Já examinámos detalhadamente o primeiro ponto. Relativamente ao segundo ponto, a questão crucial resume-se a: existirá ainda coesão interna suficiente entre o povo Negro para que este possa constituir uma nação? Mais especificamente, existirá ainda uma estrutura de classes e uma inter-relação das forças de classe entre o povo Negro que possibilitem o estabelecimento de um Estado Negro separado? Estamos convictos de que a resposta é afirmativa.
Embora os Negros estejam espalhados por todo o país, estão também concentrados nos centros urbanos. Dentro das comunidades Negras desses centros urbanos, continuam a existir divisões de classe e, até certo ponto, uma economia dentro da economia: negócios nos bairros Negros que, embora integrados na economia global do país, servem exclusivamente as comunidades Negras. Os proprietários destes negócios Negros constituem, em grande parte, a burguesia Negra, que, sendo a burguesia de uma nação oprimida, é muito fraca e subdesenvolvida — e, neste caso particular, fragmentada. A existência destes empresários Negros distingue-se da dos pequenos empresários brancos pelo facto de os capitalistas Negros dos bairros dependerem completamente do mercado dos bairros, especialmente no sector dos serviços, onde os negócios Negros tiveram mais sucesso do que no comércio de bens. (Os negócios brancos nos bairros Negros superam largamente os negócios Negros em número, mas, enquanto grupo, os pequenos empresários brancos não operam principalmente nesses bairros; não dependem totalmente, ou em grande medida, da existência do mercado do gueto.)
Nos últimos anos, os empresários Negros dos bairros têm vindo a encerrar os seus negócios. De facto, uma das consequências irónicas do movimento dos direitos civis, na sua luta contra a segregação, foi a destruição parcial do mercado do gueto para os empresários Negros “independentes”. Ao mesmo tempo, a pequena burguesia Negra cresceu efetivamente no mesmo período, à medida que a classe dominante tenta desesperadamente fomentar ilusões entre as massas Negras e criar uma “camada tampão” de Negros, que atue como travão à crescente luta de libertação Negra. (“Eu consegui na América”, grita James Brown, “tu também consegues. Parem com os motins!”)
O maior crescimento ocorreu entre os profissionais Negros, que aumentaram 41% entre 1961 e 1964. Outra secção das classes médias Negras — incluindo alguns empresários que foram comprados ou que se integraram em franquias ou cadeias corporativas — está a ser absorvida pelas grandes corporações de propriedade branca, como estrato de gestão. Atualmente, quase 25% da força de trabalho “não branca” é composta por profissionais, engenheiros e outros trabalhadores técnicos, gestores, quadros superiores e proprietários. Dentro deste grupo alargado existem interesses distintos e, por conseguinte, cisões e divisões. No entanto, por mais fracas e desunidas que sejam, forças significativas da pequena burguesia e da burguesia continuam a existir e a exercer influência entre o povo Negro — e existem enquanto burguesia e pequena burguesia Negras única e exatamente devido às formas concretas da opressão nacional — e da resistência nacional — do povo Negro.
Destas forças ainda poderá emergir a burguesia de um Estado Negro separado. Trata-se, principalmente, de capital mercantil; mas o capital mercantil proporcionou historicamente a base para o desenvolvimento do capital industrial, sobretudo quando se resolve a questão de um território que funcione como mercado nacional. Por estas razões, a questão da autodeterminação, da criação de um Estado Negro separado, continua a ser uma questão real — e não imaginária.
Por outro lado, a burguesia e a pequena burguesia Negras — mesmo o estrato de gestão promovido pelos capitalistas monopolistas (brancos) — são dominadas pelos capitalistas monopolistas e sofrem sob o domínio do imperialismo dos EUA. Por esta razão, se se mantiver a posição correta sobre a questão nacional, estas secções podem ser unidas na luta contra o imperialismo dos EUA. E a posição correta significa defender o direito à autodeterminação, incluindo a secessão.
Algumas pessoas respondem a este último ponto argumentando que entre os porto-riquenhos e outros povos latino-americanos, bem como entre os asiático-americanos e até nas comunidades irlandesa, italiana e judaica, existem pequenos negócios que dependem destes bairros operários “étnicos” como mercado e que são oprimidos pelo capital monopolista. Atualmente (afirma-se), não existe uma economia Negra separada, tal como não existe para estas outras nacionalidades. Conclui-se, assim, que não existe hoje base para um Estado Negro separado.
Este argumento não considera o facto de que os Negros nos Estados Unidos têm um desenvolvimento nacional distinto destas outras nacionalidades: historicamente, os Negros constituíram uma nação dentro dos EUA. Nenhuma destas outras nacionalidades constituiu alguma vez uma nação dentro deste país (deixando de parte, para este efeito, o povo mexicano-americano do sudoeste).
Na Cintura Negra (Black Belt), após a reversão da Reconstrução, o povo Negro foi firmemente consolidado numa nação moderna. Sublinhámos várias vezes que o desenvolvimento dessa nação, e em particular da sua classe capitalista, foi distorcido pelas condições específicas em que surgiu, de tal forma que, mesmo no auge da concentração da nação Negra, nunca existiu uma economia Negra separada na Cintura Negra (Black Belt). (Como assinalámos, mesmo durante a escravatura, a produção na Cintura Negra (Black Belt) destinava-se ao mercado mundial; tratava-se de “exploração comercial.”) No entanto, existia — e continua a existir — uma base para a formação de uma economia moderna separada na Cintura Negra (Black Belt), e, por conseguinte, para a formação de um Estado-nação separado.
É exatamente por isso que o separatismo — representado mais vigorosamente pelos Muçulmanos — continua a ter influência em todas as secções do povo Negro, incluindo entre os trabalhadores. Os Muçulmanos exigem um Estado separado para o povo Negro, embora não definam o local exato desse Estado. Por outro lado, existem grupos Negros — como a República da Nova África — que tentam organizar o povo Negro em todo o país em torno da exigência de um Estado Negro separado no coração do sul.
A exigência de autodeterminação surge hoje entre o povo Negro (e também entre os mexicano-americanos) — e não entre os italo-americanos, irlando-americanos, judeu-americanos, ou mesmo entre os porto-riquenhos, os povos nativo-americanos ou os asiático-americanos nos EUA, porque estas nacionalidades nunca constituíram uma nação dentro deste país. O povo Negro constituiu historicamente uma nação e, mais uma vez, esta base histórica de nação não foi destruída, mas transformada.
Um exemplo relativamente a este último ponto. Em O Marxismo e a Questão Nacional, Estaline cita os judeus como exemplo de uma minoria nacional que nunca constituiu uma nação na Rússia (nem nos outros Estados em que os judeus se encontravam dispersos), e que apenas poderia ser artificialmente convertida numa nação. De facto, hoje, o Estado de Israel é a concretização do projeto dos separatistas judeus que sonharam com a criação artificial de um Estado-nação judaico, e que conseguiram finalmente realizá-lo com o apoio das potências imperialistas. Após a Segunda Guerra Mundial, os colonos sionistas na Palestina organizaram uma campanha sistemática de terror (com o apoio do imperialismo britânico e norte-americano), expulsaram um grande número de árabes palestinianos da sua terra natal e, pela força das armas, estabeleceram Israel como um Estado sionista. Desde então, continuaram a expulsar o povo palestiniano da sua terra ancestral e a sujeitar os que permanecem — juntamente com judeus de pele mais escura — a uma opressão cruel, de tipo quase de castas.
Nestas condições, poderemos afirmar que o povo palestiniano já não tem direito à autodeterminação na sua pátria histórica? Não acreditamos que qualquer revolucionário genuíno pudesse adotar tal posição. E estamos igualmente convictos de que a posição correta para os revolucionários genuínos nos Estados Unidos é defender o direito à autodeterminação do povo Negro, que foi expulso da Cintura Negra (Black Belt) através de uma combinação de coação económica e do terror exercido pelo Estado e por organizações fascistas “privadas”, como o Ku Klux Klan.
O facto de um número considerável de pessoas brancas — que atualmente ultrapassam os Negros em número na Cintura Negra (Black Belt) — ter de ser relocalizado para se formar ali um Estado Negro separado não constitui um precedente inédito e não invalida o direito à autodeterminação. O povo palestiniano reconhece que, na sua luta pela autodeterminação, é agora necessário encontrar uma solução que envolva os colonos judeus. Uma abordagem semelhante teria de ser adotada para o estabelecimento de uma República Negra no sul.
Temos sublinhado o direito da nação Negra à autodeterminação porque, embora este não se situe no cerne da luta de libertação Negra, constitui uma corrente relevante, e um tratamento inadequado desta questão apenas poderá prejudicar a unidade da classe trabalhadora e a sua luta revolucionária pelo socialismo. Isto não significa que defendamos a separação. De facto, defendemos o direito à separação porque se trata de um direito genuíno e, ao defendê-lo, criamos as condições para a unidade do proletariado em oposição ao separatismo burguês. Esta é a posição Marxista-Leninista quando a questão nacional volta a colocar-se como um problema particular e interno do Estado, mesmo em condições novas.
Lenine e Estaline insistiram que, quando a questão nacional constitui um “problema interno do Estado”, quando existe a possibilidade direta de uma revolução proletária única em todo o território estatal, o direito à autodeterminação representa uma exigência negativa. Lenine comparou esta questão à religião: os Marxistas opõem-se a todas as formas de perseguição religiosa, mas também são contrários à religião. Assim, opomo-nos a todas as formas de perseguição das nacionalidades oprimidas, mas também somos contrários à separação da classe trabalhadora com base em linhas nacionais.
Enquanto “questão interna do Estado”, defendemos o direito à autodeterminação precisamente para unificar o proletariado de todas as nacionalidades. Como afirmou Estaline: “As obrigações da social-democracia (Marxismo), que defende os interesses do proletariado, e os direitos de uma nação, composta por diversas classes, são duas coisas distintas.” (Estaline, O Marxismo e a Questão Nacional, Vol. 2, pp. 321-322.) O ponto de unidade reside no facto de que a luta mais profunda e determinada contra todas as formas de opressão nacional serve os interesses supremos do proletariado.
Nas condições atuais, o que significa defender o direito à autodeterminação do povo Negro? Significa lutar ativamente pelos direitos nacionais do povo Negro, opor-se ativamente à repressão forçada das suas aspirações nacionais. Como parte desta tarefa geral, os comunistas brancos, em especial, devem opor-se a todas as tentativas da classe dominante de reprimir os Muçulmanos, a República da Nova África, ou outras organizações Negras nos seus esforços de propaganda a favor de um Estado Negro separado ou na organização do povo Negro para conquistar o controlo das instituições onde se encontram concentrados — seja o controlo comunitário nos bairros Negros, seja a apropriação da terra e das instituições aos Eastlands e Stennises da Cintura Negra (Black Belt).
Imaginemos uma conversa à porta de uma fábrica, entre um trabalhador Negro, um trabalhador branco e um separatista Negro. O separatista dirige-se ao trabalhador Negro e diz-lhe: “Irmão, sou da República da Nova África; estamos a construir uma nova República Negra no sul para fugirmos desta loucura toda do homem branco.” O trabalhador branco interrompe: “Olha, há muitos brancos no sul também. Que direito tens tu de estabelecer um país Negro lá e expulsar todos os brancos das suas terras e das suas casas?” Então, o separatista (com justa indignação) expõe toda a história de opressão bárbara do povo Negro e a sua longa história de resistência até aos dias de hoje. Conclui dizendo que tudo isso prova a necessidade da separação.
O trabalhador Negro consciente da sua classe não concordará com o separatista; opor-se-á à separação e compreenderá que, para o povo Negro conquistar uma verdadeira liberdade, é necessário unir-se aos trabalhadores brancos. Mas não dirá tudo isto diante de um trabalhador branco que acaba de negar o direito de separação ao povo Negro. O trabalhador Negro não confiará nesse trabalhador branco e hesitará em unir-se a ele — e com razão!
Mas e se o trabalhador branco for também tiver consciência de classe? Então, a sua posição será: “Acho que a solução para todos os nossos problemas, quer sejamos Negros ou brancos, é unirmo-nos e lutarmos contra os ricos capitalistas, combatê-los quando nos tiram o pão e quando brutalizam e discriminam o povo Negro ou de outras nacionalidades. Acho que precisamos de um governo dirigido por toda a classe trabalhadora — Negros, brancos, latinos, todos juntos. Mas sei que nunca sofri o tratamento brutal e a discriminação que os Negros ainda têm de enfrentar hoje. Por isso, embora acredite que devemos unir-nos como irmãos de classe e lutar por um governo que represente os nossos interesses de classe, também sei muito bem que cabe ao povo Negro decidir se quer ou não separar-se — e certamente que têm esse direito.”
Se o trabalhador branco mantiver coerentemente esta posição e lutar ativamente por ela, ganhará o respeito do trabalhador Negro e um grande obstáculo à unidade da classe trabalhadora poderá ser removido. A liderança das forças e da ideologia da classe trabalhadora será reforçada entre o povo Negro, e sectores mais amplos desse povo unificar-se-ão na luta contra a classe dominante capitalista monopolista. A base será reforçada para a ligação entre esta frente unida negra e a frente unida mais ampla do povo norte-americano, e para o estabelecimento do papel dirigente do proletariado e da sua vanguarda comunista nesta Frente Unida contra o Imperialismo.
Estamos convictos de que os trabalhadores brancos podem ser conquistados para este tipo de compreensão, e que é dever dos comunistas — especialmente dos comunistas brancos — ganhá-los para essa posição.
Mas então não dissemos já que a separação constituiria um retrocesso para o povo Negro e para toda a classe trabalhadora, e que, por conseguinte, deveríamos opor-nos à separação? A resposta é sim: em quaisquer circunstâncias atualmente concebíveis, a separação representaria um passo atrás, e os comunistas — especialmente os comunistas Negros — devem opor-se politicamente ao separatismo. A única libertação real para os povos oprimidos e explorados nos Estados Unidos reside no derrube do capitalismo monopolista, e isso exige a unidade de toda a classe trabalhadora. Mas, mais uma vez, a dialética da situação é que, ao defendermos o direito à autodeterminação do povo Negro, reforçamos a nossa posição contra a separação. Estaline explicou-o da seguinte forma:
O direito à autodeterminação significa que uma nação pode organizar a sua vida como desejar. Tem o direito de organizar a sua vida com base na autonomia. Tem o direito de estabelecer relações federativas com outras nações. Tem o direito à separação total. As nações são soberanas e todas as nações têm direitos iguais...
Isto, naturalmente, não significa que a social-democracia (o marxismo) apoie todas as reivindicações de uma nação. Uma nação tem o direito, inclusive, de regressar à antiga ordem das coisas; mas isso não significa que a social-democracia subscreva tal decisão, mesmo que ela seja tomada por alguma instituição de uma determinada nação. (Estaline, O Marxismo e a Questão Nacional, Vol. 2, p. 321.)
Uma vez que estamos a lidar com uma nação de tipo novo, os escritos de Lenine, Estaline e Mao (bem como os de Marx e Engels), embora constituam a base da nossa compreensão da questão nacional nos EUA, não abordam as condições novas e específicas da nação Negra nos EUA da atualidade. Compete aos comunistas nos EUA — e, em última análise, ao futuro Partido Comunista multinacional — desenvolver a teoria e a prática adequadas para lidar com as condições historicamente únicas da nação negra proletária.
Este Red Papers representa a nossa primeira tentativa de iniciar um desenvolvimento aprofundado desta questão. Embora estejamos convictos de que a nossa posição de base é correta, reconhecemos que a nossa compreensão atual é apenas um ponto de partida. Além disso, ao formular esta posição, tornou-se evidente que estamos limitados pelas formulações — e até pelo vocabulário — do Marxismo-Leninismo no tratamento da questão nacional em períodos históricos anteriores. Esses escritos destilaram a questão até à sua essência nas condições em que foram produzidos, mas não se aplicam com rigor, em todos os detalhes, à nossa realidade concreta.
Mantivemos a formulação de que o povo Negro constitui uma nação devido à base histórica da sua condição de nação e à situação atual do povo Negro, que continua a ligá-lo através de uma coesão nacional muito estreita; e devido também à importância de defender o direito à autodeterminação, incluindo a secessão — direito este firmemente fundamentado na longa história do povo Negro nos EUA.
Mas a questão essencial não é a escolha da palavra em si — “nação” — em oposição, por exemplo, a “minoria nacional”. A questão decisiva é compreender as condições materiais históricas e atuais do povo Negro, e o impulso essencial da luta de libertação Negra nos dias de hoje, que decorre diretamente dessas condições.