Camponeses de Barcouço:
Não vamos morrer agarrados à enxada

José A. Salvador


«É tudo muito lindo, muito lindo, mas sem dinheiro as cooperativas não podem avançar»

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A reportagem que acabam de ler ilustra claramente o carácter colectivo que anima os camponeses de Barcouço apostados em levar por diante da sua cooperativa de produção agro-pecuária. Pensamos, todavia, que constituiria demagogia ou populismo ignorar que duas ou três pessoas, para não alargar demasiado o grupo, tiveram uma acção mais activa e determinante na realização deste projecto.

Entre essas duas ou três pessoas, que de resto preencheram com as suas opiniões as páginas deste livro, entendemos por justo destacar Joaquim Ramos e Silva, pequeno agricultor e carpinteiro da construção civil, que exerceu acção decisiva para o aparecimento da cooperativa.

De 29 anos, serviço militar cumprido, casado e já com um filho, Joaquim Ramos haveria de declarar-nos em Maio de 1976:

«Emigrar? Quando era solteiro pensei nisso. Depois de casar não fui capaz. Nasci e fui criado aqui. Eu gosto de trabalhar no campo. Mas como trabalhávamos não dava para nada. O meu pai foi para a Venezuela. Ganhou pouco com isso e nuncí mais cá voltou. A gente tem é que tentar fazer uma vida mais feliz. Trabalhar sim, mas para sermos todos mais felizes. Quando veio isto do socialismo pensei que devia ficar aqui na terra. O socialismo faz-se cá.»

Não emigrou, sobretudo quando apareceu «isto do socialismo.» A cooperativa pareceu-lhe ser um passo nesse sentido. Daí a sua aposta no esforço colectivo, e também a razão da entrevista que passamos mos a transcrever.

Da luta pelo preço da resina à luta pela cooperativa de produção

J. A. Salvador — Quando se fundou a cooperativa?

Joaquim Barreiros — A ideia da cooperativa nasceu da luta que o povo, que os agricultores de Barcouço, essencialmente os que têm resina, travaram para ver se conseguiam o aumento do preços da mesma. Nessa altura, o pessoal aqui da aldeia e até das aldeias vizinhas fez um plenário para discutir a questão do preço.

Salvador — Das aldeias vizinhas? Quais?

Joaquim — De Grada, Cavaleiros, e também de Sargento-Mor. De Santa Luzia não sei se veio alguém, mas creio que sim, embora menos gente porque a aldeia é mais pequena. Depois de muito discutir avançou-se numa reivindicação: 15%$00, por cada bica, contrato assinado ou pagamento no acto de começar a resinagem. Os intermediários e os indivíduos a eles ligados não aceitaram isto. As pessoas não quiseram ceder, e os pinhais ficaram todo o ano por resinar. Aproveitando esta movimentação e a união que se conseguiu com esta luta, foi numa dessas reuniões que eu lancei a ideia de se não seria possível fazer aqui em Barcouço uma cooperativa de produção. Uma cooperativa que seria feita com a união das terras.

Salvador — Essas reuniões em que data se realizaram?

Joaquim — Em Março de 1975. A mesma foi no dia 14 de Março. Foi precisamente nesta última reunião que foi lançada a ideia de uma cooperativa de produção que seria formada a partir da união voluntária das terras dos pequenos agricultores.

Salvador — Não houve ocupações de terras?

Joaquim — Não, não houve. À partir daquela reunião foi nomeada pelos agricultores presentes uma comissão pró-cooperativa que era constituída por três elementos: eu, o Miro, e o Salvador cá de Barcouço. Nós passámos a ir de terra em terra: a Grada duas vezes; ao Pisão; a Cavaleiros e a Adoões. Tentámos dinamizar as pessoas, formar núcleos cooperativistas, ou que elas formassem cooperativas nos moldes que atrás expliquei, através da junção de terras. Infelizmente o nosso trabalho não teve grande aceitação, nomeadamente em Pisão, Cavaleiros e Grada.

Salvador — Porquê?

Joaquim — Porque as pessoas são extremamente desconfiadas. Diziam-lhe que tudo o que era colectivo era comunismo. As pessoas aqui têm muito medo do comunismo; estão ainda dominada pelo caciquismo e não aderiram.

Salvador — Mas essas pessoas assistiram várias reuniões, ou não?

Joaquim — Assistiram às reuniões.

Salvador — E tinham intervenções?

Joaquim. — Sim. A gente discutia muito abertamente com as pessoas, e muitas aqui e acolá achavam a nossa ideia muito justa. Mas havia outros que diziam que o que se devia fazer era uma cooperativa onde se fosse levar os produtos, portanto uma cooperativa de comercialização. Nós fomo intransigentes neste aspecto e avançámos com a cooperativa de produção.

Salvador — Porque é que foram intransigentes?

Joaquim — Porque a comissão pró-cooperative e mais alguns elementos progressistas que depois se nos juntaram, achámos que só assim é possível a transformação da agricultura, só assim é possível passarmos do estado miserável em que as nossas terras estão para um estado mais próspero e para uma maior produção. Só com a união e formação de maiores lotes de terreno é possível a mecanização, culturas a mais baixo preço e aumentar a produção.

Salvador — Então, vamos cá ver: antes do 25 de Abril já tinha havido em Barcouço qualquer tentativa para constitur uma cooperativa? Segundo o que o senhor António me disse registou-se uma, quando se procurou aproveitar um decreto de Salazar que permitia criar adegas cooperativas por todo o país. Aqui em Barcouço algumas pessoas com vinhas tentaram criar uma adega. Todavia, alguém do Grémio da Lavoura de Coimbra se moveu, e a coperativa ficou em Souselas. Além dessa tentativa muito particular e para resolver o problema específico do vinho, verificaram-se outras tentativas antes do 25 de Abril?

Joaquim— A tentativa nunca chegou a ser esboçada; havia pessoas com os olhos mais abertos que falavam já numa cooperativa de comercialização que permitisse a colocação dos produtos. Isto já se falava, embora nunca ninguém tivesse levado a coisa a peito de modo a avançar na sua realização.

Salvador — O 25 de Abril facilitou que isso acontecesse ou não?

Joaquim — Pois. Foi precisamente o 25 de Abril que facilitou tudo. Entusiasmados com as cooperativas que iam nascendo por todo o país, nós tentámos dar também uma resposta aos nosso problemas, e dar uma achega para o avanço do processo.

Salvador — As outras pessoas que vieram do Pisão, de Cavaleiros, de Grada vieram também por causa da resina?

Joaquim — Vieram todos por causa disso. Depois nós é que fomos lá ter com eles.

Salvador — Quer dizer que se afastaram quando vocês decidiram que a cooperativa seria de produção?

Joaquim — Sim; tiveram medo de ficar sem os terrenos.

Salvador — Mas vocês não explicaram isso nas reuniões?

Joaquim — Explicámos que ninguém ficava sem nada.

Salvador — Já agora diz como funciona a ques- tão das terras em relação à cooperativa.

Joaquim — As pessoas alugam as terras à cooperativa. Nós procuramos alugar e aceitar todos os terrenos pegados para formar grandes áreas. Esses é que interessam fundamentalmente à cooperativa. Mas desde o momento que a pessoa tenha um aborrecimento qualquer e queira sair da coope- rativa a terra é-lhe cedida outra vez...

Salvador — Findo o contrato de arrendamento, não?

Joaquim — Sim; embora isso vá de facto prejudicar em certa medida a cooperativa, nós não queremos obrigar as pessoas a nada. Queremos que aceitem aquilo que é justo. Pretendemos fazer ver aos olhos das pessoas qual é o caminho certo. Se fossemos a não deixar tirar a terra a um indivíduo que quisesse sair agora, dizendo-lhe que não, a terra não sai, isso fazia com que nunca mais ninguém entrasse e até outros tentassem sair. Portanto, a terra será sempre propriedade do cooperador, e ele pode fazer dela o que quiser no final do contrato que a gente tiver com ele.

Salvador — Os sócios que cederam a terra tanto podem ser sócios de apoio como sócios trabalhadores?

Joaquim — Sim. Se ele cedeu a terra e não trabalhar, ou porque está velho, ou porque tem outro emprego, ou porque está no estrangeiro, é considerado como sócio de apoio. Se trabalhar é sócio trabalhador.

Salvador — E há também sócios trabalhadores que não cederam terras porque não as têm?

Joaquim — Há, pois.

Cooperativa de comercialização para certos casos

Salvador — Regressando um pouco atrás: em 14 de Março de 1975 é lançada a ideia da cooperativa; é eleita uma comissão pró-cooperativa. Que fez depois a comissão?

Joaquim — Nós promovemos as reuniões que eu já referi: em Grada, Cavaleiros, Pisão e Adões. Só em Adões é que nós conseguimos alguma coisa. Havia um grupo que queria aderir a nós, mas neste momento avançaram e já têm formada uma cooperativa de produção. É nos moldes da nossa, baseada na união das terras e transformação de terras de vinhas que vão ser destinadas a cultura.

Salvador — Perante essas reuniões e uma vez que as pessoas de Adões optaram por uma cooperativa autónoma, pode dizer-se que o grupo inicial que englobava pessoas de várias aldeias, ficou reduzido ao pessoal de Barcouço?

Joaquim — Sim: neste momento a Cooperativa de Barcouço só tem associados de Barcouço. Põe-se a hipótese de virem a aderir indivíduos de outras terras que não tenham terreno dentro da área a emparcelar. Mesmo para os que tenham terrenos, mas que não sejam rentáveis para a cooperativa, está-se a estudar a hipótese de poderem ser sócios que funcionam neste caso como sócios consumidores ou como sócios fornecedores de alguns produtos. Neste casos e para estas pessoas, que a gente não pode deixar abandonadas, a COBAR funcionará como cooperativa de comercialização.

Salvador — Isso já foi discutido nas reuniões de sábado?

Joaquim — Isso nunca se discutiu porque ainda a não chegou a altura. Ainda não abrimos o posto de vendas. Há simplesmente conversas a título particular sobre o assunto. Quando se abrir o posto de vendas estou convencido que vão aparecer muitas pessoas. Então, nessa altura, é que a coisa vai ser discutida a fundo e se verá.

Salvador — Vamos continuar em 1975: houve as reuniões, lançou-se a ideia da cooperativa. Quais foram as acções que se seguiram?

Joaquim — A seguir nós falámos com os técnicos...

Salvador — Com que técnicos?

Joaquim — Com os técnicos do SADA da Mealhada, e do IRA de Aveiro. Deram todo o apoio necessário.

Salvador — Que tipo de apoio?

Joaquim — Conselhos para organizar a cooperativa sobre a papelada que era preciso arranjar. Depois apareceram-nos uns rapazes amigos da Mealhada que deram uma ajuda boa: auxiliaram-nos a arranjar essa papelada toda que ninguém sabia como lidar. Arranjaram-nos também um advogado, e contabilistas que estão a orientar a escrita. Estes elementos têm-se mostrado muito válidos: arranjaram a papelada necessária que enviámos para Lisboa para a repartição de comércio e indústria a fim de registar o nome da cooperativa e constituir a sociedade.

IRA DE AVEIRO: fotografias aéreas para abater a reforma agrária

Salvador — Como se chama a cooperativa?

Joaquim — COBAR, cooperativa de produção agro-pecuária de Barcouço. Chegaram lá os papéis e passado tempos foram-nos devolvidos com uma carta dizendo que não era ali. A cooperativa devia ser legalizada na repartição de secção de agricultura de qualquer coisa, na Rua Rodrigues Fonseca, em Lisboa. Escrevemos para lá. Depois de algum tempo de espera, não atavam nem desatavam, aparece cá um técnico do IRA de Lisboa a dizer que não era assim; que se tinha de fazer de outra maneira, daqui e dali, e dacolá. Então avançou-se para um plano de produção, plano esse que os indivíduos do IRA de Aveiro só queriam fazer quando tivessem as fotografias aéreas. Pedimos as fotografias aéreas num ofício de 29-1-76 e essas fotografias só vieram em Junho ou Julho. Se estivessemos à espera das fotografias aéreas ainda hoje a cooperativa não estava organizada. Para se fazer esse plano de produção teve de se galgar por cima dos técnicos do IRA (Instituto da Reorganização Agrária) de Aveiro, e tiveram de vir cá os técnicos de Lisboa dizer como é que se fazia. Depois os técnicos do SADA da Mealhada vieram cá, calcaram o terreno, fizeram as respectivas medições, o respectivo cadastro dos prédios e avançou-se. Fomos reconhecidos como unidade colectiva de produção. Esta medida tinha como finalidade poder vir a obter-se crédito. A verdade é que os créditos nunca foram obtidos..

Salvador — Quando desenvolveram todas essas acções de carácter burocrático foram, entretanto, trabalhando ou não?

Joaquim — Fomos trabalhando. Primeiro comprámos logo um tractor em segunda mão. Para isso juntaram-se treze indivíduos que pediram o crédito agrícola de emergência de dez contos para entrar com eles. Houve três que não quiseram pedir o crédito e puseram directamente do seu dinheiro. A partir daí comprou-se o tal tractor, com umas charruas. Quando o pessoal viu o tractor a girar e a trabalhar começou a aderir e foi-se alargando o número de associados que iria formar a coope- rativa. Quando a legalizámos já havia quarenta e tal sócios. O tractor foi um incentivo. Foi comprado em Janeiro/Fevereiro de 1976.

Salvador — De Março a Dezembro de 1975 o que fizeram, então?

Joaquim — Tentámos convencer as pessoas a entrar para a cooperativa. Lutámos pela legalização que demorou bastante tempo. Fomos medir as terras todas: andámos por aí aos domingos, feriados e dias santos que a malta estava disponível. Medimos as terras todas: umas a metro, outras a passo. Fizemos mapas muito rústicos que até estão a servir agora.

Salvador — Nesse período só se procurou mobilizar as pessoas, legalizar a cooperativa e medir as terras. Mais nada?

Joaquim — Não. Não se tratou de mais nada.

A corrida dos partidos

Salvador — A partir de Fevereiro de 1976 aparece o tractor...

Joaquim — Aparece o tractor e depois aquela ajuda dos trabalhadores da construção civil de cem contos, que permitiu comprar a freza, e o atrelado. Nesta altura mobilizaram-se mais pessoas.

Salvador — Esse dinheiro veio do sindicato?

Joaquim — Do Sindicato da Construção Civil de Lisboa.

Salvador — Mas como é que eles vos deram essa quantia?

Joaquim — A informação apareceu-nos aqui através do técnico do SADA, Júlio Costa. Falando com o eng. Júlio Martins, de Lisboa, soube que o sindicato estava a apoiar a reforma agrária, e disse-nos para escrevermos para lá a fazer uma exposição. Fui eu que escrevi uma carta: expus qual era o objectivo e significado da cooperativa para dinamizar esta zona. Já apareceram duas cooperativas depois da nossa seguindo o exemplo de Barcouço. Depois de analisarem a carta que para lá foi enviada concederam-nos cem mil escudos. A partir daqui iniciou-se a tentativa das forças partidárias que queriam entrar no jogo. Os elementos do P.C.P. começaram a visitar-nos. Começou a haver solidariedade por parte dos homens ligados ao P.C. Evidentemente que estes acontecimentos fizeram com que se gerasse aqui no Barcouço, e na zona, a ideia de que nós éramos todos comunistas do P.C. Isto trouxe antipatia de muitas pessoas. Por exem- plo: o caso de alguns indivíduos do P.S., que eu considero indivíduos de direita, que se têm mostrado bastante hostis e também ajudaram muito a reacção contra a cooperativa. Dentro da coope- rativa a maior parte dos sócios votaram P.S., embora agora muitos já tivessem evoluído mais.

Salvador — Mas os sócios da cooperativa também foram hostis?

Joaquim — Não. Os associados não. Outros indivíduos que se dizem socialistas, mas que na prática não têm nada de socialistas.

Salvador — Na cooperativa há socialistas, há do P.C., da U.D.P., e havia do M.R.P.P. quando cá vim pela primeira vez.

Joaquim — Há tudo.

Salvador — E do P.S.D. também?

Joaquim — Não. Desses gajos não entrou cá nenhum. Só há indivíduos de esquerda.

Salvador — Mas porquê?

Joaquim — Eles não gostam das cooperativas.

Salvador — Ou vocês impediram os pê-pê-dês de entrar?

Joaquim — Não, não impedimos nada. Não veio nenhum porque não gostam das cooperativas.

Salvador — Estavas a referir a corrida do P.C, mas eu tenho hoje a impressão que a U.D.P. também fez e faz a sua corrida.

Joaquim — Quanto à U.D.P. Pois a U.D.P. também teve e começou logo o trabalho dela no início da organização daquelas reuniões por causa da resina. A malta não tinha sentido de organização: eles vieram cá e ajudaram, embora de boa verdade não se tivessem identificado como membros da U.D.P. Eu fui um indivíduo que no início simpatizava com a U.D.P., mas eles nunca nos disseram que devíamos votar na U.D.P. Não nos vieram ajudar para votarmos neles. Não senhor: isso cá nunca aconteceu. Nunca tentaram puxar as pessoas para o lado deles. Ajudaram na organização da cooperativa e a partir de certa altura afastaram-se. O único indivíduo da cooperativa que continua ligado à U.D.P., como militante, é filho de um cooperador: é um sócio de apoio, e tem desenvolvido bastante trabalho a favor da cooperativa.

Salvador — Refiro-me a este assunto por teres apontado a corrida do P.C.P. e eu ter tido ultimamente a sensação de também existir a corrida da U.D.P. Quando cá estive pela primeira vez foi muito claro por parte de diversos elementos da cooperativa que estavam dispostos a contrariar todas as tentativas de instrumentalização partidária da cooperativa.

Joaquim — Isso é verdade e a atestá-la está precisamente isto: as pessoas estão dispostas mais do que nunca a não se deixar arrastar por euforias políticas como já aconteceu. Posso aqui frisar o caso do Otelo. Algum pessoal mais revolucionário que está na cooperativa deixou-se arrastar... Depois a cooperativa foi apelidada pelas pessoas pró-Otelo. E não era a cooperativa, mas alguns associados. A cooperativa não está pró-ninguém. Simplesmente há grupos de indivíduos que estão pró-isto ou pró-aquilo, mas que no íntimo se entendem perfeitamente quanto ao objectivo final. Isto é que é muito importante, e isto é a verdade. Quem assistiu às reuniões pode ver em qualquer momento que toda a gente se entende perfeitamente bem, e que nunca houve discussões políticas lá dentro. Está actualmente fora dos nosso objectivos que isso venha a acontecer.

Da Lisnave a Vítor Louro e Lopes Cardoso

Salvador — Ainda os tractores: como aparece o vosso segundo tractor?

Joaquim — O segundo tractor veio em 6 de Junho de 1976. Era uma promessa que já vinha do Carnaval. Nessa altura, chegou cá um elemento do P.C. que nos disse que os operários do Alfeite já tinham oferecido um tractor a uma cooperativa qualquer, e que havia outros a tentar fazer o mesmo. Nós nem acreditávamos. Pensámos que era uma piada de Carnaval, mas depois» veio-se a concretizar tudo.

Salvador — Quem eram os operários que queriam fazer como os do Alfeite?

Joaquim — Eram os operários da Lisnave.

Salvador — Esse elemento do P.C. era da Lisnave?

Joaquim — Não. Esse homem é um militante do partido há muitos anos. É dos militantes mais velhos que eles têm. É da Mealhada. Ele veio cá dizer que havia essa perspectiva e talvez se conseguisse. De facto, passado uma temporada a CRARA (Comisão Revolucionária de apoio à reforma agrária) que funciona na rua Marquês de Valbom, em Lisboa, escreveu-nos a perguntar o que necessitávamos, e que fizéssemos uma exposição para enviar à comissão de trabalhadores da Lisnave. Mandámos para lá a exposição. Estudaram-na e decidiu-se que o dinheiro da campanha que eles estavam a fazer remetesse a favor da compra de alfaias para a nossa cooperativa e para outra de Montalegre. O que é certo é que a nós coube-nos o tractor, dinheiro para duas vacas, uma motosserra, um escarificador e umas charruas que só há dias cá chegaram. Tivemos uma ajuda muito boa dos trabalhadores da Lisnave: foi de facto extraordinário. Mas a respeito de ajudas não tivemos só estas. Os Nitratos de Portugal puseram à disposição do eng. Vítor Louro, que naquela altura estava à frente da secretaria de Estado da Agricultua, vinte toneladas de adubo. A secretaria entendeu que para nós seriam cinco toneladas. Foram-nos entregues os cinco mil quilos de adubo que foi também uma grande ajuda. Tivemos depois dinheiro dos profesosres comunistas de Aveiro, dos trabalhadores da Caixa de Previdência de Aveiro que ofereceram quantias entre os três e os cinco contos. Ultimamente tivemos uma oferta de professores da Faculdade de Letras de Coimbra que solidarizando-se com a nossa luta deram um dia de trabalho. Somou 14.500%00, se não estou em erro. Tudo isto tem sido extraordinário, e tem dinamizado a cooperativa, porque tem mostrado ao povo que o povo que se une em cooperativas tem outro povo pelo país fora que quer e apoia as cooperativas. A gente não se sente só.

Salvador — A propósito de Vítor Louro: ele veio cá?

Joaquim — O eng. Vítor Louro esteve cá. Viu alguns terrenos connosco, mostrámos-lhe o que queríamos fazer.

Salvador — O que é que ele disse? Apoiou? Não apoiou?

Joaquim — Ele disse que sim; que era muito importante se nós conseguissemos levar isto avante.

Salvador — Depois foi a vez do Lopes Cardoso como ministro...

Joaquim — Veio cá o Lopes Cardoso.

Salvador — Que vos disse?

Joaquim — Disse que o governo estava disposto a apoiar todas as iniciativas do género que nascessem no país, e depois de ouvir os nossos problemas foi-se embora.

Salvador — Que problemas?

Joaquim — Naquela altura ainda não tínhamos máquinas para fazer sementeiras; a papelada para obter crédito demorava meses, e portanto ia-se passar a época das sementeiras sem crédito. O que nós pedimos sobretudo é que as burocracias fossem de facto modificadas. Neste aspecto eu acho que á foram bastante. Agora apareceu aquele crédito novo que se pode pedir dinheiro até 1500 contos sem ser necessária essa papelada toda; basta ter fiadores ou hipotecar os bens. Isto já foi uma me- dida. Não digo que fosse tomada a nosso pedido, mas concerteza que havia mais pedidos iguais.

Salvador — Foi sentida ou discutida na cooperativa a demissão de Lopes Cardoso e a sua substituição pelo António Barreto?

Joaquim — Sim. A substituição do Lopes Cardoso veio-nos trazer muitas desilusões porque nós acreditávamos no homem. De facto, era agarrado a ele que eu considero que estariam muitos indivíduos do PS; e tanto é assim que as pessoas sentiram-se muito tristes. Assim como se sentiram muito tristes agora quando o SADA foi extinto, porque o SADA tinha-nos apoiado. Não sei se o SADA em alguns locais não apoiou, mas aqui trabalhou, e trabalhou bem. Tivemos reuniões até às tantas da manhã e eles estiveram aqui a trabalhar connosco. Vinham sempre que a gente os chamava. Devemos muito a eles termos avançado ao ponto a que chegámos. Se eles não fizeram mais foi porque não tinham meios ao seu alcance para fazer mais.

A crítica aos prejuízos do milho, da resina e da batata

Salvador — Retomando a conversa: já com o primeiro tractor e as alfaias compradas com os cem contos do Sindicato da Construção Civil o que fizeram?

Joaquim — Começámos a trabalhar. Semeámos milho porque já era bastante adiantado; a freza quando veio já era fora do tempo para semear aveias e aviões para seco. Semeámos milho só para experiência; até semeámos milho de mais, e isso fez com que a gente tivesse prejuízo, porque depois não foi possível arranjar meios nem água. À seca foi muito grande: nas terras altas o milho morreu todo; deu uma palhita e fraca. Nas terras baixas, nalguns sítios onde até havia água não foi possível arranjar recursos humanos nem materiais para conseguir acudir ao milho. Também não foi possível naquele momento organizar as coisas de tal maneira que se pudesse salvar tudo o que se tinha semeado. Houve um certo prejuízo por falta de organização, e por falta de meios humanos e mecânicos. Neste momento...

Salvador — Continua a história: semearam o milho...

Joaquim — Semeámos o milho; tirámos o curso de resinagem e começámos a trabalhar a resina.

Salvador— Como tiraram o curso de resina?

Joaquim — Quando chegámos a determinada altura do ano de 1976 escrevemos para as fábricas a perguntar se estavam interessadas na resina, pois queríamos explorar o pinhal por nossa conta. Os serviços florestais foram alertados também. Vieram cá técnicos a dizer que era possível fazer-se um curso de resinagem. Nós aceitámos a ideia; achámo-la muito boa. Apareceu pessoal para frequentar O Curso e fez-se o curso.

Salvador — Quantos frequentaram o curso?

Joaquim — O curso era para 14 pessoas, mas depois desistiram duas à última hora. Tiraram o curso doze. Começámos a trabalhar a resina.

Salvador — Em terrenos que se juntaram?

Joaquim — Só trabalhámos a resina em pinhais dos associados. Houve também muita dificuldade e aqui tivemos também prejuízo.

Salvador — Mas vocês já calcularam que resultou prejuízo?

Joaquim — Já, embora não se possa dizer quanto. Nós tentámos comprar os púcaros, mas os púcaros demoraram cerca de um mês a mais do que aquilo que nós queríamos. Não sei se foi de propósito, se houve má vontade do dono da fábrica, se houve má ligação com a fábrica. Logo aí houve um prejuízo porque a gente não pode começar o trabalho tão cedo como seria de desejar. Por outro lado, nem todos os indivíduos que resinaram têm uma consciência perfeita daquilo que fazem, e o que acontece é que muita resina caiu no chão por falta de uma pequena latinha ou por falta de uma pequena apara de madeira. Ao princípio aconteceu que muitos púcaros se viraram por má colocação. Todas estas coisas aprendemos agora. Outras bicas foram mal metidas e a resina escapava-se entre o pau e a lata. São defeitos...

Salvador — Como pensam resolver esses problemas de carácter técnico?

Joaquim — Esses problemas vão ser resolvidos automaticamente pela própria crítica que cada um fez ao trabalho realizado. Já verificámos que todos errámos. Para o ano vamos procurar não cometer erros, mas vamos fazer mais. Este ano o pessoal era dividido em grupos de dois ou três, e ia hoje um dia para aqui, depois já ia um dia para outro lado, na semana seguinte para outro lado ainda. Acabava por correr todos os pinhais que temos. Isso faz com que os indivíduos não cheguem a conhecer perfeitamente as áreas e não cheguem a conhecer perfeitamente as árvores. Porque há árvores que é preciso conhecê-las: umas dão mais, outras dão menos; umas querem melhor aproveitamento, outras pior. Para o ano vamos fazer grupos, mas o mesmo grupo de dois ou três toma conta duma área e trata-a do princípio até ao fim da época. Para o outro ano esse grupo já pode ir para outra área. Acabamos por conhecer tudo a fundo mas com melhor aproveitamento, porque temos tempo de conhecer a árvore e nunca é tão fácil deixar pinheiros para trás por renovar. Este ano ficaram muitas árvores para trás por resinar. Isso faz com que aliado ao mau ano o resultado ainda fosse mais baixo do que se previa.

Salvador — A recolha da resina está praticamente no fim. Vocês entregam-na a uma fábrica da Figueira da Foz. Como foi negociada a venda? Foi tratado pela comissão de comercialização?

Joaquim — Este assunto estava a cargo do grupo da resina, embora depois me tivessem encarregado a mim e ao Zé Luís para contactar as fábricas. Só o Gameiro é que respondeu. Veio cá o encarregado da fábrica e disse-nos que a resina estava a um preço bastante baixo e tal, desta maneira e daquela. Nós estivemos quase para desistir nessa altura. Passou uma temporada: começou a haver levanta- mento ao boicote que estava a ser feito à saída da resina. O homem voltou cá e disse-nos que ele e o tio dele apoiavam as cooperativas de resina, e que embora muitos industriais não quisessem comprar às cooperativas, eles queriam comprar às cooperativas. Se pudessem pagar um preço bom, em melhor em relação a alguns intermediários, que o fariam. Disse-nos que o preço da resina era a 9$00 a bica sujeito a aumento. Neste momento não sei se aumentou ou não. Ainda tentámos contactos com outras fábricas mas todas ofereceram preços inferiores. O máximo era 7$50.

Salvador — Como vos paga a fábrica da Figueira?

Joaquim — É por épocas: de vez em quando lá vem um cheque. Só no final é que se vai acertar as contas. Nós comprámos o dobro do material que necessitamos. Foi outra asneira tremenda. Inicialmente supúnhamos que íamos resinar os pinhais de mais gente; mas como nós marcámos uma posição bem firme de que só seria sócio quem quisesse entregar a terra, muitas pessoas tiveram medo e não entraram. Foram contactados os agricultores todos, fizemos um balanço, mas tivemos de desistir desse balanço quando já tínhamos comprado o material. Precisamente o dobro do material necessário.

Salvador — Esse material é utilizável, ou não?

Joaquim — Vai ser utilzado. A gente não perdeu dinheiro com isso. Simplesmente neste momento o dinheiro fazia falta, e está ali parado.

Salvador — Quando falas em prejuízo estás a contar também com o dinheiro correspondente aos salários?

Joaquim— A gente não conseguiu arranjar dinheiro para pagar os salários.

Salvador — Mas quando dizes: se calhar a resina deu prejuízo, contas os púcaros, os prezos, o ácido, as ferramentas e contas o trabalho?

Joaquim — Eu conto tudo. Mas a resina não deu prejuízo. Quando falo de prejuízo refiro-me ao mau aproveitamento. A resina não dá prejuízo. Simplesmente a gente não vai conseguir competir com os preços que os outros intermediários prometeram. O preço a que a resina vai sair para a cooperativa não pode atingir o preço dos indivíduos que não são da cooperativa e alugaram os pinhais a intermediários. Os particulares vão receber mais que a cooperativa, porque os intermediários pagam o preço que prometeram no início da época, e mesmo que o ano seja mau para eles já ganharam muito outros anos que agora vai dar para cobrar. Quando digo prejuízo é em relação ao que os intermediários vão pagar.

Salvador — Quanto pagam os intermediários?

Joaquim — Creio que eles vão pagar entre 9$00 e 10$00 por bica. A nossa não pode sair a esse preço. É totalmente impossível.

Salvador — Não baixa dos 9$00 de qualquer maneira?

Joaquim — Baixa, baixa. Ainda não estão feitas as contas, mas posso já dizer a certeza que vai ser menos de 9$00. A não ser que eles ainda subam na fábrica...

Salvador — Mesmo descontando a amortização dos materiais e o pagamento dos salários as pessoas ainda vão receber dinheiro pela resina?

Joaquim — É entregue dinheiro às Pessoas.

Salvador — E os salários?

Joaquim — São pagos, embora as pessoas estejam na disposição de deixá-lo na cooperativa por uma temporada.

Salvador — Como é que vocês fizeram a crítica ao trabalho que desenvolveram durante este tempo? Foi em grupo ou foi individualmente?

Joaquim — Esta crítica até aqui tem sido feita individualmente. Todos os chefes de grupo vão arranjar um plano, umas teses para serem discutidas em assembleia, e para dizer claramente às pessoas o que é que se passou, porque é que não se produziu mais, porque é que se teve prejuízo nuns lados e noutros lucros. A forma como remediar esses casos todos vão ser apontadas pelos chefes de grupo dentro duma destas próximas semanas. Apesar da resina ser o sector mais bem organizado, ainda houve erros. Vamos fazer uma autocrítica ao trabalho. Isto está aceite que se vai fazer, e vai fazer mesmo. Os chefes de grupo vão criticar o trabalho que realizaram, as asneiras que cometeram e as que deixaram cometer.

Salvador — Além da exploração da resina, e do milho vocês plantaram batatas?

Joaquim — Essas batatas tiveram a ajuda de trabalhadores de Setúbal. Veio cá uma excursão de indivíduos que deram o seu contributo trabalhando no campo.

Salvador — Eram operários?

Joaquim — Operários que semearam batata com a ajuda de trabalhadores cá da cooperativa. Creio que as batatas também deram prejuízo. Não estou bem a par disso, mas segundo ouvi dizer lá no escritório tinham dado algum prejuízo. O ano foi muito mau: não havia água para as regar e elas produziram metade do que haviam de produzir

Viver do vinho e «de» patrões para a cooperativa não morrer

Salvador — Ó Joaquim vamos cá pensar: se o milho deu prejuízo, se a resina não deu o que esperavam, se as batatas vão dar prejuízo, se as pessoas que trabalharam não receberam salários durante estes meses todos, embora o seu trabalho tenha sido contabilizado, de que viveram as pessoas?

Joaquim — As pessoas ficaram com umas pequeninas hortas, onde têm as suas hortaliças e as coisas necessárias para comer. Por outro lado, as pessoas aqui na nossa cooperativa são quase todas pequenos agricultores, e muitos deles tão pequenos que não têm que fazer todos os dias da semana nas suas terras. Assim, apesar de irem trabalhar um dois dias para a cooperativa ainda vão trabalhar para outros indivíduos que lhes pagam.

Salvador — Na agricultura ou noutras actividades?

Joaquim — Na agricultura e noutras actividades, porque nós temos carpinteiros, temos pedreiros dentro da cooperativa. Além disso têm vinhas.

Salvador — Todos os sócios têm vinho?

Joaquim — Todos têm um bocado de vinho, que é entregue na adega de Souselas. Com este dinheiro eles conseguem governar-se durante o ano. Claro que há alguns que chegam ao fim e já não têm: ficam a dever. Muitos passam dificuldades e vivem extremamente mal. Aguentaram de cara alegre, e estão dispostos a aguentar ainda mais.

Salvador — Além de carpinteiros, pedreiros, mestres de obras, um empregado numa bomba de gasolina, e de pequenos agricultores quem pertence mais à cooperativa?

Joaquim — Há também um empregado de escritório que ajuda na escrita, e estudantes que ajudam nas férias. Os que são filhos de trabalhadores trabalham também. Temos aí bons trabalhadores-estudantes.

Salvador — Entretanto na reunião de ontem anunciaram que iam tentar pagar salários a partir de Janeiro de 1977. Para isso vão contrair um empréstimo?

Joaquim — Já disse que o dinheiro dos salários vai ficar na cooperativa até que haja possibilidades de os poder pagar. Neste aspecto estamos todos de comum acordo. Isto não se pode prolongar indefinidamente. As sementeiras vão ser feitas agora e até vendermos os produtos temos de pagar ao pessoal. Porque de facto há pessoal em tão precárias condições que não pode esperar mais tempo. Além disso também é um incentivo para certas pessoas que só gostam de trabalhar quando vêem dinheiro. Nós esperamos com esta medida dar também mais incentivo às pessoas que trabalham com vontade e não terem medo pensando: vou para lá e não me dão nada.

Salvador — Onde vão arranjar o dinheiro?

Joaquim — O dinheiro tem de ser pedido ao banco, e vamos utilizar precisamente este crédito mais fácil que agora se abriu, e pode ir até sete anos. É um juro de 5,5 por cento no primeiro ano, depois 6,5 por cento até ao quinto, e depois 7,5 por cento até ao sétimo ano. Temos de ir para este, porque é o mais rápido de que podemos lançar mão. Para amortizar isto contamos de facto com a produção.

Salvador — Quanto ganha um homem?

Joaquim — Ganha 170$00 e a mulher ganha 150$00.

Salvador — Quantas horas por dia de trabalho?

Joaquim— Não há limites de horas ainda. Nesta altura há dias em que se trabalha seis ou sete horas, mas também no verão se trabalha depois dez e onze horas. Para a resina faz-se por zonas. Neste caso, cada indivíduo tem de fazer um xis por dia. Ora se ele fizer mais depressa fica com o problema dele resolvido.

Salvador — Há prémios de produção?

Joaquim — Não, neste momento ainda não há.

Salvador — Mas já se levantou essa hipótese?

Joaquim — Não se levantou hipótese nenhuma. O pessoal tem mais ou menos correspondido bem. Só não temos já uma situação razoável, porque o ano foi muito mau. Doutra maneira eu tinha a certeza que não tínhamos tido prejuízo. Não ganhávamos muito, mas não teríamos nenhuma perca.

A «eterna» vingança dos homens sobre as mulheres: nem na cooperativa os salários são iguais

Salvador — As mulheres também vão à resina?

Joaquim — Já têm ido excepcionalmente. Aqui as mulheres não vão. Quando se tentou que os ordenados fossem iguais houve uma forte oposição por parte dos homens que não queriam essa igualdade. Uma vez que eles não queriam que os ordenados fossem iguais, eu também acho e muitos homens também acharam, que elas não tinham nada que ir para a resina. Se não lhes pagavam igual, não iam.

Salvador — Qual era a posição das mulheres em relação à resina?

Joaquim — Muitas não queriam ir para a resina.

Salvador — E quanto aos salários?

Joaquim — Muitas também não queriam.

Salvador — Não queriam receber salário igual?

Joaquim — Não. Aí é que está o problema: elas não se importavam em ficar igual, mas logo os homens começaram a tentar nomear as mulheres para os serviços mais pesados que se possam imaginar. Isso pareceu um bocado estranho, um bocado esquisito...

Salvador — Mas isso não foi discutido?

Joaquim — Foi discutido. Discutiu-se bastante. Depois tivemos que acabar com a discussão; estávamos a ver que aquilo gerava mais confusões. E as mulheres voluntariamente disseram: «Não, não. A gente continua na mesma como se fosse lá fora, e está o assunto resolvido. A gente também não quer ir para os serviços em que eles nos querem pôr. Portanto, preferimos ficar como estamos.» E pronto: passou-se uma esponja sobre o assunto. Está assim até que um dia se volte a levantar a questão.

Salvador — Pensas que se vai levantar outra vez?

Joaquim — Vai, mas eu não sei: talvez nunca se consiga de facto o salário igual. Há pessoas muito antigas que toda a vida viveram assim, e dizem que tem de ser assim. Também há mulheres que de facto não podem fazer os serviços que os homens fazem.

Salvador — Mas o papel das mulheres na cooperativa foi importante ou não?

Joaquim — Sim, acho-o positivo. Há muitas mulheres que até têm entusiasmado muito os homens. Nalguns casos tem partido das mulheres a entrada dos maridos para a cooperativa.

Salvador — E os jovens?

Joaquim — A juventude teve muita influência. Houve muitos homens que entraram influenciados pelos filhos.

Não houve trabalho cultural

Salvador — Os estudantes além de trabalharem no campo desenvolveram actividades sócio-culturais? Ou falharam neste aspecto?

Joaquim — Não falharam embora não desempenhassem essa tarefa como propusemos. Nomeámos um grupo de acção cultural. O grupo não conseguiu passar de ser nomeado, e fez muito pouco.

Salvador — Das três vezes que já cá vim, creio que a cooperativa tem falhado nesta questão...

Joaquim — Falhou bastante. Tem que se pensar noutro grupo constituído por gente mais nova.

Salvador — Inclusivamente o grupo de teatro que havia, foi tomado pelo G.D.U.P. que acabou por não fazer nada.

Joaquim — Estão agora a reestruturar o teatro para tentar avançar. Já fizeram uma peça ou duas, e estão neste momento a preparar uma peça sobre os problemas que se põem dentro da cooperativa.

Salvador — Quais são os problemas, então?

Joaquim — Os problemas todos que eu disse: uma má orientação, uma má preparação técnica, enfim o desconhecimento de muitas causas que promoveram esses erros todos. Eles agora vão tentar mostrar isso às pessoas através da comédia. A parte cultural falhou muito. Os dois filmes que já cá passaram foram trazidos por serviços técnicos. Eram sobre cooperativas e sobre problemas do campo.

Organizar para não repetir os erros e aumentar a produção

Salvador — Perante os erros já apontados, gostava de saber se pensaram como organizar as coisas para o próximo ano. Algumas pessoas disseram-me haver por parte de alguns associados um certo desinteresse em relação à cooperativa, pois mostravam-se pouco empenhados no projecto. Todavia verifiquei que ao sábado continua a ir às assembleias o mesmo número elevado de sócios, facto que constitui um bom sintoma. Não há decréscimo de pessoas a ir às reuniões, mas pressinto que a cooperativa está num ponto em que ou dá um salto em frente, ou recua muito para trás até estoirar. Para uma pessoa que está de fora como eu o problema central que se me apresenta é o da organização.

Joaquim — É.

Salvador — Um exemplo para ilustrar o que afirmo: muitas vezes as pessoas não sabem as tarefas que lhes cabem por escala; noutros casos se está mau tempo também não sabem o que hão-de fazer. Ficam em casa; no dia seguinte já não lhes cabe o serviço segundo a escala. Ficam novamente sem ter que fazer. Que acontece? Por falta de organização ou por falta de tarefas para cumprir as pessoas vão-se desligando, vão-se desinteressando e desmobilizam-se. Que pensas disto?

Joaquim — Isso é um problema que a gente já viu. Assim, vamos tentar organizar as pessoas por grupos com um indivíduo de confiança à frente. Isto já está feito: foi a primeira medida que tomámos para organizar o trabalho.

Salvador — Explica melhor. Antigamente havia o grupo de comercialização, o grupo de produção, o grupo da resina, e o grupo de acção cultural. Estes grupos ainda existem?

Joaquim — Esses grupos existem todos. O que acontece é o seguinte: o grupo da produção foi desdobrado, porque o homem sozinho que era responsável não podia resolver todos os problemas. Com esse desdobramento agora existe um grupo que vai tratar das hortas (estuda a sementeira das hortas e o seu tratamento); outro grupo vai tratar das batatas; um terceiro grupo a cargo do chefe actual da produção vai continuar com a parte dos cereais, nomeadamente com o milho pois já ganhou uma relativa experiência. Para estas coisas todas o pessoal que estava nomeado faltava muitas vezes, porque dizia que não sabia a escala. Então, o que é que se fez? Dividiu-se o pessoal por grupos de cinco ou seis indivíduos, e faz-se uma escala por dois meses ou três, de tal modo que cada grupo calha a trabalhar sempre ao mesmo dia de semana. Assim, cada pessoa já sabe que no dia tal da semana vai sempre para a cooperativa. Agora os chefes de cada grupo de produção requisitam o pessoal e vão pô-lo onde for necessário. Na campanha da resina o pessoal foge todo para esse serviço, menos as mulheres.

Salvador — Os grupos organizam sozinhos a produção para o próximo ano ou têm a colaboração de técnicos.

Joaquim — Os grupos reunem com a direcção da cooperativa para discutir os problemas e escolher os terrenos a semear. As vezes pedimos a opinião aos técnicos agrícolas. Noutros casos não. Para as culturas tradicionais nós sabemos melhor que os técnicos como elas se fazem.

Salvador — Então que planearam para o próximo ano?

Joaquim — Para o próximo ano a sementeira de batatas já está estudada com bastante antecedência. Já escolhemos as terras. Sabemos que vamos ter água, e estudámos uma forma diferente de as cultivar de maneira a poder aumentar a produção e consequentemente tapar os prejuízos da sementeira passada. Vamos semear cerca de três vezes mais do que o ano passado, e já temos tam- bém o escoamento assegurado. Temos muitas favas semeadas, e vamos semear ervilhas. Isto tudo para vender em verde. Vamos também semear sementes para tirar fenos: aveia, aviões, ervilhaca. Necessitamos muito desse pasto seco para a engorda dos bezerros.

A cooperativa hesita entre a Junta dos Produtos Pecuários e os talhantes

Salvador — Quantos bezerros têm?

Joaquim — Neste momento temos só treze. Eram quinze, mas morreram dois. Morreram também três vacas.

Salvador — Para leite?

Joaquim — É para leite.

Salvador — E vendem-no?

Joaquim — O leite é para os associados. Uma já vai parir este mês, e outra no mês seguinte.

A terceira não sabemos se está cheia ou não; parece ter uma deficiência qualquer. No primeiro ano queremos especialmente ter leite para os associados. No segundo ano talvez seja possível a cooperativa lançar-se para um estábulo de vacas. Há um projecto, e estamos à espera de um subsídio para a construção de um viteleiro que rondará as cinquenta cabeças. Estes para engorda. Mas só no segundo ano de laboração da cooperativa é que se irá fazer a respectiva vacaria, porque só nessa altura é possível fazer face a muitos obstáculos que estão à nossa frente: temos de fazer sementeiras para pasto para as vacas. Por isso não podemos aumentar o número de vacas leiteiras nesta altura, embora o objectivo da cooperativa também seja ir até às vinte.

Salvador — A quem vão vender os bezerros.

Joaquim — Estes que nós temos vão ser entregues à Junta Nacional dos Produtos Pecuários. Os próximos vamos comprá-los directamente aos produtores, quer indo às feiras, quer indo às casas deles, ou até a outras cooperativas, procurando bezerros de melhor raça para engorda. Esses depois irão ser vendidos ou à Junta ou a talhantes. É que O que acontece é o seguinte: isto é tudo muito lindo, muito lindo, mas sem dinheiro as cooperativas não podem avançar. Por vezes, a Junta paga a um preço bastante inferior àquele por que paga um intermediário: um talhante, por exemplo. Por outro lado, verifica-se que a carne nos talhos não fica mais barata pelo facto de ser morta pela Junta. Isto é que é uma triste realidade. Uma vez que a gente não tem talho para poder abater e vender directamente ao público mais baratinho, então há que discutir o problema. Pelo que já escutei as pessoas dizem que se alguns bezerros fossem vendidos aos feirantes davam mais dinheiro que na Junta. A Junta tem de arranjar novas formas para ajudar os agricultores e as cooperativas a fim de lhe ser entregue toda a produção. É muito melhor que andar por aí nos intermediários. O problema do dinheiro é um factor muito importante e que pesará muito na balança da decisão. Tudo depende das medidas que o Governo tomar: ou as cooperativas entregam todo o gado à Junta, ou aos intermediários.

Salvador — Têm tido reuniões com outras cooperativas para discutir e analisar estes problemas?

Joaquim — Nas reuniões com cooperativas de produção estes problemas ainda não foram muito discutidos. Só temos duas cooperativas de produção aqui nesta zona.

Salvador — Quais são?

Joaquim — «Ourentã/Sete Fontes/Camponeses Unidos», e a dos «Adões». Dentro de pouco tempo vamos tentar reunir as três cooperativas para discutir os problemas que nos estão aqui a afligir já. Para a obtenção de gado teremos de avançar mais para o sul.

Salvador — Vocês têm relações com cooperativas ou unidades colectivas de produção do Alentejo?

Joaquim — As nossas relações não têm sido praticamente nenhumas...

Salvador — Mas têm visitado cooperativas.

Joaquim — A única relação que temos é com a cooperativa de produção da Árgea. Foi a primeira que visitámos. Está mais pertinho. Têm meios de transporte para vir cá, e vêm muitas vezes. Lá mais para o sul ainda não temos contactos. À cooperativa «Sete Fontes» é que tem um contacto com a «1.º de Maio», em Avis, que até nos enviou para cá uma quantidade de palha a um preço extraordinário. À um preço de amigos. Temos interesse em alargar o nosso conhecimento lá para baixo: ir lá um dia assistir a plenários que façam; estar mais unidos a eles para discutir os problemas que afligem a todos.

À confiança entre os sócios «substitui» as estruturas de comercialização

Salvador — Entretanto já comercializam produtos com a cooperativa «Che Guevara». Como fazem isso? São somente produtos da cooperativa de Barcouço ou também de particulares?

Joaquim — Os produtos são todos da cooperativa de Barcouço embora parte deles não seja produzida colectivamente. Alguns são de pequenas propriedades individuais que ficaram fora da cooperativa.

Salvador — Mas são produtos de associados?

Joaquim — Sim.

Salvador — Esses produtos, então, não foram tratados colectivamente?

Joaquim — Não, alguns não foram. É o caso dos ovos, por exemplo.

Salvador — Qual é o problema dos ovos?

Joaquim — A cooperativa «Che Guevara» propunha-se tirar inicialmente mil dúzias de ovos. Depois dois mil, e dentro de pouco tempo quatro a cinco mil dúzias por semana. A cooperativa não podia satisfazer estas quantidades, mas os agricultores acharam uma ideia boa. Os produtores de ovos sócios da cooperativa iam abandonar os intermediários, mas o que é certo é que tiveram medo. Até agora ainda não se decidiram. A não ser o Miro, que parece em vias de resolução. Há esperança da coisa ir para a frente, o que é muito importante porque além de levarem os ovos vão levar outros produtos nossos.

Salvador — Eles pagam à semana?

Joaquim — Levam numa semana e pagam na seguinte. Os produtos em Lisboa têm possibilidade de ser melhor vendidos, e beneficiam as duas partes: pagam-nos melhor que os intermediários, e também vendem mais barato ao público.

Salvador — Uma coisa que verifiquei: as pessoas chegam a casa da Ermesinda, deixam lá os géneros e ninguém controla...

Joaquim — Não; está tudo controlado.

Salvador — Como?

Joaquim — As pessoas poisam os géneros e dizem quanto é que têm. Depois eu faço uma conta-corrente..

Salvador — Então há relações de confiança?

Joaquim — Pois há. Isso é extraordinário: ninguém desconfia.

Salvador — Como desfizeste este engano de seiscentos paus que agora apareceu? À associada diz que lhe falta essa quantia.

Joaquim — Ela diz que não recebeu. Mandei-a contar o dinheino, e acredito que não tivesse recebido. Admito que eu me tivesse esquecido. Confio na mulher, porque se perdesse um dinheiro, perdia o outro. Quando chegar ao fim se eles me faltarem a mim digo: «olha que não, tu recebeste-os, pá. Perdeste-o porque faltou.»

Salvador — Se houvesse uns recibos isso não era resolvido?

Joaquim — Eu tenho um apontamento com a conta de cada um. Ela é que, como confiou, não conferiu o dinheiro, e eu no meio da reunião posso ter falhado. Pode acontecer mais vezes, mas ao fim e ao cabo quando chegar ao fim o dinheiro tem de estar certo. Estava certo quando veio, tem de estar certo quando é entregue aos associados.

Salvador — Vocês só vendem à cooperativa «Che Guevara»?

Joaquim — Não. Já começámos a vender ovos à Cooperativa de Consumo da Cruz dos Marouços, de Coimbra. Estamos a tentar fazer uma união com mais cooperativas de consumo que possivelmente nos irão comprar produtos. Queremos alargar as nossas vendas a cantinas de fábricas, creches ou comissões de moradores, e só em último caso iremos para os mercados públicos.

«Das contradições no seio do povo»

Salvador — Uma última questão: ontem na reunião um sócio referiu que é preciso fazer um desbaste na cooperativa. O que significa isso e onde vai chegar? Discordo bastante dos métodos administrativos para resolver contradições...

Joaquim — Ao fim de algum tempo verificou-se que há indivíduos que estão na cooperativa por oportunismo.

Salvador — Muitos ou poucos? 50 ou 49?

Joaquim — São poucos: uma meia dúzia se tanto. A única coisa que os leva lá, é tentar tirar qualquer coisa, e alheiam-se de qualquer problema que a cooperativa possa ter. Ainda mais: faltam com facilidade aos serviços para que estão escalados, e põem em primeiro lugar o trabalho individual. Acham que é mais importante a tarefa pessoal, e deixam a da cooperativa.

Salvador — Mas eu lembro-me, inclusivé numa das reuniões a que assisti, que vocês diziam que perante a impossibilidade de a cooperativa pagar salários, haveria que coordenar as tarefas individuais, nomeadamente quando fossem trabalhar por conta de um patrão, e os interesses da cooperativa. Agora falas-me num tom diferente...

Joaquim — Não. Isso continua, mas mesmo assim as pessoas ainda faltaram. Para essas está-se a estudar a hipótese ou de os educar...

Salvador — Isso é semelhante ao que disse o Eduardo Pires no Congresso dos GDUP's a propósito da pequena burguesia...

Joaquim — Ou se eles não se educarem temos de criar as condições para que eles se sintam mal... e a gente lhes diga: «olhe você não cumpre.»

Salvador — Não têm dito às pessoas que o seu comportamento não é correcto?

Joaquim — Tem-se dito.

Salvador — Em assembleias?

Joaquim — Sim.

Salvador — E elas que respondem?

Joaquim — Ai, tinha de ir ali, tive de ir acolá. Já dissemos várias vezes que para se ser bom cooperativista tem que se pôr os interesses da cooperativa ao mesmo nível dos interesses particulares. Já não digo que se ponham acima, mas se as pesSoas não conseguirem chegar àquele ponto naturalmente deixam de ser sócios-trabalhadores. Queremos construir uma obra. É necessário operários para essa obra. Se os operários falham não é construída. Portanto, temos de escolher operários que não falhem. Isto é que é lógico. Os que não querem, poderão ficar sócios-consumidores.

Salvador — A criação das tais más condições não abre caminho a que em qualquer momento uma pessoa possa ser posta na rua a pretexto de que não fez isto ou aquilo?

Joaquim — Não é ser posta na rua; é sair das escalas de serviço. Se ela faltar uma vez e lhe for dito publicamente que cometeu um grave erro, que não deve voltar mais a fazê-lo, e se continuar na mesma, não serve. Há pessoas que não se importam: tanto lhes dá que as coisas cheguem aqui como acolá. Ora isso não pode ser assim. Tem que se tomar um pulso rijo. Tem paciência, pá. Tem que haver lá homens que tomem a peito, e façam uma disciplina rígida, em que sejam os primeiros a cumprir para os outros voluntariamente a aceitarem. A disciplina tem de partir dos indivíduos que estão à frente dos grupos. Temos de dar mostras de que realmente queremos avançar, porque senão há indivíduos que não avançam nada. Nunca fizeram nada, nem nunca farão nada na vida. Andam aqui por andar, mais nada.


Inclusão 14/06/2019