintas, se organizam a partir de muitos pequenos lugares de produção e são formadas pela expropriação de muitos pequenos produtores independentes. Contudo, a intuição despreconceituada não se deixa desconcertar. No tempo de Mirabeau, o leão da revolução, as grandes manufacturas chamavam-se ainda manufactures réunies, manufacturas reunidas, tal como falamos de campos reunidos.

«Só se presta atenção», diz Mirabeau, «às grandes manufacturas, onde centenas de homens trabalham sob [as ordens de] um director e a que comummente se chama manufacturas reunidas (manufactures réunies). Aquelas em que um número muito grande de operários trabalham cada um separadamente, e cada um por sua própria conta, mal são consideradas; são postas a uma distância infinita das outras. E um erro muito grande; pois só estas últimas são objecto de prosperidade nacional verdadeiramente importante... A fábrica reunida (fabrique réuni) enriquecerá prodigiosamente um ou dois empresários, mas os operários não serão senão jornaleiros mais ou menos pagos, e não participarão em nada no bem da empresa. Na fábrica separada (fabrique séparéé), pelo contrário, ninguém se tomará rico, mas muitos operários viverão desafogados... O número dos operários poupados e industriosos aumentará, porque verão no bom comportamento, na actividade, um meio de melhorarem essencialmente a sua situação, e não de obterem uma pequena elevação de soldo, que nunca pode ser um objecto importante para o futuro, e cujo único produto é pôr os homens em estado de viver um pouco melhor, mas somente no dia-a-dia... As manufacturas reunidas, as empresas de alguns particulares que pagam a operários dia a dia para trabalharem por sua conta, podem dar desafogo a esses particulares; mas nunca constituirão um objecto digno de atenção dos governos(2*).» As manufacturas separadas individuais, na maioria dos casos ligadas a um pequeno cultivo da terra, são as [únicas] livres(233).

A expropriação e expulsão de uma parte do povo do campo não deixa apenas livres para o capital industrial, juntamente com os operários, os seus meios de vida e o seu material de trabalho; cria o mercado interno.

De facto, os acontecimentos que transformam os pequenos camponeses em operários assalariados e os seus meios de vida e de trabalho em elementos coisais [sachliche] do capital criam simultaneamente para este último o seu mercado interno. Anteriormente, a família de camponeses produzia e preparava os meios de vida e matérias-primas que, depois, ela própria consumia na maior parte. Estas ma- térias-primas e meios de vida tomaram-se agora mercadorias; o grande rendeiro vende-os, eles encontram o seu mercado nas manufacturas. Fio, tela, tecidos grosseiros de lã — coisas cujas matérias-primas se encontravam ao alcance de toda a família de camponeses e por ela eram fiadas e tecidas para o seu uso próprio — transformam-se agora em artigos de manufactura, para os quais, precisamente, os distritos rurais formam o mercado de escoamento. A numerosa clientela dispersa, até agora condicionada por um conjunto de pequenos produtores trabalhando por conta própria, concentra-se agora num grande mercado abastecido pelo capital industrial(234). Deste modo, de braço dado com a expropriação de camponeses que anteriormente trabalhavam para si e com a separação deles dos seus meios de produção, vai o aniquilamento da indústria rural anexa, o processo de separação da manufactura e da agricultura. E só o aniquilamento da indústria caseira rural pode dar ao mercado interno de um país a extensão e a consistência firme de que o modo de produção capitalista precisa.

Contudo, o período manufactureiro propriamente dito não trouxe qualquer restruturação radical. Recorde-se que ela só se apodera da produção nacional muito fragmentariamente e repousa sempre sobre a oficina da cidade e sobre a indústria caseira-rural anexa, como amplo pano de fundo. Se ela aniquila as últimas sob uma forma, em ramos de negócio particulares, em certos pontos, apela de novo para elas em outros, porque precisa delas até um determinado grau para a preparação da matéria-prima. Ela produz, portanto, uma nova classe de pequenos rurais que prosseguem o amanho do solo como ramo anexo e o trabalho industrial para venda do produto à manufactura — directamente, ou por intermédio do comerciante — como negócio principal. Esta é uma razão, ainda que não a razão principal, de um fenómeno que, antes do mais, confunde o investigador da história inglesa. Do último terço do século xv em diante, ele encontra continuamente queixas — só interrompidas em certos intervalos — sobre a crescente economia capitalista no campo e o progressivo aniquilamento do campesinato. Por outro lado, ele encontra sempre de novo este campesinato, ainda que em número mais reduzido e sempre numa forma pior(235). A razão principal é: a Inglaterra ora é, de preferência, cultivadora de cereal, ora criadora de gado, em períodos alternados e, com eles, oscila o volume da exploração camponesa. Só a grande indústria, com as máquinas, fornece a base constante da agricultura capitalista, expropria radicalmente a enorme maioria do povo do campo e completa a separação entre a agricultura e a indústria caseira-rural, cujas raízes — fiação e tecelagem — ela arranca(236). Ela conquista, portanto, também pela primeira vez, todo o mercado interno para o capital industrial(237).


Notas de rodapé:

(230) Nas suas Notions de philosophie naturelle. Paris, 1838. (retornar ao texto)

(231) Um ponto que Sir James Steuart ressalta[N214]. (retornar ao texto)

(1*) Em francês no texto, literalmente: para o rei da Prússia; em sentido figurado: para nada. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(232) «Permitirei», diz o capitalista, «que tenhais a honra de me servir, na condição de que me dareis o pouco que vos resta pelo incómodo que terei em comandar-vos.» (J. J. Rousseau, Discours sur l’économie politique, [nova edição, Genève, 1760, p. 70].) (retornar ao texto)

(2*) Na edição francesa a citação termina aqui. Na edição alemã, em substituição do período que acabamos de traduzir, a citação inclui a frase que a seguir traduzimos. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(233) Mirabeau, 1. c., t. Hl, pp. 20-109 passim.(3*) Se Mirabeau considera as oficinas separadas também como mais económicas e produtivas do que as «reunidas» e vê nas últimas meramente plantas de estufa artificiais sob os cuidados dos governos de Estado, isto explica-se pela situação de então de uma grande parte das manufacturas continentais. (retornar ao texto)

(3*) Na edição francesa: 20, 21, 109. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(234) «Vinte libras de lã convertidas discretamente no vestuário anual de uma família de trabalhadores por sua própria indústria, nos intervalos de outros trabalhos — isso não faz sensação; mas, leve-se isso para o mercado, envie-se para a fábrica, dali para o corretor, dali para o revendedor, e ter-se-ão grandes operações comerciais e envolvido um capital nominal no montante de vinte vezes o seu valor... A classe operária é assim afundada para sustentar uma população fabril miserável, uma classe lojista parasita, e um sistema comercial, monetário e financeiro fictício.» (David Urquhart, 1. c., p. 120.) (retornar ao texto)

(235) O tempo de Cromwell constitui aqui uma excepção. Enquanto a República durou, a massa do povo inglês de todas as camadas ergueu-se da degradação em que se havia afundado com os Tudor. (retornar ao texto)

(236) Tuckett sabe que a grande indústria da lã surge das manufacturas propriamente ditas e da destruição da manufactura caseira ou rural, com a introdução da maquinaria. (Tuckett, 1. c., vol. I, pp. 139-144(4*).) «A charrua, o jugo, foram “invenção dos deuses e ocupação de heróis”; o tear, o fuso, a roca, são de ascendência menos nobres? Separais a roca e a charrua, o fuso e o jugo, e obtendes fábricas e asilos para pobres, crédito e pânicos, duas nações hostis: a agrícola e a comercial.»(5*) (David Urquhart, 1. c., p. 122.) Mas vem agora Carey e acusa a Inglaterra, seguramente não sem razão, por se esforçar por transformar todos os outros países num povo meramente de agricultura, de que a Inglaterra seria o fabricante. Ele pretende que a Turquia foi arruinada desta maneira, porque «aos donos e ocupantes da terra nunca foi permitido» (pela Inglaterra) «fortalecerem-se pela formação daquela aliança natural entre a charrua e o tear, o martelo e o ancinho». (The Slave Trade, p. 125.) Segundo ele, o próprio Urquhart é um dos principais agentes da ruína da Turquia, onde teria feito propaganda do livre-câmbio no interesse inglês. O melhor é que Carey — a propósito; grande lacaio dos russos — quer impedir aquele processo de separação pelo sistema de proteccionismo que o acelera. (retornar ao texto)

(4*) Na edição francesa: 144. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(5*) Na edição francesa acrescenta-se: Mas desta separação fatal data o desenvolvimento necessário dos poderes colectivos do trabalho e a transformação da produção fragmentada, rotineira, em produção combinada, científica. Consumando a indústria mecânica esta separação é ela também a primeira a conquistar para o capital todo o mercado interno. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(237) Os economistas filantrópicos ingleses, como Mill, Rogers, Goldwin Smith, Fawcett, etc., e fabricantes liberais, como John Bright e consortes, perguntam aos aristocratas fundiários ingleses — tal como deus a Caim pelo seu irmão Abel — para onde foram os nossos milhares de freeholders(6*)? Mas, então, de onde é que vós vindes? Do aniquilamento daqueles freeholders. Por que é que não lhes perguntam, além disso, para onde foram os tecelãos, fiandeiros, artesãos, independentes? (retornar ao texto)

(6*) Em inglês no texto: proprietários livres. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N213] Adam Anderson, An Historical and Chronological Deduction of the Origin of Commerce, from the Earliest Accounts to the Present Time. A primeira edição edição foi publicada em Londres em 1764. (retornar ao texto)

[N214] James Steuart, An Inquiry into the Principies of Political Oeconomy. Vol. I, Dublin, 1770, first book, ch. XVI. (retornar ao texto)

Inclusão 30/10/2019