Camponeses de Barcouço:
Não vamos morrer agarrados à enxada

José A. Salvador


De como a poluição ou os mistérios podem destruir o azeite e o fascismo instalar-se nas adegas cooperativas

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«A actividade agrícola principal aqui no lugar é o vinho. O resto praticamente é para auto-consumo: o milho, a batata (ainda se vende alguma, às vezes), e o azeite. O azeite agora é só para consumo porque as oliveiras baixaram de produção assustadoramente. Isso deve-se à falta de cultivo. Há muita oliveira que não se cultiva, devido à escassez de pessoal. Antigamente punha-se estrume, tratavam-se das coisas a tempo. Também há qualquer coisa que não percebemos, porque mesmo as oliveiras em sítios bem amanhados, com pujança, não dão. É o clima? Fala-se da poluição, dos aviários, da celulose. Há qualquer mistério. Os ventos predominantes do norte trazem gases da celulose de Cacia. Há quem diga que os cheiros nauseabundos das baterias dos aviários também prejudicam. São tudo suposições: não é nada de concreto que se possa provar.

A maior parte das oliveiras são de terreno de encosta: se apanhássemos nem pagava a mão-de-obra. Nos terrenos planos se houvesse azeite valia a pena. Noutro tempo a mão-de-obra era barata, mas o azeite também era barato. Fica muita azeitona por apanhar. Não compensa colhê-la. Este ano fomos apanhar azeitona: três homens e três mulheres. Apanhámos uma lagarada de azeitona. Depois de moída na prensa deu cinco cântaros. Cada cântaro leva dez litros. À saída do lagar o azeite estava a 50800 o litro. O azeite é praticamente para auto-consumo. Ninguém vende.

O gado? É doméstico: umas galinhas, umas ovelhas, pouco mais.

O vinho é que dá mais volume de trabalho e mais volume de dinheiro. Antigamente, no tempo de Salazar, a Junta Nacional dos Vinhos cobrava imposto sobre todo o vinho. Até sobre o que bebiamos. O vinho era muito barato na altura. Foi uma época de crise vinícola. Muitos homens emigraram: havia débitos, dificuldades. O dinheiro do vinho não dava para pagar. Salazar em 1961 consegue vender algum vinho para o Mercado Comum: Alemanha, França, Holanda. A Adega Cooperativa de Souselas pagou nesses anos. Ainda comprei um motor de rega. Custava, então, 1500$00. Mas tudo se agravou com a guerra em África. Houve um ano de superabundância e o vinho ficou para aí. A cooperativa de Souselas foi bom: sempre foi melhor que ficar com o vinho; mantém o preço do vinho. O grande perigo na vinicultura é a superprodução. Além disso quando o vinho estava na adega já a gente precisava do dinheiro, e isso não é assim. A adega não paga logo. Às vezes era-se obrigado a vender ao armazenista por preços irrisórios para receber mais depressa. A adega melhorou mesmo para as pessoas que ficavam com o vinho em casa: o preço fica assegurado.

Assembleias gerais em Souselas? É uma vez por ano. Podia-se ver as contas, mas isso não significa nada. Aquela contabilidade é só para peritos.

Olhe, a vinha primeiro precisa da poda, depois a empa (esteio para a proteger do vento), depois vem a cava (com métodos artesanais, o farpão muitas vezes, que a vinha como está plantada não permite a mecanização), e ainda o herbicida. Sem o herbicida metade das vinhas estavam mortas.

Noutro tempo tentou-se aqui fazer uma adega cooperativa em Barcouço. O governo de Salazar tinha um plano de adegas cooperativas para todo o país. Barcouço estava previsto, mas o Grémio de Coimbra puxou para Souselas. Para abrir uma cooperativa eram precisas três mil pipas, segundo esse tal decreto. Um grupo de lavradores reuniu-se e decidiu fazer um abaixo assinado. Mandámos a petição para Lisboa para abrir a adega aqui. Não fomos a outras terras: já tinhamos quatro mil e tal pipas só em Barcouço. Mas veio logo um decreto que só autorizava a abertura de adegas com seis mil pipas. Aqui é um lote de vinho bom. O grande prejuízo para nós é que em Souselas se mistura tudo. Recebem vinhos de Vil de Matos, Ançã e Portunhos. O transporte e a mistura prejudica a qualidade do vinho. Com a exigência das seis mil pipas boicotaram a nossa adega. O projecto foi posto de lado, tanto mais que apareceu a guerra de Angola. Depois, ou se ficava com o vinho em casa, ou se ia para Souselas. À maioria entrega-o lá. Só recebemos passados dois anos, mas o preço é garantido. Agora na Mealhada apareceu a Sogrape a comprar uvas para fazer vinho rosé. Alguns sócios de Souselas foram lá. Eles pagam mais que a cooperativa, mas é só para fazer concorrência. Se estoirassem com a cooperativa baixavam o preço.

Somos todos pequenos agricultores. Dependiamos dos armazenistas. A cooperativa é melhor, mas nem tudo vai bem em Souselas como pode ver aqui neste jornal.»

CAMPONESES EM LUTA N.º 2

Jornal Popular da freguesia de Barcouço de 7-11-75

EDITORIAL

Eleições à moda fascista na adega «cooperativa» de Souselas

«Realizou-se no dia 18 de Outubro na Adega «Cooperativa» de Souselas, uma reunião para à eleição de novos Corpos Gerentes.

A Direcção, para se dar ares de democrática entregou aos associados uma folha com os cargos a preencher, com os nomes em branco, julgando os associados que poderiam eleger pessoas da sua confiança.

No entanto, antes de iniciarem as eleições, à Direcção começou por fazer um elogio às suas actividades, afirmando que, embora competisse à Assembleia eleger os seus representantes, era preciso ter cuidado pois havia o perigo de a «cooperativa» ir parar a más mãos, dando a entender que tudo devia continuar como dantes.

Surgiu, entretanto, o sócio Sr. Pinto de Almeida, cujas ligações com a actual Direcção são bem conhecidas, a defender também, com unhas e dentes, a Direcção, dizendo que ela devia continuar em actividade, e propôs uma lista para a Direcção, que era composta pelos mesmos indivíduos que faziam parte da Direcção em exercício.

Esta acção provocou a indignação e o protesto da grande parte dos presentes, gerando-se a confusão, que a Direcção aproveitou para impedir que um indivíduo de Almalaguês falasse abafando deste modo uma proposta de um grupo de camponeses em que se defendia uma maior representação das freguesias. Segundo esta proposta cada freguesia elegia os seus representantes que em conjunto com pessoas com experiência na direcão de «cooperativas» formariam uma lista. Vendo que estavam a ser enganadas um numeroso grupo de pessoas abandonou a sala, recusando-se a votar, tendo a Direcção sido eleita por uma reduzida minoria dos associados.

Perante isto perguntamos:

Porque é que desta vez a reunião foi marcada para sábado à noite e não ao domingo como costuma ser? Não seria para evitar que a maioria dos associados estivesse presente, uma vez que todos sabem que ao sábado à noite não há meios de transporte capazes e que os camponeses vêm cansados do trabalho?

Comparando a lista de voto em branco e a lista proposta pelo Sr. Pinto de Almeida todos podemos ver que foram impressos na mesma máquina e com o mesmo papel!

Somos assim levados a concluir que tudo estava preparado para fazer com que a Direcçãõo da «Cooperativa» continuasse nas mesmas mãos e que fomos vítimas de uma grande manobra.

Os associados da cooperativa são na sua grande maioria pequenos camponeses; no entanto, na cooperativa também existem ricos. E na Direcção só vemos pessoas ricas, algumas das quais nem sequer trabalham a terra. Não são estas pessoas que irão defender os nossos interesses! Temos de estar alerta para evitar que dentro da «Cooperativa» que é de todos nós só se faça ouvir a voz dos ricos!

Apelamos a todos os camponeses para que discutam este problema e se unam para que a voz dos explorados se faça ouvir na cooperativa de Souselas! Esta não pode continuar a ser um instrumento para meia dúzia de senhores explorarem e enganarem o Povo, enriquecendo à custa deste!

Exijamos a maior democraticidade nas eleições para a Direcção da Cooperativa!

Exijamos a presença de representantes eleitos de todas as freguesias na Direcção da Cooperativa!

EM FRENTE POR UMA COOPERATIVA AO SERVIÇO DO POVO!»

Não foi, porém, este o motivo que levou os pequenos agricultores de Barçouco a lutar pela constituição de uma cooperativa de produção agro-pecuária. Nem só de vinho vive o homem. A comprová-lo o capítulo que aí vem preenchido com as palavras do mesmo camponês de há pouco, e as achegas dos circunstantes que assistiam à conversa.


Inclusão 14/06/2019