Camponeses de Barcouço:
Não vamos morrer agarrados à enxada

José A. Salvador


Ter ou não ter marido em Barcouço OU as razões porque os homens não apanham pasto fresco

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«Algumas mulheres falam nas reuniões, outras não.

Eu continuo à frente da comercialização, mas algumas também têm a mania que eu sou muito autoritária. Eu, às vezes, também... Sou eu e a professora, a D. Hermínia, a professora primária. Estamos a organizar o posto de vendas; nós as duas, o Quim e mais dois ou três. Fomos a umas fábricas de malhas em Coimbra, fomos a Souselas à fábrica do cimento, fomos à Adémia à fábrica de farinha, e à Triunfo em Coimbra, para comprar os géneros para o posto de vendas. A resina foi o Quim que tratou.

O trabalho do grupo de comercialização foi contactar só com estas fábricas, e ir a certas cooperativas para ver como elas trabalham. Já fomos a uma a Tentugal, outra a S. Martinho de Arbe, S. João do Campo, e foram ontem a Cruz dos Marouços. São tudo cooperativas de comercialização aqui à volta. Eles foram a uma do Alentejo, eu não.

A divisão do trabalho e das tarefas é feita sempre na reunião de sábado. As mulheres não trabalham na resina; não precisam. Não precisam porque têm mais que fazer, e os homens têm mais vagar que as mulheres. As mulheres têm mais vida para fazer. As mulheres têm a vida de casa, as mulheres têm de apanhar pasto para o gado, as mulheres têm de fazer tudo, tudo, tudo a par do homem. Só para a resina é que elas não vão.

Os homens cá não apanham pasto para o gado, não é porque fique mal, mas não foram habituados a isso.

O trabalho que calha às mulheres na cooperativa é ir trabalhar nas hortas. Temos bezerros. As mulheres que não têm cá os maridos, essas vão trabalhar para os bezerros, vão-lhes dar de comer. Agora as que têm os maridos, essas vão os maridos, elas não. As raparigas solteiras cá trabalham noutras avisas. Há uma ou duas e trabalham no escritório. São sócias. Os sócios solteiros não trabalham, mas em geral os pais é que vão, pois quem são os sócios são os pais.

Só tratam dos bezerros cá as mulheres que não têm os maridos: as viúvas ou as dos emigrantes. As que têm o marido, vai lá o marido. Os vitelos da cooperativa não precisam de pasto; só comem ração e palha. Só para as vacas é que as mulheres apanham pasto dois dias por semana. Para as vacas da cooperativa vai um grupo de três mulheres dois dias por semana; para a outra vez vão as outras. Os homens não apanham pasto porque aqui não foram habituados a isso. Chamam-lhes maricas... Mas se for com uma máquina já vão...

Não sou sócia. O meu marido é que é sócio, porque dizem que onde há homens não se confessam mulheres. Só as que são viúvas ou que têm os homens a emigrar, essas é que são inscritas mesmo elas; agora a gente não... Eles dizem que iam resolver o problema para a gente também... A gente assim não pode votar nem falar. Estou num grupo de trabalho da comercialização, mas foi escolhido por eles.

Na direcção só há homens. O grupo de trabalho da produção não tem mulheres a dirigir. Nas actividades culturais ou sociais também não. Na produção era o Carlos Nunes. Mas quem resolve os problemas é o Quim. Está tudo muito atido a ele; ele sabe mais e conhece mais gente. Embora ajudado pela gente, mas ele quase sempre é que resolve.

Entraram mulheres para sócias da cooperativa. Casadas, e casadas com emigrantes. E outras separadas até. A D. Alice está separada do marido e também para lá entrou. Ela tem muitas propriedades e não tem ninguém que as amanhe. Ou haviam de estar em pousio ou haviam de... É sócia de apoio. Às vezes vai às reuniões e também tem ajudado. Temos uns frangos até no aviário dela. Ela emprestou as casas para os frangos da cooperativa.

A cooperativa foi importante para as mulheres em Barcouço. Elas gostam muito de andar juntas umas com as outras. Antes também andavam juntas, mas menos. Por acaso são todas amigas umas das outras.

Agora são mais amigas e mais leais umas para as outras. Até mesmo os homens uns para os outros. As mulheres de Barcouço que não são da cooperativa dizem que as da cooperativa são comunistas. Deixam muitas de nos falar: outras não. Mas a gente sabe bem. Elas não ligam e a gente não liga também. Elas dizem adeus por favor e a gente diz adeus também.

Algumas têm mais dificuldades na vida. É por isso que muitas penderam mais interesse pela cooperativa. Elas não dizem mada; não falam de não receber. O que é, a gente bem vê que algumas precisam. Isto não se discute. Só se discute o trabalho: esta semana eu vou, mas para a semana tens de ir tu que eu não vou. Todas dirigem a equipa. Nenhuma manda, todas mandam, e dizem assim: aqui não temos patrões.

Há mulheres que não trabalham. Em certos serviços as mulheres fazem tanto como os homens. Noutros não sei. Só se for na resina que não façam tanto como eles... nunca experimentei. Muitos homens não queriam que as mulheres ganhassem tanto com eles. E havia mulheres também que não queriam. Eu cá acho que as mulheres devem ganhar tanto como os homens; porque elas a trabalhar fazem tanto como eles. Não tinha medo nenhum de trabalhar ao pé de um homem. Há mais mulheres que pensam assim. Depois havia a vingança: eles queriam dar-nos os trabalhos mais pesados, mas isso o que é que tinha?

Há homens que batem nas mulheres.

Há o jogo feminino também. As raparigas jogam futebol aqui. Isso é uma coisa que está muito ligada à cooperativa. O futebol e a cooperativa está tudo muito metido uma coisa na outra. Basta isto: assim que se arranjaram os autocolantes da cooperativa eles ofereceram-se de livre vontade para jogarem com aquele emblema da cooperativa nas camisolas em qualquer terra. Fizeram isso muita vez. Em alguns lados foram considerados os comunistas de Barcouço. O futebol feminino está também ligado à cooperativa. As pessoas gostam de ver as mulheres jogar futebol. Até mesmo as pessoas de idade.»


Inclusão 14/06/2019