L. A. & Cª no meio da revolução

Texto de Maria Mata
Ilustrações de Susana Oliveira


Uma descoberta... espantosa


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O Filipe tinha um grande galo na cabeça e um ar muito cansado, quando chegaram a casa.

Apesar disso, os três combinaram encontrar-se na garagem, após uma passagem rápida pelas respectivas casas, só para se certificarem que não havia novidade.

O Luís e a Ana chegaram primeiro porque nem tinham precisado de passar da porta. O quarto da tia Emília ficava muito perto da entrada e ela ressonava tão alto que, com o resto da casa todo em silêncio, até se ouvia cá fora, no patamar. Se fosse noutra altura este pormenor teria provocado aos dois um forte ataque de riso mas, naquele momento, apenas fizeram tudo para se despacharem o mais rápido possível, pelas escadas abaixo.

O Luís guardara o bloco no fundo do bolso.

— Claro! — disse, de repente, a Teresa como se falasse consigo própria. Foi fácil mascarar-se de Eng. Lima ... Ele está sempre de cachimbo ao canto da boca. Só foi preciso roubar o carro e pôr uma barba e um bigode postiços!

— Tu não sabes se eram verdadeiros! Se calhar deixou crescer a barba para poder dar o golpe com mais segurança!

— E a cor do cabelo? Se aquele era o tal americano de que o pai falava, era loiro de certeza! Os americanos são todos loiros!

— É verdade! No escuro nem reparamos na cor do cabelo ... mas de certeza que aquele não era o americano que o pai conheceu ... Quem dá estas golpaças nunca são os chefes ... Este devia ser só um pau mandado!

— É verdade, não me tinha lembrado disso ... O que me espanta é como o segurança não deu por nada !

— Ora, o segurança! Àquela hora da noite já devia estar meio a dormir! Deu lá por alguma coisa!

— Claro! Viu o carro do meu tio e pronto! Que raio de segurança é esse? — exclamou o Filipe que entretanto também chegara. Trazia umas poucas de lupas no bolso das calças. — Lá por cima não há novidade ... a mãe está a dormir. Se ela sonhasse o que está a acontecer ... — concluiu quase sem voz.

— E tu, já estás melhor? — perguntou a Ana, maternalmente. — Puseste alguma coisa no galo? Dói-te muito?

— Estávamos à tua espera para examinarmos o bloco ... Vais ver que vamos encontrar as marcas dos dedos! Trouxeste aquela lupa que o meu pai até disse que era quase um microscópio?

Como resposta, Filipe passou a Ana uma pesada e espessa lupa. O Luís tinha trazido para cima da mesa de ping-pong um candeeiro de pé, que colocou junto ao bloco, provocando um foco de luz muito intenso.

O Filipe, novamente muito pálido, roía as unhas, enquanto o Luís e a Ana observavam atentamente o bloco, olhando ambos pela lupa.

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— Temos de conseguir, temos de conseguir, temos de conseguir ... — repetia baixinho a Ana por entre dentes.

O Filipe, impaciente, também quis espreitar e, sem querer, começou a empurrar o candeeiro .

— Mau! Se não consigo ver nada! — protestou o Luís.

— E eu? Quero ver! Afinal, não faço nada? Sou o principal interessado ou não? — o Filipe fazia um grande esforço para não chorar.

— Tem calma, pá, assim é que não chegamos a lado nenhum — e o Luís deu-lhe uma palmadinha nas costas, à laia de afago.

— Espera, espera! — gritou de repente a Ana. — Estou a ver uma coisa ...

— Tu deves estar é doida! A folha está toda lisa e branca!

— Não, não, olha! Largo do Ca ... Largo do Ca ...

Os outros dois, completamente surpresos, não percebiam nada.

O Filipe, numa pilha de nervos, agarrado ao pé do candeeiro, continuava a fazer oscilar a sombra projectada no bloco.

— Estou a ver, estou a ver! — gritou de repente o Luís. — Largo do Ca ... 18 ,...... Lx .... Não vês, Filipe?! Olha por aqui!

O gémeo até tremia. Estava tão nervoso que não conseguia ver nada. Só lhe apetecia fugir dali, a correr, e ir ter com o irmão, nem que ele estivesse no fim do mundo.

— Não vejo nada ... balbuciou, desconfiando que os outros dois tinham inventado aquela história só para o consolar.

De facto, nada tinha sido escrito naquela primeira folha suja e amassada, mas, na anterior, que tinha sido rasgada, alguém escrevera, talvez com uma esferográfica e riscando com muita força, uma direcção que ficara gravada na folha de baixo. Algumas letras percebiam-se muito bem à luz rasante da lâmpada.

— Espera, espera — disse o Luís. — Se pusermos a lâmpada na posição certa e com a lupa grande, é canja! E ao fim e ao cabo ... para que queríamos nós as impressões digitais?

— Sim, sim, sem dizermos nada à polícia, como íamos nós descobrir os ladrões? — concluiu Ana, entusiasmada com a bela descoberta que tinham feito.

— Vamos lá a ver! — disse o Filipe mais animado, pegando na lupa e aproximando o candeeiro do bloco. — Isto tem que ter um ângulo especial para se conseguir ler. E ficou muito calado a tentar decifrar a direcção.

Conseguia-se ver perfeitamente que a primeira palavra era "LARGO" e a segunda "DO". A seguir havia letras soltas e vários números.

— Olha, olha, cá no fundo estão gravados um "l" e um "x". "LX"! Onde é que eu já vi isto? Ah! Já sei! Quer dizer ... Lisboa! Isto é uma direcção de Lisboa! — concluiu o Filipe, mais animado.

— E agora, descobrirmos o nome do Largo? Não sabemos as letras que faltam!

— Mas podemos ver pelos espaços entre elas ...

— Vou a casa, num instante, buscar um roteiro! — disse a Ana.

— Traz também um mapa! — acrescentou o Filipe.

— Já sei! Quando tivermos o roteiro vemos com atenção todos os largos em Lisboa que comecem por um "G" e um "A". Se encontrarmos um que coincida com estas letras e possa ser completado com outras ...

— Óptima ideia! — aprovou o Luís.

— Mãos à obra! — exclamou a Ana, desaparecendo na escada que conduzia aos andares.

— Nunca mais vamos encontrar o tal Largo! — disse o Filipe, de novo desanimado, quando estenderam o mapa todo aberto, em cima da mesa de ping-pong.

— Não sejas parvo, Filipe! nunca consultaste um roteiro? Tem aqui ao lado o nome de todas as ruas e largos, por ordem alfabética! Estás a ver? Olha para aqui!

— Vamos procurar em "Ga" — disse a Ana. — Talvez "Gai" ... não se percebe bem se é um "i" ou um "l". A seguir, há um espaço e depois um "V"... e um "O"! — com uma mão segurava a lente, enquanto com a outra, fazia deslizar sobre o papel o foco luminoso. — O número da porta e o andar percebem-se bem. O pior é o nome do Largo!

— É assim uma espécie de charada que temos de adivinhar ... é pena mas é que seja nestas circunstâncias! — rematou o Luís.

O Filipe olhava, muito atento, para a parte do roteiro que tinha as ruas e largos começadas por "Ga" ...

— Afinal só há um largo a começar por "Ga" ... É "Galvão", "Largo do Galvão". Deixa ver se coincide ... Claro! Claro, aqui é de certeza um "L" e ali o "A" não ficou marcado. Esqueceram-se do til, mas é natural que estivessem muito nervosos! — o Filipe suspirou de alívio. — Nunca pensei que fosse tão fácil !

Debruçaram-se os três sobre o roteiro. O Luís coçou a cabeça.

— Parece que tens razão ... de todos os nomes de largos, este é o que se aproxima mais das letras do bloco!

— Boa! E agora? Em que zona de Lisboa é que fica?

— Também é fácil ver ... disse o Luís. Conheço bem este mapa ... já estive uma vez a consultá-lo com o meu pai e ele explicou-me ...

— É verdade, é verdade! — interrompeu a Ana. — O mapa está dividido em quadrados. Os quadrados na horizontal têm um número, os quadrados na vertical têm uma letra. O Largo do Galvão fica em C12, quer dizer, no cruzamento da coluna C com a coluna 12.

— Caramba! Tens sempre de te meter! E se me deixasses explicar até ao fim em vez de estares para aí a dar sentenças?

— Desculpe se o ofendi, menino! Parece que és parvo!

— Deixem-se de rabugices! Isso parece-se mais com a batalha naval do que com outra coisa! E agora? Afinal quem é que descobre onde fica este Largo do Galvão?

Os dois irmãos atiraram-se ao mapa, em silêncio.

— Cá está ele! — disseram ao mesmo tempo, apontando o mesmo sítio do mapa. Fica ... em Belém!

— Azar! ... Eu de Belém só conheço a Torre, os Jerónimos ... Ah e uma casa antiga, muito engraçada, que só vende pastéis de nata quentes, com canela!

— Ora, ora, quem tem boca vai a Roma! E para que serve o mapa? Vais ver que quando chegarmos a Lisboa descobrimos!

— A Lisboa? Já decidimos que íamos a Lisboa? Agora?!

— Vamos já para Lisboa! Vamos já! — insistia o Filipe, de novo muito pálido. — Precisamos de chegar ao tal Largo o mais depressa possível!

— Calma! Vamos pensar com calma! — replicou o Luís. — Como é que queres ir agora para Lisboa? — e, voltando-se para o Filipe. — Não deve haver comboios a esta hora da noite e, além disso, tu precisas de descansar ao menos umas horas!

— Vou dizer-vos já, já, o que vamos fazer — concluiu a Ana. — Agora vamos para cima, para a cama. Vamos tentar descansar o mais possível! Amanhã levantamo-nos, como se fôssemos para as aulas. Levamos a pasta e tudo, para ninguém desconfiar. Em vez de irmos para a escola, metemo-nos no comboio para Lisboa! Procuramos o tal Largo e trazemos o teu irmão e a papelada toda! Que tal?!

— Acho muito mal levarmos as pastas! — disse o Luís, como quem pensa em voz alta. — Só vão estorvar. O melhor é deixarmos as pastas aqui, debaixo da mesa de ping-pong.


Inclusão: 29/04/2020