O Plano Marshall à Luz dos Fatos

A. Lêontiev


II — Reduzem-se os Créditos


NÃO É POR acaso que os políticos americanos e seus sócios da Europa batizaram sua obra de «plano». Só esse nome, assim como um outro título pomposo, o de «Programa de Reerguimento da Europa», mostram que se pretendeu abusar da aspiração das massas populares a uma base econômica sólida. Desejaram criar a impressão que um elemento de ordem e de estabilidade seria introduzido no mundo da anarquia e desordem capitalistas.

O sistema econômico anárquico, absurdo, e caduco, que se baseia na propriedade privada de monopólios todo poderosos, destrói impiedosamente a esperança das pessoas simples a posse de uma existência por pouco que seja tolerável e segura. Constatam toda a estupidez dum regime sob o qual, a despeito de uma quantidade mais que suficiente de mão de obra, de matérias primas e de empresas industriais, faltam as mercadorias, e aumentam o desemprego, a miséria e a fome. Por outro lado, o mundo inteiro vê as imensas vantagens da direção planificada da economia nacional na URSS e os êxitos indiscutíveis dos países que conseguiram fugir à órbita imperialista e seguiram pelo caminho da democracia popular. As frases sobre a beleza do espírito de empreendimento e da iniciativa privada não têm mais nenhuma atração para as dezenas e centenas de milhões de pessoas das quais toda iniciativa, e todos os empreendimentos estão limitados, de boa ou má vontade, à dolorosa busca de um ganha-pão qualquer.

Mas o fato é precisamente que todas as afirmações daqueles que falam em acabar com a anarquia econômica, introduzir princípios justos e planificados na vida econômica da sociedade, continuarão a ser apenas palavras, a menos que sejam mentira consciente, enquanto dominarem os interesses cúpidos dos monopólios capitalistas, enquanto as massas trabalhadoras não forem donas de sua própria vida, enquanto forem simples instrumento nas mãos dos ávidos campeões do lucro ilimitado. A história do plano Marshall prova isto de forma eloqüente.

Há tempos afirmava-se que bastava aos países europeus saírem do quadro estreito de seus interesses nacionais, sacrificarem uma parte de sua soberania, sentirem-se «membros da comunidade européia», elaborar um programa comum de reconstrução e apresentarem à América um pedido circunstanciado de subsídios e créditos em dólares. Nesse caso, asseguravam os apóstolos do plano Marshall, o programa de reerguimento da Europa será sancionado pela divindade de além-Atlântico, o dólar, e constituirá uma base sólida da vida por alguns anos. A chuva de dólares começaria a fecundar sistematicamente o solo cansado do velho mundo e este solo poderia de novo alimentar os famintos. A graça do dólar desceria sobre os fieis que acreditassem na filantropia desinteressada dos monopolistas americanos e duraria até que estivesse realizado todo o programa de reconstrução européia.

A vida decepcionou cruelmente aqueles que estavam dispostos a acreditar em semelhantes fábulas. Compreenderam isto desde o início.

A conferência dos dezesseis, realizada em Paris no verão de 1947, ofereceu ao mundo um espetáculo mais do que triste. Os delegados dos governos europeus, esquecendo a honra nacional e perdendo o sentimento elementar de pudor, proclamaram insistentemente suas necessidades e pediram os dólares. Finalmente, depois de longas controvérsias e cálculos complicados, a conferência determinou as necessidades dos dezesseis países à ajuda americana, por quatro anos, em 29 bilhões de dólares.

Mas esta soma, não foi aceita do lado de lá do Atlântico. Clayton, especulador em algodão dos Estados do Sul, então sub-secretário de Estado, correu por via aérea a Paris. De novo o mundo inteiro foi testemunha de um espetáculo humilhante: por ordem de Clayton os delegados dos dezesseis países europeus reduziram rapidamente suas pretensões para 20 bilhões e 600 milhões, soma que Washington também achou exagerada. O comitê Harriman, criado pelo presidente Truman, rosnou ainda e fixou a soma do programa quadrienal de ajuda americana em 17 bilhões de dólares. Foi também esta soma que figurou na mensagem presidencial ao Congresso.

A fase seguinte das dores de parto do plano Marshall começou quando a questão foi levada ao Congresso americano.

O programa de ajuda, chamado provisório, por um período de três meses, foi ratificado, mas o plano ficou em estudo, desde o princípio de1918, nas comissões e nas duas Câmaras do Parlamento. Foi examinado calmamente, sem pressas. Os representantes do Departamento de Estado prometeram a seus clientes europeus fazerem votar o projeto de lei antes de 1º de abril. Mas ainda em junho os debates continuavam.

Os congressistas que tanto se apressam em votar qualquer projeto reacionário, por exemplo, a lei Taft-Hartley, ou o projeto Mundt, não deixaram de ressaltar que não estavam com pressa de salvar os europeus falidos. Limitamo-nos a lembrar que a comissão senatorial dos negócios estrangeiros que abordou o plano Marshall a 8 de janeiro, só terminou seu exame a 5 de fevereiro. Contudo não se pode dizer que esses debates tenham sido totalmente inúteis. Foi durante o exame do plano que surgiram muitos dos seus lados curiosos. Tomou-se conhecimento como os meios governamentais dos Estados Unidos concebem os objetivos e as tarefas.

O governo Truman convidou o Congresso a examinar o plano quadrienal. Mas os congressistas não seguiram essa recomendação. Resolveram limitar-se a estabelecer a importância da soma a pagar no primeiro período, estipulando que, para o futuro os pagamentos dependeriam da conduta dos países europeus. Então o governo pediu a concessão de 6 bilhões e 800 milhões para os 15 primeiros meses. Mas a comissão senatorial dos negócios estrangeiros recomendou que se limitasse ao pagamento de 5 bilhões e 300 milhões de dólares para o primeiro ano, inclusive as somas para a famosa «ajuda» militar à Grécia, à Turquia e à China.

Em fins de março o projeto de ajuda aos países estrangeiros chegou à Câmara dos Deputados. Um dos poucos deputados progressistas, o democrata Sadowsky de Michigan, que votara contra o plano Marshall, qualificou o mesmo, de:

«mentira de 1.º de abril, brincadeira trágica para o povo americano e para os povos pacíficos do mundo inteiro».

Provavelmente nem mesmo Sadowsky supunha até que ponto tinha razão. A comédia dramática não acabou de modo nenhum no dia 1.º de abril. Para falar a verdade, ela apenas começou.

Maus profetas, realmente, aqueles admiradores ilimitados do plano Marshall que, a exemplo do jornal democrático-liberal alemão «Montags Echo» se apressaram em declarar, no início de abril, que ao aprovar o projeto de «ajuda» à Europa, os Estados Unidos tinham provado que seu aparelho legislativo «sabe agir rapidamente». Por seu lado, o «Daily Herald» trabalhista, escrevia servilmente que o plano Marshall «não é um empréstimo e sim um investimento do povo americano no futuro da Europa». Mesmo o «Daily Express», que por vezes julga com isenção as «dádivas» de além Atlântico, se humilhava todo ao gabar a «generosa e nobre atitude do povo americano e de seu Congresso».

Em breve todos esses vassalos do dólar americano tiveram a possibilidade de constatar a exatidão do velho ditado que aconselha «não confundir rapidez com precipitação». A tinta com que foram escritas essas linhas servis ainda não tinha secado, e já os adiamentos recomeçaram intermináveis,

O infeliz projeto da lei continuava a navegar entre as comissões de créditos da Câmara dos Deputados. Esta diminuiu em um quarto as concessões. A soma de 5 bilhões e 300 milhões de dólares, adotada no início, passou para 4 bilhões por 15 meses.

Devem se notar os argumentos bem característicos apresentados sobre o assunto pelo presidente da comissão de créditos, o republicano Taber, deputado do Estado de New York. Fez uma crítica violenta do plano Marshall, vago demais, segundo ele:

«Não existe plano Marshall, disse; nada mais há do que uma expressão usada nas conversações, e observamos que os que mais vociferam a favor do plano são os que menos sabem à seu respeito».

Segundo Taber, constatou-se durante as sessões da comissão que os funcionários governamentais não dispõem de dados concretos nos quais possam basear suas previsões no que se refere às necessidades dos países participantes do plano.

Os discursos de Taber e de seus colegas da comissão de créditos provocaram viva emoção.

Marshall, tomando a palavra, na comissão de créditos do Senado, declarou que a redução dos créditos pode fazer, fracassar todo o seu programa; que enfraquecia «a confiança dos europeus nos Estados Unidos». A comissão senatorial escutou suas exortações. Aprovou a abertura dos créditos que se elevam a 4 bilhões de dólares por 12 meses, enquanto que a comissão da Câmara dos Deputados assinava a mesma soma por 15 meses. Finalmente, houve um acordo entre as duas Câmaras do Congresso: os 4 bilhões devem ser gastos em 15 meses, mas podem ser consumidos em 12 se o procurador para a realização do plano Marshall e o Presidente julgarem necessário.

O efeito da redução dos créditos foi muito sensível. Esta decisão provocou amarga decepção na Europa. O «Times» escrevia:

«Qualquer que seja a decisão definitiva, os prognósticos econômicos e as resoluções na Inglaterra partirão de agora em diante do fato de que a concepção Taber representa e continuará a ser uma força com a qual se deve contar».

Certos jornais escreveram que a decisão da comissão Taber foi um «banho frio». Outros declaravam que o negócio começava a parecer bluff. «Le Monde», órgão semi-oficial, perguntava num arranco de retórica: quem poderá dizer depois disto que no ano próximo o Congresso não torpedeará definitivamente o plano Marshall?

Os «protetores» da Europa resmungam, confusos, que a decepção provém da ignorância dos europeus, pouco conhecedores da complexidade do Congresso americano. É verdade que esta complexidade, está cheia de artifícios e chicanas. Mas não é esta a causa principal da desilusão. O Congresso com todos os seus métodos e adiamentos infinitos a propósito do plano Marshall, é o instrumento dócil do campo dirigente dos Estados Unidos que busca fins políticos bem determinados. Tratar-se de humilhar, de confundir mais ainda os países europeus que participam do plano, de perpetuar suas preocupações, sua inquietação, de torná-los ainda mais «razoáveis».

Mas, pela mesma razão, fica patente o caráter demagógico das promessas que os agentes do plano Marshall, especialmente os ministros dos negócios estrangeiros da Inglaterra e da França, prodigalizaram tanto a gosto na Europa. Confirma-se, assim, que é inútil esperar que este plano possa constituir uma base com um mínimo de solidez para quaisquer previsões econômicas. É uma ilusão acreditar que o plano Marshall tenha contornos definidos. Na realidade este programa de expansão americana está fartamente municiado dos atributos de um imoderado reclame americano, do bluff americano. Com efeito, em que resulta a solidez, a duração prometida, se a sorte do plano no seu conjunto e cada um dos seus algarismos em particular dependem dos cálculos que mudam conforme a conjuntura dos cavalheiros de indústria americanos (assustados com o espectro da crise próxima), das manobras eleitorais dos congressistas, da demagogia descarada de uma imprensa venal e de outras causas semelhantes? Fatores, estes, pouco respeitáveis e que, além disso, não podem ser previstos.


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Inclusão 28/03/2008