O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


Andei a vasculhar a sede da PIDE
Avelino Freitas, empregado, 43 anos


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Após o golpe da Caldas, na primeira semana de Abril, houve um movimento na fragata Pero Escobar, que até hoje não ouvi relatar mas que dá uma ideia do ambiente de revolta que se vivia na Marinha às vésperas do 25 de Abril. Tínhamos chegado das Canárias e estávamos fundeados no Tejo. A tripulação era de oitenta e tal homens que já não podiam suportar o imediato, indivíduo alcoólico, que com a bebida ficava intratável e maltratava o pessoal. Decidimos prendê-lo e, como ele puxasse da arma, um de nós encostou-lhe uma pistola à cabeça e dominámo-lo à força. Metemo-lo preso no porão da amarra e começámos a discutir que o melhor era sair a barra e rumar para a Argélia. O projecto só não se concretizou porque vimos que o combustível não era suficiente para lá chegar. Falámos com o comandante e ele achou por bem abafar o caso, como se nada tivesse acontecido. Resta acrescentar que a ideia da insubordinação partiu de um grupo marxista-leninista que estava organizado no navio.

Tomei conhecimento do 25 de Abril por volta das 3 horas da manhã. Estávamos atracados no Alfeite e havia uma esquadra da NATO fundeada no rio. O radio-telegrafista foi-me chamar, dizendo que estava a apanhar comunicações num canal militar raramente utilizado. Pusemo-nos à escuta e às 5 da manhã já não tínhamos dúvidas que havia movimentos de tropas. Pelas 6,30 as comunicações deixaram de ser em código. Passadas duas horas, quando o comandante chegou ao navio, dissemos-lhe que estávamos ao lado do golpe, que iríamos prender o imediato mal ele entrasse na fragata e que queríamos saber qual seria a sua atitude. Foi assim que o 25 de Abril chegou à Pero Escobar, o primeiro navio da armada a aderir.

Vi há tempos num jornal uma entrevista do então comandante da Gago Coutinho, onde ele negava ter dado ordens para bombardear o Terreiro do Paço. Ora, quando nesse dia entrámos em contacto com a Gago Coutinho foi-nos dito que ele ordenara mesmo o bombardeamento e que isso só não aconteceu porque a tripulação não obedeceu e cortou os circuitos hidráulicos das peças de fogo.

No dia 27 de Abril integrei uma força que foi ocupar a sede da PIDE/DGS na António Maria Cardoso. Entrei e comecei a receber os pides que se vinham entregar. Para mim, que já andava há 5 anos na luta clandestina, foi uma sensação extraordinária, um misto de raiva e alegria. Ali estava eu, recebendo os agentes da PIDE, que vinham entregar as armas e serem presos. Durante os três dias que lá permaneci não houve qualquer represália sobre os pides que vinham de forma pacífica. Houve, sim, sobre os que chegavam em atitude agressiva e arrogante. Passado um minuto já não tinham agressividade nenhuma.

Durante esses dias não dormi. Andei a vasculhar a sede. Queria ler os documentos, saber até onde tinham chegado as suas investigações. Eles ainda conseguiram queimar alguns papéis mas a esmagadora maioria estava intacta nos ficheiros. A leitura dos processos era fascinante. Alguns relatórios de vigilância chegavam a pormenores que não passavam pela cabeça de ninguém, do género “fulano entrou às tantas horas num sanitário público e saiu às tantas em direcção a...”

Foi um choque ver as salas de tortura. Eram duas, no último piso. Ao lado ficava o estúdio de fotografia. Lembro-me de ver fotografias de um baptizado com círculos a assinalar a mãe. Nem os baptizados escapavam à vigilância daqueles canalhas.

★★★

Na comissão encarregada da extinção da Pide e da Legião há um sector que está a usar os mais estranhos argumentos: à sua “consciência jurídica” repugna perseguir pessoas que “se limitaram a cumprir ordens”; consideram as torturas da Pide simples “ofensas corporais”, pelo que não se justifica a aplicação de penas severas; de resto, dizem, “a opinião pública não compreenderia uma política de represália.”

(Voz do Povo, nº 0, 13/7/74)

continua>>>


Inclusão 23/11/2018