L. A. & Cª no meio da revolução

Texto de Maria Mata
Ilustrações de Susana Oliveira


Outro assalto


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— Ora esta! — dizia a Ana muito espantada.

— Talvez tenha ido às compras! — dizia o Nuno.

— Às oito horas da noite? As lojas estão fechadas desde as sete!

— Talvez tenha ido a casa de um vizinho ...

— A minha tia não conhece aqui ninguém, o que ia ela fazer para casa de um vizinho?

— Ou então foi-se embora ... Tanto se chateou connosco que decidiu voltar para casa!

— Não me parece que a vossa tia fizesse uma coisa dessas sem avisar — disse a D. Isabel. — O mais natural é que tenha havido qualquer imprevisto que a fez sair de casa.

Mas, de repente, o Luís colou o ouvido à fechadura. Parecera-lhe ouvir uma espécie de gemido.

— Está alguém dentro de casa. E a gemer!

Fez-se um grande silêncio no patamar e puderam com efeito ouvir um barulho. Pareciam gritos muito abafados. Olharam uns para os outros.

— Vou já chamar a polícia e os bombeiros! — disse a mãe dos gémeos, muito aflita, procurando as chaves de casa dentro da carteira.

Mas o Nuno, sorrateiramente, sem a mãe se dar conta disso, tirou o jornal que ela trazia na mão e entrou em casa, logo atrás dela. Passaram dois minutos e ouviu-se, dentro da casa do Luís e da Ana, a sua vozinha aflautada:

— Já cá estou dentro! Abro-vos já a porta!

Os outros entreolharam-se, mudos de espanto.

— Avancei a varanda! Eu sabia que a porta da cozinha tem sempre a chave por dentro. Meti o jornal por baixo da porta, empurrei a chave com esta caneta — e mostrava uma esferográfica com a ponta toda roída. — Foi facílimo! A chave caiu em cima do jornal. Puxei-o para fora, abri a porta e ... aqui estou!

A mãe, entretanto, ouvira barulho e voltara para trás. Naquele momento parecia indecisa entre pregar-lhe um tabefe ou dar-lhe um grande e orgulhoso beijo.

Entraram todos. Os gemidos vinham da zona da cozinha. Ninguém! O Luís tentou abrir a dispensa. Era de lá que vinham os gemidos! A porta estava fechada à chave. Mas a chave não estava na porta! No meio da atrapalhação, acabaram por encontrá-la, caída, debaixo da mesa da cozinha!

Foram dar com a pobre tia Emília, sentada no chão a um canto da dispensa, amarrada de pés e mãos, e com a boca tapada por um adesivo. Estava roxa de tanto gemer e tinha marcas nos braços e nas pernas do esforço que fizera para se libertar das cordas que a atavam. Foi-lhe muito difícil pôr-se em pé depois de tantas horas de posição forçada.

"Aposto que os ladrões a amordaçaram porque não a aturaram", pensou o Filipe. "Imagino-a a barafustar: — Estão a desarrumar tudo! Não há direito de assaltar casas de gente honesta! Quando vier o Dr. Barroso, vai-lhes dizer!" e um sorriso irónico desenhou-se-lhe nos lábios.

Mas os sobrinhos, esquecidos das confusões da véspera, estavam cheios de pena dela. Ajudaram-na a deitar-se no sofá da sala e a Ana foi buscar uma pomadinha e esfregou-a, com muito cuidado, nos pulsos e nos tornozelos da Tia. O Luís, tinha ido buscar um cobertor para a aconchegar. A Tia Emília acabou por sorrir.

— E agora? — disse de repente muito aflita. — Não pude fazer o jantar! Não há nada para vocês comerem!

Os miúdos olharam uns para os outros, espantados. Parecia impossível como é que uma pessoa que acabava de sair de um pesadelo daqueles, a primeira coisa de que se lembrava, depois de tudo ter passado, era que não tinha conseguido fazer o jantar!

— Não tem importância, Senhora Dona Emília — disse a mãe dos gémeos. — Eu vou arranjar qualquer coisa para comer e de certeza ...

— Meu Deus! Vão depressa ao escritório do vosso pai! — gritou de repente a tia, interrompendo a D. Isabel. — Acho que eram os papéis dele que eles queriam! Devem ter posto tudo em pantanas ... Pelo barulho que faziam! — e começou a soluçar, nervosíssima.

Correram todos para o escritório. A confusão era indescritível. Havia papéis espalhados por todo o lado. As gavetas, no chão, viradas do avesso até ao forro. Tinham despejado tudo o que poderia conter o mínimo papel. Um cofrezinho de embutidos que o Dr. Barroso tinha em cima da secretária, ao pé das fotografias dos filhos, tinha sido estroncado. Até as fotografias tinham sido separadas dos caixilhos.

— Acham que eles encontraram o que queriam? — perguntou a Ana, quase a medo.

— Se não sabemos o que eles queriam!

— Agora só o Dr. Barroso pode saber ... — murmurava a D. Isabel, abanando a cabeça.

Depois de passados os primeiros momentos, começavam a sentir-se muito desalentados. Quando acabaria tudo aquilo? Via-se pelo caos em que o quarto ficara que tinha sido uma busca muito precipitada e desordenada.

— Com toda a certeza que estiveram lá fora à espera que nós saíssemos — disse a mãe dos gémeos. — E a seguir subiram ... grandes patifes!

A tia Emília, a coxear, tinha-se levantado do sofá e, do limiar da porta, assistia à cena, fungando, com um enorme lenço amarfanhado encostado ao nariz.

— Foi isso mesmo! Mal vocês saíram, tocaram à porta dois homens. Eu vi-os pelo óculo e pareceram-me os dois polícias que cá vieram ontem ...

— Saiu-lhes a sorte grande ao serem confundidos com os polícias!

— Sim, deviam vir preparados para forçar a fechadura!

— Abri a porta — continuou a tia Emília — e nem tive tempo para dizer nada. Agarraram-me e taparam-me a boca com um pano húmido. Devia ter qualquer coisa que me fez desmaiar ... Quando recuperei os sentidos, estava amarrada de pés e mãos, dentro da arrecadação. Não tinha a noção das horas, claro, porque não sabia o tempo que tinha ficado inconsciente ... Mas ainda cá estavam quando acordei, disso tenho eu a certeza. Ouvia-os a falar, mas não percebia nada do que diziam ...

— Mas o que é que eles querem mais? Não roubaram já tudo o que queriam?

— Pelos vistos parece que não ...

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— Isso só o teu pai pode dizer! Ele é que sabe o que tinha dentro da pasta!

— Grandes patifes!

— O melhor é ligar já para a polícia!

— Claro, claro!

Mas a tia Emília não se calava:

— Depois, sempre que ouvia passos nas escadas, eu berrava o mais que podia, mas era muito difícil ouvirem-me com a boca assim tapada ... Até que, graças a Deus, vocês chegaram e eu fiz um esforço desesperado para me fazer ouvir ... escutava as vossas vozes, mas vocês não ouviam os meus gritos ...

— Deixe lá tia Emília, já passou ...

— Agora vamos mas é ligar para a polícia! Não pense mais nisso!

— Não me perdoo por lhes ter aberto assim a porta ... Devia ter olhado com mais cuidado ... — Continuava a pobre senhora, muito chorosa.

— Já passou, senhora dona Emília, já passou ... — repetia a D. Isabel, enquanto, ao telefone, aguardava o contacto com a esquadra da zona.

— E os polícias que cá estiveram? Eles deixaram aí o telefone deles para o caso de nos lembrarmos de mais alguma coisa! — lembrou-se de repente o Luís.

— É verdade, vamos telefonar-lhes também — respondeu a Ana, olhando de soslaio para a tia Emília.

— Isso, isso, telefonem já — disse a senhora, para espanto de todos, menos da mãe dos gémeos, que não estava nada a par das confusões da véspera.


Inclusão: 29/04/2020