Lutas de Classe em Portugal de 25 de Abril a 25 de Novembro
(e suas Relações com as Lutas de Independência na África)

Partido Comunista Internacional


A Triste Hora dos Exércitos “Progressistas”


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Não é por acaso que "soa a hora do exército" nos países em que mal está se delineando a passagem de modos de produção pré- burgueses ao modo de produção capitalista, mas em que, devido à pressão mundial do imperialismo, o "ritmo" dessa passagem não pode ser violentamente acelerado; ou nos países em que, embora tendo entrado há tempos no inferno da economia e da sociedade burguesas, arrastam atrás de si, como uma bola de chumbo, um passado de atraso económico, de compromisso com a grande propriedade absenteísta, de inércia social e política. A acumulação primitiva, ensina Marx, é inseparável da violência, como inseparável da violência é a ampliação dessa acumulação nos países em que a revolução burguesa já se verificou mas em que sobrevive um ambiente económico e social de atraso. E em tais países, na medida em que não existe, ou é demasiado fraca, uma burguesia com sólidas tradições de continuidade e iniciativa, o único depositário da força é o exército (aliás, a própria revolução inglesa teve que criar para si um aparelho próprio "de tipo novo" para romper os grilhões do passado feudal).

Tal como a natureza, o capital — que não é nem um pouco "natural" — tem horror do vazio; e é justamente um vazio, que a rotina modorrenta dos tempos normais apenas mascara, mas que salta aos olhos em tempo de crise, é justamente um vazio o que as forras armadas, como força económica e política, procuram preencher. De Portugal ao Peru (para falarmos apenas de alguns exemplos recentíssimos), numa vasta área do planeta, apesar da diversidade das estruturas sociais e económicas e do grau de desenvolvimento, não há modificação política, reflexo de profundas comoções económicas, que, precisamente nesse ciclo mundial de crise, não tenha como protagonista o exército — o exército, entenda-se bem, considerado como estrutura estatal hierárquica, o exército criado e nutrido pela sociedade que pretende sacudir do torpor, pelas classes cujo peso relativo tem a pretensão de modificar, o exército dos generais, dos almirantes e dos coronéis do ancien régime, das classes dominantes.

Tampouco é um acaso o fato de, em toda parte, ele entrar em cena com uma roupagem "socialista", obviamente "nacional" e "especifica". Embora num plano inferior, é o mesmo fenómeno segundo o qual à exigência de centralização implacável e de controle brutal de toda forca centrífuga, exigência essa inseparável do imperialismo (e do seu produto quimicamente mais puro, o fascismo), junta-se a exigência de um reformismo providencial e assistencial, o anticlassismo esposa a "socialidade" e, desta maneira, aparenta ser estranho a uma determinada classe ou, até mesmo, superar as classes na unidade da nação. Só por essa via a força organizada pode ao mesmo tempo mobilizar e disciplinar as massas proletárias e camponesas canalizando a revolta em ato ou potencial das mesmas em direção a uma "nova ordem" em que a função propulsora do Estado na economia possa fazer-se passar por "marcha rumo ao socialismo", cujo advento é anunciado pelas fanfarras dos regimentos, às vezes de volta da repressão de movimentos coloniais ou de classe, mas sempre aclamados pelo oportunismo social-democrático e stalinista.

São essas causas objetivas que explicam o porquê da dupla face da "era dos exércitos": por um lado, a realidade da ordem imposta como condição de progresso, no sentido da implantação do modo de produção capitalista ou do seu completamento; por outro, as aparências popularescas e até mesmo plebeias do seu instrumento, o exército. E não só isso, como também o fato, tão paradoxal aos olhos dos cronistas burgueses, de que cada novo golpe militar contra um regime militar já constituído (um exemplo recentíssimo é o do Peru) se apresenta, por sua vez, com cores "social-nacionais", repete os slogans anti-imperialistas do seu predecessor e, muitas vezes, embora sendo "de direita", acusa esse último de não ter ido suficientemente, ou de maneira não conforme às promessas originais, "à esquerda".

Tão fazedores de estardalhaço quanto ineficazes como propulsores económicos e sociais radicais (basta pensar na triste sina das suas "reformas agrárias"), tão retóricos quanto grotescos como elaboradores de programas e "ideólogos do movimento” (lemos que, no Peru, os neogolpistas estão "revendo o marxismo"; em Portugal, o MFA o "revê" cada dia que passa...), esses "exércitos da revolução na ponta das baionetas" só mostram uma incomparável eficácia em reabsorver e neutralizar os impulsos populares e proletários e, quando isso não é o bastante, em reprimi-los.

A "hora do exército", nas condições próprias do imperialismo em escala mundial, não é nada mais do que a hora do capital na sua forma putrefaciente. É típico do daltonismo de pretensos ultra esquerdistas o fato de tomá-la pela hora do socialismo ou, mesmo, apenas da antecâmara desse, e porem-se em ordem atrás da fanfarra para depois virem a perceber — sempre tarde demaisque o que ela tocava era a marcha fúnebre antecipada ao "movimento de massas".

★★★

Quer isso dizer que, para os marxistas, o exército é, em bloco e em toda e qualquer circunstância, uma entidade "indiferente"? É claro que não, contanto que se compreenda em que sentido e dentro de que limites "o problema das forças armadas" é um problema (e, em determinadas circunstâncias, um problema crucial) da estratégia revolucionária.

“O exército proporciona, em geral, uma imagem da sociedade de que está a serviço", escreve Trotsky na História da revolução russa, e se caracteriza por exprimir as relações sociais de forma condensada3 levando ao extremo os traços positivos e negativos das mesmas" (op. cit., parte I, capítulo "O exército e a guerra”). É nessa dupla luz, uma luz dialeticamente contraditória, que o marxismo considera o exército; isto é, ele denuncia a sua função histórica , que só pode ser uma, a de servir a classe no poder, e reconhece a sua composição orgânica, em que se refletem e se repercutem, justamente "de forma condensada", os antagonismos inseparáveis da sociedade de classe de que é chamado a ser o baluarte. Bloco único hierarquicamente organizado para a defesa da ordem constituída, ou do seu processo de constituição (e, portanto, com a boca dos fuzis apontada para as massas proletárias e semiproletárias), o exército, segundo o marxismo, deve ser despedaçado, despedaçando-se seus componentes sociais. Isto é, devem ser destruídos os liames funcionalmente conformistas que mantêm seus componentes unidos e que fazem do seu componente proletário o repressor e o algoz da própria classe. Só assim pode ser concebida, de um ponto de vista marxista, a "conquista do exército" que não pode ser nada mais que a sua desagregação.

Não é, portanto, o "exército" que interessa aos revolucionários marxistas, mas, ao contrário, os proletários que são forçados a envergar o uniforme militar e que, na alternância das situações sociais, atuam ou podem atuar alternadamente ora contra seus irmãos de classe a paisana, ora contra a maquina lançada contra seus irmãos. A entidade "exército" é uma terrível realidade do ponto de vista burguês e uma abstração fatal do ponto de vista anti-burguês. Em escassa medida na Paris de 1871, em altíssimo grau na Petrogrado de 1917, essa abstração e essa realidade foram, ambas, por água abaixo: não houve Comuna nem, com maior razão, Outubro que tenham visto o "exército" — generais, almirantes e coronéis à sua frente — "fazer a revolução", como não houve nem pode haver que não tenham visto soldados e marinheiros desertarem do exército e da marinha, destruindo a organização dos mesmos, e virem alinhar-se ao lado do anti-estado e do antiexército — a classe revolucionária —, invertendo a direção dos fuzis e dos canhões, e que não tenham visto, ao mesmo tempo, alguns raríssimos filhos da classe dominante desertá-la, preciosos precisamente porque transfugas.

Exatamente como o povo, de cuja composição social heterogénea é o espelho, o exército é uma categoria (mas uma categoria armada!) do arsenal ideológico burguês. Ele plantava as "árvores da liberdade" na Paris de 1848, distribuía cravos na Lisboa de 1974. Era a sagração da "fraternidade, da união entre as classes, da concórdia nacional, ingredientes indispensáveis de uma revolução, ou suplemento de revolução, burguesa. Por isso mesmo era um engano fatal, prelúdio do junho "maldito" de 1848. Aqueles que, sob o pretexto de ultra-revolucionarismo, deixam-se ou deixaram-se embalar por esse engano preparam ou prepararam, pouco importa se inconscientemente, a mais atroz das derrotas: a que se consuma com a desmoralização (ainda antes de consumar-se o massacre físico) das massas proletárias.

Não é de impotência para destruir o exército, desagregando-o (outra face, num contexto histórico diferente, do derrotismo revolucionário) que devem ser acusados: pode ser uma questão de relação de forças. Mas é de impotência para compreender que a revolução começa a partir daí, e a partir daí, e que a condição indispensável para levá-la a cabo é preparar-se, e preparar os proletários, desde o início para despedaçar a falsa unidade entre "exército" e massas trabalhadoras, para construir, sobre as ruínas desta, a única unidade de que a revolução necessita para vencer toda resistência: a unidade entre proletários a paisana e proletários fardados contra a frente burguesa entrincheirada na sua cidadela, o Estado de classe.

Se assim não for, o perfume de cravos transformar-se-á necessariamente em catinga de Soares ou em fedentina de Pinochet, ambas envoltas em incenso.

(Il Programa Comunista, nº 17, 11/9/75
Le Prolétaire, nº 203, 20/9-3/10/75)


Inclusão 25/04/2019