A Dialética da Natureza

Friedrich Engels


Apêndice
I - Humanização do Macaco pelo Trabalho


capa

De acordo com o manuscrito. Originariamente redigido como introdução a um trabalho mais extenso: as Três Formas Fundamentais da Servidão. Engels mudou, mais tarde, esse título pelo seguinte: A Servilização do Trabalhador. Inconcluso. Época em que foi escrito: fins de 1875, começos de 1876.
(Nota do Instituto Marx-Engels-Lenin)

O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. E o é, de fato, ao lado da Natureza, que lhe fornece a matéria por ele transformada em riqueza. Mas é infinitamente mais do que isso. É a condição fundamental de toda a vida humana; e o é num grau tão elevado que, num certo sentido, pode-se dizer: o trabalho, por si mesmo, criou o homem.

Há várias centenas de milhares de anos, durante um período ainda não determinado dessa época terrestre que os geólogos chama de terciária (parece que próximo ao seu fim), vivia em algum ponto da zona tropical – provavelmente em algum continente logo depois submerso no oceano Índico – uma raça de macacos antropóides, apresentando um desenvolvimento particularmente avançado(1). Darwin deu-nos uma descrição aproximada desses nossos antepassados: tinham o corpo coberto de pêlos, possuíam barbas e orelhas pontudas, vivendo em hordas, sobre as árvores.

É provável que, de início, devido ao seu gênero de vida (uma vez que o fato de subir às árvores, atribuía às mãos uma função diferente da dos pés), esses macacos foram, pouco a pouco, desacostumando-se de empregar as mãos ao caminhar em solo plano, adotando uma marcha mais ou menos ereta. Dessa maneira, foi dado o passo decisivo para a transição do macaco ao homem.

Todos os macacos antropóides que ainda subsistem podem erguer-se a caminhar sobre os dois pés, sem ajuda das mãos. Mas isso, somente em caso de necessidade e muito canhestramente. Sua marcha natural se realiza em posição inclinada e com ajuda das mãos. A maioria deles apóia os nós dos dedos sobre o solo, impulsionando o corpo para diante, com as pernas dobradas eentre os longos braços, como um coxo apoiado em muletas. Entre os macacos (segundo as espécies), podemos observar todas as formas de transição entre a marcha quadrúpede e a bípede. Em nenhum deles, entretanto, a marcha bípede vai além de um simples recurso de emergência.

Já que a marcha ereta, entre nossos peludos antecessores, devia tornar-se, primeiramente um hábito e, depois, uma necessidade, é natural supor-se que, ao mesmo tempo, as mãos deviam dedicar-se, cada vez mais, a outras novas tarefas(2). É evidente que existe uma certa divisão entre o uso das mãos e dos pés, na atividade dos macacos. Ao trepar, como já o dissemos, a mão é usada de maneira diferente da dos pés: é utilizada, de preferência, para colher os frutos e segurar os alimentos, como acontece entre os mamíferos primitivos no que se refere a suas patas dianteiras. Com elas realizam, quando em cativeiro, uma série de atos simples, imitados dos homens(3). Mas é justamente neste ponto que se pode verificar como é grande a distância entre a mão pouco desenvolvida do macaco antropóide e a humana, altamente desenvolvida pelo trabalho, durante centenas de milhares de anos. O número e a disposição dos ossos e músculos, coincidem em ambos; mas a mão do mais primitivo dos selvagens pode realizar centenas de movimentos e atos que nenhuma mão simiesca poderá imitar. Não houve, até hoje, mão de macaco, por mais hábil, que tivesse feito a mais simples faca de pedra. As manipulações a que nossos antepassados aprenderam a adaptar gradualmente suas mãos (durante a transição do macaco ao homem), no transcurso de muitos milênios, só podiam ter sido, portanto, muito simples, a princípio. Os mais primitivos dos selvagens, mesmo aqueles nos quais se possa admitir um retrocesso ao estado mais rudimentar, apresentando uma regressão paralela em suas formas corporais, se encontram muito acima desses seres de transição. Até que o primeiro fragmento de sílica fosse transformado numa faca, pela mão humana, podem ter transcorrido intervalos de tempo ao lado dos quais o tempo histórico conhecido é uma coisa insignificante. Mas o passo decisivo fora dado: a mão humana tinha sido libertada e poderia, sem cessar, ir adquirindo novas habilidades, sendo que a maior delas, assim conseguida, podia ser herdada e melhorada, de geração em geração.

Dessa maneira, a mão não é apenas o órgão do trabalho: é também um produto deste. Somente pelo trabalho, por sua adaptação a manipulações sempre novas, pela herança do aperfeiçoamento especial assim adquirido, dos músculos e tendões (e, em intervalos mais longos, dos ossos; e, pela aplicação sempre renovada, desse refinamento herdado, a novas e cada vez mais complicadas manipulações), a mão humana alcançou esse alto grau de perfeição por meio do qual lhe foi possível realizar a magia dos quadros de Rafael, das estátuas de Thorwaldsen, da música de Paganini.

Mas a mão não estava só. Era uma parte apenas de todo um organismo altamente complicado. E o que era proveitoso para a mão era igualmente útil para todo o corpo, a cujo serviço ela se encontrava. E essa atividade era duplamente proveitosa.

Em primeiro lugar, em virtude da lei de correlação do desenvolvimento, como a denominou Darwin. Segundo essa lei, determinadas formas de uma certa parte do organismo, estão sempre ligadas a certas formas de outras partes que, aparentemente, não tem relação com aquelas. Assim é que todos os animais que têm glóbulos vermelhos, sem uma dupla articulação – os côndilos – possuem, sem exceção, glândulas mamária para alimentação de suas crias. Os mamíferos portadores de cascos bifurcados, têm sempre um duplo estômago para a ruminação. As mudanças de determinadas formas determinam mudanças nas formas de outras partes, sem que possamos explicar sua correlação(4). Os gatos brancos, de olhos azuis, são quase sempre surdos. O refinamento gradual da mão humana e a conformação do pé para tornar possível o caminhar ereto, repercutiu, por certo, sobre outras formas do organismo, devido a essa correlação. Mas essa influência tem sido, até agora, muito pouco investigada para que possamos ir além de consignar sua constância, em termos gerais.

Muito mais importante é a reação direta, verificável, da mão sobre o organismo. Conforme já dissemos, nossos antecessores simiescos eram sociáveis. À primeira vista, é impossível admitir que o homem, o mais sociável dos animais, proceda de um antepassado direto insociável. O domínio da Natureza, iniciado com o aperfeiçoamento da mão, com o trabalho, ampliava o raio de percepções do homem, a cada novo progresso. Nos objetos naturais, descobria ele constantemente outras qualidades até então desconhecidas. Por outro lado, o aperfeiçoamento do trabalho, contribuía para aproximar, cada vez mais, os membros da sociedade; para multiplicar os casos de ajuda mútua, de ação em comum, criando, em cada um, a consciência da utilidade dessa colaboração. Em resumo: os homens em formação atingiram um ponto em que tinham alguma coisa a dizer uns aos outros. A necessidade criou, para isso, um órgão apropriado: a tosca laringe do macaco transformou-se lentamente, mas num sentido definido, adquirindo modulações cada vez mais diferenciadas; e os órgãos da boca foram aprendendo gradualmente a pronunciar uma palavra após a outra.

Que esta explicação da origem da linguagem por meio e com a ajuda do trabalho, é a única correta, demonstra-o a comparação com outros animais. Pelo fato de pouco terem que comunicar-se entre si, mesmo os mais desenvolvidos, podem fazê-lo sem linguagem articulada. No estado natural, nenhum animal considera uma falha o fato de não poder falar ou não compreender a linguagem humana. Mas outra coisa se passa, quando domesticado pelo homem. O cão e o cavalo adquirem, através do trato com o homem, um ouvido de tal forma afeiçoado à linguagem articulada, que chegam a entender facilmente qualquer idioma naquilo que abrange seu raio de representações. Adquirem também a aptidão para nutrir sentimentos que antes lhes eram alheios, tais como o carinho pelo homem, a gratidão, etc. E as pessoas que mantiveram um trato freqüente com esses animais, podem chegar à convicção de que há vários casos em que os mesmos sentem agora, como uma falha, a incapacidade de falar; o que, desgraçadamente, já não pode ser remediado devido a excessiva especialização de seus órgãos vocais. Mas quando existe um órgão adequado, desaparece essa incapacidade, dentro de certos limites. Os órgãos bucais dos pássaros são extremamente diferentes dos do homem e, no entanto, os pássaros são os únicos animais que aprendem a falar nossa linguagem; e o dotado da voz mais detestável – o papagaio – é justamente o que fala melhor. E nem se diga que não compreende o que fala. É bem verdade que, pelo simples prazer de falar e estar em companhia do homem, é capaz de palrar durante horas, repetindo sem cessar o seu vocabulário. Mas, à medida que se amplia o seu círculo de representações, pode chegar a compreender o que diz. Se ensinarmos a um papagaio a proferir injúrias, de forma que adquira a noção de que são ofensivas (principal diversão dos marinheiros que voltam de países tropicais), e, quando irritado, logo se verá que sabe utilizar suas injúrias tão corretamente quanto uma vendedora de hortaliças berlinense. O mesmo acontece (com outras palavras) se lhe ensinarmos a pedir guloseimas.

Primeiramente o trabalho e, em seguida, em conseqüência dele, a palavra; eis aí os dois principais estímulos sob cuja influência o cérebro do macaco foi, pouco a pouco, se transformando em cérebro humano, apesar de toda a semelhança, muito maior e mais perfeito. Com o desenvolvimento do cérebro, marchou paralelamente o aperfeiçoamento de seus instrumentos mais imediatos: os órgãos dos sentidos. Assim como a linguagem, em seu desenvolvimento gradual, é necessariamente acompanhada de um adequado refinamento do órgão da audição, assim também o desenvolvimento do cérebro provoca o refinamento de todos os sentidos. A águia enxerga muito mais longe do que o homem, mas o olho humano vê as coisas muito melhor do que o da águia. O cão tem um olfato muito mais refinado que o do homem para rastrear; mas não distingue a centésima parte dos odores que, par ao homem, são características definidas de diferentes coisas(5). E o sentido do tato que existe, no macaco, sob forma apenas muito rudimentar, somente com a mão do homem e p elo trabalho foi que se desenvolveu e aperfeiçoou.

A reação do desenvolvimento do cérebro e dos sentidos que o servem, da consciência progressivamente esclarecida, da capacidade de abstração e de raciocínio, sobre o trabalho e a linguagem, deu a ambos um estímulo sempre renovado para que fosse possível prosseguir o seu desenvolvimento, não tendo esse terminado quando o homem se diferenciou definitivamente do macaco, mas sim, desde então, em diferentes povos e em épocas diferentes continuou a diferenciar-se em grau – ou em direção – por vezes até se interrompendo, temporariamente, devido a retrocessos locais ou de época, mas, no seu conjunto, prosseguindo sua grandiosa marcha para a frente: por um lado, poderosamente impulsionado; por outro, orientado em determinadas direções devido ao aparecimento de um novo elemento que é acrescentado ao homem quando este adquire suas características definitivas: a sociedade.

Centenas de milhares de anos, na história da Terra (nada mais que um segundo na vida humana)(I), seguramente se passaram antes que, de um bando de macacos que trepavam às árvores, surgisse uma sociedade de seres humanos. Mas, finalmente, esta se organizou. E que voltamos a encontrar como diferença característica entre aquele bando de macacos e o gênero humano? O trabalho. O banco de macacos contentava-se com saquear o terreno em que vivia e que lhe era determinado pela situação geográfica ou pela resistência de bandos vizinhos; empreendia marchas e lutas para conquistar algum novo campo de alimentação; mas era incapaz de extrair do mesmo algum alimento mais, além daquele que naturalmente produzia, executado o fato de adubá-lo inconscientemente com seus resíduos. Quando todos os campos de alimentação se encontravam ocupados, já não era possível haver qualquer aumento da população de macacos; o seu número podia, no máximo, manter-se estacionário. Mas, entre todos os animais, verifica-se um grande desperdício de alimentos; e a renovação espontânea dos mesmos é destruída em seu germe. O lobo não respeita, como o caçador, a fêmea do veado que, no ano seguinte, lhe dará os veadinhos; as cabras que, na Grécia, devoram as plantas recentemente brotadas, desnudaram todas as montanhas do país. Essa exploração predatória, levada a cabo pelos animais, desempenha um importante papel na gradual transformação das espécies, obrigando-as a adaptar-se a outro alimento que não o do costume: dessa maneira, o seu sangue adquire uma outra composição química e toda a constituição do corpo se vai, pouco a pouco, tornando outra(7), enquanto as espécies definitivamente fixadas, se vão extinguindo. Não resta dúvida nenhuma de que essa exploração predatória contribuiu poderosamente para a humanização de nossos antecessores. Numa raça de macacos muito mais adiantada do que as outras, em inteligência e capacidade de adaptação, essa forma de exploração acabaria por obrigá-la a aumentar o número de plantas utilizadas como alimento; em resumo, tornou-se necessário que a alimentação fosse cada vez mais variada para que, assim, se obtivessem substâncias cada vez mais variadas a serem assimiladas pelo organismo; sendo essas condições químicas que influiriam na humanização. Tudo isso, porém, não constituía trabalho propriamente dito. Este começa, na realidade, com a confecção de ferramentas. E, entre estas, quais são as mais antigas que conhecemos? As mais antigas entre os objetos legados pelo homem pré-histórico, as mais antigas se considerarmos o modo de viver dos povos mais primitivos, assim como dos atuais selvagens mais rudimentares? São ferramentas para a caça e para a pesca; na passagem da alimentação exclusivamente vegetariana ao consumo associado de carne: um novo passo no sentido da humanização. O alimento cárneo contém, sob uma forma quase completa, os elementos essenciais de que necessita o corpo animal para o seu intercâmbio vital; sendo mais curta a sua digestão, torna-se menor o tempo requerido pelos demais processos vegetativos do corpo, correspondentes à natureza dos vegetais, assim ganhando tempo, mais substância e maior força par aa vida propriamente animal. E o homem em formação, quanto mais se afastava dos vegetais, tanto mais se colocava num plano superior ao da besta. Assim como o hábito da alimentação vegetal associada à carne, transformou o gato e o cão selvagens, em servidores do homem, da mesma forma o hábito da alimentação cárnea associada aos vegetais, contribuiu positivamente para dar ao homem, em formação, maior vigor físico e independência. Mas a principal ação do alimento cárneo foi sobre o cérebro, a que as substâncias necessárias para a sua alimentação lhe eram fornecidas com muito maior abundância do que antes e que, por esse motivo, podia desenvolver-se mais rápida e completamente, de geração em geração(8). Com a permissão dos senhores vegetarianos: o homem não atingiu a sua completa formação senão depois de adotar a alimentação cárnea; e, apesar desse regime de alimentação ter conduzido, em certos casos, ao canibalismo, entre alguns povos conhecidos (os antepassados dos berlinenses, os vitelenses, em pleno século X, comiam os seus próprios pais), isso agora já não pode preocupar-nos.

A alimentação cárnea produziu dois novos sucessos de importância decisiva: o domínio do fogo e a domesticação de animais. O primeiro abreviou ainda mais o processo digestivo ao ser levado à boca ao alimento, por assim dizer, já meio digerido; a segunda tornou mais abundante a alimentação cárnea, ao criar uma nova fonte de abastecimento ao lado da caça, fornecendo, além disso, com o leite e seus derivados, um novo alimento de valor, pelo menos, igual ao da carne, dada a sua composição. Ambas essas conquistas representaram, assim, novos meios de emancipação para o homem. Penetrar, em detalhes, nos seus efeitos indiretos, levar-nos-ia demasiado longe, apesar da altíssima importância que tiveram no desenvolvimento do homem e da sociedade.

Assim como o homem aprendeu a comer tudo quanto é comestível, tornou-se também capaz de viver em todos os climas. Espalhou-se por toda a superfície habitável da Terra, como o único animal que possuía, em si mesmo, o poder para fazê-lo. Os outros animais que se acostumaram a todos os climas, não o fizeram por si mesmos, mas em companhia do homem: os animais domésticos e certos insetos e répteis. E a passagem do clima tropical uniforme, onde viviam, a regiões mais frias, em que o ano se dividia em inverno e verão, criou novas necessidades: habitação e vestuário para proteger-se do frio e da umidade, novos campos de trabalho e, com tudo isso, novas atividades que iam afastando, cada vez mais, o homem do animal.

Por meio da interação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada indivíduo, como também na sociedade, os homens foram capacitando para realizar trabalhos cada vez mais complicados, para fixar objetivos cada vez mais elevados e alcançá-los. O próprio trabalho se foi tornando diferente, de geração para geração(9), isto é, mais complexo, mais completo.

À caça e à criação de gado, seguiu-se a agricultura, a esta a fiação e a tecelagem, depois os utensílios de metal, a olaria, a navegação. Ao lado do comércio e da indústria, surgiram, finalmente, a arte e a ciência; das tribos originaram-se e formaram-se as nações e os Estados; desenvolveram o direito e a política; e, com tudo isso, verificou-se o reflexo fantástico das coisas humanas nas cabeças humanas: a religião.

Em face de todas essas manifestações de progresso que se apresentavam, à primeira vista, como produtos do cérebro do homem e pareciam dominar as sociedades humanas, passaram a um segundo plano as criações mais modestas da mão trabalhadora; e num grau tanto maior quanto a cabeça, que planejava o trabalho, já podia, nos primórdios do desenvolvimento social (por exemplo: na família primitiva), fazer executar por outras mãos, que não as suas, o trabalho planejado. Atribuiu-se, então, todo o mérito do rápido progresso da civilização, à cabeça, ao desenvolvimento da atividade do cérebro. Os homens acostumaram-se a explicar seus atos como resultantes de seus pensamentos, ao invés de explicá-los como conseqüência de suas necessidades (que, rapidamente, se refletem e atingem a consciência, ou seja, o cérebro). E assim surgiu, no decorrer do tempo, essa concepção idealista do mundo a qual, principalmente depois do ocaso do mundo antigo, dominou a maioria das cabeças. E até hoje domina ainda, e a tal ponto, que mesmo os naturalistas materialistas da escola darwiniana não conseguem estabelecer uma clara idéia a respeito da origem do homem; isso porque, sob essa influência ideológica, não reconhecem o papel desempenhado pelo trabalho nessa mesma origem.

Os animais, como já indicamos, modificam, por meio de sua atividade, a natureza ambiente, da mesma forma (mas não no mesmo grau) que o homem; e essas transformações por eles produzidas em seu ambiente, atuam, por sua vez, como já vimos, sobre os elementos causais, modificando-os. Isso porque, na Natureza, nada acontece isoladamente. Cada ser atua sobre o outro e vice-versa; e é justamente porque esquecem esse movimento reflexo e essa influência recíproca, que os nossos naturalistas ficam impossibilitados de ver com clareza as coisas mais simples. Já fizemos referência ao fato de como as cabras impedem o reflorestamento na Grécia. Na Ilha de Santa Helena, as cabras e os veados postos em terra pelos primeiros marinheiros que ali aportaram destruíram quase totalmente a antiga vegetação da ilha; e prepararam, assim, o solo para que pudessem proliferar as plantas para ali levadas pelos navegantes e colonos que chegaram mais tarde.

Mas, quando os animais exercem uma influência duradoura sobre o ambiente em que vivem, isso se dá independentemente de sua vontade, constituindo um fato puramente causal. O homem, porém, quanto mais se afasta da animalidade, tanto mais sua influência sobre a natureza ambiente adquire o caráter de uma ação prevista, que se desenvolve segundo um plano, dirigida no sentido de objetivos antecipadamente conhecidos e determinados. O animal destrói a vegetação de uma certa região, sem saber o que está fazendo. O homem a destrói para semear grãos no terreno assim limpo, para plantar árvores ou vinhas que, ele o sabe perfeitamente, produzirão muitas vezes mais do que o semeado; transporta plantas úteis e animais domésticos de um país para o outro, modificando assim a vegetação e a vida animal de continentes inteiros. Ainda mais: por meios artificiais, plantas e animais são modificados pela mão do homem e de tal forma que se tornam irreconhecíveis. As plantas silvestres, de que procedem nossos cereais, hoje são procuradas em vão(10). Continua-se ainda a investigar de que animal selvagem procedem nossos cães que, por seu turno, são muito diferentes entre si, bem como as nossas raças eqüinas igualmente numerosas.

Evidentemente, não nos ocorre negar os animais, aptidão para uma atividade prevista, segundo um plano. Pelo contrário. A atividade planejada existe, em germe, em qualquer parte onde se encontre protoplasma, isto é, albumina viva, que reage: matéria que realiza movimentos, por mais simples que sejam, como resposta a determinadas reações exteriores. A maneira pela qual as plantas insetívoras apoderam-se da presa pode ser também considerada, em certo sentido, como obedecendo a um plano, muito embora inteiramente inconsciente. Nos animais, a faculdade de uma ação consciente, conforme um plano, é ampliada em relação com o desenvolvimento de seu sistema nervoso, alcançando, entre os mamíferos, um grau já bastante elevado. No esporte inglês denominado de “caça à raposa”, pode-se observar, diariamente, terreno para escapar aos seus perseguidores, procurando, por todos os meios, interromper seu rastro. Entre nossos animais domésticos, mais desenvolvidos em virtude de suas relações como homem, pode-se observar, a cada passo, manifestações de astúcia que podem ser colocadas no mesmo nível das reveladas pelas nossas crianças. Isso porque, assim como a história do desenvolvimento do embrião humano, no útero materno, representa apenas uma repetição abreviada da história do desenvolvimento corporal,durante milhões de anos, de nossos antepassados animais, a começar pelo verme; assim também o desenvolvimento mental de nossas crianças representa uma repetição, ainda mais abreviada, do desenvolvimento intelectual desses antepassados, pelo menos dos mais recentes. Mas toda a ação dos animais, obedecendo a um plano, não conseguiu imprimir na Terra o sedo de sua vontade. Somente o homem foi capaz de fazer isso.

Resumindo: o animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhe as modificações que julga necessárias, isto é, domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem e os demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa diferença.

Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a Natureza. A cada uma dessas vitórias, ela exerce a sua vingança. Cada uma delas, na verdade, produz, em primeiro lugar, certas conseqüências com que podemos contar; mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras conseqüências. Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e noutras partes destruíram os bosques, para obter terra arável, não podiam imaginar que, dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de umidade. Os italianos dos Alpes, quando devastaram, na sua vertente Sul, os bosques de pinheiros, tão cuidadosamente conservados na vertente Norte, nem sequer suspeitavam que, dessa maneira, estavam arrancando, em seu território, as raízes da economia das granjas leiteiras; e menos ainda suspeitavam que assim estavam eliminando a água das vertentes da montanha, durante a maior parte do ano e que, na época das chuvas, seriam derramadas furiosas torrentes sobre as planícies. Os propagadores da batata, na Europa, não sabiam que, por meio desse tubérculo, estavam difundindo a escrófula. E assim, somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a Natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da Natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente.

Na realidade, a cada dia que passa aprendemos a compreender mais corretamente as suas leis e a conhecer os efeitos imediatos e remotos resultantes de nossas intervenções no processo que a mesma leva a cabo. Principalmente em virtude dos gigantescos progressos realizados pelas ciências naturais no século atual, cada vez mais nos encontramos em condições de conhecer as conseqüências mais remotas de nossas mais comuns atividades de produção; pelo menos em condições de aprender a dominá-las. Mas, quanto mais se verifica isso, tanto mais os homens se sentirão unificados com a Natureza e tanto mais terão a consciência disso, tornando-se cada vez mais impossível sustentar essa noção absurda e antinatural que estabelece a oposição entre espírito e matéria, entre o homem e a Natureza, entre alma e corpo, concepção que surgiu na Europa depois da decomposição da Antigüidade clássica e que adquiriu sua mais acentuada forma na doutrina do cristianismo.

Mas, se foi necessário o trabalho de milênios para que chegássemos a aprender, dentro de certos limites, a calcular os efeitos remotos de nossos atos orientados no sentido da produção, isso era muito mais difícil no que diz respeito aos efeitos sociais remotos, desses atos. Fizemos referência à batata e, por meio dela, à difusão da escrófula. Mas, que vem a ser a escrófula em face dos efeitos que a redução dos trabalhadores à alimentação (exclusiva) com batatas teve sobre as condições de vida das massas populares de países inteiros; em face a fome que, em 1847, assolou a Irlanda em conseqüência da escrófula; que enterrou um milhão de pessoas e lançou ao mar dois milhões de irlandeses que se alimentavam exclusiva ou quase exclusivamente de batatas? Quando os árabes aprenderam a destilar o álcool, não era possível ocorrer-lhes, nem em sonhos, que haviam produzido um dos principais instrumentos com que os aborígines da América (ainda não descoberta nessa época) seriam eliminados do mundo. E, quando Colombo descobriu essa mesma América, não podia supor que, dessa forma, daria vida nova à escravidão, já superada, desde muito, em toda a Europa, estabelecendo os fundamentos para o tráfico negreiro. Os homens que, nos séculos XVII e XVIII, contribuíram para o advento da máquina a vapor, não suspeitavam que, assim, estavam dando forma ao instrumento que, como nenhum outro, ia revolucionar as condições sociais em todo o mundo, principalmente na Europa, dando lugar à concentração da riqueza em mãos de uma minoria, e provocando a miséria da imensa maioria; instrumento que iria proporcionar à burguesia e com a eliminação de todas as contradições de classe. Na verdade, porém, aprendemos nesse campo (do trabalho), gradualmente, por meio de uma longa e quase sempre dura experiência (e mediante a coordenação e investigação do material histórico), a compreender claramente as conseqüências sociais, indiretas e remotas, de nossa atividade produtiva, o que nos proporciona a possibilidade de dominar e regular também essas conseqüências.

Mas, a fim de conseguir essa regulação, não basta o simples conhecimento. Para isso, será necessária uma completa revolução em nossa maneira de produzir e, ao mesmo tempo, de toda a ordem social atualmente dominante.

Todos os modos de produção só tiveram por objetivo, até agora o efeito útil, mais imediato, do trabalho. As demais conseqüências, que só aparecem mais tarde, tornando-se evidentes por sua repetição e acumulação gradual, foram completamente descuidadas. A primitiva propriedade comum do solo correspondia, por um lado, a uma fase de desenvolvimento humano que limitava seu campo de noções às que eram mais imediatas; e, por outro, implicavam um certo excesso de solo disponível, que deixava larga margem às possíveis más conseqüências dessa economia primitivamente selvática. Caso se esgotasse esse excesso de solo, desaparecia também a propriedade em comum. Todas as formas mais evoluídas de produção foram avançando até à separação da população em classes diferentes, estabelecendo-se, dessa maneira, a oposição entre uma classe dominante e uma de oprimidos; mas, em virtude disso, o interesse da classe dominante foi o elemento que impulsionava a produção, enquanto esta não se limitava a uma estreita margem no que diz respeito às necessidades para a subsistência dos oprimidos. Sob sua forma mais avançada, isso agora se realiza através do modo capitalista de produção, imperante na Europa Ocidental. Os capitalistas, que dominam a produção e seu intercâmbio, não se podem preocupar, cada um deles, senão com o efeito útil e mais imediato relativo às suas atividades. Até mesmo esse efeito útil (enquanto se trata da utilidade do artigo produzido ou trocado) passa inteiramente a um segundo plano: a única mola propulsora consiste no lucro a ser obtido através da venda.

A ciência social da burguesia, a economia política clássica, ocupa-se apenas com os efeitos sociais imediatos a serem obtidos através das atividades humanas dirigidas no sentido da produção e do intercâmbio. Isso corresponde inteiramente à organização social da qual ela é a expressão teórica. Daí a razão por que os capitalistas, cada um por seu lado, produzem e trocam tendo apenas em vista o lucro imediato e, assim sendo, só podem colocar em primeiro lugar os resultados mais próximos e diretos. Considerando que qualquer industrial ou comerciante apenas se preocupa em vender, com um pouquinho de lucro embora, a mercadoria fabricada ou comprada, está claro que fica satisfeito e não mais se interessa pelo que possa acontecer com a mercadoria e com o seu comprador. O mesmo (sucede) com as conseqüências naturais dessas mesmas atividades. Aos agricultores espanhóis, estabelecidos em Cuba, que queimaram as matas nas encostas das montanhas (tendo conseguido, com as cinzas daí resultantes o adubo suficiente para uma só geração, para cafeeiros muito lucrativos), que lhes importava o fato de que, mais tarde, os aguaceiros tropicais provocassem a erosão das terras que, sem defesas vegetais, transformaram-se em rocha nua? Em face da Natureza, como em face da Sociedade, o modo atual de produção só leva em conta o êxito inicial e mais palpável; e, no entanto, muita gente se surpreende ainda pelo fato de que as conseqüências remotas das atividades assim orientadas sejam inteiramente diferentes e, quase sempre, contrárias ao objetivo visado; admiram-se de que a harmonia entre a oferta e a procura se transforme em seu oposto polar, como se verifica no transcurso de cada ciclo decenal da indústria e como também a Alemanha o experimentou, com um pequeno prelúdio, no Krach; surpreendeu-se de a propriedade privada, fundada no trabalho próprio, se desenvolver necessariamente no sentido da carência de propriedade entre os trabalhadores, enquanto toda a propriedade se concentra, cada vez mais, nas mãos dos que não trabalham; de que (...)

(Aqui é interrompido o manuscrito.)


Notas de rodapé:

(1) Isto é muito pouco provável. Na região indicada foi localizada uma larga cordilheira que cruza o Oceano Índico; mas, caso seja resultante de um continente submerso, este se teria afundado provavelmente antes de terem os nossos ancestrais atingido semelhante grau de desenvolvimento. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(2) Foi sugerido que esse processo teria sido acelerado devido ao desaparecimento das matas da Ásia Central, o que obrigou nossos ancestrais a perseguir sua presa. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(3) Os chimpanzés podem realizar algumas operações por iniciativa própria. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(4) A conexão pode ser explicada em uns poucos casos. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(5) Isso é duvidoso. Um cão não pode distinguir entre olores que, para o homem, são distintos; mas a inversa é também verdadeira. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(I) – Uma autoridade de primeira ordem a esse respeito, Sir W. Thompson, calculou que não pode haver transcorrido muito mais de cem milhões de anos(6), desde o tempo em que a Terra já estava bastante fria para eu pudesse admitir a vida vegetal e animal. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(6) Esse tempo foi grandemente ampliado devido à descoberta da radioatividade. O número correto é de, provavelmente, uns 1.500 milhões de anos. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(7) É muito duvidoso que a evolução se tenha verificado como resultado desse processo. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(8) A crença de Engels num regime de alimentação não é compartilhada universalmente, de maneira nenhuma, pelos bioquímicos, se bem se deve recordar que a maioria dos chamados vegetarianos tomam leite ou seus subprodutos. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(9) Trata-se, provavelmente, de um exagero. O estudo da técnica da Idade da Pedra sugere que os períodos de estagnação duraram dezenas ou centenas de gerações. É certo que o tempo consumido pela evolução humana é muito mais longo do que Engels acreditava possível (ele e seus contemporâneos científicos). (N. de Haldane) (retornar ao texto)

(10) Em muitos casos, são agora conhecidos com bastante exatidão. (N. de Haldane) (retornar ao texto)

Inclusão 26/06/2019