Assembléia Nacional ou Governo dos Conselhos?

Rosa Luxemburgo

17 de Dezembro de 1918

Transcrição autorizada
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Escrito em: 17 de dezembro de 1918.
Fonte:
LUXEMBURGO, Rosa. O Estado Burguês e a Revolução. Lisboa: Edições Antídoto, 1979.
HTML:  Fernando A. S. Araújo, dezembro 2008.
Direitos de Reprodução: © Edições Antídoto. Gentilmente cedidos pela Associação Política Socialista Revolucionária.


Tal é a questão levantada no segundo ponto da ordem do dia da Assembleia Nacional dos conselhos dos operários e soldados, tal é na realidade a questão central da revolução nesse momento.  Assembléia nacional ou todo o poder dos Conselhos dos operários e soldados, abandono do socialismo ou a mais resoluta luta de classes do proletariado armado contra a burguesia: este o dilema.

Realizar o socialismo pela via parlamentar, por simples decisão maioritária, mas que projecto idílico! É aflitivo ver que esta fantasia cor-de-rosa caída dos céus nem mesmo tem em conta a experiência histórica da revolução burguesa e ainda menos o carácter próprio da revolução proletária.

Que se passara na Inglaterra? Lá era o berço do parlamentarismo, fora lá que ele se desenvolvera mais cedo e mais vigorosamente. Quando em 1649, a hora da primeira revolução burguesa moderna soou na Inglaterra, o Parlamento inglês tinha já mais de trezentos anos de história de idade. Por isso o Parlamento tornou-se, desde os primeiros momentos da revolução, o seu centro, o seu bastião, o seu quartel-general. Todas as fases da revolução inglesa após as primeiras escaramuças entre a oposição e o poder real até ao processo e à execução de Charles Stuart, passaram-se no célebre Long Parliament que era um instrumento inigualável e dócil nas mãos da burguesia ascendente.

E que resultou disso? O parlamento foi obrigado a criar um “exército parlamentar" especial comandado por generais parlamentares eleitos entre os seus membros com a finalidade de bater o feudalismo — o exército dos   “Cavaleiros” fiéis ao rei — durante uma longa, encarniçada e sangrenta guerra civil. O futuro da revolução inglesa decidira-se não durante os debates na abadia de Westminster — qualquer que tenha sido o seu papel de centro espiritual da revolução — mas nos campos de batalha de Marstor Moor e Naseby; não graças à cavalaria camponesa, aos  ”cabeças redondas" de Cromwell. Assim a revolução percorreu o seu caminho do Parlamento à guerra civil, à violenta “purga" do Parlamento, operada em duas voltas, para ir dar enfim à ditadura de Cromwell.

E na França? Foi lá que germinou pela primeira vez a ideia duma Assembléia nacional. Intuição genial do instinto de classe, à dimensão da história universal quando Mirabeau e os outros declararam em 1789 que os três estados, a nobreza, o clero e o terceiro estado, até então separados, deveriam doravante reunir-se em comum sob o nome de Assembléia nacional. Esta assembléia foi, de facto, devido precisamente à sessão comum dos estados, um instrumento de luta de classe burguesa. Graças às fortes minorias surgidas nos dois outros estados, o terceiro estado, isto é a burguesia revolucionária, dispôs logo à primeira duma maioria compacta na Assembléia nacional.

E que resultou daí? A Vendeia, a emigração, a traição dos generais, a maquinação do clero, a insurreição de cinqüenta distritos, as guerras de coligação da Europa feudal e, por fim, como único meio de assegurar a vitória da revolução, a ditadura e a sua conseqüência: o Terror!

É o mesmo que dizer do pouco peso que possuía esta maioria parlamentar para levar a bom termo a revolução burguesa. E no entanto, que é a oposição entre a burguesia e o feudalismo comparada com o abismo escancarado que separa nos nossos dias o Trabalho e o Capital? Que é a consciência de classe dum ou outro dos combatentes que entraram na liça em 1649 e 1789 comparada com o ódio mortal e inextirpável que anima tanto o proletariado como a burguesia? Não foi por acaso que Karl Marx fez incidir a luz da sua ciência sobre as molas mais escondidas dos mecanismos económicos e políticos da sociedade burguesa. Não foi por acaso que estudou os actos e os comportamentos desta até ao recôndito dos seus sentimentos e dos seus pensamentos, como consequência do grande facto central: que a burguesia se alimenta como o vampiro, do sangue do proletariado.

Não foi por acaso que August Bebel exclamou no final do seu célebre discurso no congresso de Dresde:

"Sou e continuarei a ser um inimigo mortal da sociedade burguesa!"

É o grande combate final onde se decide a existência ou o fim da exploração, onde se decide uma viragem da história da humanidade. É um combate que não suporta nenhuma tergiversação, nenhum compromisso, nenhuma trégua.

Este último combate, cujas tarefas consideráveis ultrapassarão todas as do passado, deverá conseguir uma coisa que nenhuma luta de classes, nenhuma revolução jamais conseguiu realizar, isto é, reduzir a luta de morte entre estes dois mundos a duelos de oratória parlamentar e a decisões maioritárias!

O parlamentarismo, é verdade, foi uma arena da luta de classe do proletariado e isso enquanto durou a vida tranquila da sociedade burguesa. Foi então uma tribuna do alto da qual nós podíamos juntar as massas à volta da bandeira do socialismo e educá-Ias para a luta. Mas, hoje, nós estamos no próprio coração da revolução proletária e trata-se agora de abater a própria árvore da exploração capitalista. O parlamentarismo burguês, assim como a dominação de classe burguesa que foi a sua razão de ser mais eminente perdeu a legitimidade. Agora, a luta de classes irrompe de cara descoberta, o Capital e o Trabalho nada mais têm a dizer um ao outro, já só lhes resta agarrar-se num amplexo de ferro e decidir a sorte desta luta mortal.

Mais do que nunca a frase de Lassalle é hoje actual: o acto revolucionário consiste sempre em exprimir o que é. E o que é chama-se: aqui o Trabalho — acolá o Capital! Não à hipocrisia de negociações amigáveis lá onde se decide da vida ou da morte, não à vitória de causas comuns onde há dois lados da barreira. Claro, franco, sincero e forte com esta clareza e esta sinceridade, o proletariado, constituído em classe, deve tomar em mãos todo o poder político.

“Igualdade de direitos políticos, democracia!" eis o que não cessavam de repetir durante dezenas de anos os grandes e os pequenos profetas da dominação de classe burguesa.

“Igualdade de direitos políticos, democracia!”  repetem hoje em eco, os lacaios da burguesia, os Scheidemann.

Sim, mas trata-se precisamente de a realizar presentemente. Pois a palavra de ordem «igualdade de direitos políticos» só se tornará realidade no momento em que a exploração económica tiver sido extirpada radicalmente. E «a democracia» — enquanto poder exercido pelo povo — só começará no dia em que o povo trabalhador tomar o poder.

É preciso fazer a crítica prática, a crítica tornada acto histórico, das frases de que abusaram as classes burguesas durante um século e meio. É preciso que as «liberdade, igualdade e fraternidade» que a burguesia proclamou em França em 1789 se tomem pela primeira vez realidade — pela abolição da dominação de classe da burguesia. O primeiro acto desta acção libertadora será declarar alto e forte perante o mundo inteiro e perante os séculos da história universal: o que passava até ao presente por igualdade e democracia, isto é o Parlamento, a Assembleia nacional, o boletim de voto para todos, era uma mentira! Todo o poder, arma revolucionária da destruição do capitalismo, às massas trabalhadoras — essa é que é a única verdadeira democracia!


Este texto foi uma colaboração
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Inclusão 03/12/2008
Última alteração 14/04/2014