Camponeses de Barcouço:
Não vamos morrer agarrados à enxada

José A. Salvador


Palavras de Samora Machel

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«Um camponês moçambicano que produz arroz em Gaza, para que serve a sua produção? Serve para ele comer, para satisfazer as necessidades da sua família? Talvez numa certa medida. Mas o que é certo, é que com o que obtém da produção ele tem de pagar os impostos coloniais, impostos que financiam a polícia que o prende, impostos que pagam o ordenado do administrador que o oprime, impostos para comprar a arma dos soldados, que amanhã vão expulsar o camponês da sua terra, impostos para pagar o transporte e instalação de colonos, que vão ocupar a terra do camponês. O camponês produz para pagar impostos, o camponês pelo seu trabalho fimancia a opressão de que é vítima. Continuemos com este exemplo de um camponês que produz arroz. Ele para viver precisa de outras coisas além do arroz. Ele precisa de roupa, ele precisa de azeite, ele precisa de muita coisa que tem de comprar na loja. Para comprar precisa de dinheiro e o dinheiro não cai do céu. Quer isto dizer, que o nosso camponês tem que ir vender o seu arroz à loja ou à companhia. Ele vende as suas coisas por preços baixos, e compra por preços quatro a cinco vezes mais altos do que quando vende. Com um saco de algodão, fabricam-se muitos metros de tecido de algodão, o dinheiro que recebemos por um saco, mal dá para comprar uma só camisola. Quer isto dizer que «a produção que fazemos, o nosso suor combinado à terra, beneficia aquelas companhias, aqueles comerciantes que nada fizeram. (...) O individualismo, o espírito de propriedade privada, é o espírito capitalista, divide-nos, enfraquecenos: se eu quiser dar um soco com um só dedo, parto o meu dedo e o meu adversário fica à rir-se de mim; se eu unir todos os meus dedos, com a mão direita derrubo o adversário pelo meu soco.»

SAMORA MACHEL — 1971

Estava uma chuva miudinha de moer os ossos, ou algumas questões de pré-aviso

1 — Estava uma chuva miudinha de moer os ossos. Quase uma longa névoa a acariciar os pinheiros, a querer esconder-nos dos olhos a cor de mel do amarelo das árvores. Os pássaros não se ouviam, e o automóvel fugia das poças de água e lama que ilustravam a miséria dos caminhos. Não se via vivalma nos campos quando a velha componesa nos disse: «Os de Cavaleiros são contra a cooperativa. Têm medo que lhes roubem as terras». Mas com a ajuda de Deus a cooperativa lá ia indo, acrescentou. Iamos procurar o Joaquim que se encontrava naqueles dias a trabalhar como carpinteiro numa casa em construção. Era Dezembro, o último, e chegávamos assim pela terceira vez a Barcouço. Não se tratava agora de escrever uma reportagem para o «Gazeta da Semana», naturalmente mais rápida, nem de colaborar com o Salgado Matos na feitura de um programa para a RTP sobre a Cooperativa de Produção Agro-Pecuária de Barcouço que viria a ser posto no ar sem (praticamente) nenhuma colaboração deste cronista. No Dezembro da chuva miudinha tratava-se de olhar com mais tempo a vida de Barcouço e da cooperativa.

Alguns amigos da cooperativa de Sete Fontes, os próprios camponeses de Barcouço e os editores do presente livro sugeriram-nos que o fizéssemos. Ali voltávamos, pois, supúnhamos não serem necessários vinte anos para escrever uma crónica sobre Barcouço, tantos quantos Wilfred Burchet necessitou para escrever sobre a China em colaboração com Rewy Alley («La Chine une autre qualité de vie», edição François Maspero, já traduzido para português pela Europa-América). «O que faz falta» é conhecer este país chamado Portugal. Estamos em crer que muitos dos erros políticos (e crimes culturais no que respeita a editoras) cometidos após o 25 de Abril foram fruto em muitos casos da ignorância sobre o que é e o que quer este país. Sobre o que é este país real, e sobre o que ele realmente (revolucionariamente) quer. À passagem do tempo provou-nos que nem sempre será possível rodear-nos dos cuidados óptimos para escrever sobre o que se passa e é indispensável registar. Os dois anos que decorreram entre 25 de Abril de 74 e o mesmo mês de 76 podem ser perdidos pela simples inexistência de memória. Escrita ou falada. E muitos mitos se desfizeram neste período, que importa não ver ressuscitados. Sem prosseguirmos este discurso (não é essa a intenção do momento) cabe-nos dizer que aceitamos o risco do tempo (pouco). Quando íamos procurar o Joaquim num prédio em construção em Cavaleiros era para ficar uma semana e alguns dias em Barcouço e recolher o material que nos faltava para o atrevimento da escrita desta reportagem.

2 — «Não ficas em minha casa porque não tem condições. Falta a casa de banho, e não tenho cama para ti. Já pedi um colchão, mas ainda não veio.» Assim foi: ficámos na casa do Miro e da Ermesinda. Dois pisos — no inferior uma entrada ampla para a rua com a porta aberta todo o dia, e logo depois a sala com televisão, uma estante com rádio e quase sem livros, o fogão eléctrico e a gás, o frigorífico, a mesa e a lareira. Aí se faziam inúmeros serões com muita gente (quase sempre familiares e vizinhos também ligados à cooperativa) para ver o Sandokan ou mesmo o «Amante» do Bergman transmitido no segundo canal. No piso superior: os quartos de dormir, uma casa de banho, e uma sala de jantar mobilada a preceito. Os animais? Um burro, as ovelhas, as galinhas e três gatos iam vivendo num pátio exterior coberto e contíguo ao piso inferior. Eram assim todas as casas em Barcouço? Não se pode dizer isso. As pessoas que nos acolheram possuíam também um tractor (era o único sócio da cooperativa que tinha tractor antes de esta existir) e um aviário que a par da vinha ia dando para viver. O que descrevemos não é bastante para não adiantarmos mais. Assim: a zona é de pequena propriedade, e a maioria dos camponeses trabalha por conta de outrém na própria agricultura ou noutras actividades (serviços, construção civil, etc.).

Aqui não houve ocupações de terras. Para muitos portugueses a reforma agrária foi ocupação de terras e grande produção em 1976. Os jornais de direita propagandearam isto falando em «roubos de terras». Os jornais de certa «esquerda» falavam em reforma agrária enaltecendo os êxitos quantitativos da produção. Ora em Barcouço nem houve ocupações de terras nem houve grandes loas à produção. Ao contrário, e talvez por isso mesmo, a «reforma» aqui tenda para uma revolução que nem a CAP nem o 25 de Novembro fez até agora tremer. Não vamos escrever neste aviso prévio o que preenche as páginas seguintes deste livro. Basta que fique claro: o que vão ler é uma reportagem. Não há generalizações, como não há conclusões nem análises de classes. O leitor estudioso que procure isto pode pegar no Engels («A questão camponesa em França e na Alemanha» - ed. Centelha; ou as obras escolhidas de Mao Tsé-Tung - ed. Pequim; ou para o caso português as «Modalidades de penetração do capitalismo na agricultura - Estruturas Agrárias em Portugal-1950/1970 de Eduardo de Freitas, J. Ferreira de Almeida e M. Villaverde Cabral» - ed. Presença entre outros). À reportagem distancia-se do trabalho de investigação económica ou sociológica, embora tivéssemos elaborado um inquérito do qual não publicamos as respostas. É que não houve respostas. Neste caso registaram-se dois tipos de erro. O primeiro nosso: que lá deixámos o inquérito para preencher. O segundo dos camponeses de Barcouço que prometeram enviá-lo preenchido e nunca o fizeram. Poderia ter sido um elemento útil para este retrato de Barcouço, mas só podemos incluir nos anexos as perguntas que ficaram por responder.

3 — Algumas palavras mais: o que vão ler mesmo quando indicado no discurso directo não significa que estejam a ouvir as fitas gravadas que, então, recolhemos. Todo o material gravado foi trabalhado. Manipulado, sem qualquer receio do termo apesar da sua conotação direitista depreciativa. Não quisémos fazer um trabalho jornalístico neutro ou objectivo conforme a classificação dos especialistas do «Diário» ou do «Telejornal». Apostamos em fazer um trabalho informativo suficientemente amplo e aberto para servir de ponto de discussão aos camponeses de Barcouço ou a quem se der à tarefa de o ler. Um trabalho a quente, ele também com contradições. Utilizamos as impressões recolhidas nas visitas anteriores, alguns artigos do «Jornal Camponeses em Luta», publicação local copiografada de que só vimos três exemplares, e outros documentos; pelo que o grosso destas páginas é o resultado da estadia de uma semana e tal em Barcouço durante o mês de Dezembro de 1976. O que aqui vai escrito sobre Barcouço foi-nos ditado pelos camponeses locais: desde a cooperativa à sua vida extra-trabalho. Por isso nos permitimos afirmar: em Barcouço a «reforma agrária» é também a revolução (política) do quotidiano. Apesar de.

Um último recado: este livro não seria possível sem a colaboração estreita do Joaquim, da Ermesinda, do Miro, do sr. António, do Salvador, do David, e de outros camponeses cujos nomes agora não nos ocorrem. Vai por isso dedicado a eles, e à Gracelinda, Luísa, Regina, e Rui Belo que a seu modo (às vezes sem darem conta) também contribuiram da «margem da alegria» para o seu aparecimento. Resta desejar que este livro constitua um objecto de trabalho e de análise como o desejavam os camponeses de Barcouço e de Ourentã. Se assim acontecer atingiu os seus objectivos, porque quanto ao mais deu-nos muito prazer escrevê-lo.

JOSÉ A. SALVADOR
Queluz, em Fevereiro de 1977


Inclusão 14/06/2019