O 18 de Janeiro e a Luta de Tendências no Movimento Operário

Francisco Martins Rodrigues

197?


Primeira publicação: in, Política Operária, Suplemento ao n.° 128, 2011, 6 pp.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues: Documentos e papéis da clandestinidade e da prisão. Seleção de João Madeira. Editora Ela por Ela e Abrente. Lisboa, março de 2015. Págs: 242-249.

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de reprodução:© Editora Ela por Ela. Transcrição gentilmente autorizada por Ana Barradas (Ela por Ela).


Capa do livro

Em Julho de 1932, Salazar, que era ministro das Finanças, toma a chefia do governo.

A ditadura toma novo impulso contra o movimento operário e popular: publica o “plebiscito“ forjado da nova Constituição fascista, promulga o Estatuto do Trabalho Nacional (ETN), copiado da “Carta del Lavoro“ italiana, e cria os “Sindicatos Nacionais“, grémios e corporações (Setembro de 33).

O ETN estabeleceu que os sindicatos livres seriam encerrados e que os seus bens reverteriam para os SNs. Era um golpe fortíssimo da burguesia contra as liberdades conquistadas em meio século de luta pelo movimento operário. A camada mais activa do proletariado reage, mostrando-se disposta a resistir e a defender os seus sindicatos.

Perante a hesitação e os adiamentos da direita do Partido, é decidido um apelo à greve geral, que os sectores anarco-sindicalistas da CGT tendem a transformar numa greve insurreccional. O movimento, desencadeado em 18 Janeiro de 1934, é rapidamente sufocado pela repressão. Há esboços de greve e atentados à bomba em Coimbra, Lisboa, Silves, Covilhã, Entroncamento, Barreiro, na Marinha Grande, operários armados apossam-se facilmente da vila, elegem um soviete e hasteiam a bandeira vermelha, mas a vila é tomada de assalto por forças do exército no movimento da Marinha Grande; destacam-se Manuel Esteves de Carvalho (morre um ano depois, tuberculoso), António Guerra, José Gregório e outros. São feitas muitas prisões e deportações para Angra.

O aparelho repressivo fascista vai-se estruturando. A nova polícia política, a PVDE, dirigida pelo facínora Catela, começa a distinguir-se pelas torturas e assassinatos. O militante Vieira Tomé, um ferroviário, é morto em 1934.(1) Após o começo da guerra de Espanha, surgem a Legião e a Mocidade, milícias fascistas; cria-se uma rede de bufaria nas fábricas, excita-se a histeria anticomunista.

Em 1935, durante um comício-relâmpago em Alcântara, o militante comunista Manuel dos Santos mata um polícia a tiro (Manuel dos Santos passou 10 anos na Penitenciária, de onde se evadiu para morrer pouco depois, tuberculoso).

Em Agosto de 1936, no ambiente de agitação causado pelo começo da guerra de Espanha, dá-se a revolta da Armada. Os marinheiros, orientados pelos comunistas, amotinam-se, prendem os oficiais e apossam-se de dois navios, mas são bombardeados ao tentar sair a barra e rendem-se. São feitas muitas prisões e a organização revolucionária na marinha e destroçada.

Esta revolta fora preparada pela ORA (Organização Revolucionária da Armada), ligada ao Partido, e pelo seu jornal Marinheiro Vermelho, de que circulavam centenas de exemplares. Na ORA, distinguiu-se Manuel Guedes, militante comunista. Existia também a ORE no Exército.

Ainda por reflexo desta corrente que procurava o caminho da luta armada contra a ditadura, dá-se o atentado contra Salazar (1937),(2) organizado por um grupo anarquista.

LUTA DE TENDÊNCIAS

A ilegalização dos sindicatos e o fracasso das acções armadas, quando a Espanha se debate numa grande guerra civil, provocam uma aguda luta de tendências no movimento operário e no interior do Partido. Os elementos sindicalistas agrupados na CIS e dirigidos por José de Sousa, membro do Secretariado do Partido, lançam-se no movimento sindical clandestino. No período de 1934-36, dezenas de sindicatos esquivam-se à ordem governamental de dissolução e conservam-se em actividade semilegal; mais de uma dezena de jornais sindicais (dos ferroviários, dos metalúrgicos, da construção civil, etc.) continuam a sair clandestinamente. Esta corrente estava na continuação das tradições sindicalistas, atacava a linha política da direcção do Partido, que era atacada por outro lado pelos partidários das tentativas insurreccionais contra o fascismo.

Bento Gonçalves, à frente da maioria da direcção do Partido, lutava simultaneamente contra os sindicalistas e contra os anarquistas: criticava o movimento sindical clandestino,(3) alegando que este tinha cada vez menos influência de massas, e condenava os golpes armados que acusava de desorganizarem o movimento (classificou o 18 de Janeiro depreciativamente como “mais uma anarqueirada“), defendendo como alternativa a táctica defensiva face ao fascismo ascendente: Frente Única de todos os trabalhadores e da pequena burguesia republicana, aproximação das massas proletárias por meio da luta económica, aproveitamento das organizações legais fascistas, nomeadamente dos SNs, a que aconselhava uma adesão massiva.(4)

No 7.° Congresso da Internacional Comunista (IC), onde Bento Gonçalves foi em 1935 chefiando a delegação do PCP, Dimitrov apresentou um informe indicando a necessidade duma política de Frente Única para deter o avanço das ditaduras fascistas na Europa e impedir o isolamento e aniquilamento dos comunistas. Foi essa orientação que Bento Gonçalves trouxe para Portugal e que foi adoptada pelo Partido.(5)

A experiência posterior mostrou que esta táctica abriu o caminho às tendências oportunistas de direita e pacifistas dentro do Partido. Se, em vez de se travar e abandonar a vanguarda proletária, se tivesse canalizado o seu espírito de luta para acções tácticas de combate (que, ao contrário das revoltas locais, poderiam ter êxito), poderia ter-se conjugado a acção pacífica com a acção armada. Ao mesmo tempo que condenava as aventuras armadas, o Partido começou a descurar a luta contra o oportunismo de direita e afastou-se da perspectiva da conquista do poder.

CRISE DO PARTIDO

Aos golpes que sofre o movimento operário com o esmagamento das revoltas de 1934 e 1936, juntam-se os golpes policiais sobre o Partido: ao chegar do 7.° Congresso da IC, Bento Gonçalves é preso juntamente com os comunistas José de Sousa e Júlio Fogaça (1 de Novembro de 1935); em Setembro de 1936(6) abre o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, para onde são enviados 150 militantes operários, entre eles Bento Gonçalves, Militão Ribeiro,(7) Sérgio Vilarigues, Américo de Sousa da JC, os dirigentes da CGT Mário Castelhano e Januário, assim como muitos marinheiros.

O Partido, cuja estrutura clandestina era frágil, pois assentava só no Secretariado e nas tipografias, fica momentaneamente decapitada. Em 1936 recompõe-se o Secretariado, com Manuel Guedes (que se evadira do tribunal quando era julgado), Pires Jorge e Álvaro Cunhal (?), estudante, dirigente da Juventude Comunista. Este Secretariado é destroçado por novas prisões, outro lhe sucede que é destroçado passado pouco tempo.(8) Os métodos de trabalho clandestino tinham-se atrasado em relação à máquina aperfeiçoada da polícia.(9)

A organização do Partido mantinha-se, embora abalada, na região de Lisboa e Alentejo, além de se começar a estender aos estudantes. Fazia-se uma intensa agitação política em tomo da guerra de Espanha: o Avante! chega a publicar 10 mil exemplares semanais, recorde que não voltou a ser batido. (10)

O período de 1936-40 é aquele em que o movimento de massas atinge o seu ponto mais baixo, devido à derrota das acções armadas, à dispersão da vanguarda proletária, pelas prisões, pela deportação e pelo exílio, e também a uma certa estabilização do nível de vida(11) das massas trabalhadoras, que haviam sentido duramente a crise de desemprego em 1930-33.

É de referir que bastantes trabalhadores comuns e anarquistas portugueses combateram em Espanha contra o fascismo e alguns lá deram a vida.(12) Estiveram nesta época em Espanha Manuel Guedes, Pires Jorge (preso pelos franquistas e entregue ao governo português, cumpriu três anos em Angra do Heroísmo) e Álvaro Cunhal.

Os sucessivos golpes no Secretariado (foram presos Francisco Miguel, no regresso da URSS, Alberto Araújo e outros) acabaram por desorganizar a direcção do Partido. Em 1939 esta era composta por elementos que não tinham a confiança do proletariado, muitos deles intelectuais sem experiência nem capacidade política; deram-se casos graves de infiltração de provocadores e aventureiros no aparelho clandestino do Partido.(13) O aparelho dirigente não orienta a luta prática, envolve-se em questões e intrigas pessoais. O nível político da imprensa baixa. O Partido tende a transformar-se num agrupamento radical pequeno-burguês, sem verdadeiro cunho proletário revolucionário.(14) Por fim, a Internacional Comunista corta relações com o PCP, cuja direcção não lhe merece confiança. 1939 é um dos pontos mais baixos do movimento operário português.

DUAS LINHAS, DUAS IDEOLOGIAS

O movimento operário é surpreendido pela reacção fascista da burguesia no momento em que a corrente anarquista estava em declínio e quando a corrente comunista ainda não ganhara raízes nem amadurecera ideologicamente. A resistência ao fascismo trava-se sob aguda luta de tendências no interior do proletariado. Sob a repressão cada vez mais apertada da polícia, a vanguarda do proletariado desgasta as energias em acções desencontradas, sem uma linha comum, oscilando do aventureirismo ao oportunismo de direita e quebrando os laços com as largas massas.

Depois de, sob o impulso de Bento Gonçalves, ter formado um bom núcleo de militantes (José Gregório, Guedes, Pires Jorge, Fogaça, Cunhal), o Partido mergulha numa grave crise.

Cerca de 1930, o destino do anarquismo está traçado. Os comunistas orientam já um sector operário significativo e, apoiados nos sindicatos sob sua influência (CIS), conquistam aos anarquistas as suas cidadelas tradicionais na região de Lisboa. Esta passagem do proletariado de vanguarda para as fileiras comunistas não reflecte contudo a assimilação do marxismo-leninismo e a superação das ideias anarquistas, como se tem dito. Isto só em parte é verdade. Foi sobretudo um reagrupamento imposto pelas condições novas de ilegalidade. A corrente anarquista é desarticulada pelo facto de o movimento operário ser atirado para a clandestinidade e ser privado da sua única base orgânica – os sindicatos. O anarquismo não podia viver fora deles. Ao defrontar o assalto fascista, o anarquismo tenta desesperadamente entrincheirar-se nos sindicatos clandestinos. Quando estes são destruídos, a corrente anarquista tende a desarticular-se por falta de base orgânica. Os comunistas tinham compreendido que a base de toda a actividade é o Partido, que sem Partido não pode haver movimento operário coerente, e dedicaram-se à tarefa de o construir.

Em 1936 o Partido é parcialmente desmantelado pela polícia e é só a partir de 1941 que os métodos de organização clandestina são efectivamente adoptados, que passa a existir de forma permanente um partido operário capaz de sobreviver na ilegalidade. O Partido Comunista veio trazer ao movimento operário uma actividade séria na condução da luta diária, começou a aplicar métodos adequados de actividade clandestina, formou um núcleo de firmes militantes antifascistas. Mas esta eficácia no plano orgânico foi acompanhada por um sério enfraquecimento no plano político e ideológico. A necessidade de um destacamento sólido, disciplinado, centralizado, gerou a tendência para colocar em segundo lugar as questões de orientação e para afrouxar a vigilância de classe. Ao mesmo tempo, o Partido, sendo a única organização antifascista actuante, tornava-se um centro de atracção para todos os que pretendiam lutar contra a ditadura. Uma massa especial de elementos radicais da pequena burguesia (estudantes, sobretudo) entram para o Partido e nele entram com a sua ideologia própria.(15)

O desejo de salvaguardar a todo o custo o núcleo clandestino que assegurava a continuidade da luta antifascista veio a enraizar o estilo típico do movimento operário português destes 30 anos, em que as questões de organização comandam e se sobrepõem às questões políticas e ideológicas. Foi à sombra deste estilo errado que penetraram profundamente no Partido duas correntes antimarxistas: por um lado, as ideias anarquistas e anarquizantes, que vieram a ser durante anos ainda a ideologia efectiva da base operária do Partido, e por outro lado, as ideias radicais da pequena burguesia que, cobertas com uma fraseologia marxista, cristalizaram nos sectores intelectuais e em breve ascendiam à direita do Partido.(16)

Assim, o Partido começa a ser disputado entre duas correntes não marxistas. E, no ambiente de aguda luta política contra o grupo anarquista, a direita do Partido veio a decair para o oportunismo de direita, que se infiltrara lentamente através de uma série de posições erradas:

  1. O anarquismo agitava ruidosamente a bandeira vermelha e a revolução, favorecia o emprego indiscriminado da greve e do bombismo, sem ser capaz de elaborar um plano de batalha sério nem de pôr de pé o exército proletário; mas a direita do Partido, ao reagir contra este “esquerdismo“ superficial e ao defender a necessidade de uma acção tenaz, minuciosa, diária, passou a banir como supérflua e prejudicial a propaganda da revolução e da ditadura do proletariado; a insurreição e a conquista do poder passam a ser consideradas de tal modo longínquas que não se lhes vê qualquer ligação com as tarefas tácticas. Daí que a direita do Partido não se preocupe em estudar e definir o carácter da revolução, elabore a linha táctica segundo a inspiração do momento e caia no praticismo acanhado que abriu a porta a toda a espécie de desvios.
  2. O anarquismo conduzia o proletariado a uma política de desprezo e mesmo por vezes de hostilidade para com as massas camponesas e a burguesia pobre das cidades, sobretudo o semiproletariado e a semiburguesia, levando o proletariado a bater-se isolado dos seus aliados potenciais, enquanto dava a sua confiança a aventureiros burgueses; mas a direita do Partido, ao combater este falso esquerdismo, caiu em muitos erros semelhantes, pois que, proclamando uma política de larga aliança antifascista, continuou na prática a desprezar a ligação com as grandes massas trabalhadoras do campo e voltou as suas atenções para os pequenos grupos da burguesia liberal; em breve, a sobrestimação da influência destes grupos, a ânsia de os atrair a uma frente única, começavam a provocar a perda de iniciativa política do proletariado, dominado por tendências seguidistas.
  3. O anarquismo estimulara o emprego da violência, não com vistas ao agrupamento do exército proletário, mas ao serviço de explosões momentâneas e de curto alcance, desgastando assim inutilmente as forças do proletariado; mas a direita do Partido, ao opor-se ao aventureirismo dos anarquistas, veio a cair na posição de só considerar admissível a violência quando chegasse o momento da insurreição, após um larguíssimo período de acção pacífica; daí até considerar a violência como o oposto da acção de massas e cair no pacifismo ia uma pequena distância que em breve foi percorrida pela direita do Partido. Além disso, a indefinição duma linha para a aliança com os povos das colónias, linha que era essencial para educar o proletariado e ajudá-lo a romper com a mentalidade imperialista.

O Partido desarmou-se para resistir aos assaltos da ideologia burguesa, menos espectaculares que as ofensivas policiais, mas mais perigosos ainda. O praticismo, o seguidismo político, o pacifismo, formam um pólo em torno do qual cristaliza lentamente uma tendência oportunista de direita. E, pelo seu lado, como reacção contra as tendências direitistas dos seus dirigentes, de que se apercebe confusamente, a base operária do Partido alimenta as tendências anarquizantes em que julga ver a perpetuação do espírito revolucionário de classe.

Assim, no momento da prisão de Bento Gonçalves e José de Sousa (1935), começa a tomar-se sensível a existência de duas linhas e duas ideologias no Partido. A base operária exprime os seus pontos de vista através da tentativa insurreccional de 1934 na Marinha Grande, da revolta dos marinheiros da Armada em 1936, do movimento sindical clandestino, acções que representam nítida continuidade do espírito de revolta misturado de improvisação característico dos anarquistas. Quanto à direita, ela exprime os seus pontos de vista na linha “oficial“ que dá ao Partido (contra o putchismo e o terrorismo, pela conquista dos SNs, por uma Frente única que englobe todas as correntes anti-salazaristas), linha que só muito parcialmente é seguida. Da luta entre os grupos anarquista e comunista para ganharem a direcção do proletariado passara-se à luta de tendências no interior do Partido, opondo o oportunismo de “esquerda“ ao oportunismo de direita. O movimento radical da burguesia ameaçava controlar o movimento operário que, como defesa, se refugiara no “esquerdismo“ anarquizante. O proletariado não era ainda guiado pela corrente marxista-leninista.

BENTO GONÇALVES

Dirigiu o Partido de 1929 a 1936. Imprimiu-lhe pela primeira vez uma actividade coerente e criou uma tradição de trabalho organizado dentro do melhor estilo político proletário. Pode dizer-se que o Partido em Portugal começa a ter expressão como partido operário de vanguarda em 1929. Mas Bento Gonçalves e o núcleo dirigente são também responsáveis por o Partido ter sido lançado em sérios desvios oportunistas. Bento Gonçalves não esboçou um plano estratégico em que assentasse a acção proletária para a conquista do poder. Nos seus escritos do Tarrafal encontra-se uma análise lúcida da actividade clandestina do Partido no impulso à luta económica, mas nada há sobre a mobilização do proletariado para a luta política superior. Fazendo uma apreciação totalmente negativa do movimento insurreccional do 18 de Janeiro (que classificou como “pura anarqueirada“), Bento Gonçalves lançou as bases para o florescimento do pacifismo que veio a verificar-se mais tarde. Na sua defesa em tribunal, Bento apaga notavelmente o carácter de classe do Partido e não faz qualquer referência ao objectivo final do proletariado – a ditadura sobre as classes exploradoras.(17)

Nesse documento exprime-se pela primeira vez entre nós, ainda em esboço, a concepção de uma luta antifascista que “supera“ a luta de classes, concepção que mais tarde viria a ser plenamente desenvolvida por Álvaro Cunhal. O clamoroso desvio de direita contudo na “política nova“ proposta no Tarrafal por Bento Gonçalves cerca de 1940 (ele admite aí o carácter patriótico da burguesia nacional e defende o apoio táctico do Partido à ditadura salazarista na hipótese de invasão alemã!) não é mais do que o fruto podre das suas incompreensões anteriores; da tendência para reduzir os interesses do proletariado ao campo económico, ele veio a cair na defesa duma acção política comum proletariado-burguesia; da noção utópica duma frente antifascista conseguida pela concordância dos comunistas, anarquistas, socialistas, republicanos, católicos, ele passara para o sonho reaccionário duma frente nacional única.(18)

As posições políticas de Bento Gonçalves foram marcadas pelo facto de ele nunca ter superado inteiramente a mentalidade sindicalista “economista“ do primeiro período da sua actividade. Tendo compreendido os prejuízos do anarquismo e tendo lutado energicamente contra eles, Bento Gonçalves veio contudo a cair no campo oposto ao apoiar-se em elementos burgueses como Júlio Fogaça, que em breve deram um impulso ao oportunismo de direita dentro do Partido.

O lugar de Bento Gonçalves no movimento operário português como organizador do Partido e como combatente antifascista abnegado é incontestável, mas isto não significa que os comunistas devam venerar as suas ideias sem espírito crítico e ocultar os seus erros, como se faz há 20 anos. Dessa veneração serviram-se os oportunistas para conseguir novas posições dentro do Partido. Não é por acaso que os revisionistas saíram furiosamente em defesa dele nos últimos anos.

Ao contrário do que sucede em Espanha, onde se trava uma grande batalha de classes, em Portugal o movimento operário está em estagnação quase total no princípio da guerra. Explicação dessa estagnação:

  1. Crise ideológica no interior do Partido e do movimento operário; o insucesso das acções armadas de 1934 e 1936 origina a agonia do oportunismo de direita voltado para a acção económica e para o seguidismo político, encoberto sob consignas democráticas sem conteúdo de classe bem definido (corrente saída do sindicalismo e marcada por taras reformistas). É esta corrente que ganha o controle do Partido (Bento Gonçalves, Manuel Rodrigues da Silva, José de Sousa). É uma fase de grande confusão e instabilidade em que qualquer das correntes é oportunista, visto que ambas descuram os interesses a longo prazo do proletariado e submetem as tarefas estratégicas aos interesses momentâneos.
  2. Crise de organização – O aparelho estatal (policial?) da ditadura torna-se mais eficaz. Assiste-se ao desmantelamento do Partido e do movimento operário. Em 1936, 150 dirigentes e activistas vão para o Tarrafal e há um corte na continuidade do movimento, prólogo de uma crise prolongada. Novas exigências do trabalho clandestino. Perda de controle da situação e desarticulação do aparelho clandestino. No princípio da guerra mundial, a Internacional suspende os contactos com o PCP,(19) dada a situação extremamente confusa na sua direcção.
  3. Estabilização do nível de vida da classe operária a partir de 1934 – Durante cerca de 20 anos, as massas tinham suportado sucessivamente a especulação, a carestia e a fome na Primeira Guerra, depois a inflação, a desvalorização vertical da moeda, a vaga de desemprego de 1930/33, resultante da crise mundial do capitalismo. À extrema agitação e combatividade da maior parte deste período começa a suceder a acalmia gradual e uma certa tendência de expectativa das massas.(20) Verifica-se um certo isolamento dos sectores mais avançados, a sua neutralização e uma prolongada crise de reagrupamento interno. A agitação provocada pela guerra de Espanha não se materializa em nenhuma acção importante.(21) A inércia e a desmoralização alastram com a vitória do franquismo. O Partido evolui para uma posição democrática pequeno-burguesa. As condições de anarquia criadas pela ofensiva policial tendem a transformá-lo num grupo radical burguês sem influência séria nas massas. A direita do Partido cai em 1939-40 nas mãos de elementos suspeitos – culminância do período de crise ideológica sobretudo. A crise do movimento operário repercute-se na correspondente crise na direcção.(22)