Operação República: a Política de uma Crise
uma análise independente

Fernando Dil e Carlos Pina


2. O fio e o conjunto


capa

O instantâneo em que se transformou a Informação parece que tornou o homem ainda mais sensível à sua recepção. Esse “choque”, como o qualificam alguns sociólogos da comunicação de massa, age no plano “interior” do fenómeno Imprensa como um elemento multiplicador dessa sensibilidade, “empurrando” todos os canais de divulgação (jornais, TV, rádio) para o primeiro plano, para o centro político, dos poderes em nossos dias. A manipulação deste poder passa a ser, pois, uma questão de fundo entre os que disputam o controlo político e social das nações.

Daí que estejamos a testemunhar os primeiros “andamentos” na direcção de um sistema de comunicação cósmica, de domínio único, concentrado, uma espécie de mercado comum mundial da Imprensa. Daí, paralelamente, o estrangulamento que sofre hoje a Imprensa escrita, arma menos imediata que a “imprensa visual”, esta de efeito contundente e mais directo, a actuar no homem sob o fascínio de dois pólos:

  1. — A informação imediata de que ele precisa;
  2. — A informação que já lhe é dada “digerida”, a cores mesmo, a deixar ver como se fora um espectáculo e a não exigir qualquer esforço de interpretação, enfim, de cansaço. A informação está ali, foi dada e “desapareceu”... morreu.

Ou não residirá aí uma das explicações para o fim de alguns dos mais importantes diários e semanários em todo o mundo? (Desde 1970, pelo menos 18 da grande Imprensa norte-americana, canadiana e europeia).

Dentro de cinco anos, poderemos ligar para o jornal da nossa preferência e obter por circuito de televisão, aberto ou fechado, todo o noticiário que hoje nos chega às mãos em folhas de papel. No dizer de Stuart MacLure, do “Times”,

“a cor será tão fundamental, a publicidade tão importante e tão procurada, que os editores farão distinção mais explícita entre o material que convenha distribuir por circuito de televisão e o que seja preferível para o processo tradicional da impressão”.

Ora, é claro que ao se chegar a essa opção significa muito simplesmente a “morte” da Imprensa escrita...

E explica aquele editor londrino:

“Para a indústria jornalística trata-se de uma revolução nas funções de cada um, no marketing e nas finanças, grandes alterações na importância relativa das diferentes fontes de receita e modificações análogas no equilíbrio de capacidade necessárias ao fabrico do jornal”.

E que tem isso a ver com o caso da “República”?

Estávamos a tentar dar uma ideia da verdadeira força que é a Imprensa escrita. (Ressalve-se que não somos pela eternidade da “era de Gutemberg”, mas pelo nosso reforço no âmbito da Imprensa industrial, pela utilização racional e humana das suas capacidades, contra a escalada de alienação que essa tecnologia pode rapidamente pôr em prática).

Há, portanto, uma directa articulação entre a política dos que estão ou disputam o poder e a utilização da Imprensa, o seu domínio. A estatização é uma das formas; o seu controlo por grupos financeiros, outra. Mas suprimi-la, por se ter tornado incómoda, através da oferta de novos padrões de informação, como já nos referimos, é o que temos à vista. Se bem que não precisamente entre nós...

Aqui, a Imprensa escrita apenas nasce. A censura é também uma outra forma de aniquilá-la. Temos hoje em Portugal uma Lei de Imprensa que prega que “a liberdade de expressão do pensamento pela Imprensa, que se integra no direito fundamental dos cidadãos a uma informação livre e pluralista, é essencial à prática da democracia, à defesa da paz e ao progresso político, social e económico do País”. Portanto, de acordo com a Lei, não temos censura.

...Mas temos à mesma o poder — a política pelo poder — que disputa o controlo da Imprensa. Esta é em si um poder. O domínio do seu mecanismo é o próprio poder. A sua influência uma mola de propulsão. Diz-se ainda hoje em Londres que o prestígio do “Times” é tal que a Inglaterra é por ele governada.

Em Portugal, a Imprensa pós-Abril de 74, e mais decisivamente a partir do seu enquadramento na lei que a regula, de 26 de Fevereiro de 75, passou a ser um fio a tecer todo o conjunto da vida política nacional. Poder sensível, pelo próprio poder que representa, a disputa pelo seu controlo ultrapassa mesmo as margens da Lei de Imprensa. O caso do jornal “República” assim bem o prova. O próprio Conselho de Imprensa o reconheceu. O Conselho da Revolução também. Duas semanas após o seu encerramento o CSR recomendou o reexâme da Lei.

Menos de três meses depois da sua promulgação, essa Lei não conseguiu acompanhar a dinâmica revolucionária — discutível, é verdade — que, no seguimento de todo um conjunto de perturbações nas empresas jornalísticas, viria a determinar um marco no “República”.

Podemos pensar que, numa situação revolucionária, as leis devem ser mesmo a permanente ultrapassagem de si próprias. O seu acerto é também o da revolução. Daí, ser plausível inverter-se a questão que naturalmente, de imediato, se poria: então é, neste caso, a Imprensa que surge como a força de pulsação, o motor, da revolução?

Pelo menos no caso da “República” foi.

E para ele não há enquadramento possível, no plano de uma discussão dita legalista. A sua especificidade levar-nos-ia a pensar mesmo ser este o exemplo de um acto de defesa intuitivo do processo revolucionário português. Dizemos intuitivo, mas lembramos que os factos da vida interna do jornal estiveram na base desse sentimento.

O conjunto da situação nacional, após os acontecimentos do 1.° de Maio, o avolumar das posições oficiais do Partido Socialista, as perspectivas que passou a apontar quanto à “utilização” dos resultados eleitorais de 25 de Abril (quando esses resultados não eram válidos senão para efeitos da formação de uma Assembleia Constituinte), e os reflexos de todo esse comportamento sentido no dia-a-dia da “República”, cada vez mais a aparecer como um quase porta-voz do PS, são factos que estão na raiz da “explosão” dos trabalhadores.

“Explosão”, no seu género, de certo, única na história da Imprensa mundial. O seu tratamento ultrapassa, para já, as malhas dos interesses partidários, “empurra-nos” para o problema da condição de trabalhadores que, a viverem intensamente uma revolução de rumo socialista, não têm em suas mãos o controlo da empresa em que trabalham. Mais o facto de o produto do seu trabalho não ter aos seus olhos, ressalte-se, o destino que pretenderiam.

Um analista bio-social talvez encontrasse aqui matéria para as suas análises.

Mas sem pretender avançar para extrapolações, o que se põe muito claramente no caso “República” é a discussão sobre qual o papel da Imprensa no quadro de uma revolução portuguesa.

Em Portugal, a Imprensa passa por uma cirurgia geral. O ministro da Comunicação Social, Correia Jesuíno, consagra-a, através da Lei de Imprensa, como um quarto poder e isola-a, à partida, das acusações apressadas de que ela esteja “nas mãos deste ou daquele grupo”.

Partamos do princípio de que a Informação é uma necessidade social. E como tal uma necessidade de conhecimento e de comunicação humana.

Mas também uma necessidade profunda de participação do indivíduo no seu próprio destino. A Imprensa é o seu “forum” de homem isolado em meio aos sistemas de sociedades modernas e herméticas em que vive. O jornal, a rádio, a televisão são, assim, meios através dos quais o homem se reencontra, porque vê ali o reflexo dele próprio, já que estes órgãos reflectem o que se passa no seu próprio grupo humano, na sua sociedade. Passa, pois, a informação a ser um tranquilizante. Estamos, portanto, diante de um fenómeno complexo e diversificado. E uma força de grande manipulação, de domínio preponderante. Daí pôr-se o problema de, num país a viver em transição, revolucionário, como Portugal, quem deve deter o poder na Imprensa. Se pensarmos que a evolução nas comunicações é provocada pela evolução económica, social e política de um país e que esta é o núcleo do seu crescimento nacional, concluímos que a Imprensa (jornais, rádio e televisão) deve ser usada como meio efectivo da revolução que se vive nesse país e que toda a informação deve ser um elo cientificamente estudado para formação do povo. Deve ser um veículo desalienador do povo, deve ser a mão e o pensamento da revolução à vista de cada indivíduo, em casa de todos, deve ser o transporte de uma revolução cultural, ponto primeiro de todo o processo revolucionário de uma nação. A Imprensa deve ser, pois, o núcleo de unidade do pensamento de uma revolução, o ponto de convergência das forças envolvidas no processo e o centro propagador do seu espírito.

“Uma informação livre e pluralista” é um dos objectivos de primeiro grau do Programa do M.F.A.. Mas, como se efectivará, na prática, essa liberdade de expressão? Posta de parte está a censura. Haverá uma legislação antimonopolista. Os jornalistas terão livre acesso às fontes de informação e serão parte decisiva nas suas publicações. “A comunicação tem vindo a socializar-se neste País” — diz Correia Jesuíno. Mais: a lei estabelece a distinção entre publicações doutrinárias ou informativas, o que aponta para um terreno bem claro em defesa de uma informação objectiva. Informação objectiva? É possível a neutralidade? Perderão os jornalistas, dentro dos jornais, a sua consciência política, renunciarão às suas posições, passarão a ser simples instrumentos transmissores de notícias? E quem forma o público? Quem o encaminha? Que ideologia deverá ter esse caminho?

“O problema que considero mais importante no domínio da Comunicação Social é o da definição de uma política de Informação. Entendo por política de Informação a definição de grandes objectivos que em seguida urge pôr em prática, sob pena de nos quedarmos por vagas declarações teóricas, que terão muito de piedoso mas que carecem de exequibilidade. Para além do aspecto executivo, há em seguida o problema do controlo, entendido este não como intervenção dirigista ou paternalista mas sobretudo como verificação dos resultados em função de uma auscultação correcta dos meios humanos a que a Informação se dirige, recordando-se para o efeito os meios que o actual estado da ciência permite” — pretende Correia Jesuíno.

Mais, diz ele:

“Não se pede, seria uma enormidade, que os nossos profissionais da Informação sejam castrados políticos ou que dispam a sua gabardina ideológica à entrada da redacção ou do estúdio. O que se pede, ou mesmo exige, é honestidade e inteligência, pois só assim poderá cumprir a sua missão altamente pedagógica de tornar transparente aquilo que é opaco”.

Há, no entanto, que definir qual a ideologia desta “missão altamente pedagógica”. E para tal há que não escamotear o problema da propriedade. E, aqui, uma nova interrogação: um jornal raramente é um bom negócio, do ponto de vista estritamente de rendibilidade económica. É presumível que os jornais não venham a cair nas mãos de grupos políticos que através deles — mesmo com prejuízos — encontrem largos lucros no campo dos seus objectivos partidários. Então, quem investirá na Imprensa? O conteúdo da comunicação reflecte o padrão de valores da sociedade. O uso objectivo da comunicação, os controlos desta reflectem o desenvolvimento político e a filosofia da sociedade.

Aproveitando as perspectivas apontadas pela nova Lei de Imprensa, com um amplo campo que se nos abre para a livre expressão do pensamento, será que não poderíamos “fabricar” uma nova Imprensa, uma nova Informação, algo que pusesse ao mesmo nível, e num quadro de permanente revolução, qualidade e independência? Algo que servisse de meio formativo, mas objectivamente formativo, que fosse a cartilha de um novo povo. E porque não pensar-se em novas formas para a sua comercialização, a fim de que mais facilmente a Imprensa chegasse a todos? Há aqui “mil fórmulas” a escolher. Desde as cooperativas leitores-jornalistas-empresas à participação do Estado como elemento interessado na melhoria cultural do povo. Mas antes de tudo — e ponto de partida para tudo — será pensar e arrancar com essa revolução. E uma revolução na Imprensa portuguesa numa hora em que surgem os primeiros passos para uma comunicação cósmica, em que os “videofones” lançam-se em meio à explosão da comunicação através da imagem directa, em que a escrita é estrangulada, mas num instante em que é decisivo pôr em prática a fórmula de que de cada indivíduo depende a sociedade em que ele quer viver.

É no centro da luta por essa sociedade que podemos situar a irrupção da crise no interior da “República”.

Um Conflito de Trabalho
Um Conflito Político

Este conflito dá-se sob as cores de uma luta partidária. E logo de início, um contraponto. O de que declaradamente só aparece um lado, um parceiro, nessa luta. Enfim, um partido, o socialista. “O adversário, sagazmente, está a manobrar na sombra” — é o contra-ataque, O adversário é o Partido Comunista. Sim, pode ele vir a tirar proveito. Mas, factualmente não apareceu no âmbito da crise. E, pelo que sabemos, os “rebeldes” da “República” não têm o PC como seu “padrinho”. Muitos deles distanciam-se da linha “pêcêpê”. Mais à esquerda.

Daí que, no mínimo, foi infeliz e nada produtivo para o processo revolucionário, toda a grande quermesse nacional e internacional que o Partido Socialista, encabeçado pela linha Soares-Zenha, montou contra o PCP, ao nível, ainda, de “os comunistas querem tomar o nosso jornal”.

Foi certamente este o episódio mais amplamente utilizado pela reacção internacional — e um elemento fortemente desagregador, no plano interno — contra o processo do “25 de Abril”.

Que a “República” foi sempre de accionistas afectos ao Partido Socialista, inclusive o próprio Soares-Zenha, não há dúvidas.

Que a sua linha editorial seguia nos últimos tempos, ressalte-se, em nível oposto, o crescendo das posições pró-PCP noutros jornais, sem dúvida.

Que entre os seus redactores 11 são militantes do PS, sem dúvida.

Que a “República” tem o direito, por opção, de defender a linha partidária que bem pretender, sem dúvida.

Que a objectividade no clima revolucionário em que vivemos impunha-se, quer à “República”, quer a outros jornais, parece ser uma exigência da liberdade que se deseja construir neste país.

Que essa consciência foi amolecida pelo espírito de “clubite” desencadeado por orientações de cúpulas, é a prova que tivemos durante e pós campanha eleitoral nos jornais marcadamente partidários, como era a “República”, já que é dele que estamos a tratar.

Que a “explosão” no interior da “República” orquestra-se ao nível de interesse dos que pretendem dividir as forças de esquerda do país e muito especialmente os trabalhadores, isso é factual.

Contudo, é de acentuar que:

O problema da “República” situa-se, à vista larga, entre a estratificação de um “status” clássico de fazer o jornal, guiado por um partido ou seus seguidores de cúpula, e a tentativa de criar algo de novo no quadro da Imprensa, embora essa tentativa não apareça esboçada no “abrir” do conflito.

O que se passou na “República” dá-se sob a perspectiva de um cada vez menor domínio da empresa por parte dos trabalhadores, quase sem excepção os não jornalistas.

Dá-se sob efeitos sentidos no dia-a-dia do jornal, enquadrado, ressalte-se, por uma situação hierarquizada do capital, onde surge o patrão, o dono, a administração, que exerce o direito, o legalismo, de pedir o encerramento do jornal, isto de um lado, e do outro, a intuição, sublinho intuição, revolucionária dos trabalhadores.

Temos, assim, uma situação de desequilíbrio, digamos assim, entre o que era o órgão “República”, sociedade de fundo capitalista, e o ideal de mutação dos trabalhadores que pretendem a coerência de, num clima de realinhamento socio-político, não servirem de mola para os objectivos partidários ou financeiros (?) dos seus patrões...

...E uma Imprensa que é como que um serviço particular dos senhores da política, arma de sua utilização pessoal, até, e dos seus adeptos, sejam quais forem, permite-nos pensar que:

1 — essa Imprensa não foi ainda liberta do jugo da propriedade privada; são as leis do sistema capitalista que impõem a metodologia do trabalho e o pensamento expresso através das suas informações e opiniões.

O que quer dizer que os seus trabalhadores, como classe explorada, estão em permanente luta, luta contra os patrões, a outra classe, a que se lhe opõe.

2 — portanto, todos os conflitos surgidos nessa empresa são, irrefutavelmente, no seu núcleo, melhor: são historicamente conflitos de trabalho, rapidamente transformável num conflito de consequências políticas (Poderemos ainda dizer que o trabalho decide-se no âmbito de determinismos políticos; daí, ser estreita a relação trabalho-política)

As questões laborais são, por fim, questões políticas. As suas determinantes não são outras que não as distorções nascidas dos sistemas políticos em que estão inseridas.

Os jornais que reflectem determinada política de um partido ou outro grupo, seita, religião, etc., não podem pretender confundir informação com propaganda. Essa relação tem de ser expressa, em defesa da própria liberdade de Imprensa, demarcando os limites do que deve ser uma informação comprometida, e portanto a propagação de um ideal ou de uma forma de ver as coisas, em nada negativo, note-se, daquilo que se pretende “incolor”, apenas informação...

E informar o que é?

Como diz Aimé Guedj, um “pensador” da matéria, informar não é, como ingenuamente por vezes se pensa, dizer “aquilo que é”, proclamar — “quer isso agrade ou não” — uma verdade que se daria imediatamente como tal.

Neste sentido, uma certa concepção da objectividade da informação, que nega ou despreza a parcialidade mais ou menos consciente do informador, mascara as suas responsabilidades, pretende transformá-lo num simples eco dos acontecimentos ou num árbitro acima das classes, estranho a toda a ideologia; uma tal concepção é profundamente mistificadora. No suceder caótico dos acontecimentos, com efeito, o informador intervém activamente: efectua uma escolha, constitui uma ordem, estabelece uma hierarquia, opera uma desmontagem que se quer significativa. Informar é dar forma, isto é, sentido ao que se transmite.

“O facto é sagrado, o comentário é livre”, dizem repetidamente certos jornais e jornalistas, ciosos de assegurar uma moral provisória defendendo a subjectividade do modo de transmissão e a objectividade do facto transmitido. Na verdade, difícil partilha, pois que o facto não é puro reflexo de um mundo objectivo mas unidade de sentido, produto duma série de operações em que a interpretação intervém em todos os níveis, transformando o comentário em petição de princípio.

Deste modo, é a própria noção do facto que é problemática.

Noção que, efectivamente, subjectiva, pode com todas as margens pôr de pé uma “informação limpa”. Nesse terreno os limites são estreitos, e em quase todos os casos, o objectivo de quem informa não é o interesse de quem é informado.

E o que os separa? O poder.

O poder que, quase sempre, do interessado se distancia. E impõe o seu sistema através da desinformação, hoje um meio muito usado para evitar a propaganda, em total descrédito, e “fazer” verdades.

É este um dos perigos graves para a liberdade de Imprensa.

Evitá-lo?

Sim, combatê-lo. Exigir que os jornais clarifiquem a sua política de informação. A pluralidade de vozes, obviamente, mas sem que o leitor desconheça o que escolheu ler.

Quando o “New York Times” diz, sob o “fogo” político “enviado” de Lisboa, relativamente ao caso “República”, que o seu encerramento “obriga Portugal a dar um novo e importante passo para a ditadura marxista e uma possível guerra civil”, o que este jornal está a fazer é espelhar a defesa de uma determinada política, a anti-comunista, melhor, a anti-PCP, que, no contexto local reflectia a posição do PS.

Daí que o conflito da “República” tenha sido para além da questão posta pelo PS ao nível dos seus “desencontros” com o PC, tenha sido, dizia, um catalisador de dúvidas vindas do exterior contra Portugal, no que, mesmo que beneficie, de imediato, os objectivos políticos de Mário Soares, o que ainda não se comprovou, não lhe será, por fim, favorável, por três motivos:

  1. — Foi o propagador de um amplo conflito que predispôs trabalhadores contra trabalhadores;
  2. — A revisão da Lei de Imprensa, embora violada pela Comissão de Trabalhadores da “República”, de certo que passará a prever situações como a desse conflito e dificilmente se virará contra os que determinaram a sua actualização;
  3. — O PS perdeu a oportunidade de ter contribuído, no plano político, a partir da mesa das negociações entre as partes em conflito, para um debate de fundo sobre a Imprensa e o seu significado prático na construção do socialismo, na busca de uma melhor definição sobre a liberdade de expressão e os meios revolucionários para nessa busca participar.

Ao contrário, encontrou no desenvolvimento do caso, caminhos que lhe proporcionaram ampliar a sua escalada política no exterior, sabedor de que no interior do país o seu comportamento, nomeadamente a partir do 1.° de Maio, tornara-se demasiadamente convulsivo e objectivamente anti-revolucionário, no sentido defendido pelo MFA.

Conseguiu, assim, a cúpula do PS escamotear as origens da crise no interior do jornal, dirigindo contra outros aquilo de que era acusado: o de ter transformado a “Republica”, através de militantes na redacção, direcção e administração, num seu órgão oficial.

O grito que passou a propagar de abaixo o monolitismo na Imprensa era a prática que desde há algum tempo dava sinais de pretender vir a impor na “República”.

Reivindicar o pluralismo na Imprensa foi exactamente o elemento deflagrador do movimento da Comissão Coordenadora dos Trabalhadores.

A simples verificação de que a tiragem do jornal caíra, entre Outubro de 74 e Abril de 75, em cerca de 16 por cento e que a coloração partidária (pró PS) acentuava-se, de edição para edição, eram factos que exigiam, no mínimo, e em primeiro lugar da parte da redacção, uma posição de advertência à direcção e à administração, não estivesse ela (a redacção) interessada nesse esquema.

O direito de expressão ao PS, como aos outros partidos, é irrefutável, desde que no âmbito de regras democráticas e, sobretudo, enquadradas pela objectividade revolucionária.

O foco político do caso “República” aproveitado pelos socialistas de Mário Soares incidiu sobre as suas divergências com os comunistas de Álvaro Cunhal, a partir de um ponto sensibilíssimo como é o do domínio da Imprensa.

Se é facto que o PCP conta com importantes células no interior dos órgãos de Informação, não é verdade que o PC tenha espoletado a crise dentro da “República”. Note-se que pelo menos uma dezena de jornalistas identificados com o “pêcêpê” demitiram-se deste jornal muito antes da crise de 19 de Maio.

Se havia uma presença de militância marcadamente partidária na “República” esta era ligada ao PS. É claro que os comunistas estão representados entre os trabalhadores, assim como se contam militantes da esquerda revolucionária e “independentes de esquerda”.

Mas daí a que se propague que “o Cunhal quer tomar mais um jornal” ou “Olélé, olálá, fora do jornal com os lacaios do Cunhal”, como os dirigentes socialistas insuflaram uma multidão a cantar à porta da “República”, na noite de 19 de Maio, então, assim já é pretender transformar, por sistema, todo e qualquer episódio numa amplitude de luta política partidária, de reforço de posições, de acção marcadamente convulsiva, nada construtiva de uma unidade política essencial ao processo, nomeadamente quando, dias antes, dirigentes do PS e do PCP se tinham sentado à volta de uma mesa e delinearam pontos a seguir.

E, no entanto, não caberia ao PS, como não cabe ao PC, ou a outro qualquer partido, nomeadamente no actual quadro da vida nacional, e se os quisermos tomar como forças sinceramente interessadas na construção de uma nova sociedade em Portugal, virada para um modelo seu, sem dirigismos do exterior, caucionar ou fomentar o choque e a divisão entre os trabalhadores, em nome do que quer seja.

Se há um “front” onde a batalha política deve ser incentivada este é o da consciencialização das massas e a sua politização, qualificação do seu nível cultural, o mobilizá-las numa só direcção: construir um país, libertar um povo.

Grave na “operação República” é verificar que o conflito põe entre si, em choque, e a um nível extremo, forças de esquerda. E num instante em que o seu inimigo comum, as direitas, não só não foram derrotadas, como se reorganizam.

Mais grave: o PS decidiu-se por um confronto com o MFA, lançou, objectivamente, no seu interior, a divisão provocou não um debate necessário sobre a questão da Imprensa e do seu controlo, mas espicaçou, à luz de uma emocionalidade incontrolável, e sob o padrão do anti-comunismo (o que lhe valeu o apoio de todas as forças das direitas), um confronto inter-militares que poderia ter sido desastroso. O que de todo não está excluído, se concluirmos que o caso “República” foi, sem dúvida, um divisor de águas e continuará a ser um marco político ramificador de várias e futuras situações.

O direito à pluralidade de vozes não fascistas há que ser cimentado no quadro da revolução. Pôr de pé esse direito, debatê-lo sem dissensões que agravem as estruturas revolucionárias, é construir paralelamente uma informação livre.

Outro erro do PS foi o de não ter previsto que o caso “República” ultrapassaria os limites “belicosos” da sua contenda com o PCP. Que a vulnerabilidade da sua condição de ser um partido socialista aliado aos ideais de uma social-democracia, não lhe permitiria, no quadro de uma política revolucionária psicologicamente motivada pela criação de uma sociedade sem classes, ganhar a confiança dos trabalhadores. Efectivamente, logrou dividi-los e não só no interior do jornal, opondo os jornalistas aos gráficos e outros.

Quem lucra com essa divisão?

Na verdade, a luta da C.C.T. da “República” dirigiu-se, desde o início do conflito, contra a política de controlo do jornal pelo PS. A contra-ofensiva dos socialistas não foge às regras do jogo ataque-defesa.

O controlo daquele jornal pelo PS, ou de outro por qualquer partido, é um problema que se projecta no centro da própria discussão sobre a disputa do poder.

O caso “República” foi prematuramente adoptado pelo PS como um dos focos desta disputa, quando, de facto, se tratava apenas de uma luta que, embora tenha ganho características especiais e complexas, foi de princípio uma luta contra a cúpula do PS. Receber, desta, as directivas político-ideológicas para a feitura do jornal não coincidia com o objectivo dos trabalhadores, excepto os da redacção que, por isso mesmo, não se puseram ao lado da C.C.T.

Extrapolar o problema do caso “República” para o campo de uma luta pela liberdade de Imprensa em Portugal é, no mínimo, negar uma Lei de Imprensa que o próprio PS aprovou.

É verdade que o conflito da “República” veio apontar para a necessidade urgente da sua revisão. No que a lei falhou, a capacidade revolucionária de um partido socialista poderia ter encontrado uma solução revolucionária. Não era impossível uma solução imediata, solução política do conflito...

O combate pela liberdade de Imprensa é um combate político e não exclui da sua discussão esta ou aquela parcela dos trabalhadores.

Sem os jornalistas não haveria jornais. Mas — e em Portugal é ainda um facto(1) — sem os tipógrafos e serviços anexos também não. Avancemos um passo; e sem os leitores, um jornal muito simplesmente não existe. Porque então os directamente interessados num jornal não haverão de ser os seus fabricantes, aqueles que determinarão o seu conteúdo, os leitores e os trabalhadores?

Há que se encontrar uma fórmula que democratize, ao máximo, os poderes de decisão dentro de um jornal, ainda mais quando ele é pertença de todos, quando é do Estado. Não é este o caso da “República”, mas a propriedade privada, num enquadramento revolucionário como o português, há que actuar em termos de revolução.

Oferecer propaganda por informação é, no mínimo, uma usurpação ao direito dos leitores. A propaganda tem o seu lugar, mas identificada como tal; daí que existam os jornais de partidos. Preservar o direito à informação não é um combate exclusivo dos jornalistas. É na raiz deste problema — propaganda e informação – que se situa o ponto de ruptura do conflito na “República”.

Não faz sentido pensar-se que o conteúdo político de um jornal seja monopólio de um grupo profissional, identificado com este ou aquele partido. Só numa perspectiva superiormente democrática pode pensar-se no seu controlo.

E como?

Este processo cabe exclusivamente aos que “fabricam” o jornal e aos seus leitores. Estes, ao contrário do que comummente se pensa, podem interferir concretamente nos destinos de um órgão de informação: basta lembrar que a sua opção de compra é por si só uma opção política...

A intervenção da C.C.T. na feitura da “República” (cujo modo de irrupção, no dia 19 de Maio, poderia ter sido mais político, tendo em vista melhores resultados globais, e por isso mesmo deve ser um ponto merecedor de autocrítica) tem contudo, características especiais, localizadas no próprio espaço em que se inseria esse jornal, nomeadamente as suas relações com os dirigentes do PS, não sendo, por isso, forçosamente um modelo. Até porque, repita-se, é um erro político da maior gravidade, isolar ou dividir trabalhadores. Só circunstancialmente e no âmbito de uma opção claramente político-partidária, como no caso da “República”, é que, “in extremis”, forças unas em vários pontos, na sua conduta antifascista, por exemplo, se coloquem em campos opostos.

O terreno na discussão do caso “República” é escorregadio. A opção de luta contra um partido que estava à frente do jornal, apoiado pela redacção e direcção, é uma opção claramente política. Não necessariamente partidária. Não se visualiza, ao contrário do que propagou o PS, uma “ponte” entre a C.C.T. e qualquer partido político, muito menos o PCP.

O controlo da política de um jornal cabe objectivamente a todos os trabalhadores e a eles a decisão sobre os métodos desse controlo. Métodos conjunta e revolucionariamente aprovados, tendo em vista, acima de tudo, evitar a desmobilização das forças revolucionárias e a sua desagregação, foco primeiro da contra-revolução.

“Desmontar” a “operação República”, repleta de implicações políticas e sociais, internas e externas, ao ponto a que chegou até à data do suplemento do “Quotidien de Paris”, exigiria de qualquer governo uma decisão de força, posta de parte como se comprovou, pelo evidente extremismo do conflito, qualquer fórmula negociada.

Tratando-se de uma empresa privada, e muito mais, de uma empresa jornalística, qualquer intervenção oficial outra não será senão uma intervenção marcadamente política. Portanto, uma solução política com todos os agravos e desagravos daí naturalmente resultantes, e, como tal, note-se, a ter em consideração os muitos elementos de circunstância, os que o instante político os determinar.

Transformado pelo PS numa luta ideológica e partidária, mesmo a nível internacional, veja-se o “documento” sobre as “instruções Pomonarev”, o caso “República” dificilmente permitirá ao Conselho da Revolução, ao MFA, uma solução que não seja a da intervenção militar na administração da empresa, a fim de garantir a sua continuidade e, sobretudo, uma política de informação apartidária e revolucionária, estruturando o terreno para uma futura gestão dos trabalhadores que, entretanto terão encontrado, através da prática de uma informação que se quer pedagógica, não unívoca, e fonte aberta para um amplo debate sobre a construção de um socialismo verdadeiramente libertário, terão encontrado , dizíamos, na dialéctica das suas próprias experiências, a síntese revolucionária que lhes apontará, decisivamente, que só a unidade lhes assegurará o poder...


Notas de rodapé:

(1) O avanço tecnológico, no capítulo da composição e impressão dos jornais, como nos Estados Unidos e Japão, por exemplo, tende a substituir os serviços tipográficos tais como hoje são conhecidos em Portugal. (retornar ao texto)

Inclusão 31/07/2019