Elementos para a Compreensão do 25 de Novembro

Capitão Manuel Duran Clemente


XII - Entrevista Concedida ao Semanário «Sempre Fixe» em 7 de Junho de 1975


MFA NA GUINÉ

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A conversa começou sobre o tema «Guiné». Com efeito, a honestidade das intenções revolucionárias do MFA foram pela primeira vez, postas à prova naquela ex-colónia e também foi por causa da Guiné que Spínola começou a criar problemas ao MFA, tentando impor o seu projecto neocolonialista.

Graças à firme posição do MFA, da Guiné, que aliás aqui documentamos com a publicação de moção enviada ao Governo Provisório e assinada Por perto de oitocentos militares estacionados na Guiné em que se exigia o imediato reconhecimento do Estado da Guiné-Bissau, proclamado um ano antes, as manobras neocolonialistas escondidas atrás de um «federalismo» que deixava tudo na mesma, falharam. O que não tira a responsabilidade a Spínola por ter tentado prorrogar a situação de dependência dos povos africanos, responsabilidade que lhe vem dos seus tempos de governador e que se prolonga até ao actual estado crítico que se vive em Angola. Responsabilidade que também passa pelo assassínio de Amílcar Cabral.

Sobre estas questões o capitão Clemente afirmou-nos:

«O PAIGC desenvolveu-se a partir da realidade da própria terra que é a Guiné, das exigências da luta para expulsar o colonialismo e para construir o progresso do seu país. Como movimento de libertação nacional, o PAIGC também não poderia admitir qualquer solução exterior de neocolonialismo. António de Spínola sempre teve consciência disto. Quando «governador» da Guiné, a sua responsabilidade na morte de Amílcar Cabral é solidária com a responsabilidade do projecto de «governo» fantoche numa «Guiné melhor», «auto-determinada, mas neo-colonizada».

«Afastada a figura de Amílcar Cabral, o então governador fascista português julgou ter o caminho aberto para ultimar as suas demagógicas realizações. Mas o processo dialéctico, isto é, o auto- dinamismo dos movimentos libertadores (PAIGC e MFA) vem desfazer os intentos de Spínola antes e depois do 25 de Abril de 1974.»

Para o capitão Clemente, o falhanço de Spínola reside, principalmente, no facto de o PAIGC, organizado revolucionariamente, não ter quebrado o seu entusiasmo com o desaparecimento de Amílcar Cabral, tendo, ao contrário, intensificado a sua luta, tornando cada vez mais remotas as soluções que Spínola procurava impor. O processo em Portugal é paralelo.

«Por sua vez o Povo Português, arrastado pelo fascismo para essa estúpida guerra» — continuou Duran Clemente, «começou a ver cada vez mais claro; começou a sentir com inteligência as razões da mística, da força e do entusiasmo revolucionário dos povos africanos».

«No teatro de operações da guerra da Guiné, muito mais pequeno que o de Angola ou de Moçambique, as acções do PAIGC e as reacções portuguesas (quaisquer delas não só militares como também de organização social cultural e política) têm imediato reflexo nas populações (autóctones, colonos e militares), e o seu inevitável efeito pedagógico é quota-parte importante na consciencialização das camadas mais jovens dos militares portugueses.

A consciencialização que os leva em 25 de Abril a derrubar o fascismo e, fundamentalmente, a apontar para o futuro socialista que o Povo Português deseja.

A semente progressista, que o MFA sempre transportou consigo, germina a descolonização, a democratização e o desenvolvimento do nosso País.

O coerente progressivismo que o MFA e o Povo Português põem nestas tarefas começa, também muito cedo, a incomodar Spínola. Quer para a Guiné, quer para Portugal, quer para qualquer outra colónia, a solução de Spínola seria sempre uma forma qualquer de neocolonialismo que satisfizesse a burguesia capitalista.»

A inclusão de Portugal dentro do âmbito do projecto neocolonialista do ex-general do monóculo, é justificada pelo capitão Clemente pelo facto de se considerar a situação económica e política portuguesa correspondente a um estado de colonização. Ora, havendo em qualquer destas colónias movimentos de libertação, a aplicação do projecto spinolista estava em perigo. Explica Duran Clemente:

«Para o ex-general, os movimentos de libertação progressistas (PAIGC, Frelimo, MPLA e MFA) não serviam: era necessário neutralizar as suas actividades criando e fomentando outras organizações, É assim que se assiste à promoção de alguns agrupamentos políticos após o 25 de Abril, que só perturbam o desenvolvimento do processo revolucionário».

Referindo-se concretamente ao caso da Guiné, o capitão Clemente lembra a actuação de Spínola aproveitando as organizações fantoches que estavam a aparecer, aproveitamento este que lhe era relativamente fácil, porque conhecia muito bem os seus dirigentes e as estruturas tradicionais que o colonialismo criou em África. Como o referendo popular que Spínola preconizava para outros territórios não lhe oferecia totais garantias na Guiné, dada a implantação do PAIGC, o ex-general optou pela realização de um dos conhecidos Congressos do Povo.

Esta instituição serviria os seus intentos, uma vez que se tratava, segundo o capitão Clemente, de um órgão perfeitamente manipulável e bem conhecido por Spínola, que pretendia assistir à sua realização. Esta atitude tinha como objectivo apresentar Spínola como obreiro da «descolonização» relegando para segundo plano a realidade do PAIGC.

SPÍNOLA PERSEGUIU O MFA

No entanto, o MFA e o PAIGC puseram um eficiente travão a esta tentativa, segundo explica o capitão Duran Clemente:

«O MFA na Guiné, vinha de há muito, prevenindo-se. Cedo se estruturou para defender a Revolução. Sabia bem quanto iria pesar em todos os outros processos de descolonização aquela que seria porventura a mais rápida: a da Guiné. E quanto a verdadeira libertação do Povo Português, passava pela descolonização correcta e progressista das suas colónias».

«O MFA da Guiné estruturado democraticamente (veja-se o boletim informativo do MFA da Guiné, de 1 de Junho de 1974) opôs-se com determinação às manobras spinolistas, impedindo de forma inequívoca a realização de referendos, congressos, etc. Documento disso significativo, é a moção(1) aprovada em Assembleia Geral do MFA, realizada em Bissau a 1 de Julho de 1974, em que cerca de 800 militares (praças, sargentos e oficiais) se pronunciam em esmagadora maioria (apenas com duas abstenções) por uma descolonização sem ambiguidades,.».

Esta atitude progressista não caiu bem ao então presidente da República que perseguiu os oficiais mais destacados do MFA da Guiné, sob a acusação de serem traidores. Chegou mesmo ao ponto de chamar a Lisboa cinco oficiais do Secretariado do MFA na Guiné, e só não realizou os seus intentos de os mandar prender porque no dia anterior à chegada destes oficiais, com quem vinha também o capitão Clemente, mas para passar férias, se tinha realizado a célebre reunião da Manutenção Militar, em que Spínola, acolitado por Sá Carneiro, se viu impedido de assumir os poderes ditatoriais que ambicionava. Abalado por essa contrariedade já não teve coragem de interrogar os referidos oficiais, tarefa que deixou para o General Costa Gomes, o qual percebeu bem as razões que assistiam ao MFA da Guiné.

Como complemento desta informação o capitão Clemente disse-nos ainda que, dois meses mais tarde, o ex-general viria a exercer toda a sua influência para afastar um conhecido trabalhador da RTP (Joaquim Letria) por causa da entrevista que este tinha realizado em Bissau com quatro militares(2) mandando instaurar a estes um processo disciplinar. Caprichosamente, o processo começou a decorrer três meses depois, já Spínola não era Presidente da República, já as tropas portuguesas tinham exemplarmente transferido os poderes para o PAIGC. Caricatamente estavam a ser interrogados oficiais portugueses, por terem cumprido o seu dever patriótica e revolucionário.

Para concluir o seu depoimento, na parte que se refere à Guiné, o capitão Duran Clemente afirmou-nos:

«Todo e qualquer processo revolucionário encontra, na sua dinâmica, situações como esta. A espiral que é o desenrolar do mesmo faz contrariar aqueles que, sob qualquer forma, o querem manobrar perniciosamente. Só o tempo, que acompanha a dialéctica de uma revolução, vem, posteriormente, tirar dúvidas aos que demoram a compreender a inserção que determinados factos isolados têm no contexto global.»

GOVERNO MILITAR

Entrando no campo da política nacional actual, quisemos colocar ao capitão Clemente uma questão que tem cada vez mais actualidade: a possibilidade de uma ditadura militar ou de um Governo militar em Portugal. Esta questão foi referida na altura do «empolamento» do «caso República». Posteriormente Álvaro Cunhal apoiou a hipótese de um governo militar se não se chegasse a entendimento no seio da coligação. Actualmente a questão pode-se voltar a pôr, dado a existência de constantes sequelas entre os partidos na Assembleia Constituinte, sequelas que não são mais do que o reflexo daquelas que se verificam no dia-a-dia dos partidos políticos.

O capitão Clemente afirmou-nos sobre o assunto:

«O MFA detém o poder político através de estruturas democráticas que vão, desde o Presidente da República e do Conselho da Revolução até às bases nos quartéis (as Assembleias de Delegados das Unidades), passando pela Assembleia Geral do MFA.

«Em Portugal não há ditadura militar nem sequer governo militar. O MFA e as verdadeiras forças progressistas procuram evitar qualquer destas formas para superar crises motivadas por divergências ou lutas partidárias. Eventualmente, a agudização de crises deste género poderá obrigar a que as posições chaves nos órgãos de poder se detenham nas mãos de homens do MFA, para agregar a dinamizar a unidade revolucionária que impulsione as tarefas de coordenação e articulação das iniciativas das massas trabalhadoras em ordem à reconstrução nacional.

«Por vezes certas manobras tendem a levar o MFA a resvalar para posições de força. O processo revolucionário exige tomadas de posições firmes e determinantes, o que é diferente. No entanto há quem, intencionalmente, confunda força com determinação e agite logo o espantalho da ditadura militar.

«O reconhecimento do carácter socialista da revolução portuguesa passa pela determinação de não enveredar por uma forma de ditadura militar. Este princípio, mais que afirmação pública, é, de facto, uma realidade e não nos esqueçamos que em Portugal se goza das mais amplas liberdades democráticas, principalmente se comparadas com as das democracias ocidentais. Qualquer observador isento que nos visite, repara na facilidade de expressão e de manifestação das várias tendências políticas. Isto chega, nalguns casos, a ser perigoso, mas faz parte do processo dialéctico em que naturalmente estamos inseridos.»

ELEIÇÕES

As eleições para a Assembleia Constituinte, que muitos consideraram inoportunas e outros uma salutar prática de dignidade e de civismo, veio introduzir na vida política portuguesa um novo dado, que ainda é cedo para se considerar positivo. O capitão Clemente disse-nos o que pensa sobre as eleições e suas consequências para o processo revolucionário português.

«As eleições e os seus resultados, cuja realização foi o ponto de honra do MFA, seriam sempre um passo muito delicado e controverso no processo revolucionário.

«Interessa não esquecer que elas servem a contra-revolução quando aproveitadas para lançar as bases partidárias umas contra as outras, dividindo-as e desviando-as do inimigo principal — o capitalismo nacional e internacional. E ainda quando o trabalho eleitoralista desvie energias ou faça esquecer os reais problemas que se põem aos trabalhadores portugueses.

«Por outro lado, os que admitem ter saído vitoriosa a linha social-democrata, cujo modelo será incompatível com a opção socialista em que estamos empenhados, não podem admitir a compatibilidade entre os resultados eleitorais e o processo em curso.

«De qualquer forma o MFA, prevenindo-se com a Plataforma constitucional e intensificando o reforço da aliança do Movimento Popular de Massas com o Movimento das Forças Armadas quis e quer claramente, sem ambiguidades, que a revolução avance, introduzindo na sua própria dialéctica os dois processos (eleitoralistas e revolucionário), considerados como conciliáveis, atendendo a circunstâncias específicas da sociedade portuguesa. Se bem que saibamos que os processos são, nas experiências históricas conhecidas até ao momento, antagónicas. Mas todo o caso português é, ele próprio específico, desde o aparecimento de um movimento militar progressista até ao exemplar processo de descolonização.

«Deve-se no entanto ter na devida conta», continuou o capitão Clemente, «que todo o esforço desenvolvido na aliança Povo-MFA, no sentido de tornar possível a difícil conciliação referida está muito dependente da actuação dos dirigentes partidários. O que sucedeu após o período eleitoral dá-nos, infelizmente, uma prática não concordante com os objectivos apontados. Não concorrem para esse fim as tentativas partidárias de sobrevalorizar a correspondência do peso eleitoral à capacidade de decisão política, nem o empolamento dado a questões partidárias, ampliadas em termos tais que acabam por ser exploradas por forças anti-revolucionárias, ficando a maior parte das vezes por resolver o conflito original, para a resolução do qual se deveriam congregar todos os esforços partidários.»

Ainda sobre os partidos e o papel que eles podem ter no aparelho de Estado, o capitão Clemente afirmou-nos que o MFA, sem querer travar o dinamismo que o natural desejo dos partidos progressistas de contribuírem para o processo revolucionário provoca, pensa ser pernicioso que se sobrevalorizem as disputas partidárias e se relegue para segundo lugar o empenhamento das pessoas numa série e consequente luta antifascista e anticapitalista.

Uma vez que o país se encontra na situação em que sabemos, graças aos «esforços» do anterior regime é importante, do ponto de vista do capitão Clemente, que se congreguem esforços para que a competência técnica ao serviço da revolução socialista portuguesa se sobreponha às opções partidárias de cada um.

ALIANÇA POVO-MFA

A aliança Povo-MFA tem sido um elemento de especulação na Imprensa e, mesmo em certos meios políticos. Uma insuficiente informação tem sido a causa principal dessa especulação.

Duran Clemente esclareceu-nos alguns pontos do que é que significa essa aliança, começando por salientar que tudo o que tem vindo a lume peca por se apresentar duma forma demasiado rígida, demasiado construída, que não correspondem ao aprovado na Assembleia do MFA.

«A última Assembleia do MFA», esclareceu-nos o capitão Clemente, «só aprovou uma das propostas na generalidade. Competirá às massas trabalhadoras organizarem-se de uma forma unitária e sem alienações partidárias.

«É muito estranho», continuou, «e não contribui duma forma correcta para o avanço do processo que pessoas com os mesmos interesses de classe logo com os mesmos interesses políticos, se degladiem e se enfraqueçam na luta. Nesta ordem de ideias é fundamental que as pessoas se consciencializem que o MFA não pretende, duma forma paternalista, impor uma solução, qualquer que ela seja. Poderá quando muito, analisados os dados recolhidos de experiências concretas, fornecer sugestões, que ao povo português competirá aceitar ou não.

«Assim se encontrarão formas de desenvolvimento de actividades de vigilância revolucionária, de autodefesa local, etc. que irão cimentar a efectiva aliança Povo-MFA.»

Construída esta aliança, alicerçados os laços que ligam o Movimento Popular de Massas ao Movimento das Forças Armadas, que papel resta aos partidos políticos? Aquele que eles sempre deviam ter tido no processo revolucionário.

Segundo o capitão Clemente: «o MFA entende e sempre entendeu indispensável a existência de partidos políticos. Mas na fase revolucionária vivida até agora, e conforme já ficou atrás dito, as características especiais da sociedade portuguesa aconselham que os partidos políticos se constituam como base da formação ideológica das pessoas. Existindo uma forte ausência de consciência de classe no povo português os partidos políticos são indispensáveis como escolas de formação política.

«Bem entendido que, conhecidas as características socio-políticas do povo português, certos partidos parecem não preencher esta função. O dinamismo do processo revolucionário se encarregará de definir a contribuição de cada um para a consolidação da sociedade mais justa que procuramos construir.»

MFA — EXEMPLO DE AUSTERIDADE

Paralelamente às transformações que se vêm verificando na sociedade portuguesa, o exército, que é reflexo dessa mesma sociedade também se vai modificando.

O capitão Clemente esteve no exército colonial. Depois assistiu na Guiné à criação de uma mentalidade nova e profundamente revolucionária nas forças militares portuguesas lá estacionadas, mentalidade essa que a pouco e pouco se vai instalando também no Exército estacionado em Portugal.

Por isso a sua opinião sobre as transformações que se têm verificado na FFAA é bastante importante.

«As FFAA sofreram ao longo deste ano de revolução as alterações que o processo histórico lhes impôs, Para isso muito contribuíram, concretamente, as campanhas de dinamização cultural que, fazendo sair dos quartéis os soldados, sargentos e oficiais, os punham em contacto com o povo e com as suas duras condições de vida.

«Estas actividades trouxeram um aumento de consciência política aos militares, que se traduziu num alargamento do MFA a todos os estratos das FFAA. Isto vai provocar a estruturação das Forças Armadas em moldes democráticos, tanto ao nível de decisão militar como ao nível de justiça social. Deverá considerar-se como altamente revolucionária e de notável importância no aspecto pedagógico a abertura da Assembleia do MFA a sargentos e praças, na linha do reconhecimento de um direito próprio destas classes profissionais e não de uma outorga paternalista da parte dos oficiais, como classe privilegiada.

«Neste salto qualitativo que o processo sofreu no interior das Forças Armadas, que, recorde-se já havia sido experimentado na Guiné, julgo importante salientar, por exemplo, entre outras medidas que me possam escapar, o desaparecimento das salas de Oficiais, das de Sargentos e das de Praças que se transformaram em salas comuns de convívio, bem como os refeitórios e os supermercados que hoje também são comuns.»

No decorrer da revolução várias pessoas têm sido obrigadas a marginalizar-se. Ao nível das FFAA também isso tem acontecido e continuará a acontecer. O capitão Clemente falou-nos do assunto:

«O MFA tem-se preocupado em aproveitar o maior número possível membros das FA. Nesta questão tem-se bem presente os condicionamentos a que os mesmos estiveram sujeitos durante o fascismo, sabendo-se que não faltarão ocasiões, no processo revolucionário, para que cada um prove o seu empenhamento. De qualquer forma o esforço a fazer é no sentido de não marginalizar quem dê claramente um mínimo de garantias. Acho oportuno referir que aos militares do MFA se impõe uma aceitação consciente de limitações e renúncias, a par de um exemplo de austeridade que contribua para a indispensável coesão das Forças Armadas. O que aponta para a necessidade de um conjunto de princípios de conduta revolucionária que substitua o obsoleto Regulamento de Disciplina Militar.»

Para terminar relembramos o que Duran Clemente, homem do MFA desde a primeira hora, disse sobre os partidos políticos: «O dinamismo do processo revolucionário se encarregará de definir o contributo que cada um deu para a consolidação da sociedade mais justa que procuramos construir». Frase que não se aplicará de certeza só aos partidos mas também a todos os que pretenderem, de qualquer forma, parar a marcha da história, que é hoje e aqui a marcha da revolução.

7 de Junho de 1975

Anexo

ASSEMBLEIA DO MFA NA GUINÉ

Moção aprovada em Bissau em 1 de Julho de 1974

Considerando que o Programa do MFA, ao traçar os princípios orientadores da política ultramarina do Governo Provisório, é bem claro ao reconhecer que a «solução das guerras é política e não militar» e ao impor o «lançamento de fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz»;

Considerando que o Programa do Governo Provisório (Decreto-Lei n.° 23/74 de 15 de Maio) impõe, sem qualquer exclusão, a «exploração de todas as vias políticas que possam conduzir à paz efectiva e duradoura no Ultramar»;

Considerando que, para essa política poder ter uma eficácia real no sentido apontado, é indispensável atender aos condicionalismos existentes em cada um dos territórios em guerra;

Considerando que a independência, que nunca pode ser uma concessão, se conquista lutando, demonstrando na luta uma capacidade de emancipação de que o PAIGC já deu sobejas provas, exprimindo inequivocamente o sentimento nacional verdadeiro e as legítimas aspirações populares à dignidade e à soberania nacionais;

Considerando que a ideologia do PAIGC tem uma grande adesão popular e domina o panorama político da Guiné, como a prática diária comprova e como é reconhecido por todos os observadores sérios e sem segundas intenções, entre os quais o próprio Encarregado do Governo e comandante-chefe em entrevista concedida recentemente à «France Presse»;

Considerando que os grupos políticos surgidos na Guiné após o 25 de Abril carecem de legitimidade e representatividade, apenas tendo servido para envenenar o ambiente político da Guiné;

Considerando que a República da Guiné-Bissau é um Estado soberano reconhecido internacionalmente por 86 países, com o estatuto de observador permanente na ONU, membro de pleno direito em várias agências especializadas e, recentemente, eleito vice-presidente da Conferência da Organização de Unidade Africana (OUA);

Considerando que a Resolução n.° 03061 da Assembleia Geral da ONU de 9 de Setembro de 1973 fala em ocupação ilegal de algumas áreas da República da Guiné-Bissau pelas forças militares portuguesas;

Considerando que as resoluções e recomendações da ONU se impõem pela força de um tratado internacional — a Carta das Nações Unidas — que Portugal assinou;

Considerando que o Programa do MFA e do Governo Provisório impõem o respeito pelos «compromissos internacionais decorrentes dos tratados em vigor»;

Considerando que o Governo Provisório já manifestou expressamente o propósito de cumprir as resoluções e recomendações da ONU sobre a descolonização dos territórios africanos;

Considerando que o PAIGC demonstrou já plenamente a sua capacidade para administrar o território, fazendo-o progredir, e para defender os interesses do seu povo, como se demonstra pelo facto de a produção agrícola das regiões libertadas ser superior à das áreas sob controlo militar português;

Considerando que o PAIGC é o único agrupamento político cuja ideologia e programa asseguram a convivência e a igualdade de direitos de todas as etnias da Guiné, e o respeito pelos legítimos interesses dos europeus aqui fixados;

Considerando que o PAIGC sempre manifestou a sua solidariedade pelo Povo Português, dirigindo a sua luta apenas contra o colonialismo, o racismo e o fascismo que também a Revolução de 25 de Abril quis varrer definitivamente de Portugal e das colónias;

Considerando os profundos sentimentos anticolonialistas e os desejos de paz que animam o Povo Português e os militares portugueses actualmente na Guiné;

O MFA na Guiné reunido em assembleia geral no dia 1 de Julho de 1974;

Perfeitamente identificado com os princípios consignados no Programa do MFA e do Governo Provisório;

Consciente de que a realidade político-social da República da Guiné-Bissau e do PAIGC não é compatível com o seu enquadramento nos limites de uma autodeterminação pela via de um referendo ou qualquer outro processo semelhante;

Convicto de que o impasse verificado nas negociações com o PAIGC tem por causa a recusa sistemática da J. S. N. em reconhecer sem equívocos esta realidade política da Guiné, continuando a insistir em propostas que não dão garantias ao PAIGC, aos restantes movimentos de libertação, à OUA e à comunidade internacional de estar o Governo Português seriamente interessado em reconhecer o direito à independência não só da Guiné, mas também de Moçambique e Angola;

Verificando que aquele impasse está a provocar a rápida deterioração da situação política, económica e social da Guiné;

Dado que as grandes reformas de fundo em todos os sectores só podem ser efectuadas pelo Governo legítimo da Guiné-Bissau e de acordo com o PAIGC, sendo para esse efeito indispensável a resolução prévia do problema político através do reconhecimento da independência;

Tendo em conta que o prolongamento do impasse pode dar origem a graves convulsões político-sociais que, impedindo o curso pacífico mas irreversível do processo de descolonização, comprometam à partida o desenvolvimento independente da Guiné-Bissau assim se fazendo o jogo do colonialismo e dos seus aliados;

Tendo em conta que tal estado de coisas é fomentado e desejado pelas forças reaccionárias e neocolonialistas com o intuito de comprometer o acesso à independência verdadeira da Guiné-Bissau e reflexamente de Angola e Moçambique, pois continua a verificar-se, como durante o fascismo, o temor de certos sectores reaccionários em aceitar uma solução política justa na Guiné para não serem criados precedentes em relação às restantes colónias;

Tendo em conta ser objectivo dessas mesmas forças reaccionárias, ou pelo menos consequência possível do actual impasse, o aparecimento de tendências para resolver localmente o problema independente da posição do Governo Central;

Tendo em conta que a eventual concretização de uma tal política não seria aceite pelo PAIGC que pretende um acordo com o Governo português, válido perante a comunidade internacional;

Repudiando uma eventual solução do problema, sem o acordo do Governo Central, devido às consequências negativas que provocaria na situação política em Portugal, além de criar um grave precedente que instigaria as forças reaccionárias do racismo branco a tentarem também soluções unilaterais em Angola e Moçambique;

Verificando que o impasse da solução política para a Guiné está a contribuir para a deterioração da situação política em Portugal comprometendo a credibilidade interna e externa do Governo Provisório por fazer duvidar da sua real capacidade para executar uma «política ultramarina que conduza à paz»;

Tendo em conta que a assinatura de um acordo político justo na Guiné constituiria um importante contributo para a consolidação da democracia em Portugal e abriria o caminho para o encontro de soluções políticas mutuamente aceitáveis para Angola e Moçambique na base do reconhecimento inequívoco do direito à independência;

E tendo em conta, a existência de um perigo real de recomeçarem as operações militares, o que seria trágico não só pelas vítimas inglórias a que tal daria lugar mas sobretudo por ser possível a derrota militar que justamente o 25 de Abril quis evitar;

Delibera:

  1. Repudiar qualquer solução local e unilateral que não seja aceite pelo Governo Central de Portugal;
  2. Exigir que, vencendo os obstáculos levantados pelas forças reaccionárias e neocolonialistas, o Governo português, de acordo com as resoluções pertinentes da ONU, reconheça imediatamente e sem equívocos, a República da Guiné-Bissau e o direito à autodeterminação e independência dos povos de Cabo Verde, única política susceptível de conduzir à paz verdadeira;
  3. Exigir que sejam imediatamente reatadas as negociações com o PAIGC, não para negociar o direito à independência mas tão só os mecanismos conducentes à transferência dos poderes;
  4. Exigir que sejam desde já dadas por findas as comissões de todos os militares com 18 meses no mato ou 21 meses em Bissau, processando-se à evacuação gradual dos restantes militares nos termos dos acordos a celebrar com o PAIGC;
  5. Apelar para que os militares portugueses encarem a sua presença actual e futura na Guiné, como uma forma de prestar a sua cooperação desinteressada ao povo da Guiné, assim contribuindo para o pagamento da dívida histórica criada pelo colonialismo português.

Notas de rodapé:

(1) Pelo seu valor histórico é publicada no fim desta entrevista. (retornar ao texto)

(2) Capitão Duran Clemente, Capitão Jorge Alves, 1º Tenente Sabino Guerreiro e Alferes Miliciano B. Moura. (retornar ao texto)

Inclusão 24/04/2019