Stálin

Emil Ludwig


Capítulo III — Ascensão


CAPA

Os inimigos de Stalin têm em vão tentado criar a história de um atrito entre Lenine e ele. Na verdade, porém, Stalin era um cego partidário de Lenine e continuou a sê-lo; mas não parece ter sido um elemento criador na Revolução. Lenine, que procurara refúgio na Finlândia por algumas semanas, parece ter recomendado sua eleição para o Comitê Central. Apesar de tudo isso, Stalin não se salientou, e seu nome continuava praticamente desconhecido para as massas.

Os homens que, dentro de poucas semanas depois de sua chegada, tomaram a Revolução nas mãos, e cujos nomes daí por diante estiveram sempre ligados, foram Lenine e Trotsky.

Leon Trotsky, um dos mais brilhantes fenômenos de nossa era, parecia ter nascido para completar Lenine, que o escolheu como seu mais íntimo colaborador, porque possuía o que lhe faltava: eloquência irresistível, o poder de sugestionar as massas, a apaixonada inclinação de um homem de espírito para um mundo de ação. Trotsky, que como orador e escritor era muito superior a Lenine, tinha uma energia elástica que não era grande bastante para que pudesse dirigir a Revolução só, mas que era realçada e exaltada pela natureza mais moderada de Lenine. Nem Zinoviev, Radek e Bukharin, a quem conheci no seu auge, tinham também o brilho de Trotsky que, nesse sentido, só tinha um rival na história do socialismo: o alemão Lassalle.

A rápida ascensão de Trotsky despertou os ciúmes de Stalin por esse rival a quem a natureza dotara com dons assim superiores. O caráter, e não os princípios, criou a separação entre estas duas figuras importantes, e essa separação alargou-se e aprofundou-se até que, por fim, o espírito sombrio, obstinado e paciente triunfou sobre o lépido, arguto e brilhante.

Basta-nos comparar as cabeças dos dois homens: a de Trotsky é toda testa e olhos, a de Stalin não tem nem testa nem olhos. Uma é delicada, a outra pesada; uma viva, a outra sombria. O único característico físico que tinham em comum eram as mãos delicadas que, devemos observar, são comuns entre os ditadores.

Em todos os sentidos, esses homens se contrastam: Trotsky era o líder popular, eficiente externamente; Stalin, o organizador, eficiente internamente; Trotsky era o poliglota, o cidadão do mundo, o homem de superior educação; a educação de Stalin é puramente marxista, sua cultura é limitada, não conhece línguas, seus contactos têm sido exclusivamente com círculos russos. Um homem eloquente ao lado de um homem silencioso; um judeu brilhantemente dotado ao lado de um asiático apaixonado.

Ambos tinham alguns dos dons do seu chefe Lenine: Trotsky o élan, Stalin a paciência; Trotsky como entusiasta, Stalin como político; Trotsky como profeta, Stalin como dirigente. Podemos comparar Trotsky com o automóvel leve, veloz, que roda sobre qualquer espécie de estrada e voa para além da meta; Stalin com um pesado trator que lavra o solo mais duro, avança lentamente e prepara a terra para receber a semente. Se pudéssemos imaginar um trator com uma alma, não olharia ele com desconfiança e enfado o gracioso carrinho que o vence na carreira e vai sempre na frente?

Igualmente diferente era a vida desses dois homens da mesma idade. Embora ambos tivessem fugido de casa aos dezessete anos para se alistarem no movimento radical, suas revoltas tiveram causas diferentes. Trotsky abandonou a vida confortável de um lar burguês culto. Stalin queria elevar-se acima do baixo nível da oficina de seu pai e disse-me que os bisbilhoteiros, na escola ortodoxa onde seus pais queriam educá-lo para o sacerdócio, tinham corrido com ele. Aos vinte anos, ambos tinham sofrido suas primeiras prisões políticas e exílios. Ambos foram sentenciados durante a revolução de 1905, exilados, e tinham fugido da Sibéria sem se terem comunicado um com o outro.

Mas a década importante entre o meio da casa dos vinte e o meio da casa dos trinta, que geralmente decide da cultura, espírito e caráter dum homem — coincidindo com o período entre as duas revoluções — decorreu sob condições bem diferentes, por imposição de suas naturezas. Stalin, com exceção de uma viagem de poucas semanas pela Alemanha, nunca deixou a Rússia. Passou seu tempo fazendo proselitismo nas cidades russas, foi deportado novamente, fugindo outra vez para a Rússia, não chegando a conhecer nem outras línguas, nem outras nações. Trotsky, ao contrário, viveu esses doze anos no ocidente, estudou socialismo e política mundial na França, Inglaterra e Suíça, falava alemão, inglês e francês quase igualmente bem, testemunhou a Guerra Mundial por dois anos em Paris e Londres, e chegou à América no começo de 1917. Quando quis embarcar no Canadá para a Rússia da Revolução, foi preso a bordo pelos aliados ingleses, carregado nos ombros dos marinheiros, internado num campo de concentração junto com prisioneiros alemães, só tendo sido posto em liberdade mais tarde.

Stalin vivia separado da mulher e filhos. Trotsky, durante suas peregrinações, vivia em grande harmonia com sua mulher e seus dois filhos, um dos quais nascera em Viena.

Esclarecido pela ciência e métodos de polêmica ocidental, membro de congressos e associações secretas, às vezes aliado a Lenine, — que era já reconhecido como líder durante sua emigração — outras se desavindo com ele, Trotsky desenvolveu durante esse tempo um trabalho superior a qualquer dos seus camaradas, não obstante, todos eles estarem escrevendo e tornou-se um grande autor, o único produzido pela Revolução sendo, depois de Churchill, o melhor cronista da sua época.

Enquanto isso, Stalin passou seu tempo na Rússia como agitador, constantemente perseguido e ameaçado de nova prisão. Parecia que Trotsky pertencia à turma diurna e Stalin à turma noturna da vida. Não era inevitável que seus dois caracteres se desenvolvessem em direções opostas?

Quando Trotsky chegou a S. Petersburgo, no verão de 1917, quase ao mesmo tempo que Lenine, o governo coube a esses dois homens de acordo com seu talento e cultura: ao passo que Stalin e outros lutadores tiveram de ficar no segundo plano, não obstante terem trabalhado pela Revolução por muito tempo e com o mesmo vigor; toda a luz se projetou sobre Trotsky, que, durante as negociações com os alemães em Brest-Litovsk, adquiriu maior fama internacional do que nenhum outro, porque se tornou pelos seus discursos o intérprete de um novo mundo. Depois, quando organizou o Exército Vermelho durante os três anos seguintes e o conduziu à batalha no seu começo, quando ficou à testa de todos os exércitos russos como ministro da Guerra, guiando ao mesmo tempo a política do país como Ministro dos Estrangeiros junto com Lenine, ninguém falava em Stalin, não obstante fazer também parte do gabinete. O mundo atribuiu todas as vitórias do Exército Vermelho sobre os Brancos — Koltschak, Denikin, Wrangel — à liderança de Trotsky.

Não iriam, a princípio a desconfiança inata, depois o ódio do menos favorecido, atirar o homem da turma noturna contra a cada vez mais brilhante figura do seu camarada? Por que tinha o outro passado sua vida sob a luz da liberdade ocidental, gozando os prazeres do espírito, enquanto que ele teve que se conservar oculto? O filho do artífice proletário sentiu-se inevitavelmente incomodado com a ascendência burguesa e a cuidadosa educação do seu competidor. E não tinha esse homem sido um menchevista até pouco tempo antes, isto é, menos radical do que Stalin e Lenine? Que sabia aquele filho de uma família burguesa sobre a miséria dos operários e camponeses, que nunca sofrera? Seria ele melhor do que os filhos da burguesia branca, que eram mortos aos milhares? Não seria ele, Stalin, capaz de dirigir tão bem aquele exército, ou talvez melhor?

O choque era inevitável, porque Stalin, também, pertencia ao círculo de chegados a Lenine. Além disso, Trotsky era levado, pela grande conta em que se tinha, a zombar dele chamando-o: "A mais eminente mediocridade do Partido."

Stalin não era o único cuja antipatia o gênio recém-chegado despertara. Aos olhos de outros, além dele, Trotsky era o menino alegre no palco do mundo que tinha estado divertindo-se "lá fora" enquanto eles trabalhavam rudemente na Rússia. Só do que Stalin se apercebia era de que o mundo todo falava de Trotsky, que estava conduzindo as negociações com os alemães. E quando este, por esse tempo, fez os seus primeiros broadcasts na nova — e primeira — estação mundial de rádio, dirigindo-se "a todos," surgiu, para amigos e inimigos igualmente, como o arauto de uma paz geral. Só Wilson causou uma impressão semelhante um ano depois.

O que é extraordinário na luta entre esses dois homens é que não começou por uma questão política; mas por uma questão de estratégia. É impossível deixar de sorrir diante do quadro: o filho de um sapateiro caucasiano e o filho de um fazendeiro judeu, nenhum dos quais tinha sido jamais soldado, ambos tendo sido membros de um partido ilegal, nunca se tendo ocupado com coisas de guerra e sim exclusivamente com classes, salários e lutas sociais, transformaram-se da noite para o dia em marechais de campo.

Stalin e Trotsky, ambos na casa dos quarenta, usavam agora uniformes pela primeira vez na vida. Se sabiam como manejar um rifle, tinham que agradecer isso às caçadas no exílio na Sibéria. Mas nenhum deles tinha o mais remoto conhecimento de armas militares, cavalos, canhões; nunca tinham dado ordens militares ou recebido relatórios; não sabiam nem mesmo fazer a continência. O mais insignificante cabo era nesse sentido superior aos dois revolucionários que passaram o tempo da guerra ou na prisão ou no exílio.

Stalin e Trotsky, os dois civis, viram-se subitamente chamados à direção da guerra, que tinha de ser inteiramente improvisada. De repente foram generais, mesmo não tendo o título. Trotsky era, ao mesmo tempo, Ministro da Guerra e Generalíssimo. Embora nenhuma decisão formal tivesse sido tomada pelo Conselho Central e Conselho de Guerra, Trotsky passou os dois anos que se seguiram num carro blindado rodando de uma frente para outra. Stalin esteve no comando alternadamente na Ucrânia, na Bacia do Donetz, contra a Polônia e diante de S. Petersburgo.

Oficialmente falando, Stalin era o subordinado; espiritualmente também não era menos, durante a guerra civil. Mas, naqueles tempos caóticos, as ordens não podiam ser transmitidas entre velhos correligionários como o seriam entre oficiais habituados de longa data ao serviço militar; o resultado era que, fundamentalmente, tudo dependia de suas relações pessoais com Lenine, que também nunca vestira um uniforme ou cingira uma espada. Mas Lenine estava habituado a mandar, porque tinha sido, durante um período de quase vinte anos, o chefe reconhecido do grupo bolchevista, embora agisse do estrangeiro.

Como Lenine era apaixonadamente devotado à idéia da democracia, e mesmo nesta conjuntura recusou o papel de ditador, sua influência moral tornou-se cada vez maior, principalmente porque parecia submeter-se a um comitê ou Soviet. O mais famoso dos discípulos de Karl Marx era, num sentido, uma refutação viva da teoria marxista; demonstrava a todos os outros discípulos que, embora a história seja de fato posta em movimento pelas leis econômicas, seus resultados finais são decididos por caracteres individuais.

E agora encontravam-se no centro de um remoinho de problemas sem solução. Realizaram suas sessões primeiro na instituição tzarista, em S. Petersburgo, e depois no Kremlin, em Moscou. Sua tarefa era dupla: tinham que soerguer um país, o maior do mundo, do caos de uma arrasadora derrota, e integrá-lo numa nova ordem social. Tinham que defender a Rússia das tropas Brancas mandadas contra ela, primeiro pela Polônia e pela Romênia, e depois pela Inglaterra, pela França e pelo Japão, ostensivamente para esmagar o comunismo, mas de fato para se assenhorearem de províncias, portos, cereais e petróleo. Ao mesmo tempo, tinham que conter seus inimigos dentro da Rússia, e entre estes estavam antigos camaradas de outros partidos socialistas. Nestas condições, a vitória parecia impossível. O mundo esperava o colapso dos novos detentores do poder numa questão de semanas. Mas têm-se conservado no leme por cerca de vinte e cinco anos!

Talvez seu triunfo possa ser atribuído ao fato de não serem profissionais e sim amadores; de não serem oficiais treinados numa escola militar e sim combatentes treinados na escola da vida. Não tinham esses homens, todos entre trinta e cinco e cinquenta anos de idade, atrás deles, uma mocidade de lutas? Agora, a fé e a necessidade, do mesmo modo, forçavam-nos a transferir suas carreiras de lutas da plataforma para o campo.

O único autor jamais lido por esses três, Lenine, Trotsky e Stalin, sobre assuntos de guerra, foi o general prussiano, Clausewitz, cujo livro é ainda considerado clássico. Stalin, especialmente, tendo sempre ficado no país, tinha estudado a corrupção entre a classe dos oficiais e a estúpida obediência dos soldados escravizados e vira nisso os sintomas da divisão social que estava destinada a terminar numa catástrofe. Não foi acidentalmente que, durante o meio século precedente, o exército russo foi derrotado três vezes sucessivamente. A questão era saber a quem devia caber a culpa: se ao camponês russo que obedecia a ordens e deixava-se matar, ou ao oficial que dava as ordens e relutava mais em sacrificar-se.

Uma vez que os amadores que agora dirigiam a guerra estavam convencidos de que o defeito estava na classe dos oficiais e não era devido à falta de coragem dos soldados, não podiam empregar o antigo corpo de oficiais do exército imperial, nem mesmo quando estes declaravam sob juramento que havia muito eram revolucionários secretos. Contudo, Lenine e Trotsky tinham que confessar que não podiam dispensar os conselhos de antigos oficiais. Por isso, aceitaram os serviços de alguns poucos desses profissionais, tendo-os sempre vigiados e experimentados por camaradas de inteira confiança do partido. Trotsky estava na situação de um homem que não sabe dirigir um carro e não confia no chofer, mas tem de ficar sentado ao seu lado armado de um revolver, obrigando-o a dirigi-lo como deve. Assim, por dois anos completos, teve de ser a guerra revolucionária comandada, embora não dirigida, por antigos oficiais do Tzar.

Stalin era de outra opinião. Como era um dos poucos proletários entre os primeiros líderes, é possível que seu ódio às antigas classes dominantes fosse mais forte do que o de seus camaradas de origem burguesa. Contudo, deve-se ter em mente um outro fator; quando Lenine lhe deu o seu primeiro comando na frente, perto de Tzaritzin, ele descobriu uma conspiração entre os oficiais que se preparavam para revoltar-se contra os novos governantes. As suas comunicações e telegramas estão cheios do mais acrimonioso desprezo pelos profissionais que faziam tudo errado:

"O que essa gente chama ciência da guerra eu só posso deplorar, embora tenha o maior respeito pela ciência."

Nesse verão de 1918, Stalin salvou a Rússia e a Revolução.

Tropas britânicas e francesas reunidas aos Russos Brancos tinham feito causa comum com os contra-revolucionários moscovitas para esmagar de uma vez os bolchevistas. A região afetada estava em ruinas: sem vias férreas, sem armas e sobretudo sem trigo, porque as comunicações com os campos de trigo da Ucrânia e da Sibéria tinham sido cortadas pelo inimigo. O único trigo possível de ser obtido vinha do Volga e do norte do Cáucaso, mas esse tinha de ser embarcado no rio por via da cidade de Tzaritzin. Nesse distrito, os pequenos camponeses estavam sendo oprimidos pelos kulaks e especuladores de cereais. Tudo dependia da possibilidade das tropas vermelhas — consistindo em grande parte de operários mal armados com um boné na cabeça e um fuzil — transportarem o trigo para o interior do país. O destino da Revolução literalmente dependeu por muitas semanas da defesa dessa cidade.

Stalin, tendo chegado lá com alguns poucos milhares de operários, desconfiava dos antigos oficiais tzaristas que estavam fazendo um jogo duplo ou pelo menos eram suspeitos. Mas Trotsky, como Ministro da Guerra, opôs-se à sua estratégia e telegrafou outras ordens. Stalin atirou-as no cesto de papéis ou escreveu à margem:

"Para ser posto de lado".

Salvou a cidade, reconstituiu esta parte das linhas rotas do exército e evitou que o inimigo se juntasse aos seus aliados no Ural e no Volga.

Nestas lutas, os caracteres de Lenine, Trotsky e Stalin revelam-se com grande clareza.

Em resultados mais importantes, também, Stalin mostrou estar com a razão, ao contrário de Lenine e Trotsky. Não participou de sua fé numa revolução mundial iminente e planejou a defesa da Rússia sem se basear em esperanças ilusórias. O seguinte telegrama revela sua divergência do modo de ver de seu superior, Lenine:

"Creia-me, camarada Lenine, que não estamos poupando esforços para mandar-lhe os cereais. Se esses idiotas, nossos peritos militares, não estivessem dormindo, nossas linhas nunca teriam sido rotas".

E novamente, referindo-se à luta com o grupo hostil de sociais revolucionários:

"No que diz respeito a esta gente histérica, não se preocupe. Inimigos devem ser tratados como inimigos."

De outra vez, formulou condições a Lenine: queria que o plano original de operações fosse abandonado e substituído pelo seu.

"Se não se fizer isso, meu trabalho na frente sul será inútil e criminoso. Isso me dá o direito, ou antes me impõe o dever de levar o diabo de preferência a ficar aqui. Vosso, Stalin."

Ao mesmo tempo, Lenine recebia telegramas como este de Trotsky:

"Insisto categoricamente na remoção de Stalin."

O tom da resposta de Lenine revela a superioridade de sua arte de manejar os homens: coloca Stalin no seu lugar sem ofendê-lo e conserva Trotsky sem demitir Stalin; conseguiu mesmo reconciliá-los no momento. E assim, na anarquia de uma revolução, sem recorrer a ordens de caráter militar, um espírito superior conseguiu assegurar-se a cooperação de dois homens importantes que se odiavam reciprocamente.

Como em Tzaritzin, Stalin rechaçou os alemães na Ucrânia, libertando Kharkov duas vezes em 1918 e 1919. Para qualquer pessoa escutando hoje, no verão de 1942, as notícias da guerra no rádio, a repetição das mesmas batalhas nos mesmos lugares parece exatamente um sonho. Todos conjecturam o que Stalin deve sentir sendo agora, depois dos sessenta anos, obrigado a defender a velha terra russa, mais uma vez, contra o eterno, agressor.

Parece também que Stalin contribuiu igualmente para as decisões na terceira e quarta frentes em 1919. Na frente norte, ele, comandando o exército, impediu a união das tropas de Koltschak com os tchecos. Quando o general Judenich, com tropas e navios finlandeses e britânicos, investiu contra S. Petersburgo, Stalin obrigou-o a recuar.

Estas vitórias com tropas nutridas pelo ideal, contra tropas regulares sem ele, relembram a primeira vitória alcançada por um exército popular moderno. Foi em 1792, quando o exército da Revolução Francesa derrotou as tropas reais e imperiais no Reno, perto de Valmy. Foi lá que Goethe, acompanhando a tropa como ministro do duque de Weimar, pronunciou as notáveis palavras que alguém, pertencente ao lado derrotado, jamais pensou ou ousou pronunciar diante do seu soberano. Reconhecendo, já na noite depois do desastre, que novos ideais podiam proporcionar o triunfo a tropas fracas e sem treino, sobre um poder muito mais forte, porém já cansado, disse o que Koltschak e Denikin devem ter repetido depois de sua derrota pelos Soviets:

"Deste dia em diante, começa uma nova era na história do mundo e podeis dizer que a testemunhastes."

Mas, durante esse período da guerra civil, Stalin nunca teve o poder que o Comitê Central confiou a Trotsky. A confiança de Lenine, numa dúzia de exemplos, deu carta branca a Trotsky, com a aprovação geral de todas as ordens dadas por ele até uma certa data. Stalin, por outro lado, esteve sempre adstrito a tarefas específicas.

Então, como agora, Stalin não hesitou diante dos métodos terroristas, defendendo-se sempre com a alegação de que este era o único meio de salvar a Revolução. Mas, em todos esses excessos, nunca auferiu de atos de crueldade o prazer peculiar que Goering mostrou quando assinou um certo número de condenações à morte na manhã do seu casamento.

Essa espécie de sadismo está sempre ligada a um excesso de alegria de viver, que trai o terror do aventureiro diante da idéia de um súbito fim violento. Os pavilhões de caça, castelos e vilas campestres, que proporcionam tantos prazeres a Goering ou a Hitler, nunca entraram nos cálculos de um líder comunista. Enquanto os nazistas, como nos mostram os filmes, adotaram o modo de viver da realeza, Stalin continua, até ao presente, a viver na mais austera simplicidade.

Num grande banquete, oferecido pela Academia a hóspedes estrangeiros, no outono de 1925, em Leningrado, vi o velho líder bolchevista, Kalinin, afastar o enorme menu e pedir uma sopa russa de peixe. Um dos resultados desta simplicidade, em todo o caso, é que nenhum dos antigos ou novos líderes russos jamais se pareceu, como Goering, com um suplente de Falstaff.

No tempo da guerra civil, Stalin viveu tão pobremente como na sua juventude e no exílio. Se os seus serviços durante a Revolução foram pequenos, na guerra civil foram consideráveis.

Quando passamos em revista as crônicas e vemos como e onde ele se bateu e venceu nesse tempo, em Rostov e na bacia do Donetz, começamos a compreender o caráter de sua estratégia, que tem que empregar contra a Alemanha nos mesmos campos de batalha, hoje, vinte e dois anos depois.

Sentado, hoje, diante dos mesmos mapas, dispondo, não de uma pequena força improvisada, mas de um exército disciplinado, e o maior do mundo, a vida de Stalin deve tomar para ele o aspecto de um conto de fadas. Poderá, nesses momentos, lembrar-se de como, em meio da guerra civil, se divorciou subitamente de sua mulher para casar com a filha, de dezessete anos de idade, de um de seus amigos. Hoje, ela está morta; Trotsky e Lenine estão mortos; quase todos os seus camaradas estão mortos. O ditador grisalho, que aprendeu a arte da revolução aos dezoito anos e a arte da guerra aos trinta e oito, acha-se, hoje, com sessenta e dois anos, talvez sem inimigos pessoais, dirigindo uma guerra mundial. Quando pensamos o que está em jogo para ele, seu ideal, seu Estado, seu poder e sua vida, podemos compreender melhor a fúria com que ele e seus milhões de compatriotas se defendem tão brilhantemente contra o conquistador estrangeiro.

Há na vida de Stalin dois brilhantes períodos produtivos e dois outros sombrios. Foi poderoso e criador na construção do Estado industrial russo; é poderoso e criador, mais uma vez, na presente luta de vida e morte. Mas, na luta contra Trotsky e nos julgamentos de Moscou, foi apenas político. Os elementos peculiares ao seu caráter, que se manifestam numa tão grande variedade de reações e resultados, são entretecidos e independentes. Goethe compara as virtudes de um homem com os ramos que uma árvore ergue para o céu, enquanto que, ao mesmo tempo e com o mesmo viço, enterra as raízes na escuridão da terra, que ele compara com o lado negativo do caráter do homem.

Quando Lenine morreu, depois de ter estado seis anos no poder (não devemos esquecer que esteve doente nos últimos dois), deixou após ele um Partido triunfante e uma nação pacificada; mas, a modernização do Estado estava só no estágio de plano. Deixou após ele um Exército Vermelho vitorioso; mas não um exército mecanizado. Tanto o Estado como o Exército só podiam ser criados pela moderna tecnologia. A eletrificação do país gigante era o primeiro requisito para a utilização de seus enormes recursos, para sua defesa e reconstrução social. Veremos, dentro em pouco, o que Stalin conseguiu nesse sentido no decurso de uma década.

Mas tudo o que conseguiu só o podia ter feito tornando-se um autocrata.

Se encararmos esta luta como o pré-requisito para a ditadura de ferro da qual a nova Rússia industrial devia finalmente emergir, não obteremos com isso um quadro mais normal; mas aquilo que a princípio nos impressionou como mero ódio e vingança, adquire uma perspectiva histórica mundial. Olhando retrospectivamente para o primeiro período do Estado Soviético, só vemos as raízes aprofundando-se no negror da terra; este é o período sombrio de Stalin.

Mas, mesmo para Lenine, cuja vida foi sempre uma afirmação, os últimos anos foram cheios de lutas trágicas. Como um Gracchus, um Cromwell, ou um Danton, recebera um sistema social esfacelado e um Estado em bancarrota. Toda a revolução social se defronta com um campo queimado e desolado, arruinado por explorações sem plano nem consciência, e o solo mostra a mais obstinada resistência aos esforços do novo cultor. Lenine, como Churchill, começou seu regime prevendo um período de "lágrimas e sangue"; e sua voz, como a de Churchill, tinha-se elevado, durante uma década e mais, prevenindo contra o desastre iminente.

"A ditadura do proletariado," disse ele, "impôs à nova classe dirigente uma carga sem paralelo de sacrifício, sofrimento e pobreza. Jamais a classe dos trabalhadores se viu nas terríveis condições de hoje, quando assume a direção do Estado".

Não foi a introdução do socialismo por Lenine que produziu essa medonha pobreza e necessidade: a guerra, perdida pelo Tzar, e a consequente guerra civil, desorganizaram por tal forma o país que, no ano de 1922, só 51.000.000 dessiatine foram semeados contra 100.000.000 em 913. A colheita atingiu a 2.8 bilhões de pud contra 6 bilhões em 1913. A guerra mundial custou à Rússia tzarista quarenta bilhões de dólares; o custo da guerra civil foi de outros cinquenta bilhões. Lenine teve de construir seu novo Estado no meio de um colapso catastrófico, e que assinar uma paz numa guerra dirigida pelo Tzar, ao passo que Hitler pôde esperar catorze anos e receber uma Alemanha cuja prosperidade havia muito tinha sido restaurada.

O segundo elemento trágico na situação de Lenine foi a luta contra seus antigos companheiros d'armas. menchevistas, sociais revolucionários, anarquistas, tinham lutado contra o regime tzarista com a mesma fúria que os comunistas, e agora tinham o mesmo direito de exigir uma participação no governo. Mas a teoria e os métodos de reconstrução que deviam seguir-se abriram um tão grande abismo entre esses partidos e os comunistas, que Lenine foi compelido, contra seus próprios princípios, a dissolver a Assembléia Constituinte Nacional e a introduzir a ditadura do seu próprio Partido. Ele próprio chamava-a de oligarquia, e dificilmente poderia prever o que resultaria deste inevitável recurso à força, quando membros de menor capacidade chegassem ao poder. Aquilo que Lenine fez era controlado pelo seu próprio caráter, e não podia ser passado adiante como um legado. Que um caráter como o de Stalin, com o seu impulso para a ditadura pessoal, presenciasse este rumo dos acontecimentos e procurasse, mais tarde, perpetuá-lo, para isso estava predestinado.

Porque, com toda sua energia, Lenine possuía um sentimento natural amistoso pelos seres humanos. Tentava convencer seus colaboradores; Stalin comandava-os. Lenine governava com um espírito de cooperação e consulta. Na instituição dos Soviets, esses pequenos, porém crescentes conselhos populares eram o emergente instrumento do governo popular; Stalin dominou os Soviets.

O que Lenine apreciava em Stalin era seu conhecimento de detalhes e de pessoas, sua capacidade de trabalho e a rapidez de suas decisões, qualidades que só um caráter superior apreciaria num subordinado.

Stalin era um entendido em nacionalidades e foi por isso chefe desse departamento por um período de seis anos sob Lenine; estava, assim, cuidando de um dos dois problemas mais importantes da Revolução. Porque os operários e os camponeses russos não deviam só ser libertados; deviam também conseguir a independência das suas várias nacionalidades. O que o mundo reunia sob o nome de Rússia não era uma só nacionalidade; havia cerca de doze povos principais e cerca de cem raças aparentadas, que tinham sido compulsoriamente russificadas pelos Romanos. O país, que hoje chamamos a URSS e que corresponde aproximadamente ao Império tzarista — esse gigantesco território estendendo-se da Polônia ao Alaska e do Ártico ao Mar Negro — dá a cada um dos povos que o constituem tanta liberdade, quanto à língua, quanto a Suíça dá a cada um dos seus vinte e dois pequenos cantões. Nesse sentido, a Rússia é atualmente modelada pela Suíça.

Não obstante só falar georgiano e russo, Stalin é considerado um perito nessas numerosas nacionalidades: os ucranianos, bashkirs, tártaros, russos brancos, armênios, turcomanos e muitos mais. Para todos esses povos Stalin redigira, de acordo com as idéias de Lenine, uma espécie de Declaração de Independência, em que lhes era prometido o direito de controlar seus próprios destinos e a abolição de todos os privilégios russos e ortodoxos.

A independência desses povos era tanto mais surpreendente por ser o abismo entre os russos educados de S. Petersburgo e os habitantes da Transcaucásia cem vezes mais largo do que — vamos dizer — entre um bostoniense tradicional e um residente nos confins do Novo México. Isso pôs termo à estúpida luta da chamada classe dominante russa contra as muitas nacionalidades subjugadas; como também trouxe o fim das frequentes revoltas destas últimas contra a primeira. A guerra civil russa de 1918-20 foi complicada pela intervenção de tropas européias. Mas estas nunca teriam sido batidas se as nacionalidades russas, que tinham, por fim, obtido sua liberdade, não se tivessem unido à nova Confederação. Na guerra civil foi classe contra classe e não raça contra raça. É por esta razão, também, que o povo russo não pode absolutamente compreender as idéias raciais dos nazistas.

Quando esta Confederação tomou forma em 1922, sob a denominação de União das Republicas Soviéticas Socialistas, seu princípio básico era diametralmente oposto ao dos nazistas: os slogans eram: auxílio às tropas, os membros mais fortes deviam fornecer dinheiro e materiais aos mais fracos, liberdade para todas as culturas nacionais e línguas. Comum a todas, como nos Estados Unidos, eram o Congresso, o exército, a política externa e a base social.

Os vários povos, contudo, não se atiraram nos braços uns dos outros numa explosão de amor fraternal. Na Ucrânia, na Sibéria, no Turquestão — houve revoltas contra o sistema comunista. A admiração de Stalin por uma Rússia poderosa contribuiu para a intensificação dessas lutas na sua Geórgia natal. A ambição especial que se encontra nos filhos dos Estados mais fracos — e Hitler é outro exemplo — provocou Stalin para uma furiosa batalha com seus antigos amigos georgianos, de maneira que o próprio Lenine teve que intervir em defesa destes.

Por cinco longos anos, Stalin em parte alguma conseguiu independência. Na guerra, era oficialmente um subordinado de Trotsky; no Estado, era um entre os dezenove membros do Comitê Central, e um entre os cinco membros do Politburo, (Bureau Político), em ambos Lenine e Trotsky faziam-lhe sombra. Mas, num sentido, tinha sempre uma visão mais clara do que esses dois líderes. Por muitos anos, ambos acreditaram na iminência da revolução mundial, especialmente na Alemanha. Stalin negava isso, e por isso pedia uma ação de severidade draconiana na Rússia. Muito tempo depois da vitoria dos bolchevistas, Lenine declarava que sua própria revolução estaria perdida se a Rússia ficasse sendo o único país socialista. Podemos chamar este erro de heróico.

Mas Lenine tinha uma qualidade que ninguém partilhava com ele: confessava seus erros; e até ao fim não cessava de repetir aos seus camaradas que

"não ficamos santos com a Revolução, e de forma alguma devemos começar a pensar que somos infalíveis."

Chamava derrota a uma retirada e dava a um compromisso seu nome exato; e foi precisamente assim que conquistou o coração dos homens.

Mas mesmo Lenine não era capaz de evitar o perigo vinculado à ditadura. Excluindo da participação no governo a todos os partidos dissidentes, tornou a direção do Estado idêntica à do seu Partido. Na América, também, da eleição de um novo presidente, ou de uma mudança na maioria do Congresso, resulta uma mudança não só nos altos postos governamentais como em milhares de pequenos, que caem vítimas do vencedor. Mas o controle fica com o Congresso, dentro do qual a minoria pode sempre se dirigir ao país. Com os Soviets, porém, o controle não tardou a ficar limitado aos congressos do Partido. Por algum tempo, todo o país foi, na realidade, governado por um par de dúzias de homens.

Aqui, o terceiro fator trágico, que na história sempre se seguiu, entrou em cena. Há uma semelhança entre revoluções e casamentos por amor; à fascinação e ao entusiasmo da lua de mel segue-se a comparativa calma da vida em comum; a fascinação desaparece. A nova oligarquia do Politburo também se tornou cada vez menos tolerante, e começou a gozar e a usar tiranicamente o poder, que olhara reverentemente como a prerrogativa da Idéia. Além disto, precisamos lembrar-nos de que Stalin e Trotsky, como líderes do exército na guerra civil, tinham-se habituado a comandar. Trotsky tinha muito que fazer para preocupar-se com personalidades; Stalin aprendera o expediente de transferir os líderes de Soviets que se tornavam desagradáveis para postos distantes, e começou já mesmo nesses primeiros anos a dar cheques-mates nos seus adversários, atirando-os para longe.

As massas estavam aterradas com a ditadura. Com nervosismo, agravado pelo frio e pela fome, levantaram-se e pediram eleições livres para os Soviets, liberdade de palavra e de imprensa; em resumo, tudo o que lhes tinha sido prometido. Nessas circunstâncias, os idealistas também se tornam duros e injustos, e Trotsky fuzilou aqueles marinheiros, a quem antes chamara o orgulho da Revolução. É por isso que, na sua autobiografia, dedica só duas linhas a este horrível incidente.

Lenine pressentiu o perigo que surgia do ressentimento das massas, e fez o que foi quase como que uma completa reviravolta, tendo desistido de parte de seus princípios básicos, escrevendo:

"Já que não podemos chegar ao Socialismo por meio de um assalto vamos agora estudar o Capitalismo de Estado."

Como grande estrategista que era, fez uma retirada temporária, e nisto pareceu-se com o seu mestre, Marx, que num debate disse, uma vez, e só em meio tom de gracejo:

"Não sou marxista."

A retirada limitou-se à parte da economia e à parte da terra, permitindo que trigo e outros gêneros fossem novamente vendidos no mercado livre e distribuindo concessões, que resultaram na criação de especuladores e numa nova classe de ricos. A Europa declarou a Revolução um fracasso. Do ponto de vista dogmático era, porque, hoje, a economia russa difere pouco da economia de guerra da Inglaterra e da Alemanha.

Stalin começou sua carreira, nessa época, por meio de uma eleição cuja importância passou desapercebida até mesmo ao próprio Lenine. Era realmente um cavalo de Tróia dentro do qual Stalin, quase sem ser observado, entrou na cidadela que mais tarde devia conquistar. Foi eleito Secretário Geral do Partido Comunista pelo Comitê Central. Desse posto, começou a controlar todas as posições-chave das quais o Partido mantinha vigilância sobre todo o país. Como ele era simultaneamente uma espécie de representante do Politburo da G.P.U., pois sendo amigo de seu chefe, Dzerzhinski, depressa acumulou nas mãos um grande, mas praticamente invisível poder.

Assim, ao seu paciente e sistemático modo, começou a preparar lentamente seu poder. A pressão da fome e as outras consequências da guerra civil fizeram com que muitos homens ansiassem por trabalhar no Partido. Se Lenine era respeitado e estimado, Stalin, precisamente por não ser conhecido, era temido como um deus invisível e severo. Um Secretário Geral assim nunca existira antes.

O resultado dessa perigosa situação foi um aumento tão rápido no número de membros do Partido que teve de ser reduzido de um terço. Um membro do Soviet disse, por esse tempo:

"o Parlamento Inglês, como todos sabem, pode fazer tudo, exceto transformar um homem em mulher. Mas o nosso Comitê Central tem poderes ainda maiores. Já fez mulheres dos mais corajosos revolucionários, e seu número continua crescendo".

Naturalmente, a crítica continuou crescendo também e no tempo de Lenine podia ser feita abertamente. Em lugar de puni-la, dizia sem reserva:

"Talvez nossa máquina de Estado seja imperfeita, mas o mesmo aconteceu com a primeira máquina a vapor. Para pôr a nossa máquina em perfeito funcionamento, temos que fazer três coisas: aprender, aprender e aprender."

Esta era a linguagem que as massas compreendiam e não tardavam a representar Lenine como o pai de sua pátria. Foi por isso que um calafrio de terror passou pela Rússia quando ele teve um súbito ataque. Desse dia até ao de sua morte, um período de quase dois anos, pôde tomar decisões ocasionalmente, mas não pôde governar.

Lenine tinha sido considerado infatigável. A simplicidade em que vivia fez o povo esquecer que em cinco anos não tomara umas férias; nunca tinha mesmo se distraído caçando. Trotsky, cuja única distração era caçar, explicou porque Lenine não era um "bom caçador. Obviamente, não era também um bom soldado.

O gênio de Lenine consistia numa rápida visão das coisas, abrangendo um grande espaço de tempo:

"Qual será o resultado destas medidas daqui a dez anos se eu lhes apuser minha assinatura hoje?"

Este dom de previsão ou de imaginação, que constitui a característica do verdadeiro estadista, era integrado por um caráter no qual a modéstia e a confiança em si próprio estavam perfeitamente equilibradas. Lenine é um dos raros exemplos em que o talento e o caráter se auxiliam mutuamente.

Lenine foi também um homem em quem nenhuma fraqueza pessoal projetou uma sombra na grande paixão de sua vida. Um lógico, como Karl Marx, seu mestre, adorava a clareza, números, estatísticas e odiava frases sentimentais. Mas duas qualidades lhe davam uma vantagem sobre Marx. A primeira era a capacidade de ação, que Marx nunca teve nem mesmo uma oportunidade de experimentar. Lenine está na mesma relação para Marx, quanto Marconi para Hertz: aplicou a teoria do matemático às tarefas práticas do engenheiro. A segunda era de um caráter mais sutil. Lenine, o claro e cuidadoso pensador, era um verdadeiro russo; amava a Rússia; e no seu tempo de estudante soube o que era ter um irmão mais velho executado por cumplicidade numa tentativa de assassinato. Enquanto que Karl Marx, com a sua inteligência maciça, queria melhorar a sorte do operariado não importava em que país, e era ele próprio um emigrado e sem pátria. Lenine, que foi um dos fundadores da Terceira Internacional, não poderia ter sido eficiente em parte alguma senão na Rússia, embora conhecendo tão bem o resto da Europa. Queria a revolução mundial, mas só triunfou na Rússia, porque conhecia a alma do operário, do camponês e do oficial russo como se pode conhecer o jardim de nossa infância.

Contrastando com ele, Stalin admirava a Rússia na sua alma e procurou conquistá-la. Se Lenine era o líder nato, Stalin esforçava-se, ao máximo, para também o ser; e precisou vinte anos para suplantar todos os seus rivais. A confiança que tinha em si foi inteiramente justificada.

Ocasionalmente, o animo forte de Lenine levava a melhor sobre sua doença, mas havia ocasiões em que sofria por saber que, se podia pensar com clareza, não podia se mover nem falar. Tinha de calcular de um mês para o outro se poderia tomar parte no congresso ou na reunião seguinte; dispensou os médicos que tentaram ocultar-lhe suas condições, ficando só com um em quem podia confiar que lhe diria a pura verdade. Por meses sem fim esteve preocupado, dia e noite, com a questão do seu sucessor. A transição de Lenine para Stalin não ocorreu a ninguém por esse tempo. O único homem que durante a moléstia de Lenine contava com a possibilidade de que seu sucessor fosse Stalin, era o próprio Stalin.

Depois de uma revolução, a morte do seu chefe é facilmente seguida da anarquia ou da burocracia. A esse tempo, a Rússia Soviética não estava tão consolidada quanto os essencialmente mais velhos Estados Unidos, ao tempo da morte de Washington. A morte de Cromwell resultou, depois de um breve período de governo por seu filho incompetente, no colapso da República. Lenine compreendia tudo isto claramente.

Durante o interregno de dois anos, o governo passou a ser exercido pela Troika, nome russo para um trenó puxado a três cavalos, aplicado aos três homens — Stalin, Zinoviev e Kamenev —, que dominavam o Politburo e o Comitê Central, e que estavam unidos numa inimizade crescente a Trotsky. Nos livros, nas canções populares da época, entre o próprio povo mesmo, Trotsky estava intimamente associado e identificado com Lenine. Ele era também o único que, por sua eficiência, depressa adquirira um completo e profundo conhecimento da estrutura do novo Estado. Tinha conseguido, no decurso de um ano, reparar milhares de locomotivas incapazes para o serviço, pondo-as a rodar novamente e repelir assim o ataque polonês. Quando eu o procurei em Moscou, em 1925, estava alhures, no outro extremo do mundo, examinando botas e capotes para o exército russo.

Como o prestígio de Trotsky fosse cada vez maior com a moléstia de Lenine e ele se tornasse, sem título oficial, o representante deste, sua tragédia começou. A Troika, chefiada por Stalin, preparou-se para depô-lo e derribá-lo depois da morte de Lenine. Trotsky descreveu depois como as conversas cessavam, abruptamente, quando ele entrava no recinto e qualificou isso como o primeiro sinal de conspiração contra ele, quando seu poder ainda estava em ascensão. Essas questões pessoais constituíam por esse tempo o assunto principal da política russa. A subsistência do novo Estado dependia da questão do sucessor de Lenine. Em casos como este, o patriotismo e os desejos ambiciosos marcham de mãos dadas.

O trabalho de toda a vida de Lenine perigava se das rivalidades recíprocas dos mais capazes dos seus colegas resultasse uma cisão no Partido. Homens de caráter apaixonadamente ambicioso, como Hitler, preocupam-se mais com o seu poder e sua fama do que com o seu trabalho. Lenine só pensava neste. Preso ao leito, privado às vezes da faculdade da fala, revolvia constantemente na sua mente a pergunta sobre a qual sucessor deveria transferir o peso de sua autoridade. Um ano antes de sua morte ditou para a Conferência do Partido aquela "nota" que foi, subsequentemente, e com justiça, chamada seu testamento. Até a sua morte, não foi lida por ninguém, exceto sua mulher, a quem a confiara:

"Penso que o fator fundamental na questão da estabilidade do Partido é constituído pela divergência entre Trotsky e Stalin, membros do Comitê Central. As relações entre eles constituem, na minha opinião, uma grande
parte do perigo dessa cisão, que poderia ser evitada elevando-se o número de membros do Comitê Central a 50 ou 100.

"O camarada Stalin, tendo sido feito Secretário Geral, concentrou um enorme poder nas suas mãos, e estou certo de que sabe sempre usar esse poder com suficiente cautela. Por outro lado, o camarada Trotsky distingue-se não só pela sua excepcional competência — pessoalmente é, com certeza, o homem mais hábil no Comitê Central — como pela confiança por demais extensiva em si próprio e uma disposição para ser por demais atraído pelo lado puramente administrativo dos negócios.

"'Estas duas qualidades dos dois mais competentes líderes do atual Comitê Central, muito inocentemente nos levariam a uma cisão. Se o nosso Partido não tomar providências para evitá-la, essa cisão poderá dar-se inesperadamente."

Durante a semana mesma em que foi ditada esta nota, Lenine recebeu a comunicação da ação de Stalin contra os líderes georgianos. Stalin voltara contra sua antiga terra natal toda a paixão de seus sentimentos pró-Rússia, e apeara do poder seus amigos de anos antes. Lenine ficou indignado ao saber que Stalin permitira o emprego da força em assuntos nos quais a Constituição garantia a mais ampla liberdade. Entretanto, este censurava asperamente a mulher de Lenine por trazer seu marido assim minuciosamente informado, em vez de deixá-lo repousar. Com estas impressões frescas na mente, Lenine reforçou sua "nota" adicionando-lhe, dez dias depois:

"Stalin é por demais indelicado, e esta falta, inteiramente suportável nas relações entre nós comunistas, torna-se insuportável no exercício do cargo de Secretário Geral. Portanto, proponho aos camaradas que procurem um meio de afastá-lo dessa posição, nomeando em seu lugar um outro que, a todos os respeitos, menos em qualidades superiores, seja diferente dele; isto é, um homem mais paciente, mais cordato, mais delicado e mais atencioso para com os camaradas, menos caprichoso, etc. Esta circunstância pode parecer uma insignificante nonada, mas penso que, sob o ponto de vista de evitar uma cisão e sob o ponto de vista das relações entre Stalin e Trotsky, a que me referi acima, não é uma nonada, ou é uma nonada que pode adquirir uma importância decisiva."

Estes dois documentos nunca foram publicados na Rússia, mas sua significação varia pouco do que constava entre os de dentro. Os seus originais devem, certamente, ter sido destruídos há muito tempo.

A inquietação de Lenine aumentou muito quando, deitado no seu quarto no edifício do Senado, pressentiu, por certas indicações, que um novo ataque se aproximava. Ao mesmo tempo, Trotsky, também, estava preso ao seu leito com dores reumáticas, num quarto na Casa Tzarista dos Cavaleiros. O grande pátio do Kremlin separava os dois homens, que trocavam idéias sobre os assuntos mais importantes por meio de bilhetes ou mensagens orais por intermédio de seus secretários; uma situação realmente tragicômica.

A novidade da Troika era um motivo de propaganda que sempre ficara alheio ao fundador do novo Estado. Durante a moléstia de Lenine, e evidentemente sem o seu conhecimento, a cidade de Tzaritzin, que Stalin tão brilhantemente defendera durante a guerra civil, foi subitamente rebatizada por Stalingrado, ao mesmo tempo que outra cidade russa passou a ser Zinovievsk. Tiveram seus nomes em navios, escolas, fábricas. Só Lenine recusou que se fizesse o mesmo com ele, porque foi só depois de sua morte que Petrogrado passou a chamar-se Leningrado. Mais tarde, o culto da personalidade divulgou-se. Na Exposição de Paris, em 1937, os visitantes do pavilhão russo deparavam, em seis lugares diferentes, com estátuas e retratos de Stalin.

Não me sendo possível conciliar isso com os princípios socialistas, resolvi interrogar o próprio Stalin a respeito. Eu sabia por experiência que os ditadores, como os elefantes, ficariam mais mansos quando importunados.

— Surpreende-me — disse-lhe — o culto de heróis que predomina aqui mais do que em qualquer outra parte. Os senhores são o povo que logicamente menos deviam reverenciar o indivíduo. Sua concepção materialista da história, que é o que me separa pessoalmente do senhor, porque mantenho que os homens fazem a história, deveria impedir que os retratos de líderes fossem exibidos na rua e que pusessem seus nomes em cidades.

Este ataque, Stalin o recebeu com excelente aprumo, dizendo:

— Engana-se. Em Marx, encontrará que os homens fazem a história, mas não no sentido que sua imaginação sugere; mas sim reagindo em face de circunstâncias definidas em que se vêem colocados. Cada geração tem um novo conjunto de circunstâncias a enfrentar. Em geral, pode-se dizer que o valor dos grandes homens está em relação com a sua capacidade de enfrentar as circunstâncias que os cercam. A não ser isso, são Don Quixotes. Na minha opinião, é a história que faz os homens. Marx nunca negou a importância do herói. É de fato muito grande.

No entanto, quando o verdadeiro herói da Revolução ainda estava vivo, mas impossibilitado de trabalhar, o poder da máquina do Partido tornou-se maior do que ele mesmo. Stalin, como Secretário Geral, nomeou seus amigos para secretários nos Estados e eles por sua vez nomearam seus amigos subsecretários. Lenine reconheceu o perigo e ditou um artigo — o seu último artigo — ao qual deu o título: "É melhor menos, porém melhor"; nele propunha um rejuvenescimento da máquina do Estado sobre a base de maior conhecimento e melhor educação.

Mas a esse tempo o Politburo, com Stalin e seus amigos, já era tão poderoso que não queriam que o artigo fosse publicado. Ousaram sugerir que se imprimisse um único exemplar do Pravda para o "velho" com o seu artigo. Foi só depois que a mulher de Lenine e Trotsky os ameaçaram de denunciá-los, que a Troika deixou publicar esse artigo.

Lenine viveu o bastante para ver seu Estado reconhecido de fato por seis governos estrangeiros e de jure por doze mais. Conseguira negociar uma aliança com a Turquia e uma entente com a Alemanha, provando assim ao resto do mundo que o Soviet era capaz de contrair alianças. A crescente tensão entre o Japão e os Estados Unidos, já evidente em 1923, resultou na volta da Rússia asiática para os Soviets. Para o fim de sua vida, Lenine viu a paz firmada nas fronteiras de seu país e o seu Partido triunfante dentro dele.

Morreu de repente em Janeiro de 1924. Trotsky, que partira para uma estação de cura no sul, recebeu a notícia no caminho, em Tiflis: Stalin transmitira-a pelo telégrafo. Mais tarde, queixou-se de ter sido mal informado sobre a data do funeral para que não o pudesse assistir. Que Trotsky tivesse sido assim impedido de assistir aos funerais mostra como já estava sendo relegado para o segundo plano.

E assim foi que Stalin enterrou Lenine diante do povo reunido. Numa floreada oração de despedida, disse:

"Nós, comunistas, somos um povo de um feitio especial. Somos feitos de um material especial. Somos os que formam o exército do grande estrategista proletário, o exército do camarada Lenine. Não há nada mais elevado do que a honra de pertencer a este exército. Não há nada. mais elevado do que o título de membro do Partido cujo. fundador e líder é o camarada Lenine...

"Deixando-nos, o camarada Lenine adjurou-nos a que mantivéssemos bem alto e zelássemos pela pureza do grande título de membro do Partido. Juramos-vos, camarada Lenine, que cumpriremos o vosso mandado com honra!...

"Deixando-nos, o camarada Lenine adjurou-nos a que reforçássemos com todas as nossas energias a aliança entre operários e camponeses. Juramos-vos, camarada Lenine, que este mandado será, também, cumprido com honra!...

"O camarada Lenine, sem cessar, insistiu na necessidade de manter a união voluntária das nações de nosso pais, na necessidade da cooperação fraternal dentro da moldura da União das Repúblicas. Deixando-nos, o camarada Lenine adjurou-nos a que consolidássemos e estendêssemos a União das Repúblicas. Nós juramos-vos, camarada Lenine, que cumpriremos, igualmente, essa ordem com honra!...

"Por mais de uma vez, Lenine fez-nos ver que fortalecer cada vez mais o Exército Vermelho e melhorar suas condições é uma das tarefas mais importantes do nosso Partido... Juremos então, camaradas, que não pouparemos esforços para tornar mais forte nosso Exército Vermelho e nossa Marinha Vermelha..."

Esse juramento Stalin o tem cumprido. Junto ao ataúde de Lenine ele surgiu como seu herdeiro, como Marco Antônio surgiu junto ao de Cesar; mas, ao contrário de Merco Antônio, ele estava destinado a esmagar o distante Otaviano. Nesse dia, ele estava firmemente resolvido a triunfar sobre seus rivais.

Os funerais régios foram inteiramente contra os desejos de Lenine. Mas a idéia de embalsamá-lo como uma múmia foi o resultado de uma circunstância imprevista. Soube disso anos depois, na Suíça, pelo químico que executou esse trabalho.

— As multidões de peregrinos dirigindo-se a Moscou no meado de Janeiro — disse-me ele — eram tão grandes e levavam tanto tempo, que o Comitê Central ordenou-me fizesse alguma coisa para preservar o cadáver por uma semana mais. Tendo conseguido isso, ocorreu-me tornar o corpo absolutamente indestrutível. Por muitos meses, o cadáver ficou na mesa do meu laboratório sendo submetido a uma variedade de injeções. Começamos por uma perna para que, no caso de não dar certo, o corpo todo não ficasse arruinado. Foi só depois de muito tempo que tivemos a certeza do resultado.

Olhando para Lenine morto, no seu ataúde de vidro, duas coisas nos surpreendem: como é pequeno e como é amarelo; isto é, seu rosto e suas mãos. Dezoito anos são já passados e está ainda perfeito sem ter mudado. Conjeturei que emoções sua vista despertaria naqueles que estiveram mais perto dele em vida, e perguntei se sua mulher já o vira no mausoléu.

Nunca estivera lá.


Inclusão 02/05/2011
Última alteração 07/04/2016