Stálin

Emil Ludwig


Capítulo VI — O Legislador


CAPA

Por meio de leis e construções, os líderes das nações se asseguram de que sua memória será honrada pela posteridade. Sua própria geração, seus súditos ou concidadãos contemporâneos não lhes agradecem essas realizações. Não consideram nenhuma liberdade grande bastante, nenhuma garantia bastante eficiente, nenhuma catedral bastante imponente. Criticam tudo e estão sempre descontentes. Os contemporâneos impressionam-se com as conquistas, a sorte, a prosperidade. A posteridade compreende que tudo isso é transitório e apega-se às únicas coisas legadas pelos conquistadores depois que seus impérios foram aniquilados e seus tratados de paz anulados: catedrais e torres, fachadas e pontes, diques e canais levaram os nomes de imperadores romanos e reis franceses através dos tempos. Ninguém, ao ouvir mencionar o nome de Justiniano, que foi um dos grandes soberanos, se lembra de outra coisa senão de suas leis. Washington, um vulto nacional, desperta menos interesse fora da América do que Jefferson, que formulou um novo princípio para a humanidade.

Nada sobreviveu a Napoleão senão um retrato, uma lenda e o Código de Napoleão. Retrato e lenda completam-se, mostrando-o quase sempre como general, mais raramente como soberano e nunca como legislador. Contudo, seu gênio construtivo, que o separa tão completamente dos seus pequenos imitadores de hoje, não transparece em parte alguma tão claramente como nas leis com as quais ele aboliu uma anarquia de dez anos — e isso com a pena no meio de um conclave de homens experimentados. Nunca cairá no esquecimento que esse soldado e aventureiro, na mesma noite em que se apoderou do poder pela força das baionetas e dos canhões, nomeou duas comissões para organizar esse código de leis que a Revolução não pudera dar ao povo em dez anos. Com esse ato simbólico, o general tentou atenuar seu ato de violência e a injustiça perpetrada, restituindo a lei pública.

Justiniano e Napoleão, os dois grandes legisladores da era cristã, eram autocratas e generais; sacrificaram milhares às suas idéias de poder pessoal e, contudo, apressaram-se em dar aquelas leis que estavam destinadas a sobreviver às suas conquistas. No caso, uma inquietação secreta parecia impeli-los a agir. Os dois imperadores, ambos de ascendência burguesa, ordenaram a confecção de códigos de leis imediatamente depois de se terem apoderado do poder. Ambos contribuíram com decisões que, penetrando profundamente nas vidas da sua e das nações subjugadas, persistiram até hoje. Uma mulher, procurando divorciar-se na Argentina ou no Egito no ano de 1942, será guiada pelas idéias de casamento ou direitos paternos formulados por Napoleão há cem anos e por Justiniano há catorze séculos.

Ambos os legisladores precisaram só de catorze e dezoito meses, respectivamente, para o seu trabalho; ao passo que outros Códigos levaram trinta anos e as leis internacionais de Haia não puderam ser formuladas num período de vinte anos. Não há certeza de que o imperador romano tenha tomado uma parte tão ativa na legislação quanto o francês; Napoleão presidiu noventa e sete das cento e duas reuniões que a comissão realizou. Essas reuniões muitas vezes não começavam antes das nove da noite e eram precedidas por um dia empregado pelo Primeiro Cônsul num gigantesco volume de trabalho. De uma vez, quando um dos membros adormeceu, o Cônsul sacudiu-o dizendo-lhe:

— Acorde, cidadão! Precisamos fazer jus ao nosso salário!

É tão fácil encontrar contradições entre os atos públicos de um rei legislador e sua direção legal como contrastar o sistema de um filósofo, com a sua vida amorosa. Com as suas doutrinas e prescrições, ambos tentam suplantar as fraquezas e tendências próprias para as quais a natureza humana sempre propende. Justiniano, que aboliu o Consulado Romano — à base de uma Constituição milenária — pela força, formulou ao mesmo tempo grandes princípios de justiça e distribuiu-os por todo o mundo, Napoleão, que sacrificou os direitos do homem centenas de vezes às suas conquistas, codificou os fundamentos desses direitos e pôs em prática pela primeira vez as idéias da grande revolução dentro de um velho reino: abolição da nobreza hereditária; igualdade de direitos para todas as classes e raças, inclusive os judeus; casamento civil e divórcio para todos igualmente.

Depois de ter instituído seu Código em quase toda a Europa, de Varsóvia a Paris, de Copenhague a Nápoles — mesmo até a Louisiana — as nações submetidas tentaram repeli-lo. Mas em vão! Por toda a parte o povo voltava aos seus princípios; e hoje, cento e quarenta anos depois de sua conclusão, o Código de Napoleão regula a vida legal de metade da Europa e de vinte e cinco nações fora dela, especialmente na América do Sul. Isso só pôde acontecer por ter sido concebido sem nenhum espírito de nacionalismo ou de polêmica, e encerrar em si os novos princípios da era: as idéias dos enciclopedistas.

Maiores do que os livros de leis são as Constituições na história da humanidade; maiores do que as Constituições são os manifestos fixando as bases morais da justiça pública. Durante os últimos cento e cinquenta anos, três deles identificaram-se com o espírito da época. O outro que podia ser contado como o quarto — o Bill of Rights (Declaração de Direitos) de 1689 — não é um documento de significação mundial e não exprime nem mesmo o senso moral dos britânicos. Não se refere senão aos direitos do Parlamento contra os reis, confere a liberdade de palavra só no Parlamento e promete ao simples cidadão simplesmente uma garantia limitada em assuntos legais.

Um século depois, Jefferson, talvez o maior dos americanos, escreveu, com sua caligrafia miúda, a página que iniciou a história do moderno Estado. Nela ele só fez codificar o que pensadores antes dele, o que Rousseau e Locke, tinham formulado e postulado. Mais ainda: esse famoso documento está cheio em grande parte de acusações contra um rei que foi completamente esquecido, de motivos para uma rebelião que não interessam a mais ninguém. Seu valor real não está no fato de declarar a independência de um novo Estado, mas na sua forma e argumentos. Foi um acontecimento na história que um Estado se constituísse na base do idealismo democrático e manifestasse o princípio fundamental:

"Que todos os homens nascem iguais, que são dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis e que, entre estes, estão a vida, a liberdade e o esforço para alcançar a felicidade."

Pela primeira vez, uma nação declarou que todo ato do governo dependia do consentimento dos governados.

Neste sentido, o documento de Jefferson é muito mais significativo do que a Constituição que se seguiu onze anos depois e cujo estilo ponderoso não a diferencia doutras Constituições. Depois da Declaração de Independência só trouxe ao mundo a realização dos mesmos princípios, com exceção da famosa Primeira Emenda:

"O Congresso não fará nenhuma lei sobre o estabelecimento de religião, ou proibindo seu livre exercício"

A palavra Deus, que Jefferson substituiu por Criador, não é mencionada na Constituição. Mesmo o juramento do Presidente começa: "Juro solenemente..."

A França e os Estados Unidos mandaram seus slogans um ao outro através do oceano, simplificaram-nos ou multiplicaram-nos na outra costa, deram-lhes um novo som, e devolveram-nos à mãe pátria numa forma rejuvenescida. Porque a soberania do povo pedida por Voltaire e Rousseau se realizara na América pela primeira vez. Mas, imediatamente depois, um mensageiro da França trouxe provas do idealismo florescendo lá novamente: Lafayette compusera "Les Droits de L'Homme", cujos dezessete artigos combinavam a lógica da língua francesa com o patético do seu espírito e representava o mais belo documento jamais produzido pela mente política do homem desde os gregos e a Renascença. Esse documento, seguindo-se à Constituição Americana dois anos depois e precedendo de dois a francesa, encerra, na riqueza do seu texto, todos os programas modernos de liberdade.

A Constituição francesa de 1791, acentuando os direitos do homem, faz em muitos detalhes concessões ao velho mundo burguês. Nela a igualdade era só estabelecida perante a lei, não em relação à educação; e às classes endinheiradas foram asseguradas muitas vantagens. As leis socialistas visavam especialmente medidas de guerra e depressa desapareceram na prática. A propriedade era explicitamente garantida. Ao mesmo tempo, o princípio universal foi transformado imperceptivelmente, pode-se dizer, pelos legisladores, num princípio nacional. Todos os oradores da Convenção falavam da liberdade que iam levar às nações oprimidas; se necessário, pela força. E Danton chamou o Reno a fronteira natural da França, que tinha de ser tomada. Apesar disso, o sentimento fundamental em relação aos direitos do homem permaneceu um sentimento humano.

O terceiro documento da humanidade moderna, depois da Declaração de Independência e dos Direitos do Homem, de Paris, é representado pela Constituição Soviética de 1936. Nesse ínterim, durante os últimos cento e sessenta anos, não se encontra nada em que o século XIX tenha alcançado ou mesmo antecipado a elevação moral dos séculos XVIII ou XX; porque o Manifesto Comunista é só um programa para um novo sistema de economia.

A história chamará esta nova Constituição pelo nome de Stalin, não obstante ele não ter chefiado a União dos Soviets e só o Partido Comunista no começo, e não obstante suas idéias principais já terem sido formuladas por Lenine nas suas primeiras duas Constituições, em 1918 e 1924. Todas as grandes Constituições são curtas: as da América e da União Soviética têm cada uma vinte e quatro páginas. É igualmente difícil penetrar qualquer delas. Esses documentos assemelham-se ao minério do ouro cuja aparência desaponta o mineiro até que um relancear d'olhos mais feliz revela o pequeno depósito do precioso metal. E, contudo, toda a rocha é famosa e valiosa só por causa daqueles pequenos veios.

Na Constituição Soviética, esses depósitos são em maior quantidade do que em outra qualquer parte desde a Declaração dos Direitos do Homem, em Paris. Somente é surpreendente que tenha levado muito mais tempo no presente do que no passado para positivar-se esta nova filosofia do Estado. Voltaire viveu para ver a grande Revolução, mas muito poucos revolucionários russos podem recordar-se do tempo de Marx. Entre seu livro e esta Constituição há meio século. Marx formulara este princípio para o novo Estado:

"De cada um, conforme sua capacidade; para cada um, conforme seu trabalho."

Engels acrescentou:

"O governo sobre pessoas será substituído pela administração dos objetos e da produção. O Estado não será abolido, mas se extinguirá aos poucos"

Lenine manifestara a mesma idéia de modo diferente:

"Todo cozinheiro terá que aprender a governar."

Estas idéias fundamentais já tinham sido positivadas na primeira Constituição de Lenine, mas não tinham sido promulgadas em larga escala antes de Stalin. Uma legislação nunca é uma criação nova. Sempre, desde o tempo do Código babilônico, tem sido a formulação da já existente ou recentemente estabilizada moral do Estado. A idéia dos Soviets baseia-se no direito e no dever de trabalhar. É muito simbólico que o Estado Comunista do século XX tenha adotado um dos princípios da mais antiga comunidade comunista, a dos cristãos apostólicos do primeiro século, palavra por palavra. S. Paulo diz (II Tessalonios, 3,10):

"... Se um homem não quiser trabalhar, não o deixes também comer".

Constituição Soviética, art. II:

"Na União, o trabalho é o dever de todo cidadão válido conforme o princípio: Aquele que não trabalhar, não comerá também".

Esta obrigação categórica, que até agora não foi imposta por qualquer Estado aos seus cidadãos, é contrabalançada por uma igualmente nova obrigação do Estado:

"Os cidadãos da União têm direito ao trabalho, o direito a ser-lhes garantido um trabalho e ao pagamento dos seus serviços conforme seu valor e quantidade. O direito a trabalhar é assegurado pelo sistema socialista de economia."

Maior ainda parece à primeira vista a diferença da Constituição Americana no que se refere à propriedade: esta garantindo-a e aquela abolindo-a. A despeito disto, o desenvolvimento de ambas as formas de Estado os guiará um para o outro. Não a Constituição, mas exigências práticas têm aproximado a América, de acordo com a nova era, do dogma russo. Ao passo que na América as empresas de utilidade pública têm passado, mais ou menos, para o Estado, a propriedade, na Rússia, só foi abolida em pequena escala. Aqui a Constituição diz:

"A União dos Soviets baseia-se no princípio de que a propriedade dos meios de produção e a exploração de um homem por outro deve ser abolida."

Nos Estados Unidos, muitos rios, fazendas, minas, florestas, diques e usinas geradoras são hoje propriedade do Estado; isto é, são propriedade de toda a nação. Na Constituição Soviética o artigo correspondente, grandemente aumentado, naturalmente, diz o seguinte:

"A terra e tudo o que nela existe: rios, florestas, moinhos, fábricas, minas, estradas de ferro, meios de transporte por água e pelo ar, diques, estradas, fazendas do Estado, principais habitações existentes nas cidades e centros industriais, pertencem ao Estado, isto é, são propriedade de toda a nação."

Por outro lado, a propriedade particular é, em parte, mantida pelos Soviets, porque diz mais adiante:

"A propriedade pessoal dos cidadãos, adquirida pelo seu trabalho e economia doméstica bem como dos objetos para seu uso pessoal e conforto, é protegida por lei. Esta proteção é extensiva às granjas de um modo pessoal, e a Constituição Soviética é provavelmente a primeira no mundo a mencionar aves domésticas e pequenos utensílios, do seguinte modo: "Cada dono de casa, numa fazenda coletiva, possuirá um pedaço de terra como propriedade individual, além da casa, gado, aves e pequenos utensílios... Fora do sistema socialista, a lei permite pequenas granjas particulares e outras empresas baseadas no trabalho pessoal e excluindo a exploração do trabalho alheio."

Porque os princípios de propriedade pública e dever de trabalhar têm suas profundas bases morais nas novas e revolucionárias idéias dos Soviets tendentes a impedir a exploração do homem pelo homem. Onde a propriedade particular foi abolida, a possibilidade do proprietário particular tornar-se milionário por meio de salários baixos e preços elevados foi também abolida. Nestas condições, a luta pelo ouro como o grande propósito da vida tornou-se impossível, ao passo que o esforço pelas boas coisas da vida por meio da diligência e talento ficou assegurado. Onde a exploração do trabalho humano foi proibida, mas a propriedade particular e a economia permitidas numa escala limitada, a vida oferece um novo desígnio.

Assim, a proteção do Estado fica garantida não só ao "proletário" como a todos os cidadãos, porque não pode mais existir nem o extremamente rico nem o extremamente pobre. A par do direito ao trabalho, cada cidadão tem garantido o seguinte: educação gratuita, acesso a todas as vantagens culturais, férias pagas, seguro para o caso de moléstia e para a velhice.

A diferença no standard de vida é determinada pela capacidade do indivíduo. O luxo externo de vida, de que gozam em todos os outros países alguns poucos homens de negócios ou ricos herdeiros, foi sacrificado a um sentimento de segurança, que nenhum outro Estado garante aos seus cidadãos. Afim de remover o medo das privações sofridas por 90% dos cidadãos, o gozo dos outros 10% deve ser restringido. Então os operários não estarão mais cheios de ódio e de inveja nem os patrões de ódio e medo de revoltas. Desse dia em diante uma nova divisão de sentimentos poderá começar a desenvolver-se dentro da comunidade.

O trabalho substituiu o dinheiro como o padrão do valor. O padrão ouro dos Estados antigos foi substituído pelo padrão eficiência no novo Estado. O caminho para as coisas boas deste mundo não é franqueado nem pelo número de barras de ouro, guardado por cada indivíduo no seu cofre, nem em forma de dinheiro nos Bancos, ou acidentes de nascimento e herança, e sim pelas próprias qualidades do indivíduo, que lhe proporcionam uma maior ou menor satisfação de desejos materiais ou ideais. O começo de cada vida humana á exatamente igual, física e economicamente. Seu fim é inteiramente desigual, conforme as qualidades individuais.

Um Estado assim, sem classes, deve necessariamente ser também um Estado sem raças. Privilégios de raça ou cor são explicitamente recusados pela Constituição:

"Toda á restrição direta ou indireta dos direitos de raças ou nações, todo o privilégio direto ou indireto reclamado por nações ou raças, assim como a defesa de direitos raciais e nacionais especiais e o ódio ou exceções contra qualquer raça, são passíveis de punição por lei."

Nas mesmas semanas do ano de 1936 em que esta Constituição foi dada a conhecer ao povo russo, Hitler proclamou em Nuremberg suas leis contra os judeus. O caráter guerreiro do Estatuto Russo tornou-se aparente para o mundo. O plano da nova Constituição tinha sido discutido e criticado em todo o país por seis meses. Ao mesmo tempo, foi instituído o sufrágio universal, igual e direto, e o povo instruído por meio de discursos e artigos.

Dois Partidos se formaram para esta primeira eleição que ia decidir sobre a Constituição: o Comunista e o Bloco Não-Partidário. Quando Stalin descreveu ao povo, um dia antes da eleição, o tipo de político em quem deviam votar, foi bastante inteligente para pintar um retrato ideal de Lenine e não o dele próprio. A diferença entre este e os plebiscitos de Hitler era fundamental. Noventa milhões votaram a favor da Constituição, mas quatro milhões votaram contra.

Aqui, como em toda a parte, havia contradições entre a teoria e a prática. Não obstante a mesma liberdade de palavra falada ou escrita ser garantida na Rússia como na América, esse privilégio não pode ser exercido ali da mesma maneira livre que aqui. Mas onde, no mundo, uma Constituição já foi executada fielmente? Os direitos do homem foram positivados? Os negros nos Estados Unidos gozam dos mesmos direitos que os brancos? Nenhuma legislação pode transformar, da noite para o dia, um princípio revolucionário em realidade.

Devemos considerar um acontecimento histórico mundial que a aceitação desta Constituição em meio duma virtual ditadura partidária pudesse ser recusada por quatro milhões de votantes. Geralmente, os reis e os ditadores concedem só uma margem de um por cento nos seus plebiscitos para se adicionarem maior brilho aparentando a independência dos votantes.

Aos grandes documentos de Estado da era moderna — a Declaração e a Constituição de Filadélfia os Direito do Homem e o Código de Napoleão, de Paris — juntou-se agora o Código de Stalin, de Moscou, que vai tornar seu nome imortal mais do que tudo o que tem feito, mesmo que possa assinar em Berlim, no ano próximo vindouro, como vencedor, o tratado de paz.


Inclusão 10/05/2011
Última alteração 16/04/2014