O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


Sem o 25 de Abril, seria uma patetinha
Helena Faria, funcionária pública, 42 anos


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Na noite de 24 para 25 de Abril, estive em casa de uns amigos, éramos todos de Mangualde. De vez em quando, um deles, que andava ligado a uns tipos da tropa, dizia «hoje vai haver um golpe». Nessa noite ele disse: «Vai ser uma coisa!..» Nós rimo-nos e cada um foi para sua casa. No dia seguinte, entra-me o Alcino de repente casa dentro, «há um golpe, há um golpe, abre o rádio!» E fui para a rua, como fizeram milhares de portugueses. Fui para o Carmo, fiz a viagem «turística»...

Andámos por ali a observar, assistimos aos tiros na PIDE, de longe... Depois juntámo-nos ao grupo de teatro — pertencíamos a um grupo que ia às colectividades (clandestinamente, claro. Nós chamávamo-nos «Orfeão»). Um dos elementos tinha estado preso antes do 25 de Abril: o Pedro Barroso era o responsável pela direcção cénica. Para nós, o 25 de Abril foi sobretudo importante pelas características do nosso trabalho, cujo objectivo era contribuir para libertar as pessoas da repressão.

Juntámo-nos, discutimos se devíamos continuar ou não, perspectivámos o que se poderia fazer... E continuámos a fazer teatro, sempre na zona de Lisboa, porque não tínhamos meios para mais. Aliás, foi num desses espectáculos posteriores ao 25 de Abril que fui levada em ombros. Era um texto do Sttau Monteiro, «Sua Excelência», que nós adaptámos à situação nas colónias — o que na altura nos trouxe alguns problemas. Mas ainda fiz mais umas peças — uma delas tinha que ver com a ocupação de casas.

O importante não era tanto a representação, mas o que vinha depois: acabado o espectáculo, e dado que não trabalhávamos com um público intelectual, discutíamos com as pessoas. Era essa a parte mais interessante e rica, o objectivo de tudo o resto.

Uma vez, numa colectividade do Casal Ventoso, houve uma rusga no andar por baixo daquele em que nos encontrávamos, mas avisaram-nos. Recolhemos tudo e

passámos a fazer parte dos frequentadores habituais do local. Quando saímos, ainda fomos perseguidos pela PIDE — lembro-me de ter corrido com os projectores às costas desde o Casal Ventoso até ao Terreiro do Paço.

Mas isso foi antes. Depois, passámos a integrar-nos nos outros espectáculos, éramos um grupo entre muitos. No teatro havia pessoas ligadas aos grupos políticos, outras não, mas a minha ligação aos políticos faz-se na faculdade.

Já com a UDP formada, vou trabalhar para o núcleo da Buraca — onde fico anos —, em tarefas de agitação nos bairros das proximidades. Deixou de haver teatro, toda a gente tinha agora uma vida completamente diferente.

No 28 de Setembro, lembro-me de vir de férias e de saber que havia barreiras e que não podíamos entrar em Lisboa. No 11 de Março é que andei pelos quartéis e no 25 de Novembro estive na Ajuda: um amigo meu estava dentro do quartel com o Tomé.

O 25 de Abril e os acontecimentos que se lhe seguiram representam muito para mim. Talvez porque antes eu sentia a repressão, queria fazer qualquer coisa e não conseguia senão através da «clandestinidade». Tudo aquilo que fiz, fi-lo por acreditar, por convicção, e por isso fui feliz. Por exemplo, quando ia para a Musgueira, eu estava a tentar convencer as pessoas de uma coisa que para mim era fundamental — que tinham direito a viver bem, a serem iguais aos que viviam bem...

Hoje, penso que isso se perdeu: primeiro, as pessoas não lutam; depois, tudo o que fazem é numa perspectiva de ganho pessoal. Quando falo nisto, normalmente chamam-me idealista...

O 25 de Abril foi fundamental. Deu-me objectivos, marcou, talvez, toda a minha posição na vida. Sem ele, se calhar não seria o que sou... Porque eu tinha todas as condições para ser uma patetinha. Ter-me-ia, quem sabe, formado, feito uma linda doutora... Por causa dele, há coisas na sociedade actual com as quais não consigo estar em paz, que são para mim inaceitáveis: corrupção, pobreza, miséria, analfabetismo, a própria repressão...

É verdade que muita gente que viveu o mesmo processo está completamente adaptada. Talvez porque a cultura que adquiriram durante esse tempo não foi solidificada de modo a permitir-lhes continuar. O poder... o poder é também um factor muito importante, e o conformismo... Olhe-se para os funcionários públicos: levam 1,5 por cento de aumento e ainda acham que dez escudos é melhor que nada. Mas o que mais me impressiona é a perda de valores, a competição, o facto de as pessoas só pensarem em si mesmas...

Não, não me sinto frustrada. A minha frustração é que gostava de viver noutra sociedade.

★★★

A Junta de Salvação Nacional não considerou as reivindicações apresentadas pelo Movimento de Libertação das Mulheres: direito a uma sede e extinção do Movimento Nacional Feminino. ‘Este passo legal era necessário para confirmarmos o que pensávamos. Passaremos a lutar por outros meios para conseguirmos os nossos objectivos’, disse uma das delegadas”.

(Diário de Lisboa, 15/5/74)

continua>>>


Inclusão 23/11/2018