O Capital
Crítica da Economia Política
Karl Marx

Livro Primeiro: O processo de produção do capital

Sétima Seção: O processo de acumulação do capital

Vigésimo quarto capítulo: A chamada acumulação original


6. Génese do capitalista industrial


capa

A génese do capitalista industrial(238) não decorreu da mesma maneira gradual do que a do rendeiro. Sem dúvida, muitos pequenos mestres de corporação e ainda mais pequenos artesãos autónomos ou também operários assalariados transformaram-se em pequenos capitalistas e, pela exploração gradualmente estendida de trabalho assalariado e correspondente acumulação, em capitalistas sans phrase(1*). No período de infância da produção capitalista aconteceu muitas vezes como no período de infância do sistema medieval de cidades onde a questão [de saber] quem, de entre os servos evadidos, devia ser mestre e quem [devia ser] criado, em grande parte, foi resolvida pela data mais antiga ou mais tardia da sua fuga. No entanto, o passo de tartaruga deste método não correspondia de maneira nenhuma às necessidades comerciais do novo mercado mundial, que as grandes descobertas do fim do século XV tinham criado. A Idade Média, porém, havia transmitido duas formas diversas de capital, que amadureceram nas mais diversas formações económicas da sociedade e que, antes da era do modo de produção capitalista, quand même(2*) valiam como capital — o capital usurário e o capital mercantil.

«No presente, toda a riqueza da sociedade vai, em primeiro lugar, para a posse do capitalista... paga ao dono da terra a sua renda, ao trabalhador o seu salário, ao colector de impostos e dízimas as suas exigências, e guarda para si próprio uma grande parte — de facto, a maior parte, e uma parte que está continuamente a aumentar — do produto anual do trabalho. Pode agora dizer-se que o capitalista é o primeiro dono de toda a riqueza da comunidade, apesar de nenhuma lei lhe ter conferido o direito a essa propriedade... esta mudança foi efectuada pela cobrança de juros pelo capital... e não é curiosidade pequena que todos os legisladores da Europa diligenciassem para impedir isto, mediante estatutos, viz. estatutos contra a usura... O poder do capitalista sobre toda a riqueza do país é uma mudança completa no direito de propriedade, e por que lei — ou série de leis — foi ele efectuado?»(239)

O autor deveria ter-se lembrado de que as revoluções(3*) não são feitas por leis.

O capital-dinheiro formado por usura e comércio foi impedido, na sua transformação em capital industrial, pela organização feudal, no campo, e pela organização corporativa, nas cidades(240). Estas barreiras caíram com a dissolução dos séquitos feudais, com a expropriação e parcial expulsão do povo do campo. A nova manufactura estava implantada em portos marítimos de exportação ou em pontos de campo raso, fora do controlo do antigo sistema de cidades e da sua organização corporativa. Daí, na Inglaterra, a luta encarniçada das corporate towns(5*) contra estes novos viveiros industriais.

A descoberta de terras de ouro e prata na América, o extermínio, escravização e enterramento da população nativa nas minas, o início da conquista e pilhagem das índias Orientais, a transformação da África numa coutada para a caça comercial de peles-negras, assinalam a aurora da era da produção capitalista. Estes processos idílicos são momentos principais da acumulação original. Segue-se-lhes de perto a guerra comercial das nações europeias, com o globo terrestre por palco. Inicia-se com a revolta dos Países Baixos contra a Espanha, toma contornos gigantescos com a guerra antijacobina da Inglaterra e prolonga-se ainda na guerra do ópio contra a China, etc.

Os diversos momentos da acumulação original repartem-se agora, mais ou menos em sequência temporal, nomeadamente, por Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Em Inglaterra, no fim do século XVII, eles são reunidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida do Estado, no sistema moderno de impostos e no sistema proteccionista. Estes métodos repousam, em parte, sobre a violência mais brutal, p. ex., o sistema colonial. Todos eles utilizam, porém, o poder do Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade, para acelerar, como em estufa, o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e para encurtar a transição. A violência é a parteira de toda a velha sociedade que está grávida de uma nova. Ela própria é uma potência económica.

Do sistema colonial cristão diz um homem que fez do cristianismo especialidade, W. Howitt:

«As barbaridades e excessos desesperados da chamada raça Cristã, através de todas as regiões do mundo, e sobre todos os povos que foi capaz de submeter, não têm paralelo nas de qualquer outra raça, por mais selvagem, por mais inculta e por mais desprovida de piedade e vergonha, em qualquer idade da terra.»(241)

A história da economia colonial holandesa — e a Holanda era a nação capitalista modelo do século XVII — «é uma das relações mais extraordinárias de traição, subomo, massacre e vilesa»(242). Nada de mais característico do que o seu sistema de roubo de homens nas Celebes para obter escravos para Java. Os ladrões de homens eram adestrados para esse fim. O ladrão, o intérprete e o vendedor eram os principais agentes deste comércio [e] príncipes nativos os principais vendedores. Os jovens roubados eram escondidos nas prisões secretas das Celebes até estarem maduros para envio para os navios de escravos. Um relatório oficial diz:

«Só esta cidade de Macassar, e. g.(7*), está cheia de prisões secretas, qual delas a mais horrível, abarrotadas de infelizes, vítimas da ganância e da tirania, agrilhoados com correntes, separados à força das suas famílias.»(8*)

Para se apoderarem de Malaca, os holandeses subornaram o governador português. Deixou-os entrar na cidade em 1641. Precipitaram-se para casa dele e assassinaram-no, para «renunciarem» ao pagamento da soma da traição de 21 875 lib. esterl. Onde quer que pusessem os pés, seguiam-se desolação e despovoamento. Banjuwangi, uma província de Java, em 1750, contava com mais de 80 000 habitantes; em 1811, já só [tinha] 8000. Isto é o doux commerce!(9*)

A Companhia Inglesa das índias Orientais[N215] obteve, como é sabido, para além da dominação política das índias Orientais, o monopólio exclusivo do comércio do chá, assim como do comércio chinês, em geral, e do transporte de bens de e para a Europa. Mas a navegação costeira da Índia, e entre as ilhas, assim como o comércio no interior da Índia, tomaram-se monopólio dos funcionários superiores da companhia. Os monopólios do sal, ópio, bétel e outras mercadorias eram minas inesgotáveis de riqueza. Os próprios funcionários fixavam os preços e esfolavam à vontade o infeliz hindu. O governador-geral tomava parte neste comércio privado. Os seus favoritos obtinham contratos em condições em que, mais espertos do que os alquimistas, conseguiam ouro a partir de nada. Num dia, brotavam como os cogumelos grandes fortunas; a acumulação original avançava sem o dispêndio de um xelim. A demanda judicial de Warren Hastings regorgita de exemplos desses. Eis aqui um caso. Um contrato de ópio foi atribuído a um certo Sullivan, no momento da sua partida — em missão oficial — para uma parte da Índia totalmente afastada dos distritos do ópio. Sullivan vendeu o seu contrato por 40 000 lib. esterl. a um certo Binn, Binn vendeu-o no mesmo dia por 60 000 lib. esterl. e o último comprador e cumpridor do contrato declarou que, depois disso, ainda tirou um ganho enorme. Segundo uma lista apresentada ao Parlamento, a Companhia e os seus funcionários, de 1757 até 1766, fizeram com que os Indianos os presenteassem com 6 milhões de lib. esterl.! Entre 1769 e 1770, os ingleses fabricaram uma fome pela compra de todo o arroz e pela recusa da sua revenda a não ser por preços fabulosos(243).

O tratamento dos nativos era, naturalmente, o mais desenfreado nas plantações destinadas apenas ao comércio de exportação, como nas índias Ocidentais e nos países ricos e densamente povoados abandonados ao assassínio seguido de roubo, como o México e as índias Orientais. Contudo, mesmo nas colónias propriamente ditas o carácter cristão da acumulação original não se desmentia. Aqueles sóbrios virtuosos do protestantismo — os Puritanos da Nova Inglaterra —, em 1703, por decisão da sua assembly(10*), estabeleceram um prémio de 40 lib. esterl. por cada escalpe de índio e cada pele-vermelha capturado; em 1720, um prémio de 100 lib. esterl. por cada escalpe; em 1744, depois de Massachusetts-Bay ter declarado uma certa tribo como rebelde, os seguintes preços: por um escalpe masculino de 12 anos e mais, 100 lib. esterl. de novo valor monetário, por um prisioneiro masculino, 105 lib. esterl., por mulheres e crianças prisioneiras, 50 lib. esterl., por escalpes de mulheres e crianças, 50 lib. esterl.! Alguns decénios mais tarde, o sistema colonial vingou-se na descendência — entretanto tomada sediciosa — dos piedosos pilgrim fathers(11*). Por instigação e a soldo ingleses foi tomahawked(12*). O Parlamento britânico declarou que massacrar e escalpelar eram «meios que Deus e a Natureza tinham posto nas suas mãos».

O sistema colonial amadureceu, como numa estufa, o comércio e a navegação. As «sociedades monopolia(13*)» (Lutero) foram poderosas alavancas da concentração do capital. As colónias asseguraram um mercado de escoamento às manufacturas em crescimento e, pelo monopólio do mercado, uma acumulação potenciada. O tesouro capturado fora da Europa, directamente por pilhagem, escravização, assassínio seguido de roubo, refluiu para a mãe pátria e transformou-se aí em capital. A Holanda, que foi quem primeiro desenvolveu completamente o sistema colonial, já em 1648 estava no ponto culminante da sua grandeza comercial. Estava

«na posse quase exclusiva do tráfico da Índia Oriental e do comércio entre o sudoeste e o nordeste europeus. As suas pescarias, marinha, manufacturas, ultrapassavam as de qualquer outro país. Os capitais da República eram talvez mais significativos do que os do resto da Europa juntos»[N216].

Gülich esqueceu-se de acrescentar: a massa do povo da Holanda, em 1648, já estava mais sobrecarregada de trabalho, empobrecida e brutalmente oprimida do que a do resto da Europa junta.

Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia comercial. No período manufactureiro propriamente dito, pelo contrário, é a supremacia comercial que dá a predominância industrial. Daí, o papel preponderante que o sistema colonial então desempenhou. Era «o deus estrangeiro»(14*), que se pôs no altar ao lado dos velhos ídolos da Europa e que, um belo dia, com um empurrão, zás!, atirou-os conjuntamente pela borda fora. Proclamou a realização de mais-valia [Plusmacherei] como único e último objectivo da humanidade.

O sistema do crédito público, i. é, das dívidas de Estado, cujas origens descobrimos em Génova e Veneza já na Idade Média, tomou posse da Europa toda durante o período da manufactura. O sistema colonial, com o seu comércio marítimo e as suas guerras comerciais, serviu-lhe de estufa. Deste modo, fixou-se primeiramente na Holanda. A dívida de Estado, i. é, a alienação [Veräußerung] do Estado — tanto despótico como constitucional ou republicano — marcou com o seu selo a era capitalista. A única parte da chamada riqueza nacional que realmente está na posse colectiva dos povos modernos é — a sua dívida de Estado(243a). Daí, muito consequentemente, a doutrina moderna de que um povo se toma tanto mais rico quanto mais profundamente se endividar. O crédito público torna-se credo do capital. E, com o surgir do endividamento de Estado, vai para o lugar do pecado contra o Espírito Santo — para o qual não há qualquer perdão(15*) — a blasfémia contra a dívida de Estado.

A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acumulação original. Como com o toque da varinha mágica, reveste o dinheiro improdutivo de poder procriador e transforma-o assim em capital, sem que, para tal, tivesse precisão de se expor às canseiras e riscos inseparáveis da sua aplicação industrial e mesmo usurária. Na realidade, os credores do Estado não dão nada, pois a soma emprestada é transformada em títulos de dívida públicos facilmente negociáveis que, nas mãos deles, continuam a funcionar totalmente como se fossem dinheiro sonante. Mas também — abstraindo da classe dos que desocupados vivem de rendimentos [Rentner] assim criada e da riqueza improvisada dos financeiros que fazem de mediador entre governo e nação, como também da dos arrendatários de impostos, mercadores, fabricantes privados, aos quais uma boa porção de cada empréstimo do Estado realiza o serviço de um capital caído do céu — a dívida do Estado impulsionou as sociedades por acções, o comércio com títulos negociáveis de toda a espécie, a agiotagem, numa palavra: o jogo da bolsa e a moderna bancocracia.

Desde o seu nascimento, os grandes bancos adornados de títulos nacionais eram apenas sociedades de especuladores privados, que se colocavam do lado dos governos e que, graças aos privilégios recebidos, estavam em condições de lhes adiantar dinheiro. Portanto, a acumulação da dívida do Estado não tem nenhuma escala de medida mais infalível do que o sucessivo subir das acções desses bancos, cujo pleno desabrochar data da fundação do Banco de Inglaterra (1694). O Banco de Inglaterra começou, assim, por emprestar o seu dinheiro ao govemo a 8%; ao mesmo tempo, foi autorizado pelo Parlamento a cunhar moeda do mesmo capital, emprestando-a ao público, mais uma vez, sob a forma de notas de banco. Com essas notas, podia descontar letras de câmbio, fazer adiantamentos sobre mercadorias e comprar metais preciosos. Não tardou muito que este dinheiro creditício, por ele próprio fabricado, não se tomasse a moeda em que o Banco de Inglaterra fazia empréstimos ao Estado e pagasse, por conta do Estado, os juros da dívida pública. Não bastava que ele desse com um mão, para com a outra receber de volta mais; ficou também, apesar de receber, eterno credor da nação até ao último centavo dado. Gradualmente, tomou-se o inevitável depositário dos tesouros metálicos do país e o centro de gravitação de todo o crédito comercial. Pela mesma altura em que, em Inglaterra, se deixava de queimar bruxas, começava-se aí a enforcar falsificadores de notas de banco. Que efeito produziu sobre os contemporâneos o súbito emergir desta ninhada de bancocratas, financeiros, rentiers,(16*) corretores, stock-jobbers(24*)e lobos da bolsa, mostram-no os escritos daquele tempo, p. ex., de Bolingbroke (243b).

Com as dívidas de Estado surgiu um sistema de crédito internacional que, frequentemente, no caso deste ou daquele povo, esconde uma das fontes da acumulação original. Assim, as vilanias do sistema de roubo veneziano formam uma das tais bases escondidas da riqueza de capital da Holanda, a quem a Veneza decadente emprestou grandes somas de dinheiro. Passou-se do mesmo modo entre a Holanda e a Inglaterra. Já no começo do século XVIII, as manufacturas da Holanda estavam de longe ultrapassadas e ela tinha deixado de ser a nação dominante no comércio e na indústria. Um dos seus principais negócios, de 1701-1776, foi, portanto, o empréstimo de capitais enormes, especialmente à sua poderosa concorrente: a Inglaterra. Algo de semelhante se passa hoje entre a Inglaterra e os Estados Unidos. Muito do capital que hoje entra nos Estados Unidos sem certidão de nascimento, ontem apenas era, em Inglaterra, sangue de crianças capitalizado.

Uma vez que a dívida de Estado tem o seu suporte nas receitas do Estado, que têm de cobrir os pagamentos anuais de juros, etc., o sistema de impostos moderno foi o complemento necessário do sistema dos empréstimos nacionais. Os empréstimos permitem ao governo acorrer a despesas extraordinárias, sem que o contribuinte o sinta de pronto, mas eles exigem, contudo, como consequência, impostos aumentados. Por outro lado, o aumento de impostos causado pela acumulação de dívidas contraídas uma após outra compele o governo a contrair sempre novos empréstimos para novas despesas extraordinárias. A fiscalidade moderna, de que os impostos sobre os meios de vida mais necessários formam o eixo de rotação (e, portanto, o encarecimento destes), traz, pois, em si própria, o germe da progressão automática. A sobretributação não é um incidente, mas antes princípio. Na Holanda, onde este sistema foi primeiramente inaugurado, o grande patriota De Witt celebrou-o, portanto, nas suas máximas[N217] como o melhor sistema para tomar o operário assalariado submisso, frugal, diligente e... sobrecarregado de trabalho. A influência destruidora que exerceu sobre a situação dos operários assalariados, importa-nos aqui, contudo, menos do que a expropriação pela violência, por ela condicionada, do camponês, do artesão, em suma: de todas as partes componentes da pequena classe média. Sobre isto não há duas opiniões, mesmo entre os economistas burgueses. A sua eficácia expropriadora é fortalecida ainda pelo sistema proteccionista, que é uma das suas partes integrantes.

A grande quota-parte que cabe à dívida pública, e ao sistema fiscal que lhe corresponde, na capitalização da riqueza e na expropriação das massas, levou um conjunto de escritores — como Cobbett, Doubleday e outros — a procurar aí, sem razão, a causa fundamental da miséria dos povos modernos.

O sistema proteccionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar operários independentes, de capitalizar os meios de vida e de produção nacionais, de encurtar violentamente a transição do antigo modo de produção para o moderno. Os Estados europeus disputaram-se a patente desta invenção e, uma vez entrados ao serviço do realizador de mais-valia [Plusmacher], extorquiram para esse efeito, não só o próprio povo, indirectamente através de direitos proteccionistas, directamente através de prémios de exportação, etc. Nos países vizinhos dependentes, toda a indústria foi violentamente surribada, como, p. ex., a manufactura da lã irlandesa pela Inglaterra. No continente europeu, segundo o exemplo de Colbert, o processo foi ainda mais simplificado. O capital original do industrial emanou aí em parte directamente do Tesouro do Estado.

«Porquê», exclama Mirabeau, «ir procurar tão longe a causa [...] do brilho manufactureiro do Saxe antes da guerra? Cento e oitenta milhões de dívidas contraídas pelos soberanos!»(244)

Sistema colonial, dívidas de Estado, massa de impostos, proteccionismo, guerras comerciais, etc., estes rebentos do período manufactureiro propriamente dito dilataram-se gigantescamente durante o período de infância da grande indústria. O nascimento dos últimos foi celebrado pelo grande rapto heródico de crianças. Tal como a marinha real, as fábricas [também] faziam recrutamento através de pressão. Por muito insensível que Sir F. M. Eden seja ao horror da expropriação do povo do campo da terra, desde o último terço do século XV até ao seu tempo, o fim do século XVIII, por muito que ele se congratule, satisfeito consigo, com este processo «necessário» para «estabelecer» a agricultura capitalista e a «devida proporção entre a terra arável e a terra para pastagem», ele não demonstra, em contrapartida, a mesma inteligência económica na necessidade do rapto de crianças e da escravatura infantil para a transformação da empresa manufactureira na empresa fabril e para o estabelecimento da verdadeira relação entre capital e força de trabalho. Diz ele:

«Pode talvez valer a pena a atenção de o público considerar se alguma manufactura — que, para ser conduzida com sucesso, requer que cottages e workhouses tenham de ser saqueadas para [arranjar] crianças pobres; que elas tenham de ser empregues por turnos durante a maior parte da noite e roubadas daquele descanso que, apesar de indispensável a todos, é mais requerido pelos jovens; e que um grande número de [crianças] de ambos os sexos, de diferentes idades e aptidões, tenha de ser reunido de uma maneira tal que o contágio do exemplo não pode levar senão ã profligação e ao deboche — contribuirá [com alguma coisa] para a soma da felicidade individual ou nacional?»(245) «Nos condados de Derbyshire, Nottinghamshire e, mais particularmente, no Lancashire», diz Fielden, «a maquinaria recentemente inventada foi usada em grandes fábricas construídas nas margens de rios capazes de fazerem girar a roda hidráulica. Milhares de braços foram subitamente requeridos nesses lugares, afastados das cidades; e, sendo, em particular, o Lancashire, até então, comparativamente, escassamente povoado e estéril, do que agora precisava era de uma população. Sendo os dedos pequenos e ágeis das criancinhas, de muito longe, o que mais era pedido, surgiu instantaneamente o costume de arranjar aprendizes» (!) «nas diferentes workhouses paroquiais de Londres, de Birmingham e de outros lados. Muitos, muitos milhares dessas pequenas, infelizes, criaturas foram mandadas para o norte, tendo desde a idade de 7 até à idade de 13 ou 14 anos. O costume era de que o mestre» (i. é, o ladrão de crianças) «vestisse os seus aprendizes e os alimentasse e alojasse numa “casa de aprendizes” perto da fábrica; foram contratados supervisores para vigiarem as obras e o interesse deles era fazer trabalhar as crianças ao máximo, porque a paga deles era em proporção à quantidade de trabalho que conseguissem extorquir. Claro que a consequência era a crueldade... Em muitos dos distritos manufactureiros, mas particularmente, receio, no condado cheio de culpas a que pertenço [Lancashire], foram praticadas as crueldades mais de cortar o coração sobre as criaturas inofensivas e desvalidas que estavam, assim, consignadas ao cuidado de mestres manufactureiros; eram fatigadas até à beira da morte por excesso de trabalho... eram açoitadas, agrilhoadas e torturadas com o requinte de crueldade mais apurado; [...] em muitos casos, eram reduzidas pela fome até ao osso e açoitadas no seu trabalho e... mesmo nalgumas ocasiões [...] foram levadas a suicidarem-se... Os vales belos e românticos do Derbyshire, Nottinghamshire e Lancashire, retirados do olhar público, tomaram-se as solidões sombrias da tortura e de muito assassínio. Os lucros dos manufactureiros eram enormes; mas isso só aguçava o apetite que tinha de ser satisfeito e, por conseguinte, os manufactureiros recorreram a um expediente que parecia assegurar-lhes esses lucros sem qualquer possibilidade de limite; começaram com a prática daquilo que é denominado “trabalho nocturno”, isto é, tendo cansado um grupo de braços fazendo-os trabalhar durante todo o dia, tinham outro grupo pronto para continuar a trabalhar durante toda a noite; indo o grupo diurno para as camas que o grupo nocturno tinha acabado de deixar e, por sua vez, de novo, indo o grupo nocturno, de manhã, para as camas que o grupo diurno deixara. E tradição corrente, no Lancashire, que as camas nunca arrefeçam.»(246)

Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufactureiro a opinião pública da Europa tinha perdido o último resto de sentimento de vergonha e de consciência. As nações gabavam-se cinicamente de cada infâmia que era um meio para a acumulação de capital. Leiam-se, p. ex., os ingénuos anais do comércio do honrado A. Anderson [N218]. É aí trombeteado como um triunfo da sabedoria de Estado inglesa que a Inglaterra, na Paz de Utrecht, tenha extorquido à Espanha, pelo Tratado de Asiento[N219], o privilégio de poder exercer o comércio de negros — que até então só exercia entre a África e as índias Ocidentais inglesas — agora também entre a África e a América espanhola. A Inglaterra obtinha o direito de abastecer a América espanhola até 1743 anualmente com 4800 negros. Isto concedia, ao mesmo tempo, uma cobertura oficial para o contrabando britânico. Liverpool engordou à base do comércio de escravos. Ele constituiu o seu método de acumulação original. E, até aos dias de hoje, a «honorabilidade» de Liverpool permanece o Píndaro do comércio de escravos, o qual — compare-se com o escrito citado do Dr. Aikin de 1795 — «coincidiu com aquele espírito de corajosa aventura que caracterizou o comércio de Liverpool e que rapidamente a levou ao seu presente estado de prosperidade; ocasionou um vasto emprego para embarcadiços e marinheiros, e aumentou grandemente a procura das manufacturas do país»(21*). Em 1730, Liverpool empregava no comércio de escravos 15 navios; em 1751, 53; em 1760, 74; em 1770, 96; e em 1792, 132.

Enquanto introduzia a escravatura de crianças em Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da anterior economia escravista mais ou menos patriarcal dos Estados Unidos num sistema de exploração comercial. Em geral, a escravatura velada de operários assalariados na Europa precisava, como pedestal, da escravatura sans phrase no novo mundo(247).

Tantae molis erat[N220] para destacar as «leis naturais eternas» do modo de produção capitalista, para completar o processo de separação entre operários e condições de trabalho, para transformar, num pólo, os meios de vida e de produção sociais em capital e, no pólo oposto, a massa do povo em operários assalariados, em «pobres trabalhadores» livres, esse produto artificial da história moderna(248). Se o dinheiro, segundo Augier, «veio ao mundo com manchas naturais de sangue numa das suas faces»(249), o capital, da cabeça aos pés, também [vem] a escorrer sangue e porcaria por todos os poros(250).


Notas de rodapé:

(238) Industrial aqui em oposição a agrícola. Em sentido «categórico», o rendeiro é tanto um capitalista industrial como o fabricante. (retornar ao texto)

(1*) Em francês no texto: sem mais. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(2*) Em francês no texto; apesar de tudo. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(239) The Natural and Artificial Rights of Property Contrasted, Lond., 1832, pp. 98, 99. Autor do escrito anónimo: Th. Hodgskin. (retornar ao texto)

(3*) Na citação anterior, Marx traduz «complete change» (mudança completa) por «vollständige Revolution» (revolução completa). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(240) Mesmo ainda em 1794, os pequenos fabricantes de panos de Leeds enviaram uma deputação ao Parlamento para petição de uma lei que proibisse qualquer mercador de se tornar fabricante. (Dr. Aikin, 1. c.(4*)) (retornar ao texto)

(4*) Pp. 565-565. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(5*) Em inglês no texto: cidades gozando de privilégio real. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(241) William Howitt, Colonization and Christianity. A Popular History of lhe Treatment of the Natives by lhe Europeans in ali their Colonies, Lond., 1838, p. 9. Sobre o tratamento dos escravos, boa compilação em Charles Comte, Traité de la législation, 3me éd., Bruxelles, 1837. Tem de se estudar esta matéria em pormenor para ver o que o burguês faz a si próprio e ao operário lá onde, sem impedimentos, ele pode modelar o mundo à sua imagem. (retornar ao texto)

(242) Thomas Stamford Raffles, late Lieul. Gov. of that island(6*), The History of Java, Lond., 1817 [, vol. II, pp. CXC, CXCI]. (retornar ao texto)

(6*) Em inglês no texto: ex-tenente governador dessa ilha. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(7*) Abreviatura da expressão latina: exempli gratia, por exemplo. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(8*) Cf. W. Howitt, 1. c., p. 197. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(9*) Em francês no texto: doce comércio. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(243) No ano de 1866, apenas na província de Orissa, morreram de fome mais de um milhão de hindus. Não obstante, procurou-se enriquecer o tesouro de Estado indiano com os preços a que se forneciam os meios de vida aos que estavam a morrer de fome. (retornar ao texto)

(10*) Em inglês no texto: assembleia. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(11*) Em inglês no texto: pais peregrinos (nome dado aos primeiros colonos puritanos da América). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(12*) Em inglês no texto: mortos com o tomahawk — machado de guerra dos índios norte-americanos. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(13*) Em latim no texto: monopólios. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(14*) Se tivermos em conta o texto da edição francesa, trata-se de uma expressão — «le dieu étranger» — que figura em Le neveu de Rameau de Denis Diderot. Cf. Oeuvres complètes. Paris, 1875, vol. 5, p. 462. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(243a) William Cobbet observa que, em Inglaterra, todas as instituições públicas são designadas como «reais»; em compensação há, contudo, a dívida «nacional» (national debt). (retornar ao texto)

(15*) Cf. Mateus, 12, 31. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(16*) Em francês no texto: aqueles que usufruem ou vivem de rendimentos. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(17*) Em inglês no texto: especuladores com acções. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(243b) «Se os Tártaros inundassem hoje a Europa, seria muito difícil fazê-los entender o que é, entre nós, um financeiro.» (Montesquieu, Esprit des lois, t. IV, p. 33, éd. Londres, 1769.) (retornar ao texto)

(244) «Pourquoi aller chercher si loin la cause [...] de l'éclat manufacturier de la Saxe avant la guerre? Cent quatre-vingt millions de dettes faltes par les souverains!» (Mirabeau, 1. c., t. VI, p. 101.) (retornar ao texto)

(245) Eden, 1. c., 1. II, c. I, p. 421. (retornar ao texto)

(246) John Fielden, 1. c., pp. 5, 6. Sobre as infâmias originais do sistema fabril, cf. Dr. Aikin (1795), 1. c., p. 219, e Gisbome, Enquiry into the Duties of Men, 1795, vol. II. — Uma vez que a máquina a vapor transplantou as fábricas das quedas-d’água rurais para o meio das cidades, o realizador de mais-valia «amante de renúncia» encontrou agora o material infantil à mão, sem violenta trazida de escravos das workhouses. — Quando Sir R. Peei (pai do «ministro da plausibilidade») apresentou a sua bill para a protecção das crianças, em 1815, F. Horner (lumen(18*) do Comité do Bullion(19*) e amigo íntimo de Ricardo) declarou na Câmara Baixa: «E notório que, juntamente com os títulos de uma bancarrota, um bando — se se pode usar a palavra — destas crianças foi posto à venda e foi anunciado publicamente como fazendo parte da propriedade. Há dois anos» (1813) «um caso dos mais atrozes foi apresentado ao Tribunal de King's Bench(20*) em que um número desses rapazes, feitos aprendizes de um manufactureiro por uma paróquia de Londres, foram transferidos para outro e encontrados por algumas pessoas bondosas num estado de fome absoluta (absolute famine). Outro caso mais horrível veio ao seu conhecimento quando estava num Comité [Parlamentar] [...] que, não há muitos anos, tinha sido feito um acordo entre uma paróquia de Londres e um manufactureiro do Lancashire pelo qual se estipulava que com cada 20 crianças sãs teria de aceitar um idiota.» (retornar ao texto)

(18*) Em latim no texto: luminar. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(19*) Em inglês no texto: barra de ouro ou prata. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(20*) Tribunal Superior de Justiça. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(21*) A edição inglesa indica para esta citação — que difere bastante da versão que dela Marx nos dá no texto alemão — a p. 339. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(247) Em 1790, nas Índias Ocidentais inglesas, havia 10 escravos para 1 homem livre, nas francesas 14 para 1, nas holandesas 23 para 1. (Henry Brougham, An Inquiry into the Colonial Policy of the European Powers, Edinb., 1803, vol. II, p. 74.) (retornar ao texto)

(248) A expressão «labouring poor»(22*) eoncontra-se nas leis inglesas desde o momento em que a classe dos operários assalariados se torna digna de nota. Os «labouring poor» estão em oposição, por um lado, aos «idle poor»(23*), mendigos, etc., por outro lad, aos operários que ainda não são nenhumas galinhas depenadas, mas proprietários dos seus meios de trabalho. Da lei, a expressão «labouring poor» passou para a economia política, de Culpeper, J. Child, etc., até A. Smith e Eden. Daqui pode julgar-se da bonne foi(24*) do «execrable political cant-monger»(25*) Edmund Burke quando declara a expressão «labouring poor» «execrable political cant»(26*). Este sicofanta — que, a soldo da oligarquia inglesa, fez de romântico contra a Revolução Francesa, totalmente como, a soldo das colónias norte-americanas, no começo das perturbações americanas, tinha feito de liberal contra a oligarquia inglesa — era, de uma ponta à outra, um burguês ordinário: «As leis do comércio são as leis da Natureza e, por conseguinte, as leis de Deus.» (E. Burke, 1. c., pp. 31, 32.) Não é maravilha nenhuma que ele, fiel às leis de deus e da Natureza, sempre se tenha vendido a si próprio no melhor mercado! Nos escritos do rev. Tucker — Tucker era padre e tory, quanto ao resto, porém, um homem decente e um economista político capaz — encontram-se caracterizações muito boas deste Edmund Burke durante o seu tempo de liberal. Com a infame falta de carácter que hoje em dia domina e que, do modo mais devoto, crê nas «leis do comércio», é [nosso] dever, uma e outra vez, marcar a fogo os Burkes que só se distinguem dos seus sucessores por uma coisa — o talento! (retornar ao texto)

(22*) Em inglês no texto: «pobres trabalhadores». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(23*) Em inglês no texto: «pobres ociosos». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(24*) Em francês no texto: boa fé. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(25*) Em inglês no texto: «execrável vendedor de hipocrisia político». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(26*) Em inglês no texto: «execrável hipocrisia política». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(249) Marie Augier, Du crédit public [, Paris, 1842, p. 265]. (retornar ao texto)

(250) «O Capital», diz o Quarterly Reviwer, «foge da turbulência e da briga, e é tímido, o que é muito verdade; mas isto é tratar a questão muito incompletamente. O Capital tem horror à ausência de lucro, ou a um lucro muito pequeno, do mesmo modo que anteriormente se dizia que a Natureza aborrecia o vácuo. Com o adequado lucro o capital é muito audaz. Uns 10 por cento certos assegurarão a sua aplicação em qualquer parte; 20 por cento certos produzirão avidez; 50 por cento, potivamente audácia; 100 por cento, pô-lo-ão pronto a espezinhar todas as leis humanas; 300 por cento, e não haverá crime perante o qual tenha escrúpulos, nem um risco que ele não corra, mesmo com a possibilidade de o seu dono ser enforcado. Se turbulência e briga proporcioarem lucro, encorajará francamente ambas. O contrabando e o comércio de escravos provaram amplamente tudo o que aqui é afirmado.» (T. J. Dunning, 1. c., pp. 35, 36.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N215] Companhia das Índias Orientais — empresa comercial inglesa, que existiu de 1600 a 1858 e foi um instrumento da política colonial de pilhagem da Inglaterra na Ííndia, na China e noutros países da Ásia. Em meados do século XVIII a Companhia, que possuía um exército e uma armada, transformou-se numa grande força militar. Foi sob a bandeira da Companhia que os colonizadores ingleses levaram a cabo a conquista da Índia. Durante muito tempo a Companhia deteve o monopólio do comércio com a Índia e importantes funções do governo deste país. A insurreição de libertação nacional de 1857-1859 na Índia obrigou os ingleses a modificarem a forma do seu domínio colonial: a Companhia foi extinta e a Índia proclamada propriedade da coroa britânica. (retornar ao texto)

[N216] Gustav von Gülich, Geschichtliche Darstellung des Handels, der Gewerbe und des Ackerbaus der bedeutendsten handeltreibenden Staaten unsrer Zeit. Bd. I, Jena, 1830, S. 371. (retornar ao texto)

[N217] Marx alude à máxima «altos impostos promovem a invenção, a indústria e a frugalidade» atribuída a Johan de Witt (cf. Aanwysing der heilsama politike gronden en maximen van de Republike van Holland en West-Friesland, Leyden, 1669) por John Cunningham, An Essay on Trade and Commerce: Containing Observations on Taxes, as They Are Supposed to Affect the Price of Labour in our Manufacturies: Together with some Interesting Reflections on the Importance of our Trade to America. London, 1770, p. 49. (retornar ao texto)

[N218] Adam Anderson, An Historical and Chronological Deduction of the Origin of Commerce, from the Earliest Accounts to the Present Time. A primeira edição edição foi publicada em Londres em 1764. (retornar ao texto)

[N219] Asiento — designação dos tratados de acordo com os quais a Espanha, nos séculos XVI-XVIII, concedia aos Estados estrangeiros e a particulares o direito especial de vender escravos negros nas suas possessões americanas. (retornar ao texto)

[N220] Tantae molis erat (tão difícil era) — expressão do poema de Virgílio Eneida, livro 1, verso 33. (retornar ao texto)

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Inclusão:05/11/2019