A Dialética da Natureza

Friedrich Engels


O Calor


capa

Como já tivemos ocasião de ver, há duas formas sob as quais desaparece o movimento mecânico, a força viva. A primeira consiste na sua transformação em energia mecânica potencial, como por exemplo, quando levantamos um peso. Esta forma apresenta a particularidade de que, não só é conversível em movimento mecânico (e exatamente em movimento mecânico com a mesma força viva do primeiro) como também o fato de que só é capaz dessa mudança de forma. A energia mecânica potencial não pode jamais gerar calor ou eletricidade, a menos que se transforme, antes, em movimento mecânico efetivo. Trata-se, empregando-se uma expressão de Clausius, de um processo reversível.

A segunda forma de desaparecimento do movimento mecânico se verifica por fricção e por choque (ambas diferem apenas quanto ao grau). A fricção pode ser concebida como uma série de pequenos choques sucessivos e centrífugos; o choque, como uma fricção concentrada, num só momento e num só lugar. A fricção é um choque crônico; o choque, uma fricção aguda. O movimento, desaparecido neste caso, desaparece como tal. Não pode ser restabelecido por si mesmo. O processo não é diretamente reversível. Converteu-se em formas de movimento qualitativamente diferentes, em calor, em eletricidade; em formas de movimento molecular.

A fricção e o choque conduzem, assim, do movimento de massa, objeto da mecânica, ao movimento molecular, objeto da física.

Se designamos a física como mecânica do movimento molecular, não perdemos de vista, por essa razão, que essa expressão não abarca todo o domínio da física atual. Pelo contrário. As vibrações do éter, que transmitem os fenômenos da luz e do calor radiante, não são certamente movimentos moleculares no sentido real da palavra. Mas seus efeitos terrestres dizem respeito, antes de tudo, à molécula: a refração e a polarização da luz, etc. são condicionadas pela constituição molecular dos corpos em questão. Da mesma forma, a eletricidade é considerada, por quase todos os investigadores mais importantes(1), como um movimento das partículas do éter. E a respeito do calor, Clausius chega mesmo a dizer que "no movimento dos átomos ponderáveis (em cujo lugar seria talvez melhor colocar a molécula) ... também pode tomar parte o éter existente nos próprios corpos"(2) (Mechanische Warme-theorie, I, pág. 22). Também nos fenômenos elétricos e térmicos, devem ser considerados, em primeiro lugar, os movimentos moleculares, já que não pode ser de outra maneira, enquanto saibamos tão pouco sobre o éter. Mas, quando conseguirmos formular devidamente a mecânica do éter, ela compreenderá várias questões que hoje, forçadamente, fazem parte da física(3).

Dos processos físicos em que a estrutura das moléculas é modificada, trataremos mais adiante. Constituem a transição do campo da física para o da química.

Como consequência do movimento molecular, adquiriu plena liberdade a mudança de forma do movimento. Enquanto que o movimento de massa, nos limites da mecânica, só pode assumir reduzidas formas (calor ou eletricidade), encontramos, neste caso, uma vivacidade muito maior no que refere à mudança de formas: o calor, por meio da pilha termoelétrica, se converte em eletricidade; em determinado grau de radiação, se identifica com a luz(4) e pode gerar movimento mecânico. A eletricidade e o magnetismo, constituindo um par fraterno, tal como o calor e a luz, convertem-se não somente entre si, mas também em calor, em luz e em movimento mecânico. E tudo isso se passa segundo relações quantitativas tão precisas, que podemos representar uma dada quantidade de cada um, em qualquer outra: em quilogrâmetros, em unidades de calor, em volts(5); e, de igual modo, reduzir cada uma das medidas em qualquer das outras.

A verificação prática da transformação do movimento mecânico em calor é coisa tão antiga que, a partir da mesma, se poderia estabelecer o começo da história da humanidade(6). Sejam quais forem as invenções de ferramentas, bem como a domesticação de animais que a tenham precedido(7), o fogo por meio da fricção foi o processo pelo qual os homens, pela primeira vez, puseram a seu serviço uma força natural inanimada. E a maneira como ficou gravado em seu sentimento, a transcendência quase incomensurável desse avanço gigantesco, encontramo-las ainda hoje na superstição popular. A invenção da faca de pedra, o primeiro utensílio humano, era ainda celebrada longo tempo depois da descoberta do bronze e do ferro, realizando-se todos os sacrifícios religiosos com facas de pedra. Segundo a lenda judaica, Josué fazia circuncidar com uma faca de pedra os homens nascidos no deserto; os celtas e os germanos só usavam facas de pedra para seus sacrifícios humanos. Tudo isso está esquecido, desde muito tempo. A mesma coisa aconteceu com o fogo por fricção. Muito tempo depois de conhecer outras maneiras de produção do fogo, todas as fogueiras sagradas da grande maioria dos povos deveriam ser acendidas por meio de fricção. E, até os dias de hoje, a superstição popular, na maioria dos povos europeus, acredita em que um fogo capaz de produzir efeitos mágicos (por ex., o nosso Notfeuer alemão) só pode ser acendido por meio de fricção. De maneira que, até os dias de hoje, sobrevive, na superstição popular, na recordação profano-religiosa dos povos mais cultos do mundo — sob uma forma meio inconsciente —, a lembrança agradecida da primeira grande vitória do homem sobre a Natureza.

Entretanto, no fogo por fricção, o processo é unilateral. O movimento mecânico é transformado em calor. Para ser completo, torna-se necessário que o processo possa inverter-se: deve ser possível transformar o calor em movimento mecânico. Somente então fica completa a dialética do processo e encerrado seu ciclo, pelo menos por enquanto. Mas a história tem sua marcha peculiar e, muito embora se desenvolva dialeticamente, a dialética precisa, com frequência, esperar a evolução da história. Mede-se em milênios o tempo transcorrido desde que foi descoberto o fogo por fricção até que Heron de Alexandria (por volta do ano 120 A. C.) inventou uma máquina que era posta em movimento giratório por meio do vapor de água emitido por ela. E transcorreram novamente quase dois mil anos até que fosse construída a primeira máquina a vapor, o primeiro dispositivo capaz de transformar o calor em movimento mecânico realmente utilizável.

A máquina a vapor foi a primeira invenção verdadeiramente internacional; e esse fato é, por sua vez, testemunho de um progresso histórico formidável. Foi ela inventada pelo francês Papin (Denis, 1647-1714), tendo ele conseguido realizar seu feito na Alemanha. O alemão Leibnitz, semeando como sempre idéias geniais ao seu redor, sem levar em conta se daí poderia provir algum proveito para ele ou para outros; Leibnitz, como se sabe agora através da correspondência de Papin (editada por Gerland), deu-lhe a idéia fundamental: o emprego de cilindros e pistões. Os ingleses Savery (Thomas, ca. 1650-1715) e Newcomen (Thomas, 1663-1729) inventaram, pouco depois, máquinas parecidas; e seu compatriota Watt (James, 1736-1819), finalmente, ao inventar o condensador separado, permitiu que a máquina a vapor chegasse, na prática, à sua situação atual(8). O ciclo dos inventos, nesse terreno, ficava assim completo: havia-se conseguido a transformação do calor em movimento mecânico. O que veio depois foram apenas aperfeiçoamentos de detalhe.

Assim foi que a prática resolvera, à sua maneira, o problema das relações entre o movimento mecânico e o calor. Em princípio, havia conseguido transformar o primeiro no segundo e, logo depois, o segundo no primeiro. Mas a teoria, como andava ela?

De maneira lastimável. Muito embora, justamente nos séculos XVII e XVIII, através de inumeráveis narrações de viagens se multiplicassem as referências a povos selvagens que desconheciam outra maneira de produzir fogo a não ser por meio da fricção, isso quase passou despercebido aos físicos; assim, também, lhes foi indiferente a máquina a vapor durante todo o século XVIII e as primeiras décadas do XIX. Contentavam-se eles quase unicamente com registrar os fatos.

Finalmente, por volta de 1820, Sadi Carnot inteirou-se do assunto e, certamente, de maneira muito hábil, tanto que os seus cálculos, interpretados depois, de maneira geométrica, por Clapeyron, são hoje utilizados por Classius e Clerk Maxwell, tendo chegado quase ao fundo da questão. O que o impediu de esclarecê-la inteiramente não foi a escassez de material experimental: foi exclusivamente uma teoria falsa adotada a priori; uma teoria falsa que não fora imposta aos físicos por uma filosofia maligna, mas que eles mesmos, com seu modo de pensar naturalista, muito superior ao metafísico- filosofante, haviam extraído de seu próprio cérebro.

No século XVII considerava-se o calor, pelo menos na Inglaterra, como uma propriedade dos corpos; como "um movimento de caráter especial, cuja natureza nunca foi explicada satisfatoriamente". Assim o considerava Th. Thomson, dois anos antes do estabelecimento da teoria mecânica do calor (Outline of the Sciences of Heat and Eletricity, 2ª ed., Londres, 1840). Mas, no século XVIII, passou a ocupar progressivamente o primeiro lugar a concepção de que o calor, como também a luz, a eletricidade e o magnetismo, são substâncias especiais e que todas elas se distinguem do que denominamos matérias pelo fato de não terem peso, isto é, por serem imponderáveis.


Notas de rodapé:

(1) Nessa época, predominavam as idéias de Faraday e Maxwell e os físicos se inclinavam a considerar a eletricidade como situada fundamentalmente no campo existente entre corpos carregados. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(2) Um corpo, a qualquer temperatura, encontra-se em equilíbrio com uma radiação de certa densidade, se bem que uma pequeníssima parte da energia contida em um volume dado está no éter, isto é, sob a forma de radiação, a temperaturas comuns. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(3) lsso foi verificado no sentido de que, para a física moderna, as propriedades das partículas podem ser consideradas essencialmente como atrações e repulsões no espaço que as rodeia, o qual está também cheio de radiação. Por outro lado, a idéia de éter se tornou tão cheia de contradições internas que essa palavra é pouco usada atualmente. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(4) Como vimos, parte do calor de um corpo aquecido toma a forma de radiação. Quando um corpo é aquecido até atingir a cor vermelha, toma-se visível (ed. luz) (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(5) Este é, evidentemente, um erro. O volt não é uma unidade de energia. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(6) Inclusive o Sinanthropus, tipo de homem fisicamente muito diferente de nós, conhecia o fogo, muito embora não saibamos ao certo como o produzia. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(7) O uso do fogo precedeu imensamente a domesticação de animais. (retornar ao texto)

(8) A turbina foi inventada logo depois em 1884. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

Inclusão 29/07/2018