As Lutas dos Moradores e a Constituição de 1976

Amadeu Lopes Sabino, Saúl Nunes, e Luis Felipe Sabino

1977


IV
ANEXOS

98

ANEXO 1: EXPOSIÇÃO ENDEREÇADA À «COMISSÃO DE INVENTARIAÇÃO, ANÁLISE E ESTUDO DAS OCUPAÇÕES PARA HABITAÇÃO», SUBSCRITA PELA COMISSÃO DE MORADORES DA QUINTA DOS CEDROS

Os moradores da Quinta dos Cedros organizados na respectiva Comissão de Moradores e face às rendas exorbitantes praticadas no Bairro da Quinta dos Cedros em Linda-A-Velha freguesia de Carnaxide, resolveram, desde Agosto de 1975 contactar os senhorios, no sentido de serem reduzidas as rendas de casa, Não tendo obtido resposta, os morádores passaram a depositar uma renda fixada pelo Plenário de Moradores, na Caixa Geral de Depósitos.

Sem entrar numa exaustiva fundamentação desta decisão, apontaremos, a título indicativo os factos que se seguem:

  1. O Bairro da Quinta dos Cedros foi construído pela Firma Marques Esteves que tem elevados lucros, incompatíveis com uma política que se reclama de antimonopolismo, conforme V. Ex.“ podem comprovar.
  2. Os senhorios são poucos, e ligados na maioria dos casos e através de relações familiares aos gerentes da Firma Marques Esteves. Os restantes podem ser reunidos nos grupos seguintes:
    1. Família Silva Rebelo, que recebe rendas de mais de 100 inquilinos, referentes aos lotes 14, 15, 36, 37 e 38 deste bairro;
    2. Irmãos Favas, radicados no Brasil (cuja procuradora é a Firma Marques Esteves): recebem rendas dos lotes 16, 17 e 18.
  3. Acerca da exorbitância das rendas, basta dizer que nos lotes 16, 17 e 18 se encontram rendas de:
    • 3.400$00 por 2 assoalhadas;
    • 2.500$00 por 1 assolhada.
  4. Condições das casas:
    1. Os ilotes 36,37 e 38, que no projecto inicial entregue na Câmara Municipal de Oeiras, constavam de habitações com duas divisões assoalhadas, foram «transformadas» em 99 habitações com três assoalhadas. Alertada a Câmara pela Comissão de Moradores, aquela aceita um projecto de alteração pedido pelo senhorio. Estes lotes já estavam alugados há três anos. Que lei condena isto?
    2. Arrecadações, de condições desumanas, que foram arrendadas ilegalmente pelos senhorios, (caso lote 38);
    3. Afirma construtora dos 30 lotes não construiu qualquer equipamento social no bairro. Assim, foi a Comissão de Moradores que resolveu o problema do alcatroamento das ruas e a sua electrificação.
  5. Situações de fraude:

    Foram detectadas pela Comissão de Moradores situações de fraude em relação a rendas que ao contrário dos decretos de congelamento das rendas, foram aumentadas:

    • caso do lote 26 3.º D.º;
    • Caso do lote 28 1.º B;
    • caso do lote 37 r/c A.

II

Em Janeiro de 1976 os moradores decidiram alterar a forma de luta, passando a depositar uma renda determinada de acordo com uma percentagem do rendimento do agregado familiar, tendo 100 tudo isto e em devido tempo sido comunicado aos senhorios que continuaram e continuam a não dar resposta aos contactos efectuados.

Claro que os senhorios, como aliás todos os exploradores, habituados como estão a pôr e a dispôr dos explorados, não puderam de forma alguma conceber que as organizações populares, firmemente defendidas pelos moradores, pudessem modificar decisões contratuais feitas numa situação histórica totalmente diferente.

Fácil foi pois aos senhorios servirem-se de leis hoje inconstitucionais (conforme adiante se afirma) para intentarem acções de despejo a 17 dos 200 moradores em luta, numa tentativa de dividir a unidade e o combate dos moradores e levá-los, caso a caso, a pagarem as rendas antigas.

III

1. Nos processo em causa, os autores vieram pedir o despejo das casas com fundamento numa disposição do Código Civil — a alínea a) do n.º 1 do art.º 1093.º do Código Civil de 1966.

Essa disposição legal integra-se na Secção VIII do Capítulo IV do Título II do Código, que constitui o núcleo do instituto do arrendamento urbano no direito positivo português. Essêé instituto inspira-se em princípios tipicamente contratualistas, em que a liberdade de disposição das partes prevalece sobré o interesse social.

101 O arrendamento é assim entendido como mero corolário do direito de propriedade e como um acto (volitivo e do proprietário) intuitu personae.

Os princípios legais estatuídos quanto à caducidade (art.º 1051.º e seguintes): quanto à transmissão da posição contratual (art.º 1057.º e 1111.º), quanto à incomunicabilidade (art.º 1110.º) e quanto ao subarrendamento (art.º 1101.º e segs.), ilustram amplamente o que fica dito. O mesmo se diga das muito amplas faculdades de resolução do contrato concedido ao senhorio (art.º 1093.º).

2. Assinale-se que o panorama que fica traçado era concordante com os princípios constitucionais e político-sociais próprios do Estado Novo. O Estatuto do Trabalho Nacional e a Constituição de 1933 conferiam ao direito de propriedade (entendido como jus utendi et abutendi) um papel sacrossanto, relegando para um plano secundário — Ou para a sua pura e simples ausência do campo das leis fundamentais — os chamados direitos económicos e sociais. A enumeração que a Constituição salazarista (no art.º 8.º) fazia dos direitos dos cidadãos não incluía, por exemplo, qualquer referência ao direito de habitação... mas consagrava o direito de propriedade. A legislação herdada da I Repúblca nesta matéria, nomeadamente o decreto-lei 5.411 de 17 de Abril de 1919, que restringia a liberdade contratual nos arrendamentos (fazendo prevalecer expressamente as «garantias aos arrendatários, senhorios e sublocatários» sobre a vontade 102 das partes), veio sendo, durante o Estado Novo, progressivamente desmantelada, num processo que culminou na lei 2030.º e no Código Civil do ministro Antunes Varela. Tal aconteceu porque o ordenamento constitucional o permitia e o fomentava. A legislação salazarista e marcelista sobre arrendamento urbano para habitação (é o caso que nos preocupa) era efectivamente injusta mas não seria inconstitucional...

3. Algo de diferente se passa neste momento.

Os grandes princípios político-sociais progressivamente institucionalizados após o 25 de Abril de 1974 estão em absoluta contradição com os fundamentos do regime deposto.

As leis constitucionais em vigor entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Abril de 1976 — nomeadamente a Lei 3/74 de 14 de Maio — e a Constituição de 1976 consagram um conjunto de liberdades e direitos é deveres políticos, económicos, sociais e culturais qus estão nos antípodas dos princípios antipopulares da legislação do antigo regime. No caso vertente — inquilinato e habitação — o facto de se colocar a (nova) «política económica» «ao serviço do povo português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas» e o facto de se definir à (nova) «política social» o objectivo de «defesa dos interesses das classes trabalhadoras» (Programa do MFA, Lei 3/74), condicionam a manutenção de um direito ordinário anterior inspirado em princípios opostos.

103 Reforçando esses objectivos, os art.º 6, n.º 2 da Lei 5/75, de 14 de Março, conferiu poderes constitucionais ao Conselho Superior da Revolução, o qual, no uso de tais poderes, e no Plano de Acção Política (PAP), de 21 de Junhod e 1975, fixou como objectivo essencial da Revolução a independência Nacional, que passa pela descolonização interna, «a conseguir através da construção da sociedade socialista, definida como uma sociedade sem classes». A Constituição de 1976 vem, com solenidade maior e com a legitimidade do voto popular, consagrar entre os direitos fundamentais (no art.º 65.º) «o direito a uma habitação de dimensões adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar»; em conformidade, e segundo o mesmo artigo, incumbe ao Estado «incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais» e «adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com rendimento familiar».

O nosso direito constitucional passa assim a consagrar o direito à habitação.

4. As alterações legislativas ordinárias (nesta matéria) posteriores ao 25 de Abril têm pois uma ratio legis que não é a da referida Secção VII do Capítulo IV do Título 1l do Código Civil de 1966 e reflectem diferentes concepções jurídico-políticas.

Assim o art.º 9.º do decreto-lei 217/74 de 27 104 de Maio congelou por trinta dias as rendas de prédios urbanos «aos níveis praticados em 24 de Abril passado» — limitando pontualmente a liberdade contratual.

As medidas legislativas subsequentes foram mais longe.

O decreto-lei 445/74 de 12 de Setembro limitou os valores das rendas nos contratos a celebrar a partir dessa data — condicionando-as nos termos do art.º 15.º — e determinou medidas tendentes ao lançamento no mercado dos prédios vagos. A concepção liberal do direito de propriedade como direito de abuso entra em crise: até essa data o senhorio podia manter prepotentemente a casa devoluta.

Mas é o decreto-lei 198-A/75 de 14 de Abril (completado pelo 188/76 de 12 de Março) que dá o passo definitivo: pela primeira vez, na história do direito ocidental, a um acto unilateral — a ocupação — é concedida protecção legal, considerando-se «actuação inserida na satisfação de necessidades urgentes e atendíveis de extractos extremamente desfavorecidos da população».

Estamos a distanciar-nos progressivamente dos fundamentos «teóricos» do direito salazarista da habitação: onde está o intuítu personae de que falava o parecer da Câmara Corporativa de 4 de Fevereiro de 1949? A ocupação de prédios vagos deixa de ser uma questão de polícia: os senhorios devem legalizar as ocupações previstas nesse diploma, 105 celebrando o título de arrendamento (será possível continuar a falar de contrato?).

As suspensões de algumas acções de despejo e as alterações ao Código Civil (decretos-lei 6/75 de 7 de Janeiro, 67/75 de 19 de Fevereiro de 155/75 de 25 de Março) inscrevem-se na mesma perspectiva.

5. Os deputados à Assembleia Constituinte, reunidos «para elaborar uma Constituição que corresponde às aspirações do país» consagraram, como já se disse, o direito à habitação enquanto direito fundamental (pelo menos ao mesmo nível do direito de propriedade privada). Ao mesmo tempo e indo ao encontro de uma prática social e política que é a da Revolução (e que o texto constitucional da Revolução não poderia pois ignorar), consagraram as Comissões de Moradores como participantes no exercício do poder local (art.º 118.º e 264.º e segs.) — facto que para a análise e solução do caso sub-judice é de importância fundamental.

6. A Constituição e a lei ordinária revolucionária revogaram pois muitas das disposições legais sobre o arrendamento e condicionaram drasticamente a intenpretação das que estão em vigor.

O regime de liberdade contratual no arrendamento para habitação o princípio da prevalência do direito de propriedade e a não consagração de um direito à habitação, e a concepção do arrendamento como intuítu personae não são hoje legítimos à face 106 do que fica dito. Todo o instituto do arrendamento Iurbano codificado (Secção VII, Título H do Livro II do Código Civil de 1966) não pode manter-se em vigência porque «contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados» devendo em consequência ser adaptado no decorrer da primeira legislatura da II República (art.º 293.º da Constituição de 1976). Assinale-se aliás que a necessidade de revisão desse instituto era já referida nos preâmbulos dos decretos-lei 217/74 e 198-A/75.

Enquanto o legislador ordinário não proceder à revisão do instituto do arrendamento urbaáno, o julgador (que no direito positivo português, como em todos os sistemas jurídicos ocidentais contemporâneos não poderá denegar justiça) só pode tomar uma de duás decisões:

7. A escolha da segunda alternativa levanta grandes dificuldades dada a completa contradição da lei antiga, na matéria que nos interessa, com os princípios constitucionais (e até com a legislação ordinária posterior ao 25 de Abril).

Na verdade como conciliar nomeadamente os art.ºº 1051.º e segs., 1057.º, 1093.º, 1110.º, 1111º do Código Civil com os art.ºº 65.º, 118.º e 293º e segs. da Constituição? Como conciliar a legalização de ocupações com o Código de Varela? Como 107 conciliar as intervenções das Comissões de Moradores e a fixação de rendas com a decantada liberdade contratual?

Consequentemente e dado o exposto, requere-se a V. Ex.“ que promova junto do governo à aprovação, promulgação e publicação de legislação que permita aos tribunais suspender as referidas acções de despejo em curso até à revisão da legislação ordinária sobre arrendamento urbano para habitação prevista no art.º 293.º da Constituição política de 1976.

Espera Deferimento

Junho de 1976
A Comissão de Moradores
da Quinta dos Cedros


Inclusão: 24/04/2020