Red Papers 5

Libertação Nacional e Revolução Proletária nos Estados Unidos

União Revolucionária (EUA)


O Desenvolvimento da Nação Negra nos Estados Unidos


O povo Negro nos Estados Unidos partilha um percurso histórico comum que é distinto do das outras nacionalidades oprimidas e, sobretudo, do dos brancos neste país (os europeus que, ao longo de vários séculos, foram “amalgamados” no grupo nacional dominante). No Red Papers 1, resumimos a opressão do povo Negro nos EUA ao longo dos últimos 350 anos:

O povo Negro é um povo colonizado importado, trazido para este país em cadeias e disperso pelo território. Espoliado da sua terra e dos seus recursos, e despojado do seu património cultural, o povo Negro é hoje forçado a viver em comunidades oprimidas, exploradas por interesses económicos de brancos absentistas e controladas por um exército de ocupação composto por polícias mercenários. Dada a sua situação geográfica específica — dispersa em concentrações entre a população maioritária — parece extremamente improvável que o povo Negro possa conquistar a libertação nacional antes da destruição do sistema do capitalismo monopolista norte-americano.

Embora esta afirmação apresente, de forma geral, uma descrição correta da situação atual do povo Negro, omite uma etapa crucial no desenvolvimento do povo Negro e da sua luta de libertação: a formação, após a Guerra Civil e o período da Reconstrução, da nação Negra semifeudal e semi colonizada na região sulista das plantações, conhecida como a Cintura Negra (Black Belt).

Examinemos, então, mais de perto o desenvolvimento histórico da nação Negra e da luta de libertação Negra:

O Período da Escravatura

O comércio internacional de escravos, baseado no saque inicial de África pelas potências europeias, foi iniciado por Portugal (que, ainda hoje, é uma das últimas potências coloniais diretas em África). Portugal deteve praticamente o monopólio do comércio de escravos até ao final do século XVI. Posteriormente, foi acompanhada pelas outras grandes potências coloniais europeias: Inglaterra, Espanha, Holanda e Dinamarca, bem como pelas colónias americanas.

Naquela época, o tráfico de escravos seguia um percurso triangular: da Europa para África, com mercadorias utilizadas para comprar escravos aos chefes tribais (que já utilizavam escravos, principalmente como serventes domésticos e produtores locais, ou que eram subornados para capturar e vender escravos); depois, das costas africanas para as Caraíbas, o Brasil ou as colónias da América do Norte, com o carregamento humano; e, finalmente, de regresso à Europa com os produtos cultivados pelos escravizados nas colónias.

A segunda etapa dessa rota, conhecida como a “passagem intermédia”, foi um horror indescritível para os escravos, que eram amontoados nos navios nas mais miseráveis condições. Muitas vezes, os escravizados revoltavam-se. Em algumas ocasiões, tiveram sucesso: capturando ou matando o capitão e os seus capatazes, e fazendo o navio regressar a África. Mas, com muito mais frequência, pagavam um preço amargo por ousarem resistir: os líderes, ou até escravos escolhidos ao acaso, eram torturados, lançados ao mar ou as duas coisas. Não existem números exatos sobre os africanos que morreram em África ou durante a “passagem intermédia”. Mas as melhores estimativas indicam que, por cada escravo que chegava ao “novo mundo”, um morria às mãos dos traficantes — cerca de 20 milhões de pessoas!

Com o desenvolvimento do tráfico de escravos nas colónias puritanas da Nova Inglaterra, surgiu uma segunda rota comercial triangular: da Nova Inglaterra para África com bens (principalmente rum) para comprar escravos; depois para as Caraíbas com os escravos; e finalmente de regresso à Nova Inglaterra com melaço das Caraíbas, para produzir mais rum para comprar mais escravos. Uma vez nas colónias, os escravos continuavam a revoltar-se. No período de duzentos anos entre 1663 e 1864, foram registadas mais de 200 rebeliões de escravos — e certamente houve muitas outras que não foram documentadas. Os senhores de escravos envidaram todos os esforços para suprimir não apenas as rebeliões em si, mas também qualquer notícia sobre as mesmas, com receio de que pudessem inspirar outros escravos a revoltar-se, que uma única faísca pudesse incendiar toda a pradaria — e que todo o sistema esclavagista se desmoronasse em fumo.

Mas o sistema esclavagista, impulsionado pelo motor da acumulação primitiva capitalista, era implacável. Marx sintetizou a importância do tráfico de escravos, entre outros fatores, para o desenvolvimento inicial do capitalismo na Europa:

A descoberta de ouro e prata na América, a extirpação, escravização e sepultamento da população aborígene, o início da conquista e pilhagem das Caraíbas, a transformação de África numa reserva para a caça comercial de peles Negras, assinalaram a aurora rosada da era da produção capitalista.

(O Capital, Vol. I, Capítulo 31, “Génese do Capitalista Industrial”)

Nos Estados Unidos, embora o tráfico de escravos fosse um negócio altamente lucrativo e amplamente praticado na Nova Inglaterra e em Nova Iorque (mesmo após ter sido formalmente proibido em 1808), o sistema esclavagista desenvolveu-se apenas nas regiões do sul, dado que só aí o clima era propício ao cultivo de produtos agrícolas que podiam ser produzidos por métodos esclavagistas primitivos: principalmente o tabaco, o algodão e, nos Estados mais a sul, como a Louisiana, o açúcar.

Inicialmente, o tabaco era o principal produto da economia esclavagista do sul, encontrando um vasto mercado na Europa. Apenas após a invenção da descaroçadora de algodão, em 1793, é que o algodão iniciou a ascensão que o levou a tornar-se o "Rei Algodão" no trono da barbárie sulista. Antes dessa altura, a produção de algodão não era verdadeiramente rentável, devido ao problema de separar manualmente as sementes, o que exigia muitas horas de trabalho por fardo. Em 1790, produziam-se apenas cerca de 3.000 fardos de algodão, cada um com 1.000 libras. Vinte e cinco anos depois, com a invenção da descaroçadora, esse número aumentou quase 70 vezes, ultrapassando os 200.000 fardos. E em 1859, o ano anterior à secessão sulista, as exportações de algodão atingiram o recorde histórico de 3,5 milhões de fardos, representando mais de 60% de todas as exportações dos Estados Unidos nesse ano.

A maior parte do algodão era exportada para Inglaterra, alimentando a indústria têxtil em rápido crescimento, a espinha dorsal do capitalismo inglês. Mas o sistema esclavagista não lançou apenas a pedra angular do capitalismo em Inglaterra – também forneceu, de forma indireta, a maior parte da base do capitalismo nos próprios Estados Unidos. Indiretamente, porque a maior parte do algodão produzido por escravos no sul era exportada para Inglaterra e não para a Nova Inglaterra – um dos fatores que contribuíram para o antagonismo entre os industriais do norte e os latifundiários do sul, e para a própria Guerra Civil.

Uma parte considerável dos lucros da indústria têxtil inglesa foi, por sua vez, investida na indústria manufatureira do norte dos Estados Unidos, tanto após a independência como antes. Em artigo sobre a Guerra Civil, em 1862, Karl Marx assinalou que “os investimentos de capitais ingleses nos Estados Unidos são superiores a todo o capital investido na indústria do algodão inglesa.” (Artigo para o Die Presse, 4 de Janeiro de 1862, in A Guerra Civil nos EUA, Escritos de Marx e Engels, p. 129.) Desde o início, o trabalho Negro foi derramado nas fundações da economia deste país.

E quase desde o início, a produção escravizada neste país destinava-se ao mercado europeu, sendo o mercado interno do norte apenas secundário. Esta foi uma forma diferente, e muito mais brutal, de escravatura do que a praticada em África, onde os escravos produziam principalmente para o consumo e prazer direto dos seus senhores. Nas colónias (mais tarde estados) do sul, apesar da sua decadência ostensiva, os proprietários das plantações reinvestiam a maior parte dos lucros do sistema esclavagista na sua expansão – o que significava mais terra, já que os métodos rudimentares da agricultura escrava degradavam constantemente os solos, forçando a expansão contínua do território esclavagista.

Naturalmente, mesmo na escravatura da Antiguidade – nas suas fases posteriores, nos impérios grego e romano, por exemplo – a produção escrava era também, principalmente, produção mercantil – produção para troca, e não para consumo direto do proprietário de escravos. O comércio tornou-se altamente desenvolvido nesses impérios. Contudo, a escravatura nos EUA distinguia-se da escravatura antiga num aspeto muito importante: tratava-se de produção mercantil sob as condições do desenvolvimento capitalista e da dominação capitalista no mercado mundial. Marx resumiu a relação entre o crescimento de Inglaterra como a mais poderosa nação capitalista e a escravatura na América:

Enquanto a indústria do algodão introduzia a escravatura infantil em Inglaterra, dava nos Estados Unidos um impulso à transformação da escravatura anterior, mais ou menos patriarcal, em sistema de exploração comercial. Com efeito, a escravatura velada dos trabalhadores assalariados na Europa necessitava, como base, da escravatura pura e simples no Novo Mundo (O Capital, Vol. I, Capítulo 31).

Nos Estados Unidos, esta forma de exploração comercial esclavagista implicou um sofrimento tremendo para os escravizados. A condição dos escravizados era bastante distinta da imagem que os proprietários de escravos (e, muitas vezes, os seus descendentes modernos — os escravizadores assalariados do capitalismo monopolista) procuraram transmitir dos “pretos”: crianças felizes e resignadas, cujo maior desejo era trabalhar e cantar para o seu “senhor”, sendo, em contrapartida, tratadas com o mesmo carinho e cuidado reservado aos próprios filhos dos “senhores”.

Na realidade, os proprietários de escravos foram, por várias vezes, obrigados a revelar um pouco do verdadeiro quadro da vida em escravatura. Um grande júri em Charleston, Carolina do Sul, admitiu em 1816 que os escravizados eram sujeitos a “tratamentos bárbaros” e, de facto, tratados “pior do que bestas de carga.” (Ver Negro Slave Revolts in the United States, 1526-1860, escrito em 1939 por Herbert Aptheker.)

Na década de 1820, o valor médio gasto por um proprietário de escravos com alimentação, vestuário, roupa de cama, sacos para a colheita do algodão e outros artigos para os escravizados era de cerca de 15 dólares por ano, por escravo. Um escravizado era considerado, segundo James Madison, “rentável para o seu proprietário” a partir dos nove ou dez anos de idade. A partir dessa idade, o escravizado podia contar com jornadas de trabalho que começavam “antes do nascer do sol” de manhã e terminavam “depois do pôr do sol” à noite, seis, e por vezes sete, dias por semana. Quanto aos alojamentos dos escravizados, um latifundiário do Mississippi vangloriava-se das condições que oferecia, apelando aos restantes proprietários de escravos para serem igualmente “generosos” e alojarem seis escravizados numa cabana de 16 por 18 pés (aproximadamente 5 por 5,5 metros).

E, como a produção escravizada visava o mercado mundial, o tratamento dos escravizados tornava-se ainda mais bárbaro quando as depressões periódicas atingiam os países capitalistas, colapsando ou restringindo severamente o mercado global do algodão. Nesses momentos, em especial, não se poupavam quaisquer crueldades para forçar os escravizados a produzir ainda mais, numa tentativa desesperada dos senhores de escravos para não serem arrastados pela crise económica.

A crueldade era, naturalmente, parte integrante do sistema esclavagista, pois os escravizados, embora tratados pior que animais de carga, eram seres humanos — e não animais. Nunca deixaram de lutar pela sua liberdade. Herbert Aptheker cita uma carta privada escrita em 1854 pelo Cônsul Britânico em Charleston, Carolina do Sul, como uma das muitas provas da verdadeira condição dos escravizados:

As atrocidades horríveis da escravatura devem ser vistas para se poderem descrever... O meu vizinho, um advogado de grande distinção e membro da aristocracia do Sul, disse-me pessoalmente que ele próprio açoitava todos os seus Negros, homens e mulheres, quando se portavam mal... Literalmente, não custa mais matar um escravo do que matar um cão.

Os escravizados refutaram repetidamente as alegações dos seus senhores de que os seus “Negros” estavam satisfeitos e não desejavam uma vida melhor, pois, afinal, seriam inferiores aos brancos e menos do que humanos. Os escravizados não só continuaram a revoltar-se, como demonstraram um elevado grau de consciência política e uma organização bastante sofisticada nas suas rebeliões.

Apesar da existência de espiões (escravizados subornados com favores e a promessa de trabalho na casa do senhor, em vez de trabalho nos campos), da vigilância constante e dos métodos mais vis de terror, os senhores de escravos não conseguiram evitar grandes revoltas de grande escala, sobretudo após Toussaint L’Ouverture ter liderado, em 1791, os escravizados das plantações de açúcar e café do Haiti numa insurreição que, doze anos depois, culminaria na independência do país e na emancipação de mais de 500 mil escravizados. Este feito serviu de grande inspiração aos escravizados nos Estados Unidos, tendo o número e a dimensão das revoltas escravas nos estados do sul aumentado continuamente após 1800. Frequentemente, os escravizados Negros uniam-se a indígenas, e até, por vezes, a brancos pobres, que também sofriam sob o domínio dos latifundiários.

Durante a década de 1821 a 1831, período marcado por uma grave depressão económica, tanto a opressão como a resistência dos escravizados tornaram-se mais intensas. Em 1822, Denmark Vesey, um dos poucos escravizados que conseguiu comprar a própria liberdade — embora os seus filhos continuassem escravizados —, organizou um dos planos mais elaborados e sofisticados para uma revolta escrava, prevendo um ataque a Charleston a partir de cinco pontos distintos, apoiado por uma sexta força que patrulharia as ruas.

Pouco antes de ter lugar, a insurreição foi traída por um escravo doméstico. Vesey antecipou a data da revolta em um mês, mas já era demasiado tarde, e a rebelião foi brutalmente reprimida. Vesey e outros líderes sacrificaram as suas vidas nesta revolta. Contudo, apesar do fracasso, o levantamento provocou pânico na Carolina do Sul e em todo o sul dos Estados Unidos. No total, terão participado nesta rebelião cerca de 10.000 escravos, embora as estimativas exatas sejam impossíveis, uma vez que os líderes capturados e enforcados enfrentaram a morte com grande dignidade e recusaram-se a revelar qualquer detalhe do plano. O apoio à revolta era tão generalizado entre os escravos, que os enforcamentos dos líderes ameaçaram desencadear novas rebeliões, sendo necessário chamar tropas federais para as evitar.

Nove anos mais tarde, em 1831, Nat Turner, convencido de que “o tempo se aproximava em que os primeiros seriam os últimos e os últimos seriam os primeiros”, liderou cinco outros escravos numa insurreição que, antes de ser finalmente esmagada, reuniu centenas de escravos na região do Condado de Southampton, Virgínia. Mataram todos os brancos na área circundante num raio de 20 milhas — com uma única exceção: uma família de brancos pobres que não possuía escravos e que vivia em condições praticamente idênticas às dos próprios escravos. Em retaliação, os proprietários de escravos chacinaram mais de uma centena de escravos. Turner foi enforcado. Mas isso não pôs fim às rebeliões de escravos que eclodiram por todo o sul nesse mesmo ano, e que continuaram, ano após ano, até ao final da Guerra Civil e à abolição do sistema esclavagista.

Para além dos homens Negros como Denmark Vesey e Nat Turner, que lideraram poderosas revoltas de escravos, as mulheres Negras desempenharam um papel ativo e, muitas vezes, de liderança na luta contra a escravatura. Os dois exemplos mais notáveis são Sojourner Truth e Harriet Tubman.

Sojourner Truth, ela própria uma antiga escrava, dedicou a sua vida à luta pela abolição da escravatura. Viajou por todo o país, oferecendo inspiração e liderança ao movimento abolicionista. Desempenhou um papel crucial na obtenção do apoio dos grupos de mulheres à luta contra a escravatura, estabelecendo uma ligação entre a luta pelos direitos das mulheres e a luta pela abolição. Numa reunião sobre os direitos das mulheres, respondeu a um sermão típico de um pregador masculino sobre a superioridade dos homens, declarando: “Eu conseguia trabalhar e comer tanto quanto um homem (quando havia comida) e suportava o chicote da mesma forma — e não sou eu uma mulher? Tive cinco filhos e vi quase todos vendidos para a escravatura, e quando chorei com a dor de mãe, ninguém me ouviu senão Jesus — e não sou eu uma mulher?”

Harriet Tubman também nasceu escrava. Aos 29 anos, conseguiu escapar, mas até ao colapso final do sistema esclavagista, arriscou continuamente a vida regressando ao sul, armada com um revólver, para conduzir escravos — cerca de 300 ao todo — à liberdade, através da “rota clandestina”, uma rede secreta de fuga rumo ao norte e ao Canadá. Tornou-se uma lenda em todo o sul: os escravos chamavam-lhe “Moisés”, enquanto os proprietários de escravos colocaram uma recompensa de 40.000 dólares pela sua captura. Durante a Guerra Civil, liderou ataques armados contra tropas confederadas e recolheu informações militares vitais para o exército da União. A sua vida inteira é um testemunho da luta heroica e incessante do povo Negro para resistir e derrubar o bárbaro sistema da escravatura.

Opressão brutal e resistência determinada e incessante: esta é a verdadeira história do sistema esclavagista de exploração comercial nos Estados Unidos.

O facto de a dominação capitalista da “exploração comercial” dos produtos provenientes da escravatura ter existido, levou alguns a concluir que a escravatura neste país era simplesmente uma forma extrema de exploração capitalista, que os proprietários de escravos eram, na verdade, grandes latifundiários capitalistas e que os escravos eram simplesmente um proletariado super explorado. Apesar dos fatores importantes que já referimos e que distinguem a escravatura americana da escravatura da Antiguidade, estamos convictos de que esta visão está errada.

Hoje, por exemplo, os campos petrolíferos no Médio Oriente são explorados por escravos sob o domínio de compradores locais (parceiros menores) das maiores multinacionais petrolíferas. Isto não significa que os escravos deixaram de o ser para passarem a ser meros trabalhadores assalariados super explorados. Significa, sim, que foram integrados na rede de relações económicas capitalistas – imperialistas mundiais, o que tem um efeito profundo na opressão concreta que sofrem e na forma da sua resistência.

Na região escravocrata de Dhofar(3) no Médio Oriente, os escravos, liderados por forças que aplicam o Marxismo-Leninismo-Maoismo como ideologia orientadora, estão a travar uma guerra de libertação nacional contra os imperialistas e os senhores esclavagistas reacionários. Isto é possível hoje em Dhofar, apesar da quase inexistência de indústria moderna e de um proletariado moderno naquela região, porque, à escala mundial, o proletariado encontra-se altamente desenvolvido, tornou-se a classe mais poderosa e já estabeleceu o seu domínio político sobre um quarto do mundo. Nestas circunstâncias, a ideologia do proletariado — o Marxismo-Leninismo-Maoismo — pode orientar a luta pela libertação, mesmo em sociedades que ainda não atingiram o estágio do capitalismo.

Mas o facto de o capitalismo e o seu coveiro, o proletariado moderno, influenciarem o desenvolvimento dos sistemas sociais em todos os países e regiões do mundo, incluindo Dhofar, não significa que o sistema social em cada país ou região, como Dhofar, seja capitalista ou imperialista. Tampouco o era o sistema social do sul dos EUA durante o período esclavagista.

A escravatura nos EUA distinguia-se não só do capitalismo industrial — e atrasou o seu desenvolvimento em todo o país — mas também do capitalismo agrícola. As ferramentas dos escravos tinham de ser extremamente pesadas, o que as tornava difíceis de manusear e ineficientes, precisamente para evitar que os escravos as quebrassem. Esta característica fundamental — o facto de os trabalhadores não terem qualquer iniciativa e, na verdade, resistirem constantemente e sabotarem a produção — era comum à escravatura americana e à escravatura da Antiguidade.

Na sua obra Materialismo Dialético e Histórico, Joseph Staline assinala que essa ausência de iniciativa por parte dos trabalhadores retarda o desenvolvimento das forças produtivas, sendo por isso um dos principais fatores que conduzem à eventual derrocada do sistema esclavagista. Ao traçar a evolução da sociedade antiga da escravatura para o feudalismo, Staline refere o desenvolvimento de ferramentas mais avançadas (como o arado de ferro, o tear, etc.) e o início da manufatura a par com os ofícios artesanais. Estes avanços conduzem a uma situação em que:

“As novas forças produtivas exigem que o trabalhador manifeste algum tipo de iniciativa na produção, uma inclinação para o trabalho, um interesse pelo trabalho. O senhor feudal, portanto, descarta o escravo, como trabalhador sem interesse pelo trabalho e totalmente sem iniciativa, e prefere lidar com o servo, que possui o seu próprio cultivo, ferramentas de produção e um certo interesse no trabalho, essencial para o cultivo da terra e para o pagamento em espécie de parte da sua colheita ao senhor feudal.” (Estaline, Materialismo Dialético e Histórico, edição da International Publishers, EUA, 1972, p. 36.).

A situação nos Estados Unidos era mais complexa, e não exatamente a mesma. Foi o capitalista industrial, e não o senhor feudal, quem finalmente “descartou” o sistema esclavagista, considerando-o um obstáculo ao desenvolvimento da economia sob o seu domínio. Ainda assim, após a Guerra Civil e o período da Reconstrução, o povo Negro foi reduzido a condições semi servis na região da Cintura Negra (Black Belt), sob a dominação da burguesia do norte e dos antigos latifundiários do sul, agora subordinados aos capitalistas do norte (algo que será explorado mais adiante).

Mas, apesar destas diferenças, é claro que o sistema de exploração pré-Guerra Civil existente no sul partilhava as contradições fundamentais da escravatura da Antiguidade. A escravatura assentava nos métodos mais primitivos de cultivo agrícola. Praticamente nenhum dos lucros dos senhores de escravos era investido na melhoria das terras. Esta é uma das principais razões pelas quais os estados esclavagistas se viam constantemente forçados a expandir-se, procurando novas terras apropriadas à produção escrava primitiva.

Na sua obra Negro People in American History, William Z. Foster (antigo dirigente do Partido Comunista, numa altura em que este representava uma verdadeira força revolucionária), cita o facto de que, aquando da Guerra Civil, uma quinta de 100 acres no Ohio podia ser estabelecida com um investimento de apenas 6.000 dólares, enquanto, no vizinho estado esclavagista do Kentucky, seriam necessários 20.000 dólares para iniciar uma quinta da mesma dimensão. E o preço dos escravos subia continuamente após a proibição oficial do comércio internacional de escravos. Por estas razões, o sistema esclavagista não deixava capital disponível para investir na exploração das riquíssimas matérias-primas industriais do sul — nem na exploração de uma classe trabalhadora assalariada que pudesse ter desenvolvido a indústria do sul e constituído uma parte significativa do mercado consumidor desses produtos.

Eis como Marx descreve o carácter primitivo da economia esclavagista:

O cultivo dos produtos de exportação do sul — algodão, tabaco, açúcar, etc. — realizado por escravos, só é rentável enquanto for executado por grandes grupos de escravos, em larga escala e em vastas extensões de solo naturalmente fértil que requer apenas trabalho simples. A cultura intensiva (uma das características principais do capitalismo na agricultura — nota do tradutor), que depende menos da fertilidade do solo do que do investimento de capital, da inteligência e da energia do trabalho, é contrária à natureza da escravatura. Daí a rápida transformação de estados como Maryland e Virgínia, que anteriormente empregavam escravos na produção de bens de exportação, em estados que se dedicavam à criação de escravos para os exportar para o sul profundo. Mesmo na Carolina do Sul, onde os escravos constituem quatro sétimos da população, a produção de algodão permaneceu praticamente estagnada durante anos, devido ao esgotamento do solo. Na verdade, pelas próprias circunstâncias, a Carolina do Sul transformou-se em parte num estado criador de escravos... (artigo escrito por Marx para o Die Presse, 20 de outubro de 1861; in The Civil War in the United States: Letters and Articles by Marx and Engels, p. 67).

Mais adiante, Marx descreve o imenso potencial de desenvolvimento industrial nas regiões montanhosas “inseridas no coração da escravatura”, e que nunca foram exploradas pelo sistema esclavagista:

... com a sua atmosfera clara, um clima revigorante e solos ricos em carvão, sal, calcário, minério de ferro, ouro, em suma, todas as matérias-primas necessárias a um desenvolvimento industrial diversificado, [esta região montanhosa] é já, em grande parte, uma terra livre. De acordo com a sua constituição física, o solo aqui só pode ser cultivado com sucesso por pequenos agricultores livres. Aqui, o sistema esclavagista subsiste apenas de forma esporádica e nunca criou raízes. Na maior parte dos chamados estados fronteiriços, os habitantes das zonas montanhosas constituem o núcleo da população livre que, no interesse da autodefesa, já se alia ao partido do Norte (Marx, ibid., p. 73.).

Finalmente, Marx afirma de forma inequívoca que a Guerra Civil foi uma “luta entre dois sistemas sociais: entre o sistema da escravatura e o sistema do trabalho livre (capitalismo). A luta irrompeu porque os dois sistemas já não podiam coexistir pacificamente no continente norte-americano.” (ibid., p. 81). Por estas razões, não podemos concordar com a visão de que a escravatura nos Estados Unidos era apenas uma forma extrema de exploração capitalista, e que os escravos eram meramente proletários super explorados. Esta interpretação errónea pode conduzir — e já conduziu — a graves erros políticos (que abordaremos mais adiante).

Mais uma vez, apesar das diferenças importantes em relação à escravatura da Antiguidade, o sistema esclavagista da América do Norte era, de facto, um sistema social mais primitivo do que a sociedade burguesa, e impedia efetivamente o desenvolvimento desta em todo o país. A Guerra Civil não foi uma disputa entre duas alas da burguesia pela hegemonia; foi, como Marx afirma claramente, um confronto decisivo entre dois sistemas sociais que já não podiam coexistir no mesmo Estado.

Impulsionada pela necessidade constante de incorporar novas terras e mais escravos sob o domínio do chicote, a escravocracia lançou-se com arrogância para o inevitável confronto com a burguesia do norte. Os proprietários de escravos esmagaram os povos indígenas e os mexicanos; desprezaram inclusivamente os “compromissos” com o sistema oposto de “trabalho livre”. Os seus representantes mais fanáticos e desavergonhados gabavam-se de transformar todo o país numa “república escravocrata”. John C. Calhoun declarou que a escravatura era uma “condição universal”. Esta ideia foi ecoada por muitos proprietários de escravos, que proclamavam que “a adoção do princípio da escravatura por dívida no sistema fabril do norte colocaria fim, de uma vez por todas, à guerra entre patrões e trabalhadores” — uma afirmação não só absurda como criminosa, especialmente perante as centenas de rebeliões de escravos que deflagraram no sul e mergulharam todo o sistema esclavagista num pânico constante.

Revolução ou contrarrevolução – a extensão da revolução democrático-burguesa ou a extensão do sistema esclavagista – esta foi a questão central da Guerra Civil.

Os industriais do norte, naturalmente, entraram na contenda com toda a lentidão própria de uma classe exploradora dilacerada por contradições internas e confrontada com tensões crescentes com os pequenos agricultores e com os trabalhadores assalariados. Os Copperheads(4), representantes dos interesses comerciais e bancários do norte ligados à produção e ao comércio baseados na escravatura, constituíram uma poderosa quinta-coluna dentro do governo da União. Ocupavam cargos de destaque não só no governo, mas também no Exército da União, e durante os primeiros anos da guerra conseguiram sabotar eficazmente o esforço da União.

O próprio Lincoln, representante de uma fação dos capitalistas industriais emergentes do norte, entrou na guerra com o objetivo limitado de "conter" a escravatura. É verdade que estava convencido de que, ao impedir a expansão do sistema esclavagista, acabaria por provocar o seu colapso; mas demorou a perceber que a escravocracia, plenamente consciente de que os planos de Lincoln levariam à extinção da escravatura, não estava disposta a ser "contida". "O Sul", escreveu Karl Marx em novembro de 1861, "não é um território geograficamente separado do Norte, nem uma unidade moral. Não é um país, mas sim um grito de guerra." (Marx, ibid., p. 72). E Marx sublinhou que a Confederação não podia, nem queria, contentar-se com o território da "Secessão"; para sobreviver como sistema esclavagista, teria de subjugar todo o território dos Estados Unidos sob o seu regime bárbaro.

Entretanto, o grupo em ascensão de financeiros do norte aproveitava-se da Guerra Civil para se enriquecer. Em 1860, o governo federal pagava apenas 3,2 milhões de dólares em juros da dívida pública. No final da Guerra Civil, esse montante havia disparado para 77,4 milhões. Cinco anos depois, em 1870, quase duplicara, atingindo os 129 milhões, devido aos custos extraordinários da guerra e às oportunidades de expansão das estradas, ferrovias, vias navegáveis, etc., após o conflito – tudo financiado por empréstimos de longo prazo junto dos banqueiros do norte.

A Guerra Civil deu um enorme impulso à concentração de capital, tanto monetário como de meios de produção, em cada vez menos mãos. J.P. Morgan, cujo império familiar continua a ser um dos pilares da classe dominante dos EUA, foi o protótipo do papel desempenhado pelos grandes capitalistas do norte que, durante a Guerra Civil, iniciaram o processo de conquista e concentração que conduziria ao seu monopólio sobre a indústria, a banca e o poder político.

A título de exemplo, duas vezes durante a guerra, Morgan comprou espingardas rejeitadas ao governo da União e revendeu-as àquele mesmo exército, no mesmo estado, a preços altamente inflacionados. Isto simboliza bem a atitude das frações mais poderosas da burguesia do norte em relação à condução da guerra. No entanto, essa mesma classe tinha interesses superiores na derrota da Confederação: o financiamento de obras públicas internas, especialmente as ferrovias; o aumento das tarifas sobre produtos manufaturados; e, em geral, a abertura do sul ao investimento e ao comércio para o capital do norte – tudo isso exigia a derrota da escravocracia.

Tudo isto empurrou a burguesia do norte na direção da abolição total da escravatura. Ainda assim, esse passo decisivo não foi dado até se tornar claro que a Guerra Civil era, de facto, uma luta até ao fim – de um ou de outro sistema – e que a burguesia do norte não conseguiria vencê-la sem libertar os escravos para lutarem nos exércitos da União.

A força mais profundamente revolucionária eram os próprios escravos, juntamente com o pequeno número de Negros livres. Pouco antes da Guerra Civil, Karl Marx já apontava para a extraordinária vaga revolucionária entre os escravos e para o imenso potencial da sua luta pela emancipação:

Na minha opinião, os maiores acontecimentos do mundo de hoje são, por um lado, o movimento dos escravos na América, iniciado pela morte de John Brown, e, por outro, o movimento dos servos na Rússia (Carta a Friedrich Engels, 11 de janeiro de 1860).

Como sempre, a análise de Marx mostra-se relevante em vários níveis. Em primeiro lugar, sublinha que o ataque ao quartel militar de Harpers Ferry, Virgínia, em outubro de 1859, por John Brown e o seu grupo de brancos e Negros, não foi de forma alguma o ato de lunáticos, como os estudiosos burgueses tentaram retratar. Embora não tenha alcançado o seu objetivo imediato de desencadear uma insurreição geral de escravos em todo o sul, provocou um autêntico abalo elétrico no sistema esclavagista e inspirou os escravos a uma resistência ainda mais ampla e determinada.

Em segundo lugar, a comparação implícita feita por Marx entre os servos da Rússia e os escravos dos EUA torna-se ainda mais direta e significativa com o desenvolvimento do capitalismo em ambos os países, como Lenine viria a sublinhar aquando da Primeira Guerra Mundial (tema a explorar posteriormente). Por fim, e mais importante, a análise correta de Marx destrói a calúnia burguesa segundo a qual os escravos eram um povo passivo que aceitava docemente, senão alegremente, o seu destino, e que teriam sido libertos apenas pelos esforços e sacrifícios dos dirigentes do governo burguês do norte.

A Guerra Civil e a Revolução Democrático-Burguesa

As rebeliões de escravos, especialmente as revoltas organizadas em massa como as lideradas por Denmark Vesey e Nat Turner, deram origem e impulso ao Movimento de Convenções Anti esclavagismo dos Negros livres do norte, o qual, por sua vez, inspirou e orientou os abolicionistas brancos do norte. E, com o início da Guerra Civil, quando os escravos reconheceram a combinação de circunstâncias históricas que podiam convergir com a sua resistência constante para tornar possível a sua emancipação, utilizaram todos os métodos ao seu alcance para golpear a Confederação.

Nas fases iniciais da guerra, os escravos Negros rebelavam-se e atacavam os seus senhores, apenas para verem o exército da União reprimir essas insurreições e devolver os escravos fugidos. Ainda assim, a resistência dos escravos crescia: sabotavam a produção – realizando aquilo a que W.E.B. Du Bois chamou acertadamente uma "greve geral Negra" em todo o sul –, imobilizavam tropas confederadas que tiveram de reprimir as revoltas nas suas linhas de retaguarda, e continuavam a fugir das plantações em números cada vez maiores.

Por fim, quando lhes foi permitido integrar o Exército da União, combateram, em número de quase 200.000, geralmente na linha da frente, nas batalhas mais perigosas e decisivas, suportando o peso mais elevado das baixas e invertendo o curso de batalhas individuais e da guerra no seu conjunto. Dos 186.000 soldados Negros, 37.000 – ou seja um em cada cinco! – perderam a vida nos dois anos em que lhes foi permitido combater no Exército da União. Esta taxa de mortalidade foi 35% superior à dos soldados brancos. E o soldo dos soldados dos Negros era apenas metade do soldo atribuído aos soldados brancos (7 dólares por mês, contra 13). Mas, apesar desta afronta degradante, os soldados Negros continuaram a combater com bravura, na linha da frente.

A classe trabalhadora à época da Guerra Civil era ainda muito jovem, instável e pouco desenvolvida. Embora a indústria do norte estivesse em ascensão, grande parte da indústria do norte mal ultrapassava o estágio artesanal antes da guerra. A maioria dos trabalhadores eram artífices – mecânicos, carpinteiros, ferreiros, pintores, padeiros, etc. Em 1830, apenas trinta anos antes da Guerra Civil, a produção doméstica realizada por trabalhadores individuais nas suas casas superava a produção fabril na proporção de 4 para 3. Muitos destes trabalhadores qualificados – ou artesãos – conseguiam poupar o suficiente para comprar terras no Oeste, à medida que os índios eram continuamente expulsos das suas terras.

Estes fatores, e especialmente a ausência de uma população significativa de “mão-de-obra excedentária” no norte, que pudesse funcionar como um travão aos salários dos trabalhadores do norte, foram cruciais para colocar os fabricantes do norte em desvantagem competitiva face aos capitalistas europeus, em particular os ingleses. As fábricas têxteis de Manchester, Inglaterra, conseguiam pagar um preço mais elevado pelo algodão proveniente dos estados do sul do que os industriais têxteis da América do Norte, apesar dos custos adicionais de transporte. Isto porque o custo em capital variável (dinheiro despendido em salários) era consideravelmente mais baixo em Inglaterra, devido à enorme oferta de população “excedentária” que era constantemente expulsa das explorações agrícolas rurais do país.

Esta contradição com os seus concorrentes britânicos constituiu uma razão adicional para que os industriais do norte estivessem ansiosos por esmagar a Confederação do sul e colocar esses estados, e a sua produção de algodão, sob o domínio completo do norte.

Na década anterior à Guerra Civil, a indústria do norte, e com ela a classe trabalhadora assalariada do norte, cresceram enormemente – especialmente nos sectores dos produtos metálicos, madeira, ferro, caminhos-de-ferro e também têxteis. O valor da produção fabril em todo o país – 90% da qual se localizava no norte – passou de 200 milhões de dólares em 1820 para mais de mil milhões em 1850. Entre 1850 e 1860, o número de fábricas aumentou de 120.000 para 140.000, mas o valor do capital investido duplicou (de meio milhar de milhão para mil milhões), tal como duplicou o valor de todos os produtos manufaturados (de mil milhões para dois mil milhões). Isto indica que a concentração de capital e a monopolização já estavam a começar a desenvolver-se.

Este crescimento da indústria acelerou o avanço do norte em relação ao sul. Em 1830, os estados do sul representavam apenas 13% da produção total; em 1860, apenas 9%. Na realidade, à época da Guerra Civil, em muitas regiões do sul, os grandes centros comerciais apenas começavam a desenvolver-se, e com eles o capitalismo mercantil – a forma mais primitiva de capitalismo. Nestas circunstâncias, o proletariado do sul era também demasiado pequeno e pouco desenvolvido para ser uma força politicamente significativa.

Ainda mais do que no norte, os trabalhadores nas cidades do sul limitavam-se quase exclusivamente aos ofícios manuais antes da Guerra Civil. Apesar de 94% dos Negros no sul serem escravizados, os Negros livres representavam uma proporção considerável dos artífices e artesãos, o que indica que o número total de trabalhadores era muito reduzido. Especialmente antes de 1830, os Negros livres tinham uma vida menos miserável no sul do que no norte. W.E.B. DuBois salienta que, entre 1800 e 1830, os Negros nas cidades do norte (Du Bois usa Filadélfia como exemplo típico) foram largamente afastados das posições que anteriormente ocupavam como artesãos qualificados. O mesmo só viria a acontecer no sul nas três décadas seguintes, entre 1830 e 1860.

O quadro no sul complica-se ainda mais pelo facto de que, para além dos artífices Negros livres (e pequenos comerciantes e artesãos), existia também um número de escravos Negros que trabalhavam como artesãos. À medida que a crise no seio do sistema esclavagista se intensificava, e a sua própria existência era cada vez mais ameaçada, os senhores esclavagistas passaram a ver a presença, ainda que pequena, de Negros livres no sul como um perigo. A resposta foi rebaixar a condição dos Negros livres ao nível dos escravizados. Na obra Slavery in the Cities, Richard Wade aponta que, nos 30 anos que antecederam a Guerra Civil:

À medida que a população Negra diminuía, novos habitantes brancos ocupavam os lugares e assumiam um ofício atrás do outro. Por vezes com recurso à violência e geralmente com a sanção oficial, os escravos e os trabalhadores Negros livres foram empurrados para as tarefas mais servis e rotineiras (Citado em Radical America, “Black Labor,Vol. 5, Nº 2, Mar.-Abril, 1971).

Por todas estas razões – além do facto de que o marxismo apenas começava a ser introduzido na vida política do país e no nascente movimento operário – e porque a burguesia ainda estava em ascensão e a ganhar força, o proletariado dos EUA era, na altura da Guerra Civil, demasiado fraco, tanto material como ideologicamente, para conduzir a revolução democrático-burguesa diretamente à revolução socialista, como o proletariado russo conseguiria fazer em 1917.

Mais de 50 anos antes, nos Estados Unidos, embora o capital começasse a concentrar-se em monopólios e, com isso, os trabalhadores começassem a ser agrupados em formas de trabalho altamente socializadas, a classe trabalhadora ainda não tinha alcançado o nível de desenvolvimento necessário para se tornar, tal como os operários russos em 1917, “uma força imensa na vida política do país.” (Stalin, Fundamentos do Leninismo, p. 59).

Isto não significa que os trabalhadores, especialmente no norte industrialmente mais desenvolvido, não tenham desempenhado um papel importante na vitória da Guerra Civil. Algumas pessoas apontam para as ações de sectores mais atrasados da classe trabalhadora do norte para “provar” que não só os operários não contribuíram de forma significativa para a derrota do sistema esclavagista, como, na verdade, se opuseram à luta pela abolição da escravatura. O incidente mais notório citado como apoio a este argumento é o motim contra o recrutamento militar ocorrido em Nova Iorque em 1863, onde cerca de mil pessoas foram mortas, a maioria delas Negras, por uma multidão branca composta sobretudo por trabalhadores.

Nova Iorque, no entanto, tinha sido durante muito tempo o centro do “Copperheadismo”, do tráfico ilegal de escravos (que continuou muito depois de ter sido proibido em 1808), e de interesses bancários e comerciais ligados às plantações escravistas. O motim de 1863 em Nova Iorque foi instigado por esses mesmos “Copperheads”, que apontavam para a corrupção generalizada no campo da União (exemplificada por J.P. Morgan). Os “Copperheads” exploravam o facto de muitos abastados do norte comprarem a sua dispensa do recrutamento (o preço padrão era de 300 dólares), bem como o medo dos trabalhadores brancos mais atrasados de que a concorrência dos escravos libertos inundasse o mercado de trabalho, retirando-lhes os empregos e fazendo baixar os salários. “A guerra dos ricos, o combate dos pobres!” era o lema que serviu de bandeira para instigar o motim de Nova Iorque.

Mas este motim não era representativo da atitude e das ações dos trabalhadores do norte em relação à luta contra a escravatura. Marx destacou que a esmagadora maioria dos brancos trabalhadores do norte reagiu à corrupção do governo da União e à sua lentidão em combater a Confederação exigindo uma guerra total para abolir o sistema esclavagista:

A Nova Inglaterra e o Noroeste, que forneceram a maior parte do exército, estão decididos a impor ao governo uma condução revolucionária da guerra e a inscrever no estandarte estrelado o lema de combate 'Abolição da Escravatura'. Lincoln cede apenas de forma hesitante e desconfortável a esta pressão externa, mas sabe que não será capaz de resistir-lhe por muito tempo. Daí o seu apelo fervoroso aos estados fronteiriços para que renunciem voluntariamente à instituição da escravatura e sob condições de um contrato favorável (Artigo em Die Presse, 9 de Agosto de 1862, in The Civil War in the United States, p. 260).

Mais de 40% das tropas da União eram constituídas por trabalhadores (uma percentagem muito superior à sua proporção na população). Muitos destes trabalhadores foram recrutados, mas muitos também se voluntariaram, incluindo sindicatos inteiros que se juntaram à causa da União como um corpo coletivo. E entre os trabalhadores, os Marxistas – especialmente líderes como Joseph Weydemeyer(5) – desempenharam um papel crucial no combate às influências “Copperhead” e outras tendências retrógradas, bem como na unificação e mobilização das fileiras laborais do norte na luta para destruir de uma vez por todas o sistema esclavagista.

Marx e Engels desempenharam igualmente um papel determinante na organização dos trabalhadores da Europa, especialmente de Inglaterra, para desferirem golpes importantes contra a Confederação. Sob o Primeiro-Ministro Palmerston, o governo britânico tentou repetidamente mobilizar apoio popular para uma intervenção na Guerra Civil, do lado da Confederação. Esta tentativa foi travada repetidas vezes pela classe trabalhadora inglesa, apesar dos apelos aos interesses egoístas e imediatos dos trabalhadores britânicos. A Guerra Civil cortou quase completamente o fornecimento de algodão às fábricas inglesas. Um quarto ou mais dos trabalhadores ingleses dependia do sector têxtil, direta ou indiretamente. Face às enormes dificuldades provocadas pela interrupção do fornecimento de algodão proveniente do sul dos EUA, os trabalhadores britânicos mantiveram-se firmes, organizaram oposição aos planos de intervenção de Palmerston e constituíram a principal força política que os derrotou.

Outros fatores contribuíram para a hesitação do governo britânico em intervir – especialmente o facto de a Inglaterra depender em grande medida dos agricultores do norte dos EUA para o fornecimento de trigo. Outro motivo era que o capital inglês estava fortemente investido no norte, uma fonte de lucros que seria perdida caso a Inglaterra apoiasse abertamente o sul e o norte vencesse na mesma. Ainda assim, nos primeiros anos da Guerra Civil, quando o equilíbrio pendia a favor da Confederação e a possibilidade de uma vitória confederada com intervenção britânica era muito real, foi a esmagadora oposição dos trabalhadores britânicos que impediu tal intervenção.

A Traição da Reconstrução e a Formação da Nação Negra

Com a derrota militar final da Confederação e a emancipação dos escravos em todas as partes do país (incluindo os estados fronteiriços, que não tinham sido mencionados na Proclamação de Emancipação de Lincoln de 1863), a questão tornou-se clara: continuar a revolução democrático-burguesa, incluindo explicitamente o povo Negro nela, ou reconstruir o país com base no status quo vigente. Lincoln foi assassinado antes de ser posto à prova quanto a esta questão, mas o seu programa de Reconstrução inclinava-se fortemente para a manutenção do status quo.

Andrew Johnson, natural do Tennessee e oriundo de uma família branca pobre – que alcançara proeminência política sem tomar uma posição clara sobre esta questão central – sucedeu a Lincoln e tornou-se quase de imediato agente dos latifundiários sulistas e seus aliados “Copperhead”. Mas a ala dominante da burguesia do norte – incentivada pelos abolicionistas como Sumner e Stevens no Congresso e, mais importante ainda, pela luta contínua do povo Negro – reconheceu que a sua vitória sobre os latifundiários não poderia ser consolidada sem os privar do poder político.

Por esse motivo, apesar da objeção – e do veto – de Johnson, foram estabelecidos governos de Reconstrução nos estados do sul, protegidos, ainda que de forma demasiado débil, pelo Exército Federal. Pela primeira vez, os Negros foram autorizados a votar e a participar na elaboração de novas constituições e na governação dos “novos” estados do sul. Mas é um grande exagero afirmar que existiu um “governo Negro” no sul.

Embora, à data da secessão, os Negros representassem cerca de 45% da população total dos estados do sul e, em cinco desses estados, o número de eleitores Negros ultrapassasse o dos brancos, os Negros foram universalmente ultrapassados em número pelos brancos nas legislaturas da Reconstrução. Nenhuma pessoa Negra foi alguma vez eleita Governador de um estado do sul. (P.B.S. Pinchback, eleito Vice-Governador da Luisiana, chegou a servir como Governador durante alguns dias, em Dezembro de 1872, após a destituição do então Governador Henry Clay Warmoth. Pinchback foi descrito por Du Bois como “para todos os efeitos… um homem branco culto, abastado e afável, com apenas algumas gotas de sangue Negro, que não se rebaixava a negar – como tantos dos seus colegas brancos faziam”).

E durante todo o período da Reconstrução, os Negros – bem como os seus aliados brancos – foram constantemente submetidos a um terror bárbaro, instigado pelos latifundiários. A Reconstrução ficou aquém de retirar aos latifundiários a base do seu poder: a terra. Desenvolveu-se uma luta feroz dentro da classe dominante capitalista do norte, em resposta à luta do povo Negro, que em várias ocasiões se apoderou das terras dos seus antigos senhores e as defendeu com armas, apenas para ser subjugado e expulso pelo Exército Federal.

Stevens e, posteriormente, Sumner, lideraram no seio do governo da União a batalha – perdida – para apoiar os Negros e os brancos pobres do sul na sua luta por terra e plenos direitos democráticos. As forças radicais da democracia burguesa foram finalmente esmagadas (Sumner terminou a sua carreira com o infeliz ato de capitulação).

A Reconstrução não “falhou”, como afirmam os historiadores burgueses. Foi abertamente traída pela burguesia do norte que, especialmente após o pânico e a depressão de 1873, “estabilizou” o sul ao fazer recuar o movimento democrático liderado por agricultores e classes médias urbanas Negras – e brancas – que emergiu após a Guerra Civil. O Exército Federal foi retirado em 1877 (sendo usado de imediato contra a greve ferroviária dos trabalhadores brancos do norte). Os Negros foram deixados à mercê do Ku Klux Klan e de outros terroristas, organizados pelos latifundiários sob o domínio e com a aprovação da burguesia do norte.

Os industriais do norte, que davam novos passos no desenvolvimento de monopólios, tinham alcançado o que necessitavam no sul: oportunidade de expansão e investimento (a começar pelas ferrovias) e novos mercados. O investimento adicional era ameaçado pela luta – frequentemente violenta – entre as forças democráticas e os latifundiários. Assim, com o sul – e os latifundiários – firmemente sob a dominação do capital do norte, foi estabelecido um acordo com os latifundiários – tanto os antigos proprietários de escravos como os novos “carpetbaggers” capitalistas do norte – que adquiriram grandes propriedades e se tornaram os administradores políticos do sul.

A região sulista foi transformada numa reserva subdesenvolvida para o capital do norte. O desenvolvimento industrial do sul foi controlado pela burguesia do norte, e a agricultura semifeudal, com a servidão dos Negros como base, foi imposta. Isto foi lucrativo não apenas para os latifundiários, mas também para os interesses comerciais emergentes do sul e, sobretudo, para os banqueiros e industriais do norte, que emprestavam aos latifundiários, compravam propriedades e utilizavam a pobreza forçada dos camponeses – especialmente dos Negros – para manter salários de miséria na indústria.

Apesar da sua curta duração e da sabotagem constante por parte dos latifundiários – apenas timidamente (e cada vez menos) contrariada pelo Governo Federal – os governos da Reconstrução alcançaram realizações notáveis na educação, em infraestruturas internas (estradas, ferrovias, etc.) e na ampliação dos direitos do povo. Agricultores e trabalhadores Negros e brancos elegeram administrações que, apesar de algum grau de corrupção, foram provavelmente as mais honestas e as que melhor representaram os interesses dos seus constituintes na história do país. Não só os Negros e os trabalhadores brancos pobres conquistaram direitos sob os governos da Reconstrução, mas também as mulheres, que ganharam direitos de propriedade e de divórcio – ainda que não o direito de voto.

A reversão deliberada da Reconstrução e da revolução democrático-burguesa no sul significou a consolidação completa do poder pela burguesia do norte e a re-subjugação dos Negros ao sistema de plantações – agora com base numa exploração semifeudal, principalmente como rendeiros, e sob a dominação do capital do norte. Para a burguesia do norte, o propósito da Guerra Civil e da Reconstrução era estabelecer-se como a única classe dominante, senhora de todo o país. À medida que se expandia e, com o crescimento dos monopólios, se aproximava da fase do imperialismo, as aspirações democráticas do povo Negro foram sacrificadas a esse fim.

O povo Negro foi forjado numa nação semicolonizada, mantida em servidão semifeudal, na zona das plantações do sul. E, com base na opressão desta nação Negra, o sul como um todo foi sujeito à dominação regional da burguesia do norte, mesmo que todas as classes de brancos – incluindo os agricultores e operários mais pobres – escapassem aos códigos raciais brutais que mantinham os Negros em servidão.