L. A. & Cª no meio da revolução

Texto de Maria Mata
Ilustrações de Susana Oliveira


Um final feliz


capa

— Bom ... E agora?!

Olhavam uns para os outros, excitadíssimos.

— E se falássemos mas é à polícia? Não acham que chegou a altura de eles fazerem alguma coisa?

— Qual polícia? Esta, da Pide? A outra, da Judiciária? A da esquadra do nosso bairro? Nunca me passou pela cabeça que houvesse tantas polícias! Que confusão! — dizia o Filipe, desorientadíssimo.

— E tem muita graça a tua ideia, maninho! Não ouviste o Nuno dizer que a casa está sem telefone?! — ripostava a Ana.

— Sabes lá se é só o telefone daqui que está avariado?

— Pode ser ... Mas isso resolve-se. Na Praça, há uma cabine. Falamos da cabine!

— Duvido que consigamos alguma coisa no meio de toda aquela confusão!

— E o mais natural é que os telefones não funcionem mesmo! Se estamos no meio de uma revolução, está tudo virado de pernas para o ar!

— Já sei o que vamos fazer! — disse o Luís. — Não temos telefone, portanto não temos polícia. Mas temos tropa com fartura, aqui ao pé de nós! Acho que devem ter a mesma autoridade ... ou parecida. Se já prenderam o outro! O melhor é vocês irem os três contar-lhes tudo! Eu fico aqui a tomar conta ...

— Boa ideia! Ao fim e ao cabo já lá têm um ...

— Agora que venham buscar o outro!

— E este ainda tem sorte! Ninguém vai a correr atrás dele, a berrar-lhe que é da Pide!

— É, entra logo, directo ... no blindado!

A Ana e o Nuno desceram as escadas. O Filipe aproveitou para se escarranchar no corrimão e descer pelas escadas abaixo, num rufo.

— Aproveita para ver se nos queres complicar mais a vida e rachar a cabeça! — avisara a Ana.

Mas o Filipe estava tão contente e orgulhoso que nem sequer lhe ligou.

— Vamos falar com os que prenderam o outro, não é melhor?

— Sim, se já lá têm um!...

E dirigiram-se para o blindado.

— Queremos saber quem é que manda aqui ... — começou o Filipe.

— Mas estamos com um bocado de pressa! — acrescentou a Ana. — Temos outro ladrão, no quarto andar, desmaiado. Se ele acorda estamos fritos ...

— E trabalhava com esse que vocês prenderam aí dentro — concluiu o Nuno.

De cima do blindado, os soldados escutavam, espantados, as três crianças.

— Quer dizer que vocês prenderam outro Pide? E dentro de uma casa?!

— Não são da Pide, são ladrões! — exclamou a Ana, já nervosa. — Vocês só podem prender os tais Pides? Não podem prender ladrões ... normais?

— Já tentámos falar para a polícia, mas com toda esta confusão ... — mentiu o Nuno.

— Bom, vamos a ver o que se arranja ... — disse um dos soldados. E virou-se para outro soldado:

— Ó Lopes, vai ali dizer ao nosso Capitão, que vamos com os miúdos caçar mais um pássaro marau! Se vocês estiverem a brincar comigo nem sabem o que lhes pode acontecer! — concluiu, virado para os três, e fazendo uma voz muito grossa.

Lá em cima, o Luís explicou-lhes com pormenores a história do roubo dos papéis secretos, do rapto do Nuno, e como, por fim, tinham encontrado os dois ladrões.

— Sim senhor, quatro bravos em miniatura! — elogiou o soldado. — Tenho que lhes dar os meus parabéns ... Mas agora vamos mas é levar este macaco para baixo, antes que acorde ... e dê mais trabalhos do que já deu!

Pegaram nele pelos braços e pernas, e levaram-no em charola pelas escadas abaixo, com os quatro atrás. Luís levava na mão as pastas com os projectos.

— Não te queres despedir da casa, Nuno? — disse, trocista, enquanto fechava a porta.

— Sabem que mais? Estou mas é esfomeado! — respondeu este, à guisa de resposta. — Só agora me lembrei que, desde ontem que não como nada!

— Agora que falaste nisso, também estou a sentir uma fome de lobo! — acrescentou o Filipe.

— Podemos ir de novo aos pastéis de Belém! São muito inspiradores! E pode ser que nos inspirem ... outra aventura!

— Outra alhada, queres tu dizer!

— Alhada? Qual alhada? Não achaste isto tudo muito emocionante?!

— Somos os maiores!

— Os melhores!

Tinham chegado à rua. Quando as pessoas viram os soldados, carregando um homem desmaiado, abriram caminho para eles passarem.

— Bem, apesar da fome, acho que a melhor coisa a fazer é ir já, já, para o Hospital, levar as pastas com os documentos, ao pai. Os pastéis de Belém podem esperar! — disse o Luís.

— É melhor! — aprovou a Ana. — Vai ter um tal alegrão! Se calhar, melhora logo, e volta hoje para casa connosco!

Os soldados tinham acabado de meter o homem dentro do blindado e um deles ouviu a conversa dos quatro.

— Mas onde é que vocês pensam que vão? — perguntou. — As ruas estão cheias de tropa e de gente. Há muitas zonas sem transporte, e ninguém sabe o que pode acontecer de um momento para o outro! É muito perigoso para vocês andarem assim por aí ... — e disse qualquer coisa ao ouvido de outro soldado, que se afastou e voltou passados minutos.

— Estão cheios de sorte! O nosso Capitão pôs um jipe à vossa disposição para vos levar aonde quiserem!

Os quatro não cabiam em si de contentes! Passear pela cidade num jipe do exército! Depois de todas as emoções passadas, aquela parecia agora ser a mais empolgante de todas!

O soldado levou-os ao jipe e disse ao condutor:

— Por ordem do nosso Capitão, leva estes catraios onde eles quiserem! — e, virando-se para os quatro: — Fiquem descansados! Vamos entregar aqueles patifes à Polícia Judiciária! Até vão ficar muito bem guardados! E os meus parabéns! Vocês são uns valentes! Boa viagem até ao Hospital!

De cima do telhado, os outros dois soldados ficaram a dizer-lhes adeus, até o jipe desaparecer ao fundo da rua ...

A viagem até ao Hospital foi um sucesso. Havia muita gente pelas ruas, apesar de grande parte das lojas estar fechada. Ficavam todos a olhar para um jipe que, em vez de tropa, transportava crianças! Algumas pessoas diziam-lhes adeus, e eles retribuíam, cheios de animação, felicíssimos.

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Quando chegaram ao Hospital, foi uma correria pelos corredores. Por pouco não esbarravam com a mãe do Luís e da Ana, que, de um telefone de moedas, ligava para casa. Quando a mãe viu os quatro na sua frente, com um ar estafado mas contentíssimo, o Luís agitando no ar uma pasta em cada mão, não sabia se havia de rir, chorar, ou pregar-lhes uma tareia. Ficou com o auscultador na mão, quase sem respirar, enquanto do lado de lá, a tia Emília continuava a falar, berrando o mais que podia .

— Estávamos todos aflitíssimos! Há que tempos que vocês deviam ter chegado a casa ... Nem disse nada ao pai para não o afligir ainda mais ... Num dia como o de hoje ... Está tudo para aí numa confusão! Parece que as ruas estão cheias de soldados ... A Isabel nem veio trabalhar hoje ... Telefonou-me há três horas, a dizer que vocês ainda não tinham aparecido ... A seguir telefonou-me a tia Emília, a chorar ... Já se falou para a polícia de Sacavém, mas parece tudo maluco ... Até já falei para os hospitais todos de Lisboa ...

Os quatro agarraram-se a ela e não a deixaram falar mais. O Luís pegou no auscultador que pendia do fio. A tia Emília, do lado de lá, berrava sem se cansar, e este apressou-se a sossegá-la com uma versão muito sumária dos acontecimentos. A seguir foi a vez dos gémeos falarem para casa.

Quando entraram no quarto do Dr. Barroso, foram recebidos com um olá naturalíssimo e bem disposto. Pudera! Fora o único poupado de aflições!

Mas quando o Luís lhe pôs as pastas intactas com os documentos em cima da cama, aí sim. Ficou tão espantado que os quatro não aguentaram mais e começaram a contar-lhe todas as peripécias da sua aventura. Mas era tal a excitação, com todos a quererem falar ao mesmo tempo, que acabaram por se calar e o Luís, o mais calmamente que pode, explicou-lhes tudo tim tim por tim tim.

Mal tinha acabado, entraram a mãe dos gémeos e a tia Emília pela porta dentro! Foi um nunca mais acabar de abraços e exclamações.

A tia Emília tinha-se prevenido: Como já era muito tarde e ainda ninguém jantara, trouxera consigo um enorme saco donde foram saindo pastéis de bacalhau, rissóis, croquetes, dois magníficos bolos e uma grande quantidade de biscoitos e bolachas! Só o Dr. Barroso não quis nada. Nos hospitais janta-se sempre muito cedo!

Mas a cama dele transformou-se de repente na mesa do festim mais delicioso do mundo! E aqueles quatro, estavam tão esfomeados, que nem conseguiam responder às perguntas ansiosas da mãe dos gémeos e da tia Emília, que, no meio de tanta excitação, ainda não tinham conseguido perceber o que se passara. Era uma mistura de risos, abraços, gargalhadas e explicações atabalhoadas que ainda lançavam mais a confusão.

— Então a Isabel e os gémeos estão de parabéns! — disse o Dr. Barroso do meio da confusão em que estava a sua cama. — O António vai finalmente poder voltar!

— É verdade, Isabel — exclamou a D. Helena abraçando-a e beijando os gémeos. — E vocês estão duplamente de parabéns, meninos! O vosso pai vai encontrar uns heróis ... de palmo e meio!

— O que é que eles estão a dizer? — perguntava a tia Emília, sem perceber nada.

— Foi um dia memorável — disse por fim o Filipe, com a boca cheia de bolo. — Até houve um senhor que nos afirmou que este dia ia ficar para sempre na História de Portugal!

— Mas não por causa da nossa aventura, tolinho! — riu-se a Ana. — Para dizer a verdade, até tenho um bocadinho de pena ... Sinto-me muito importante, neste momento!

— Só neste momento?! — troçou o irmão, também com a boca cheia. E mal acabou de comer, disse, fingindo-se de vítima — Bem, parece que não há outro remédio! Lá vou eu ter de contar tudo outra vez ...

— Não vais não! — respondeu-lhe a Ana com um ar muito decidido. — Agora quem vai contar a nossa aventura somos nós os três!


Inclusão: 29/04/2020