Elementos para a Compreensão do 25 de Novembro

Capitão Manuel Duran Clemente


VII - No Programa-Rádio do MFA


1. CRÓNICA DO MINHO
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«Entretanto a Revolução passa. Conversando com muita desta gente encontro esta realidade: cada um tem a sua noção de revolução. Mesmo no seio dos que têm uma mesma classe a Revolução Portuguesa tem significados diferentes não só nos aspectos acessórios, mas o que é mais importante, nos aspectos fundamentais ela varia de camponês para camponês, de artífice para artífice, de operário para operário, de trabalhador para trabalhador.

E porquê?

Isto não acontece só porque cada um é «livre» de ter o seu ponto de vista. Sendo-se livre de ter um ponto de vista diferente acontece que ao expressá-lo grande parte do Povo Português revela de uma forma clara a sua falta de consciência de classe, a sua falta de conhecimento do que é que verdadeiramente lhe interessa para ser feliz e livre.

Há quem chame exactamente a isto falta de «consciência política». Mas eu queria evitar chavões, determinadas expressões e palavras...

O povo trabalhador normalmente não se ofende com isto. Ele sabe que não é reaccionário mas sabe (porque é sério — porque é honesto — porque é humilde)... ele sabe que se encontra despolitizado por cinquenta anos de obscurantismo em que um Governo e as suas estruturas para defender a classe dominante tudo faziam para manter o povo trabalhador na ignorância da chamada «política».

Verificamos, portanto, ao percorrer o Minho (porque aqui estamos) e ao percorrer Portugal, em síntese, o seguinte:

E porque é que ao longo de mais de ano e meio parte dos trabalhadores não adquiriram consciência política?

Porque é que estão confusos e baralhados sobre a Revolução Portuguesa, sobre a transformação social porque estão passando?

1.º — Não é fácil, em tão curto espaço de tempo, conseguir-se adquirir consciência política e deitar fora todo o conjunto de vícios e de alienações com que a sociedade de consumo, o capitalismo internacional, através de um Salazar e de um Caetano, anestesiaram os Portugueses.

2.º — Com o 25 de Abril apareceram os partidos e movimentos políticos, e deles o povo trabalhador português esperaria receber «ensinamentos», receber teoricamente dados, elementos, etc., que o levaria à aquisição do conhecimento da sua realidade de classe, dos seus interesses de classe, isto é, levaria o povo português trabalhador à aquisição duma consciência política tanto quanto possível correcta para o desenvolvimento duma prática política correcta... «Coerência revolucionária.»

Aconteceu que se formaram muitos «partidos» e «movimentos» e enquanto que uns, mesmo de forma aparentemente diferente, defendiam os interesses da classe operária, dos camponeses, dos trabalhadores em geral, outros, também de forma aparentemente diferente, defendiam os interesses do capitalismo e da burguesia dominante.

E se já nuns e noutros destes dois conjuntos as formas diferentes de actuação confundiram o povo trabalhador (o único que tem o gérmen, que tem a semente verdadeira da Revolução Socialista) se já as formas diferentes de actuação vieram naturalmente constituir um abanão, uma sacudidela, no seio do povo português despolitizado, o que veio pesar mais, travar e agravar ainda mais, o avanço da consciencialização política de classe, de certos sectores da classe trabalhadora, foi a demagogia dos partidos fortemente agarrados ao capitalismo e à burguesia e que, concretamente se conhecem: o PDC, o CDS, o PPD, etc., e mais recentemente determinado sector do PS, ou melhor, a sua cúpula.

3.º — O Movimento das Forças Armadas nascendo como um movimento reivindicativo de classe burguesa (quem não conhece quais foram as primeiras razões que levaram a fundar o «Movimento dos Capitães», ...estou nele desde o princípio, conheço-as bem!!!)

Nascendo como um movimento burguês não se iria despir dessas roupagens burguesas com tanta facilidade.

É certo que em face da esmagadora adesão do povo revolucionário e sobretudo em face das acções das suas vanguardas revolucionárias, dos partidos e movimentos que a representavam, e dos militares (soldados, sargentos e oficiais) verdadeiramente revolucionários, o MFA rapidamente se transformou, orientou-se no sentido certo. Na luta de classes desencadeada, cedo se verificou de que lado o MFA estava. Mas nem sempre era fácil, era claro, consolidar-se da sua parte o lado em que estava o MFA. E dessa indefinição, fruto das contradições e da ingenuidade (!) de pensar que seria possível estar de bem com todos (estar de bem com Deus e com o Diabo, como se costuma dizer), que seria possível conciliar o impossível, isto é, conciliar os interesses da BURGUESIA com os interesses da classe OPERÁRIA, dos trabalhadores, camponeses...

Esta impossibilidade é histórica. Ela não acaba com a boa vontade de qualquer Movimento das Forças Armadas que continue ambíguo.

O Movimento das Forças Armadas tem vindo a clarificar-se não tão depressa (a clarificação) como deveria ter sido, mas com a velocidade possível...

Mas essa impossibilidade histórica de conciliação de interesses de classes diferentes não desaparece com a demagogia, antes pelo contrário... e muito menos com a demagogia de que todos são trabalhadores... de que toda a gente trabalha...

Uma coisa é ser-se trabalhador e outra é defender os interesses dos trabalhadores como classe... como classe distinta da classe dominante: a classe burguesa.

Outra coisa é ser-se trabalhador e defender-se os interesses da burguesia... defenderem-se objectivos que correspondem aos sonhos, aos desejos que as sociedades de consumo, que as sociais-democracias, que no fundo o CAPITALISMO meteu como «bichinho» no corpo das pessoas... e no nosso caso do Povo Português... «bichinho» metido mesmo no corpo do povo trabalhador que aqui neste Minho, na sua terra, trabalhando isolado ( nas suas leiras, nas suas pequenas terras) está mesmo isolado da organização da classe, da sua classe — a classe trabalhadora, de facto. É facilmente manobrado, é facilmente conduzido a voltar a sua própria vontade contra os seus verdadeiros interesses, contra os interesses do seu futuro, contra os interesses dos seus filhos...

Os sociais-democratas abanam-lhes com lindas coisas para o dia seguinte... para amanhã... enquanto que a REVOLUÇÃO pede sacrifícios (e quer pedi-los sobretudo à pequena e média burguesia, e não aos trabalhadores); enquanto se pedem sacrifícios para que haja justiça social, etc., no seio de todos e em especial da classe trabalhadora... enquanto isso os sociais-democratas prometem BEM-ESTAR à classe trabalhadora mas piscam o olho à pequena e média burguesia como que dizendo:

— Nós já estamos instalados, os trabalhadores, a classe trabalhadora que se «lixe», que continue a trabalhar para nós...

No actual momento, e isso sente-se melhor aqui, afastados de Lisboa, há de facto duas opções no seio do MFA: aqueles que já se aliaram à classe trabalhadora e esperam pelos estratos da pequena e média burguesia que sejam capazes de aderir com todos eles à REVOLUÇÃO SOCIALISTA e, aqueloutros, que traindo de facto a REVOLUÇÃO SOCIALISTA, se aliaram à burguesia e querem apenas anestesiar os trabalhadores — a classe trabalhadora — fingindo que pensam nela.

Atenção, pois, que nesta segunda hipótese todas as estruturas que se criarem não conduzirão jamais a um Estado Socialista... será assim a hipótese da social-democracia, a hipótese camuflada da recuperação do CAPITALISMO.

Não o podemos permitir.

O POVO TRABALHADOR do Minho e do Norte está com a REVOLUÇÃO.

«UNIDOS VENCEREMOS».

(Emissora Nacional, 11-8-75)

2. QUE POVO? QUE MFA?

...o porta-voz da Assembleia do MFA começa por dizer que as contradições sempre existiram dentro do MFA, até mesmo antes do 25 de Abril, quando um punhado de militares conspirava clandestinamente contra o regime fascista:

«Ao longo do processo, antes do 25 de Abril enquanto conspirávamos, nós militares, sempre tivemos problemas, dúvidas e pontos de vista diferentes mas conseguimos discutir no nosso seio, em assembleias que decorreram muitas vezes com atropelos e exaltações, que eram fruto da ânsia de destruir o regime fascista.»

O capitão Clemente salienta que as contradições reinantes no MFA, ainda em gestação, se deviam à falta de consciência política da maioria dos militares e sobretudo à sua origem de classe marcada pela detenção de certos privilégios e interesses. Apesar de tudo ultrapassaram sempre aquilo que os dividiu e mantiveram-se coesos.

Depois do 25 de Abril, da vivência esfuziante do triunfo, as tais divergências vieram novamente ao de cima.

«Passada a expectativa dos primeiros meses, o entusiasmo dos primeiros dias, recomeçou a luta. O capitalismo, a reacção, a direita tentam avançar infiltrando-se manhosamente. E nós, pela nossa origem de classe, pequeno-burguesa, nem sempre tivemos a coragem e a capacidade de, na altura própria, defendermos a revolução democrática. Quer dizer: em dados momentos, tivemos receio de tomar atitudes duras porque estávamos a viver momentos lindos e tínhamos a convicção errada que já vivíamos num país livre onde, portanto, cada um podia dar a sua opinião. Isto é incorrecto...»

O porta-voz da Assembleia do MFA seu militante desde o início, faz uma autocrítica das posições um tanto «ingénuas», sem todavia deixar de acentuar a raiz da classe onde os militares, comprometidos no 25 de Abril, provêm. Ligados umbilicalmente à pequena-burguesia aqueles homens, a maioria deles, não puderam cortar o elo que os prendia.

«Havia uma transferência de todos os vícios, das alienações da vida anterior para o regime actual que foram aproveitadas pelas forças reaccionárias, pelo capitalismo nacional e estrangeiro. A nossa boa-vontade, a nossa ingenuidade, não esquecendo porém a nossa raiz de classe. Em determinadas ocasiões deixamos passar pequenas críticas e insinuações que graças à nossa complacência foram aumentando e mais tarde se voltariam contra nós. Quem faz meia revolução pode cavar a sua sepultura. De certo modo poderia ter acontecido isto mas não acontecerá porque o Povo Português trabalhador está com as forças progressistas.»

«Por vezes há grandes confusões. Uma atitude firme para garantir as liberdades burguesas não é o mesmo que garantir as liberdades democráticas. São coisas diferentes.»

Aqui aquele oficial clarifica os conceitos de liberdade realçando a incompatibilidade histórica que separa os interesses da classe operária e os da burguesia.

«A defesa dos interesses da classe trabalhadora e os da burguesia é inconciliável. O Povo Português devia tomar atenção a este aspecto. Ele sabe que pode ser manobrado. Por outro lado há grande confusão no respeitante ao que se entende por trabalhador.

De facto toda a gente trabalha mas uma coisa é ser-se trabalhador e outra é defender os interesses da classe trabalhadora. Também se fazem muitas confusões com conceito de liberdade. Há dois tipos de liberdade. Uma pessoa que não está consciencializada, por razões acidentais, que não está consciente do domínio de uma classe exploradora não é de maneira nenhuma livre. Para haver liberdade democrática é preciso que exista no seio do Povo uma consciência política de classe.»

Nesta linha de análise o capitão Clemente focou as falsas liberdades de informação propagandeadas por aí, que no fundo não passam de baixas manipulação dos leitores desprevenidos.

«As liberdades permitindo que jornais, rádios ou qualquer outro meio de comunicação social, ataquem os interesses da classe trabalhadora, isto não é liberdade. Nós sabemos que tal acontece das formas mais camufladas e que certos jornais até são muito lidos porque insinuam, ou melhor fazem apelos aos mais baixos instintos das pessoas, da criatura humana. Conseguem o efeito pretendido quando as pessoas ainda não estão libertas de uma sociedade de consumo.»

«—Que Povo? Que MFA?»

«Quando se fala na aliança Povo-MFA tem de se ter bem presente o que significa cada uma destas palavras. Há várias definições de Povo. A nossa compreende toda a população que está interessada em libertar-se dos interesses de uma classe que domina a outra.

Povo Português é na sua maioria um Povo trabalhador.

Pode não ter, em alguns pontos do País, consciência de classe porque estava habituado aos vícios do fascismo e vivia numa estrutura que não era a sua, que não torna feliz as pessoas. Só traz felicidade aos exploradores, aos que defendem os interesses da classe dominante: a burguesia.

Dizem muitas vezes que nós somos incoerentes pois somos muito mais do que isso. Somos traidores da burguesia. Colocámo-nos ao lado do povo trabalhador e somos revolucionários com ele. Aqui entra a definição de MFA. Nós pensamos que MFA são todos os militares que defendem a classe trabalhadora. MFA comporta soldados, sargentos e oficiais. Sargentos e oficiais do quadro e milicianos. No seio do MFA chocam-se vários pontos de vista, opiniões e interesses. No entanto, temos de reencontrar novamente a coesão. Aglutinar todos os militares à volta dos interesses da classe trabalhadora e de uma vigilância muito cuidadosa junto deles. Não pode ser o MFA a vigiar os interesses da classe trabalhadora mas sim ela mesma.

Sobre o ponto cinco que aborda a questão da Frente da Unidade Socialista das forças que defendem e apoiam a construção do poder popular, o capitão Clemente fala dos dois documentos saídos do MFA que defendem posições contraditórias por muitas voltas que se dêem para arranjar qualquer espécie de conciliação. Como é possível? Seria incoerência total misturar duas opções ideológicas perfeitamente incompatíveis. Há algo no meio disto que não bate certo. Efectivamente estes dois documentos são claros. A necessidade de consolidar as conquistas alcançadas pela classe trabalhadora e a construção do poder popular nem sempre estão a ser bem interpretadas pela pequena e média- -burguesia e alguns militares. Os trabalhadores conscientes sabem bem que isso significa. Houve alguém no meio dos militares que não soube entender o que era a defesa dos interesses da classe trabalhadora. Uns, porque objectivamente estavam com a direita e tinham medo de avançar, outros porque não estavam conscientes de determinados passos que deram e que puseram em perigo a revolução. O «Documento dos Nove» revela como certas pessoas podem pôr em perigo a revolução socialista. O do Copcon veio travar este erro, este lapso. Mas logo a direita e o capitalismo o tentam recuperar para o seu lado. Existe uma manobra. Isto não pode ser. Isto passa pelo afastamento de homens que efectivamente são do MFA e estão ao lado da classe trabalhadora. Naturalmente esse papel que dizem progressista será com certeza para dividir o MFA. É a única explicação pois não se entende tamanha incoerência.

Pensa-se que este documento poderá induzir em erro muitos militares provavelmente bem intencionados que se encontravam até aqui coesos no MFA. Se essa posição vencesse, depois de conseguirem afastar os que mais firmemente lutaram para defender os interesses dos trabalhadores, esses militares acabariam por ser instrumentos (ainda podem tomar consciência das atitudes que tomaram) da burguesia e do capitalismo.

(Transcrição no «Diário de Lisboa» do programa de rádio de 19-8-75)


Inclusão 24/04/2019