L. A. & Cª no meio da revolução

Texto de Maria Mata
Ilustrações de Susana Oliveira


O meu pai é o mais distraído do mundo


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— Ana! Ana! Chega aqui depressa! — berrava o Luís da janela do 2º direito. — A mãe diz que não te deixa sair se não vieres já arrumar o teu quarto!

— O quê? — respondia-lhe a irmã cá de baixo, fazendo-se desentendida. — Mas eu já arrumei tudo!

— Anda cá acima depressa, Ana! Não repito outra vez! — o tom de voz da mãe não deixou dúvidas nenhumas; Ana subiu as escadas o mais rápido que pôde.

"Realmente a mãe tem razão!" pensou com os seus botões, enquanto voava a esconder no armário as roupas espalhadas pelo chão, e fazia a cama, às três pancadas. "Mas é tão chato arrumar!" e suspirou, correndo para a casa de banho com um monte de roupa suja na mão.

— Já está, mãe! Já está! — gritou na direcção da cozinha.

— Hummm! Vou já ver isso! — foi a resposta.

Naquele sítio era difícil arranjar uma empregada de confiança, por isso a D. Helena preferia não ter nenhuma, mas perdia a paciência com facilidade quando via alguma coisa fora do lugar. No fundo, no fundo, também não gostava nada de repetir aquelas tarefas dia após dia! E ficava furiosa quando os filhos não a ajudavam.

Além disso o pai andava nos últimos tempos com os nervos em franja. Chegava a casa tardíssimo, dava um beijo distraído na mulher e nos filhos, e enfronhava-se no seu escritório até altas horas da noite. Chegava a esquecer-se de jantar! Quando se dava conta das horas, berrava, do meio da papelada que não deixava ninguém arrumar:

— Vão jantando que eu vou já, já! É só mais um minutinho!

E já se sabia que nunca mais viria, e que a noite acabaria com a Ana aos berros, do lado de cá da porta:

— Abre, pai! A mãe fez umas sanduíches para tu não morreres à fome, aí dentro!

O pai da Ana e do Luís era físico, tinha o curso de Ciências Físico-Químicas e trabalhava no Laboratório de Física e Engenharia Nucleares de Sacavém. Era muito distraído, o que trazia um sem número de complicações à família, e sobretudo, irritava a mãe.

Mas a Ana e o Luís até gostavam. Já tinham descoberto que um pai distraído nem sempre liga às asneiras dos filhos! E chega ao ponto de dizer que sim a um pedido a que respondera não, no dia anterior! E ter um pai cientista que trabalha com átomos, partículas, electrões, protões e outras coisas do género, nem toda a gente tem!

O Luís e a Ana tinham um grande orgulho por terem um pai assim e tinham pena do Sr. Adão que tinha andado uma semana inteira a pintar o andar e que, com toda a certeza por distracção, se tinha esquecido de pintar o tecto do corredor. Só de ver a cara dele quando se deu conta do seu esquecimento ... acabou por pingar as paredes todas e ter de pintar novamente o corredor inteiro!

Com o pai era diferente. Quando a mãe se queixava às amigas das distracções do marido, respondiam-lhe sempre: "Deixa lá filha. Tens de desculpar. É cientista ... Anda sempre na Lua."

A família morava em Sacavém, num prédio de cinco andares. O andar era tão parecido com todos os outros que, uma vez, o pai da Ana, o Dr. Barroso, se enganou no botão do elevador e, ao regressar a casa ao fim do dia, rodou a maçaneta da porta da casa que não era a sua e chegou ao cúmulo de depositar um beijo na cara da mulher do vizinho do 3º direito.

O Filipe e o Nuno eram gémeos e moravam no mesmo andar, no apartamento pegado. O pai deles vivia no estrangeiro já há muitos anos. A mãe contara-lhes que, ainda eles eram bebés, o pai tivera de fugir para outro país porque não tinha as mesmas ideias do governo. Quando os filhos lhe perguntavam porque é que ele não voltava, ela ficava muito triste e respondia sempre: "O pai é um lutador. Gosta muito da Liberdade. Quando vocês forem maiores hão-de compreender ..." E, muitas vezes, chorava ao dizer isto.

O Filipe e o Nuno tinham caras exactamente iguais. Só a Ana e o Luís, e, é claro, a mãe deles, os diferençavam. Com as outras pessoas as confusões eram tão constantes que já ninguém ligava muito! Ainda por cima eram cómicos, porque eram altos e magríssimos, com os cabelos rapados à escovinha e sempre vestidos às três pancadas.

— Vocês parecem dois espargos saídos da mesma lata — dizia Ana quando os queria arreliar.

— E tu uma pulga, com a mania que é espertinha! — retrucavam eles.

Estavam sempre a aproveitar as parecenças para pregarem partidas a toda a gente e, na escola, eram conhecidos pelas suas mirabolâncias. Quando apareciam caras novas, então, era uma festa para eles! Umas vezes eram castigados, mas outras acabavam por lhes perdoar, porque, na realidade, as suas brincadeiras eram sempre engraçadas e acabavam por não prejudicar ninguém.

Eram os principais companheiros do Luís e da Ana e amigos inseparáveis, desde que os pais tinham ido morar para ali.

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— Que chatice! — bocejava a Ana, sentada com os amigos, nos degraus da entrada do prédio. Foram mesmo umas férias para esquecer!

— Não me apetece nada recomeçar as aulas!

— Claro, espantoso era que te apetecesse!

— Os adultos sabem muito bem fazer promessas! O pior é cumpri-las ... — suspirava o Luís, sentado na outra ponta das escadas.

— Promessas, leva-as o vento! A minha mãe está sempre a dizer isso! — lembrou o Filipe.

Todos pensavam no projecto do pai do Luís e da Ana de irem ao Algarve, nas férias da Páscoa, para passar uns dias e alugar uma casa para o Verão.

— E se fôssemos nós, sozinhos, por aí fora?! À boleia!

— É verdade! Fazer umas feriazinhas só nossas! — lembrou Nuno, com os olhos a brilhar.

— Não queriam mais nada! — retorquiu-lhe o Luís. — Como de costume, estão os dois malucos!

— Ora essa! Confessa que era uma ideia genial!

— Piramidal! Não gastávamos dinheiro na viagem, e com as nossas economias ... — continuou o Filipe.

— E púnhamos toda a gente em reboliço, não?! As nossas mães morriam logo de susto!

— Deixávamos uma carta a explicar ... — replicou o Nuno, já de orelha murcha.

— O que vocês queriam era faltar às aulas! Confessem lá! — troçou o Luís.

— Deixem-se mas é de disparates! — atalhou a Ana. — O meu pai não faz por mal ... tem andado com tanto trabalho que não tem tempo para pensar em promessas!

— Ouçam a pulga a discursar! — disse o Filipe, furioso com a Ana.

— O pior é que a minha irmã tem mesmo razão ... — gemeu o Luís. — Encarregaram o meu pai de um estudo muito complicado. São uns documentos que vêm de fora e que ele tem de analisar nos computadores ...

— É por isso que chega a casa cada dia mais tarde, e parece cada vez mais na Lua! — concluiu a Ana.

— Imaginem que no outro dia, à mesa, até fez os gestos de levar a colher à boca sem ter ainda o prato da sopa na frente!

— É verdade! E a mãe, a rir, perguntou-lhe se a sopa estava boa e ele aí respondeu-lhe: "Qual é a graça?" Sem fazer a mínima ideia da figura que estava a fazer!

— Ou às vezes nem janta! Se não fosse eu levar-lhe comida ao quarto de trabalho, acho que morria à fome! — acrescentou Ana toda orgulhosa do seu papel.

— Meninos! — chamou a mãe, do 2º andar. — Venham já lanchar! Os gémeos que venham também!

Não foi preciso chamar duas vezes. Subiram as escadas a correr e precipitaram-se para a cozinha, lavando as mãos à pressa. Lançaram-se ao lanche que a mãe preparara já a contar com os dois amigos.


Inclusão: 29/04/2020