Marx e a Liberdade

Terry Eagleton


3. História


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Se Marx é um filósofo, sobre o que filosofou? Seguramente sobre nada tão grandioso como a “humana existência”, mas também não sobre algo tão estreito como a economia política. O seu pensamento não pretende constituir uma espécie de teorização cosmogónica que, tal como a religião, se destinaria a explicar todos os traços da vida humana. É certo que o seu colaborador Friedrich Engels elaborou uma teoria extremamente ambiciosa, baptizada como “materialismo dialéctico”, que procurava tecer laços entre todos os domínios do saber, desde a física e a biologia até à história e à sociologia, mas os escritos de Marx concorrem para uma empresa mais restrita e, no fim de contas, mais modesta que a de Engels: ele tentou unicamente identificar, e aplicou-se a desmantelar, todas essas contradições sociais maiores que nos impedem de levar uma vida verdadeiramente humana, fundada sobre a utilização plena e inteira das nossas faculdades físicas e espirituais. É forçoso constatar, por exemplo, que ele falou pouco sobre o que se irá passar depois dessas contradições terem sido resolvidas, já que este processo equivale, a seu ver, ao início da história humana propriamente dita, escapando essa história futura por definição à nossa linguagem actual — segundo ele, tudo aquilo que sucedeu até à data reduz-se a uma simples “pré-história” que não oferece à observação mais do que uma sucessão de diversos géneros de sociedades de classes; e, dado que a obra pessoal de Marx pertence a esta idade inevitavelmente dependente de certos modos de pensar e modelos de vida, ela não pode, em conformidade com as próprias regras da lógica historicista que convida a respeitar, saltar a pés juntos por cima do seu tempo para imaginar este ou aquele mundo utópico. Decididamente hostil aos utopis- mos, Marx nunca se atribuiu como tarefa a de antecipar futuros ideais: interessado apenas na análise e no levantamento das contradições reais do presente, ele não aspira de modo algum a favorecer o surgimento de um “Estado ideal”, expressão que para ele associava termos intrinsecamente contraditórios.

Contudo, Marx não é apenas um teórico político do presente; porque a descrição das contradições que, na sua perspectiva, obstaculizam o arranque de uma história “real” mais propícia à expressão da riqueza, do prazer e da diversidade individuais está integrada num quadro com uma muito vasta envergadura. Por este facto, defini-lo essencialmente como um economista político ou um sociólogo é tão falso como sustentar que ele compôs antes de mais uma obra filosófica — mesmo se, como vimos, se tratou de facto de um filósofo; ele propõe-nos, antes, uma teoria da história ou, com mais precisão ainda, uma teoria da dinâmica das mudanças históricas maiores. E foi esta filosofia que passou para a posteridade sob o nome de “materialismo histórico”.

Como caracteriza Marx as mudanças históricas? Contrariamente ao que por vezes foi alegado, a noção de classe social não é central para a sua argumentação: não só Marx não foi o primeiro a descobrir a existência de classes, como não se trata do seu conceito mais essencial. Já seria mais exacto deduzir que a ideia de luta das classes, isto é, a doutrina segundo a qual as diversas classes sociais se opõem inevitavelmente entre si em resultado da divergência dos seus interesses materiais, está na origem de toda a sua obra:

“A história de qualquer sociedade até aos nossos dias é a história de lutas de classes” (MC, p. 161; OE, I, p. 106), pode ler-se no Manifesto do Partido Comunista.

Mas mesmo esta generalização não corresponde ainda ao núcleo mais profundo do seu pensamento, porque é sempre possível interrogar-se porque terão as classes sociais forçosamente de viver neste estado de guerra permanente: para Marx só a história da produção material permite responder a tal questão.

A este respeito, o seu conceito chave reside na noção de “modo de produção”, termo pelo qual entende a combinação historicamente específica de certas forças produtivas e de certas relações sociais de produção, sendo estas “forças” elas próprias definidas como os diversos meios de produção utilizáveis por uma dada sociedade, em simultâneo com a força de trabalho humana. Um tear ou um computador, por exemplo, são forças produtivas capazes de produzir valor; mas estas forças materiais são sempre inventadas, desenvolvidas e empregues no contexto de relações sociais de produção particulares, vocábulo que, em Marx, remete sobretudo para as relações estabelecidas entre aqueles que possuem e controlam os meios de produção e todos os não-possuidores que colocaram a sua força de trabalho à disposição dos primeiros. Segundo uma primeira leitura de Marx, as contradições mútuas que surgem entre as forças e as relações de produção são o principal motor da história:

“Num certo grau do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em colisão com as relações de produção existentes, ou com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então, e que não são mais do que a sua expressão jurídica. Ontem ainda formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas condições transformam-se em pesados entraves. Começa então uma era de revolução social” (CEP, Prefácio, p. 273; OE, I, p. 531).

É sob o efeito deste mecanismo que um modo de produção cede o seu lugar a outro, sendo que o mais antigo foi fundado sobre a propriedade “tribal”:

“Ela corresponde a um nível pouco desenvolvido da produção em que um povo se alimenta da caça ou da pesca, da criação de gado, ou, no limite, da agricultura. Este último caso supõe numerosas terras incultas. Ainda muito rudimentar neste estádio, a divisão do trabalho limita-se a um alargamento da divisão natural das tarefas próprias da família. A organização social resume-se então a uma extensão da família: chefes da tribo patriarcal e, abaixo deles, os membros da tribo, e depois os escravos” (IA, p. 1086; OE, I, p.10).

Depois do que, e pouco a pouco, apareceu o modo de produção “antigo”, que

“resulta sobretudo da reunião, por contrato ou por conquista, de várias tribos numa cidade em que subsiste a escravatura. Em simultâneo com a propriedade comunal, começa a desenvolver-se a propriedade privada mobiliária e mais tarde imobiliária, mas enquanto forma anormal e subordinada à propriedade comunal. É só no interior da sua comunidade que os cidadãos detêm poder sobre os seus trabalhadores escravos: ei-los já ligados à forma comunal de propriedade. É a propriedade privada comunitária dos cidadãos activos que os obriga, face aos escravos, a manterem-se sob esta forma de associação natural. Eis porque toda a organização social fundada sobre ela, e com ela o poder do povo, entram em declínio na mesma medida em que se desenvolve sobretudo a propriedade privada imobiliária” (IA, p. 1086; OE, I, p.10).

Tal foi a origem do terceiro modo de produção, dito “feudal”:

“Esta [a propriedade feudal] assenta, tal como a propriedade tribal e a propriedade comunal, numa comunidade, com a excepção de já não serem escravos, como na Antiguidade, mas os pequenos camponeses servos que constituem a classe directamente produtora. Em simultâneo com a plena constituição da feudalidade, aparece a oposição às cidades. A organização hierárquica da propriedade fundiária e os seus séquitos armados asseguravam à nobreza o poder sobre os servos. Esta organização feudal, tal como a antiga propriedade comunal, era uma associação contra a classe produtora subjugada; apenas a forma de associação e as relações com os produtores directos as diferenciavam, porque as condições de produção eram diferentes” (IA, pp. 1087-1088; OE, I, p.11).

Enquanto os domínios fundiários feudais se difundiam pelos campos, corporações mercantis fundadas sobre a produção em pequena escala e numa divisão do trabalho rudimentar constituíam-se nas cidades. Mas, por força das restrições inerentes a este sistema corporativo, as relações sociais de tipo feudal tinham travado o desenvolvimento das classes médias urbanas que apareceram em paralelo, camadas sociais que se tinham separado bruscamente destes entraves desencadeando uma revolução política acompanhada por uma formidável libertação de forças produtivas. Contudo, mais tarde, depois do surgimento do capitalismo industrial, a burguesia mostrou-se incapaz de continuar a desenvolver essas forças sem gerar desigualdades extremas, crises económicas, penúrias artificiais e verdadeiras destruições de capitais; assim foram lançadas as bases da próxima substituição desta classe burguesa pela classe operária, que deverá tomar o controlo dos meios de produção para os pôr ao serviço dos interesses de todos:

“A partir do momento em que este processo de transformação decompôs suficientemente e de alto a baixo a velha sociedade, que os produtores são transformados em proletários e as suas condições de trabalho em capital, quando por fim o regime capitalista se aguenta apenas pela força económica das coisas, então a socialização ulterior do trabalho, bem como a metamorfose progressiva do solo e dos outros meios de produção em instrumentos socialmente explorados, comuns, numa palavra, a eliminação ulterior dos proprietários privados vai revestir-se de uma nova forma. O que deve agora ser expropriado já não é o trabalhador independente, mas o capitalista, o chefe de um exército ou de uma brigada de assalariados.”

“Esta expropriação cumpre-se pelo jogo das leis imanentes da produção capitalista, que conduzem à concentração dos capitais. Por cada capitalista vivo, vários capitalistas mortos” (C, Livro primeiro, oitava secção, Conclusão [cap. XXXII], Tendência histórica da acumulação capitalista, pp. 1238-1239 e p. 1708, n. 1 da p. 1239; Ca, III, p. 861).

Por outras palavras, o capitalismo abre o caminho da sua própria negação ao socializar o trabalho e ao centralizar o capital:

“Correlativamente a esta centralização, à expropriação da maioria dos capitalistas por uma minoria deles, desenvolvem-se numa escala sempre crescente a aplicação da ciência à técnica, a exploração da terra com método e em conjunto, a transformação das ferramentas em poderosos instrumentos de uso comum, portanto a economização dos meios de produção, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado universal, e com isso o carácter internacional imprimido ao regime capitalista” (ibid. p. 1239; Ca, III, p. 861).

Por consequência, é o capitalismo que, ao provocar a emergência do seu antagonista histórico — a classe operária —, dá paradoxalmente origem aos seus próprios coveiros:

“À medida que diminui o número de potentados do capital que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste período de evolução social, cresce a miséria, a opressão, a escravatura, a degradação, a exploração, mas também a resistência da classe operária que engrossa sem parar e cada vez mais disciplinada, unida e organizada pelo próprio mecanismo da produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que cresceu e prosperou com ele e sob os seus auspícios. A socialização do trabalho e a centralização das suas forças materiais chegam a tal ponto que já não podem ser contidas no seu invólucro capitalista. Este invólucro quebra-se em estilhaços. A hora da propriedade capitalista soou. Os expropriadores são por seu turno expropriados” (ibid; ibid, pp. 861-862).

Assim descrito, o processo global da revolução proletária parece marcado por um automatismo altamente inverosímil. Segundo esta versão do pensamento de Marx, o ascenso e a queda das classes dirigentes dependeria da sua capacidade em desenvolver as forças produtivas, transformando-se cada modo de produção (comunismo primitivo, escravatura, feudalismo ou capitalismo) noutro pelo próprio jogo da sua lógica imanente. Estamos perante uma espécie de variante histori- cizada da antropologia de Marx: o desenvolvimento humano é positivado, sendo negativo tudo o que se oponha a este processo. Mas, em simultâneo, este modelo não se concilia facilmente com aqueles outros trechos da obra de Marx onde, ao invés, é sugerido que, porque as classes dirigentes desenvolvem sempre as forças produtivas com o fim de melhor servir os seus próprios interesses e de incrementar a exploração das classes inferiores, estas forças são finalmente menos importantes do que as relações de produção: de acordo com este segundo modelo, a revolução política resultante procede directamente da luta de classes — não decorre de esta ou aquela tendência trans-histórica de libertar as forças produtivas de qualquer entrave social; e são, portanto, os conflitos de classes que são tidos aqui como os verdadeiros motores da história, ainda que eles se ancorem na produção material.

Marx, bem entendido, prestou uma atenção particular (mais não fosse no seu monumento do Capital) ao modo de produção em vigor na sua época. No modo de produção capitalista, os operários, que só possuem a sua aptidão para trabalhar (ou “força de trabalho”), são constrangidos a vender esta aptidão aos possuidores de capitais, que os empregam a fim de tirar lucro do seu trabalho: os seres humanos tornam-se deste modo mercadorias trocáveis no mercado da mão-de- -obra. Em contrapartida do aluguer da força de trabalho do operário, o capitalista fornece-lhe essa mercadoria chamada “salário” — sendo o montante do salário igual ao valor de tudo o que seja necessário à “reconstituição” da força de trabalho, isto é, ao custo dos bens indispensáveis à sobrevivência do operário e à repetição do seu trabalho. Mas, pelo próprio facto de ela não constituir nunca um objecto imutável e depender unicamente do domínio das energias e potencialidades humanas, a força de trabalho é uma espécie de mercadoria eminentemente flexível e indeterminada que, sob a forma dos bens produzidos e vendidos que traz ao capitalista, gera um valor maior do que o dos bens que o operário pode comprar com o salário que lhe é entregue: este processo, que, para Marx, equivale a retirar uma “mais-valia” da classe operária, é inerente à exploração que as relações sociais capitalistas tendem inexoravelmente a induzir; e, porque a troca salário/trabalho parece equitativa, torna-se mais evidente que esta exploração está necessariamente mascarada pelos funcionamentos rotineiros do sistema capitalista.

Contudo, o sistema capitalista está centrado também sobre a concorrência: para não perecer, cada industria é forçada a aumentar o seu capital. Segundo Marx, daí resulta uma baixa tendencial da taxa de lucro que está, ela própria, na origem das recessões periódicas que sempre caracterizaram este modo de produção: porque é do interesse dos patrões apropriarem-se de uma parte cada vez maior do produto do trabalho dos operários sob a forma de lucro, e porque os operários têm, pelo contrário, interesse em não serem despojados do fruto do seu labor, as contradições deste sistema só podem agravar-se simultaneamente à intensificação da luta de classes. Para Marx, somente a revolução socialista permitirá sair deste impasse: expropriando os capitalistas e instaurando um controlo colectivo dos meios de produção, a classe operária resolverá definitivamente estas contradições entre os benefícios individuais e o interesse geral.

O marxismo não é um moralismo que condena os capitalistas pela sua infâmia e idealiza os trabalhadores: pelo contrário, reclama-se como teoria “científica” da mudança histórica, segundo a qual nenhuma classe dirigente pode ser uniformemente tida por boa ou má. Num primeiro nível de leitura, uma classe pode ser qualificada como “progressista” enquanto se mantiver capaz de desenvolver as forças produtivas — o que pode deixar supor que a escravatura foi, a seu tempo, um modo de produção progressista... Esta concepção, decerto, vai contra o nosso sentido de justiça, por muito original que tenha sido a posição de Marx sobre o assunto: por um lado, na oportunidade teria criticado o conceito de justiça burguesa considerando-o como uma simples construção ideológica destinada a mascarar a exploração; por outro, e paradoxalmente, foi movido por um formidável desejo de justiça social que transparece em toda a sua obra.

É possível que a burguesia nos nossos dias faça obstáculo à liberdade, à justiça e ao bem-estar universal; mas não deixou de constituir, no seu apogeu, uma força revolucionária que, depois de ter vencido os seus adversários feudais, legou a própria ideia de justiça e de liberdade aos seus sucessores socialistas conduzindo as forças produtivas a um nível de desenvolvimento não só sem precedentes mas verdadeiramente indispensável para a realização do projecto socialista. Sem as riquezas materiais e espirituais que o capitalismo soube criar, o socialismo seria impossível: um socialismo que necessitasse de construir as forças de produção a partir do zero, sem que uma classe capitalista tivesse já cumprido a tarefa em seu lugar, teria inevitavelmente tendência a desembocar naquela forma de poder estatal totalitário de que o stalinismo nos forneceu um tão terrível exemplo; da mesma maneira que um socialismo que não se apoiasse sobre a base muito rica das liberdades burguesas e das instituições cívicas que as classes médias construíram estaria condenado a reforçar essas tendências autocráticas. É evidente que a burguesia obedeceu a motivos pouco dignos — a procura do lucro individual; mas teve contudo o mérito colectivo de desenvolver as forças produtivas mundiais com uma eficácia sem paralelo: tendo em conta o nosso nível actual de recursos e a reorganização que o modo de produção socialista não deixaria de induzir, tudo leva a crer que, caso o quiséssemos, teríamos muito verosimil- mente os meios para viver num mundo emancipado para sempre dos tormentos da pobreza!

As classes médias revolucionárias não só no plano material tiveram êxito: ao permitir aos indivíduos o acesso a um nível de desenvolvimento pessoal de uma complexidade inaudita, elas suscitaram de igual modo um enriquecimento humano que competirá ao socialismo fazer frutificar. É assim que o marxismo não se contenta em meditar sobre ideais sociais inéditos: trata-se antes de mais de nos interrogarmos porque é que os belos ideais que nos guiam se revelaram até aqui estruturalmente incapazes de serem realizados por quem quer que fosse. E, em consequência, importa criar as condições materiais desta realização, sem esquecer que a universalidade da burguesia — o facto de se tratar da primeira classe social verdadeiramente universal — constitui condição favorável: ao romper com todos os particularismos provinciais ou nacionais, a burguesia favorece o próprio tipo de comunicação global sobre a qual uma comunidade socialista autenticamente internacionalista poderia seguramente escorar-se.

Uma teoria verdadeiramente dialéctica da história das classes sociais deve portanto destacar que o aspecto emancipa- dor e o aspecto opressivo fazem parte de uma única e mesma lógica, tal como Marx o apontou nesta passagem que não poderia ser mais eloquente:

“Nos nossos dias, todas as coisas parecem conter o seu contrário. A máquina possui o maravilhoso poder de abreviar o trabalho e de o tornar mais produtivo; mas vemo-la a esfaimar e a extenuar os trabalhadores. Pelo efeito de qualquer estranho malefício do destino, as novas fontes de riqueza transformam-se em fontes de infortúnio. As vitórias da técnica parecem ser obtidas a troco da decadência moral. À medida que a humanidade se torna senhora da natureza, o homem parece tornar-se escravo dos seus semelhantes ou da sua própria infâmia. Parece que mesmo a pura luz da ciência necessita, para resplandecer, das trevas da ignorância e que qualquer das nossas invenções e dos nossos progressos não tem senão um objectivo: dotar as forças materiais de vida e de inteligência e reduzir a vida humana a uma força material. Este contraste da indústria e da ciência modernas por um lado, da miséria e da dissolução modernas por outro; este antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais na nossa época, é um facto de uma evidência esmagadora que ninguém ousará negar” (People’s paper, 14 de Abril 1856, in Karl Marx, Oeuvres, t. II, Économie II, Paris, Gallimard, 1968, pp. cxxvi-cxxvii).

A ironia, a inversão, o quiasma, a contradição estão no coração do pensamento de Marx. Ao acumular as maiores riquezas que a história jamais conheceu, a classe capitalista procedeu a esta acumulação num contexto de relações sociais que precipitaram a maioria das classes inferiores na fome, na miséria e na opressão; e deu origem também a uma ordem social que, em razão da sua submissão aos antagonismos do mercado, leva os indivíduos a oporem-se uns aos outros — uma sociedade onde a agressão, a dominação, a rivalidade, a guerra e a exploração imperialista prevalecem sobre a cooperação e a solidariedade. A história do capitalismo é assim a história de um individualismo abusivo que enclausura cada ser humano por detrás da muralha dos seus cálculos solipsistas fazendo dos outros simples instrumentos de interesses particulares; mas Marx não condena por isso o individualismo nem pretende afogar as individualidades num colectivismo anónimo: ele aspira, pelo contrário, a que as relações entre os homens e as mulheres sejam restabelecidas no único nível do pleno desenvolvimento das suas potencialidades individuais — tal como o registou no Manifesto do Partido Comunista, a antiga sociedade burguesa deve dar lugar a “uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um seja a condição do livre desenvolvimento de todos” (MC, p. 183; OE, I, p. 125), e somente a abolição da propriedade privada permitirá atingir este objectivo.

Esta teoria tão audaciosa como criativa é, bem entendido, problemática sob vários pontos de vista. Antes de mais, aquilo que Marx entende exactamente por “classe social” não é muito claro: a sua obra foi interrompida no preciso momento em que se aprontava para analisar este conceito em pormenor, pode ler-se nas palavras de alguns comentadores um pouco graciosos ou trocistas. É certo que para ele a categoria “classe” é essencialmente económica: ao estimar, grosso modo, que os indivíduos que se posicionam de uma mesma forma relativamente a um modo de produção pertencem a uma mesma classe, ele deduz que os pequenos produtores independentes como os camponeses e os artesãos, por exemplo, podem ser catalogados como “pequeno-burgueses”, sendo “proletários” aqueles que têm de vender a sua força de trabalho a outros. Assim sendo, a estrela de cinema milionária e o varredor pertencem os dois à classe operária? Ou teremos de admitir que factores políticos, culturais e ideológicos entram em linha de conta? Existem ou não relações entre as classes sociais e aqueles outros agrupamentos humanos (os grupos nacionais, étnicos, sexuais, etc.) a que Marx atribui muito menos importância? E uma classe deve ter consciência da sua identidade para ser qualificada enquanto tal? Marx debruçou-se sobre esta última questão a propósito do campesinato francês, no 18 de Brumário de Louis Bonaparte:

“Os pequenos camponeses constituem uma massa enorme, cujos membros vivem todos na mesma situação, mas sem terem contactos múltiplos uns com os outros. O seu modo de produção isola-os uns dos outros, ao invés de estabelecer entre eles um comércio mútuo. [...] Na medida em que milhões de famílias vivem em condições económicas de existência que separam o seu modo de vida, os seus interesses e a sua instrução dos das outras classes, e os voltam contra estas, eles constituem uma classe. Na medida em que só existe uma relação local entre os pequenos camponeses, que a identidade dos seus interesses não constitui uma comunidade, nem um laço nacional, nem nenhuma organização política, eles não constituem uma classe” (BLB, pp. 532-533; OE, I, pp. 502-503).

A sua teoria da mudança histórica também levanta problemas: se Marx afirma claramente que se trata antes de mais de desenvolver sempre e por todo o lado as forças produtivas, é passível de uma crítica ecológica; e podemos além disso perguntar se esta dialéctica histórica, para ele, procede ou não de uma necessidade incontornável. Porque, se no Manifesto do Partido Comunista ele precisa que o declínio da burguesia e o triunfo do proletariado “são igualmente inevitáveis” (MC, p. 173; OE, I, p. 117) e se em O Capital escreve que as leis naturais da produção capitalista “se manifestam e se realizam com uma necessidade férrea” (C, Livro primeiro, Prefácio à primeira edição, p. 549; Ca, I, p. 6), por outro lado ele troça da crença determinista segundo a qual uma entidade designada História alcançaria os seus próprios fins manipulando os seres humanos:

“A História não faz nada, ela não possui ‘riquezas imensas’, ela não se entrega a nenhum ‘combate’! É antes de mais o homem, o homem real e vivo que faz tudo isto, que possui e combate; não é com certeza a ‘História’ que se serve do homem como de um meio para obrar e atingir — como se se tratasse de uma personagem à parte — os seus próprios fins; pelo contrário, ela não é nada senão a actividade do homem perseguindo os seus fins” (SF, p. 526).

Da mesma maneira, nega que os diversos modos de produção históricos se sucedam uns aos outros segundo um determinismo rígido, e não parece também considerar que as forças produtivas conheçam sempre uma expansão inevitável. Como quer que seja, se a derrota do capitalismo é inelutável, porque é que a classe operária não se contentaria em esperar tranquilamente que este acontecimento surgisse em vez de se cansar a criar as condições políticas dessa derrota? Poderíamos argumentar, como Marx parece ter deixado entender por vezes, que, na própria medida em que a classe operária tem inevitavelmente tendência a tomar cada vez mais consciência da sua condição e em querer mudá-la, é inevitável que os seus actos “livres” sejam avaliados pela bitola de considerações deterministas de maior envergadura: alguns pensadores cristãos tentaram resolver a contradição aparente entre o livre arbítrio e a divina providência recorrendo a um raciocínio similar. Mas, na prática, isto é, quando ele analisa situações políticas particulares, Marx parece sobretudo inclinado a pensar que o desencadear da revolução política depende das relações mais ou menos conflituais que se estabelecem entre forças sociais antagonistas, e que o desenlace dessa luta não está nunca garantido historicamente: existem, bem entendido, leis da História, anota, mas essas leis resultam unicamente das acções concertadas dos seres humanos, e não de decretos altivos de um Destino sobre o qual a humanidade não tivesse qualquer mão. Estas linhas muito célebres são extraídas do 18 de Brumário de Louis Bonaparte:

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem a seu bel-prazer, em circunstâncias livremente escolhidas; estas, pelo contrário, apresentam-se-lhes já feitas, dadas, como herança do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos.

[... ]

A revolução social do século XIX não pode procurar a sua poesia no tempo passado, mas somente no futuro. Ela não pode começar antes de se ter despojado de qualquer superstição em relação ao passado. As revoluções anteriores tiveram necessidade de reminiscências emprestadas à história universal para fecharem os olhos sobre o seu próprio objecto. A revolução do século xix deve deixar os mortos enterrarem os seus mortos, para atingir o seu próprio conteúdo” (BLB, pp. 438 e 440; OE, I, p. 419).


Inclusão 14/08/2018