Cinco Meses Mudaram Portugal

Otelo Saraiva de Carvalho


3 — A verdade dos factos ocorridos em 27 e 28 de Setembro


capa

CADERNOS PORTUGÁLIAVoltando um pouco mais atrás, gostávamos de lhe perguntar o que se passou realmente na noite de 27 de Setembro no Palácio de Belém. Chegou a dizer-se que o brigadeiro Saraiva de Carvalho esteve ali preso por ordem do general Spínola, depois desmentiu-se isso, mas cremos que alguma coisa se passou nessa noite de 27 de Setembro, não é verdade?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Exacto. Em entrevistas dadas aos órgãos de informação já narrei o que realmente se passou. Na noite de 27 de Setembro, fui alertado em determinado momento no COPCON, onde me encontrava, de que se tinham formado em diversas entradas da cidade de Lisboa, barricadas de populares que revistavam os carros e começavam praticamente a fazer uma «operação stop» por conta própria. Isso era previsível, tanto assim que uns dias antes tinha sido preparada por nós, em conjunto com a Guarda Nacional Republicana e com a Polícia de Segurança Pública, uma «operação stop» precisamente com aquela finalidade, pois pensámos que essa manifestação da «maioria silenciosa» poderia conduzir a uma batalha campal, a desenrolar-se na Praça do Império, com funestas consequências. Para evitar que houvesse de repente um afluxo de milhares de pessoas àquele local e que essas pessoas viessem armadas — não digo armadas com armas de guerra, mas com armas de menor importância, como realmente vieram — preparámos a tal «operação stop». E tudo ficou montado praticamente com centro em Lisboa e um raio que chegava até Santarém, a partir de onde começava a contar-se o afluxo súbito de viaturas a Lisboa. Preparámos ainda, em complemento, uma operação que envolvia forças da Guarda Republicana, da Polícia e forças militares, incluindo dois helicópteros, para a tentativa de manutenção da ordem na Praça do Império. Falei em todo esse plano ao nosso general Costa Gomes, meu chefe directo, o qual considerou que a operação não devia ser efectuada, porque isso daria a impressão de que nós, militares, estávamos a tentar evitar a manifestação que havia já sido autorizada pelo Presidente da República.

CADERNOS PORTUGÁLIA — Mas nessa altura já havia barreiras nas ruas?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Não, não. Isto foi uns dias antes, aí em 24 de Setembro. Insisti, claro, pois não era minha ideia evitar a manifestação, na medida em que o próprio presidente da República já se tinha afirmado a seu favor. No entanto, tive de anuir, e a «operação stop» dissolveu-se. Então, desviei a minha atenção para a operação de detenção às primeiras horas da manhã do dia 28, de elementos da antiga Legião Portuguesa que, interessando interrogar, tinham que ser detidos todos ao mesmo tempo, para efeitos de averiguações a evitar fugas. Essa operação iria envolver, simultaneamente, a detenção de um conjunto de elementos fortemente ligados ao antigo regime, cuja lista o Governo me tinha fornecido para que também efectuasse tais detenções como medida preventiva. Na noite de 27, estando presente no COPCON e tendo já dado instruções às equipas que iriam efectuar as detenções, estava apenas a deixar passar o tempo para depois controlar toda a operação das detenções, quando fui alertado pela notícia da formação de uma barricada popular na Calçada do Carriche e de que o Rádio Clube Português começava a fazer apelos para a formação de outras barricadas, que rapidamente explodiram pela cidade. A situação agravou-se subitamente. Cerca das 2 da manhã do dia 28, chamado ao Palácio de Belém, fui encontrar toda a gente em alta tensão, num ambiente de cortar à faca. Estavam presente praticamente todos os elementos mais ligados à presidência da República, ao Estado- -Maior General das Forças Armadas e ao Estado-Maior do Exército. Apercebi-me do grave problema que pesava naquele momento e que consistia na formação das barricadas e na maneira de as dissolver tão rapidamente quanto possível. A verdade é que no meio de enormes discussões ninguém parecia encontrar a solução. Chamaram-me à Sala dos Conselhos, onde o general Spínola estava profundamente abalado, num estado de exaltação muito grande; encontrava-se lá também o primeiro- -ministro Vasco Gonçalves, e soube posteriormente que já tinha sido atacado e insultado pelos elementos da Junta de Salvação Nacional que depois foram saneados, justificando-se plenamente o estado de abatimento e revolta mal contida que exibia. Vim mais tarde também a saber que, mal começou a ser insultado, quis abandonar o Palácio, reagindo violentamente contra uma ordem que lhe foi dada para se demitir, para abandonar o lugar, ao que com a fibra que lhe conhecemos, ripostou energicamente, dizendo: «Não estou aqui por mim, mas porque há alguma coisa muito mais forte do que todos vocês, que me escolheu e me propôs, que é o Movimento das Forças Armadas; estou aqui apenas por decisão do Movimento que em mim confia e não me demito de forma nenhuma». Quando foi dito ao general Spínola que o Rádio Clube Português continuava a fazer apelos para a formação de barricadas, mandou imediatamente fechar a emissão do Rádio Clube Português, a da Rádio Renascença, etc., mantendo apenas no ar a Emissora Nacional à ordem da Presidência — e ordenou ainda que as estações emissoras de rádio e a televisão fossem ocupadas por forças da Guarda Republicana e da Polícia. Como eu tinha já ocupado essas posições com forças militares desde as 6 horas da tarde de 27, porque estava preocupado com a manifestação da «maioria silenciosa», e lhe dei na altura conta disso, creio que encarou o facto como uma preparação da minha parte para um possível golpe de Estado. A verdade é que, como a sua atitude para comigo desde há uns meses era de total intolerância, porque, acreditando nos boatos com que o massacravam, me considerava um marxista e um traidor, quando a minha intenção era levar o barco a bom porto, em todas as circunstâncias possíveis, mandou fazer aquela substituição, à qual não fiz a mínima objecção para não levantar ainda mais problemas e aumentar a gravidade da situação. A minha retenção no Palácio de Belém, a certa altura, começou porém a tornar-se preocupante para os meus camaradas das unidades que estavam em estado de prevenção. Eu tinha dito no COPCON que ia à Presidência, mas que não devia demorar mais do que três quartos de hora, pois calculava que fosse para solucionar o problema das barricadas, o que se podia resolver depressa. A verdade é que passou a primeira hora, passou a segunda hora e, então, começaram a chover sobre o Palácio de Belém telefonemas de minuto a minuto, todos eles a chamarem por mim. Comecei, portanto, a centralizar ali o comando das unidades, que principiavam a exaltar-se. A angústia crescia como uma bola de neve. De todos os pontos do País começavam a chegar telefonemas. Do Porto, de Coimbra, das Caldas da Rainha, da Marinha, da Força Aérea, enfim, telefonemas cada vez mais alarmantes a perguntarem qual era a situação, se eu estava preso ou se não estava, se não estava quando é que saía e ia para o COPCON. Houve unidades que quiseram sair mesmo contra a minha ordem para marchar sobre Belém, porque se apercebiam de que quando eu ia ao telefone não falava livremente, o que era evidente, pois me sentia policiado. Quando era chamado ao telefone, havia sempre um camarada da Presidência que vinha para o pé de mim, para escutar o que eu dizia. Eu falava por monossílabos, dizia sim, não, pois, estou bem, não há problema nenhum, tudo está a correr bem, estamos aqui a tratar de um problema, enfim, o que se podia dizer na circunstância, mas que os camaradas sentiam que não era a minha linguagem, a linguagem de quem estava perfeitamente à vontade. A tensão foi crescendo de tal maneira que, a certa altura, vi aquilo mal parado, porque comecei a recear a possibilidade de os Camaradas, convictos de que eu estava realmente preso, com uma arma apontada às costas, saírem para a rua a caminho do Palácio de Belém. Eu desmentia, dizia que não se passava ali nada de grave, que estava só a resolver o problema das barricadas, mas devo dizer que nessa altura tive receio que as unidades perdessem mesmo a cabeça e viessem por aí fora.

CADERNOS PORTUGÁLIA — Desculpe, mas nessa altura não tinha havido já uma ordem de substituição da guarda ao Palácio de Belém?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Não, o que tinha havido já era a substituição nas emissoras das forças militares por forças policiais. E isto ainda mais levantou as suspeitas do pessoal. As forças do Palácio de Belém não foram substituídas. O que houve a certa altura foi a ordem dada pelo general Diogo Neto ao regimento de caçadores pára-quedistas de Tancos para vir uma companhia de «páras» para Lisboa, a fim de reforçar a defesa do Palácio de Belém. Como ninguém sabia o que essa companhia vinha fazer, levantou-se mais um alarme. E depois, quando ao Palácio chegou a notícia de que dois obuses do Regimento de Artilharia Ligeira 1 — essa notícia veio através da rede de rádio da brigada de trânsito da GNR — iam sair para marchar sobre Belém, houve uma contra-ordem para que o Palácio reforçasse ainda mais a sua defesa com um esquadrão do regimento de Cavalaria 7. Ora, essa ordem ao regimento de Cavalaria 7 não foi dada por mim: foi dada ao comandante desse regimento, que também é uma das unidades que fazem parte do COPCON e do Governo Militar de Lisboa, pelo general Silvério Marques, então Chefe do Estado-Maior do Exército. Portanto, o comandante do Regimento de Cavalaria 7 não teve dúvidas nenhumas em aceitar a ordem como válida. Ele foi chamado à Presidência, viu-me também ali, viu o general Silvério Marques, que lhe deu a ordem e, claro, cumpriu-a. Enfim, a situação era extremamente confusa. Todos estes acontecimentos fizeram com que eu, a certa altura, fosse ter com o general Costa Gomes, dizendo: «Meu general, isto está de tal maneira que eu tenho receio de que os meus camaradas comecem a acreditar que estou aqui realmente preso. Portanto, o melhor será eu ir rapidamente para o COPCON. O meu general fica aqui a comandar as forças, monta aqui o seu posto de comando, eu mando para cá um oficial superior como seu elemento de ligação com o COPCON e eu vou para o COPCON para sossegar aquela gente». Isto porque o nosso general Spínola, logo que me avistei com ele em Belém, me disse: «Oiça lá, olhe que o general Costa Gomes, a partir de agora, assume o comando das forças e, portanto, você deixa de as comandar directamente». Ao que eu respondi: «Meu general, olhe que o general Costa Gomes sempre foi o comandante das forças, ele é que é o comandante do COPCON, eu sou um adjunto. Eu fico aqui para ajudar naquilo que for necessário, mas o general Costa Gomes é quem comanda. Não tenho dúvidas nenhumas». Portanto, depois do que lhe disse, o general Costa Gomes concordou que eu fosse para o COPCON, entendeu que eu não estava ali a fazer nada. (Ou estaria a fazer muito?...) Quando eu ia a sair do Palácio, fui travado por um elemento da Presidência da República que me pediu por tudo que eu não saísse, porque era eu que estava a manter ali o equilíbrio e, se me fosse embora, ele não sabia o que aquilo podia dar. Considerei que realmente me era apresentado um argumento válido e fiquei mais algum tempo. No entanto, com o tal crescendo de tensão que se estava a verificar nas unidades, fiz a certa altura nova insistência para sair. Quando ia, pois, a tentar a retirada pela segunda eu fui travado pelo tenente-coronel Firmino Miguel, que veio ter comigo e me disse: «Olhe lá, Otelo, você tenha paciência (Firmino Miguel é um homem extremamente honesto nas suas atitudes), mas vou dizer-lhe uma coisa que ainda ninguém teve coragem de lhe dizer: Você foi chamado aqui à Presidência pelo nosso general Spínola para ficar aqui detido, você não pode sair do Palácio». Pela primeira vez, alguém tinha a coragem de me informar porque é que eu tinha sido chamado ali. E eu respondi a Firmino Miguel: «Pois bem, eu fico, sim senhor. Mas isto aborrece-me e lamento que o nosso general Spínola tenha perdido de tal maneira a confiança em mim que me chame aqui para me deter. Se é necessário ficar, eu fico, mas não repondo pelo que possa acontecer. A minha presença demasiado prolongada em Belém já alarmou de tal maneira o País que, a certa altura, as tropas não se aguentam e vêm mesmo sobre o Palácio. Portanto, vejam lá, eu aqui detido é que não consigo resolver esse problema». A verdade é que passados alguns momentos foi decidido, em face da situação, que era realmente melhor eu ir para o COPCON, sendo no entanto acompanhado pelo general Spínola, pelos elementos a ele mais afectos, pelo general Costa Gomes e seu gabinete, general Silvério Marques, etc. E eu disse: «Sim, senhor, vamos todos para o COPCON». Como era no entanto muita gente, avisei: «Devo lembrar que o COPCON é um órgão de comando operacional, não há lá camas, aquilo é muito pequeno, nem sequer há cadeiras para as pessoas estarem sentadas». Quando já estávamos nas viaturas à espera que abrissem as portas, fui outra vez chamado lá acima à Presidência e o nosso general Spínola disse-me que, afinal, já não ia comigo mas eu regressava ao COPCON para provar que não estava preso, que estávamos todos a trabalhar em conjunto, que tinha de haver plena confiança ’ entre todos e que eu tranquilizasse os camaradas. Nesse sentido, telefonei dali para o COPCON, onde me atendeu o meu Chefe do Estado-Maior e o general Spínola falou primeiro, para dizer que eu não estava preso: «O Otelo está aqui ao pé de mim, não está nada preso, estamos a trabalhar em boa colaboração. Ele está perfeitamente bem». Depois falou o general Costa Gomes e depois falei eu, dizendo: «Está bem, dentro de cinco minutos estou aí. Diga aos camaradas que não se precipitem, que tenham calma, eu vou já arrancar daqui». Esse telefonema, porém, alertou e fez desconfiar ainda mais o meu pessoal do COPCON. Mas realmente, passados uns dez minutos, saí de Belém, fui acompanhado por elementos de confiança do general Spínola, que foram, presumo, com uma missão de vigilância acerca da minha actividade no COPCON, para saberem talvez o que é que eu ia fazer ou deixar de fazer. Quando cheguei ao COPCON, imediatamente mandei substituir as forças da polícia e da Guarda Republicana por forças militares e continuar a substituição das barricadas populares. E, pronto, a partir daí toda a gente sabe o que se passou.

CADERNOS PORTUGÁLIA — E não foram nenhuns oficiais afectos ao general Costa Gomes?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Foi só o tenente-coronel Ferreira da Cunha, que recebeu a missão do general Costa Gomes de tranquilizar, com a sua presença, a parte afecta ao general Spínola.


Inclusão 06/06/2019