Trotskismos

Daniel Bensaïd


Capítulo VII - "A História Morde-nos a Nuca"


Em 1965, o golpe de Estado no Brasil, o desembarque americano em Santo-Domingo, o golpe de Estado de Boume-dienne na Argélia, o assassinato de Lumumba no Congo, o massacre dos comunistas indonésios, golpeavam duramente a revolução colonial. Simultaneamente, a guerra de libertação no Vietname entrava numa nova fase, com a escalada americana e o início dos bombardeamentos sobre o Norte. Nos Estados Unidos, a personalidade de Malcom X simbolizava a evolução do movimento negro enquanto o movimento anti-guerra se estendia pelos campus. A conferência da Tricontinental, e depois a da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), que têm lugar em Havana em 1965 e 1967, pareciam anunciar uma nova etapa socialista da revolução colonial, ilustrada pela presença de Che Guevara no Congo, e depois na Bolívia. Assassinado em Outubro de 1967, ele torna-se um símbolo e um exemplo para uma geração.

Nesta efervescência, o ano 1968 confirma "a dialéctica dos três sectores da revolução mundial", sublinhada aquando da reunificação de 1963. O Vietname, com a ofensiva do Têt, mas também o México, com o massacre de Tlatlelolco, ou o Paquistão, representam a revolução colonial. O movimento dos estudantes polacos e a Primavera de Praga ilustram o crescimento da revolução anti-burocrática. Desta vez, com a greve geral em França, o movimento operário europeu está presente no encontro. Sob esta tripla impulsão, as mobilizações da juventude são animadas de um grande alento internacionalista. Surgem novas cabeças. O SDS alemão e a JCR francesa são as duas principais organizações na iniciativa do congresso de solidariedade internacionalista com a revolução vietnamita, que tem lugar em Berlim em Fevereiro de 1968.

Se estes anos são marcados de forma espectacular pelo levantamento da juventude, a situação no movimento operário é mais contraditória. A França vive então a maior greve da sua história.

Mas, se os aparelhos burocráticos são sacudidos, as diferenciações políticas no seio do movimento operário continuam limitadas. Até 1974, a actividade grevista continua muito mais massiva em Itália e na Inglaterra do que em França. Como explicar que esta subida espectacular das lutas não tenha resultado em fracturas importantes nas organizações tradicionais? Organizações como a LCR em França, o SWP ou o Militant na Grã-Bretanha, a Lotta Continua (Luta Contínua) ou aAvanguardia Operaia (Vanguarda Operária) em Itália, contarão, cada uma, com alguns milhares de militantes, em Maio dos anos 70. Algumas delas publicarão uma imprensa diária e registarão mesmo um início de expressão eleitoral. A diferença quantitativa e qualitativa com os anos 50 ou 60 é clara, mas trata-se ainda de fenómenos marginais relativamente ao grosso do movimento operário, que continua sob o controle das direcções social-democratas ou estalinistas.

A data de 1968, que simboliza as lutas de uma década (até 1976), intervém no termo de um longo período de expansão ("Os Trinta Gloriosos"), e no início da inversão da onda longa. Os debates que animam a esquerda radical dos anos 60 reflectem esta conjuntura. Tentam-se compreender os instrumentos do "neo-capitalismo" (André Gorz). Sondam-se as potencialidades da nova classe operária (Serge Mallet). Opõem-se as reivindicações qualitativas às reivindicações quantitativas, ou o "reformismo revolucionário" ao sonho da grande noite (Lucien Goldmann). No imediato pós-Maio de 68, as utopias de um crescimento ilimitado conduzem até ao mergulho no "tudo, já" (com o grupo Vive la Révolution en France, Viva a Revolução em França), ou na realização imediata do comunismo graças à abundância à mão de semear (com o Il Manifesto em Itália).

O divórcio entre as aspirações líricas de uma nova vanguarda galvanizada pelas revoluções longínquas e as aspirações prosaicas da maioria dos assalariados, sem outro horizonte que a reforma do Estado social, é propício aos entusiasmos esquerdistas. Tanto que depois de ter pregado no deserto contra as teorias do neo-capitalismo e da integração da classe operária, a irrupção de Maio em França e o "longo Maio" italiano parecem abrir perspectivas vertiginosas e anunciar uma aceleração súbita da história. "A história morde-nos a nuca", resume então um jovem dirigente da Liga Comunista. A revolução parece possível na Europa num prazo de cinco a dez anos, mas a vanguarda renascida continua uma "pequena minoria radicalizada" (como clamam os estudantes berlinenses). Um activismo exemplar e desenfreado parece então susceptível de reduzir esta contradição. Da mesma forma que o foco de guerrilha tinha pegado fogo às planícies latino-americanas e abalado as forças tradicionais, a audácia das vanguardas europeias permitia ultrapassar os conservadorismos e as rotinas de aparelho. Com o congresso clandestino de fundação da Liga Comunista como secção francesa e o IX Congresso Mundial da IV Internacional, estabelece-se, na Primavera de 1969, um jogo de espelhos entre trotskismos europeu e latino-americano. A convergência entre os jovens delegados franceses e os representantes argentinos e bolivianos permite a adopção da resolução sobre a luta armada na América Latina.

Sob o impacto dos acontecimentos, a maioria do Congresso está convencida de que a travessia do deserto foi bem terminada e de que soou enfim a hora da transformação de uma Internacional de propaganda num "partido de combate". Esta fórmula é tomada à letra. A mudança deve traduzir-se, como já é o caso particularmente em França, pela fusão entre os núcleos trotskistas e as novas vanguardas, como as correntes saídas da OLAS na América Latina, o movimento estudantil e o movimento negro nos Estados Unidos, a Zengakuren do Japão.

Na América Latina, a força propulsiva da revolução cubana funciona em pleno. Régis Debray definiu essa época como a de um "leninismo apressado". Ele próprio, em Revolução na revolução (1966), tinha teorizado o novo curso: já não era momento de construir pacientemente partidos que se institucionalizam e se rotinizam, o foco da guerrilha era a partir de agora o revelador da energia disponível das massas. Guevara em pessoa simbolizava essa interpretação unilateral da história da revolução cubana. As experiências de luta armada multiplicavam-se na Argentina, na Bolívia, na Venezuela, na Colômbia, no Chile, no Peru, no Uruguai, na Guatemala, na Nicarágua. As organizações trotskistas latino-americanas estavam confrontadas com esta nova conjuntura. Após a partida de Posadas, Nahuel Moreno tinha-se juntado à Internacional reunificada. Escaldado pela sua própria atitude sectária relativamente ao peronismo, no início dos anos 50, ele colhe novos ventos. A secção argentina empenha-se em preparativos de luta armada. Moreno despacha para o Peru, Daniel Pereyra, um militante operário, para aí assegurar a logística de Hugo Blanco e preparar as condições de uma insurreição camponesa no vale de La Convencion. Na mesma perspectiva, a organização de Moreno funde-se com um grupo saído do populismo radical, implantado nomeadamente entre os trabalhadores agrícolas de Tucuman, e dirigido por Mario Roberto Santucho. O projecto de desencadeamento da luta armada constitui uma das bases essenciais do seu acordo.

Desde 1967, porém, as condições começavam a mudar. A viragem é ilustrada pelo assassinato do Che na Bolívia, ocorrido após as derrotas do Congo ou de Santo-Domingo. No Peru, na Colômbia, na América Central, pioneiros da guerrilha caíam em combate. Moreno reconhece esta inflexão e faz marcha-atrás, provocando a ruptura com Santucho. Este último, sentindo-se enganado, sistematiza o seu próprio projecto num pequeno livro vermelho intitulado O único caminho. No IX Congresso Mundial, a secção argentina apresenta-se dividida entre um PRT-Combatente (Santucho) e um PRT-A Verdade (Moreno). O primeiro era representado por Daniel Pereyra, acabado de libertar das prisões peruanas. A resolução sobre a luta armada, adoptada apesar da oposição dos delegados americanos e de Moreno, registava a dinâmica anterior, mais do que antecipar uma situação que começava a desenhar-se.

A "luta armada" não podia em si constituir uma orientação. Na sua generalidade, a fórmula exprimia uma vontade de aproximação às correntes ligadas à revolução cubana, mais do que uma orientação prática concreta. Ela podia inscrever-se numa perspectiva estratégica insurreccional (ilustrada pelo livro clássico A Insurreição Armada, assinado pelo pseudónimo colectivo Hans Neuberg), bem como numa perspectiva de guerra prolongada inspirada nas experiências chinesa e vietnamita. Na medida em que avançava algumas precisões, a resolução do congresso colocava a luta armada numa lógica de "guerra civil prolongada à escala continental". Ela privilegiava a "guerrilha rural" como "eixo principal para todo um período". Insistia sobre o facto de, na América Latina, a luta armada significar fundamentalmente luta de guerrilha. Esta afirmação vinha a contratempo. As experiências de guerrilha rural sofriam derrota sobre derrota. Nem as experiências de autodefesa camponesa no Peru, nem a luta prestigiosa dos Tupamaros uruguaios podiam ser consideradas como guerrilhas rurais. Quando precisaram o seu projecto estratégico, organizações como o PRT-Combatente, o MIR chileno, ou os sandinistas (após a derrota da sua guerrilha de Pancasan) adoptaram mais uma perspectiva de guerra popular prolongada, com o preço de uma interpretação mítica da revolução vietnamita ou da guerra de libertação argelina.

Mesmo se se revelou erróneo, o projecto de Santucho comportava um núcleo racional. Tratava-se de retomar o projecto de Che Guevara, que não teria muito sentido se tivesse consistido em repetir na Bolívia a experiência cubana. A ideia mais ambiciosa era a de criar uma espécie de foco de luta continental no cruzamento da Argentina, do Peru, do Brasil, do Chile. Daí a composição boliviana da guerrilha do Che e o local escolhido para a sua preparação. Neste contexto, o PRT-Combatente e a secção boliviana, cujos militantes beneficiam, não sem pressões, de uma preparação militar em Cuba, podiam desempenhar um papel tão mais activo quanto Tucuman estava próximo da fronteira com a Bolívia.

Santucho leva este projecto a sério e quer retirar dele todas as consequências. A sua estratégia de guerra prolongada combinava a libertação nacional (simbolizada pela referência a José Marti) e a emancipação social (simbolizada pelo ícone do Che). Ele considerava o povo argentino não apenas em luta contra as suas próprias ditaduras militares, mas em guerra contra uma provável intervenção norte-americana (a que o precedente de Santo-Domingo fornecia o modelo). Assim, tratava-se de criar um exército (o ERP, Exército Revolucionário do Povo), de se dotar de armamento pesado, de acumular um tesouro de guerra, de contemplar o estabelecer de zonas libertadas e de forçar o reconhecimento pelas instituições internacionais de um estado de beligerância. Quando este projecto toma corpo, surgem as divergências no seio do PRT-Combatente que conserva um bom número de quadros de formação trotskista como Daniel Pereyra, Luís Enrique Pujals (assassinado em 1972) ou Pedro Bonnet (executado na sua cela durante o massacre da prisão de Trelew, em 1972). As explosões urbanas de Córdoba em 1969 e, depois, do levantamento popular de 1972 que devolve Peron ao poder, não combinavam com o esquema previsto. Surgiram divergências a propósito da política internacional. Preocupado em moderar as suas relações com os dirigentes cubanos, Santucho não se dá muito conta das posições complacentes de Fidel Castro sobre a intervenção soviética na Checoslováquia. Entre 1969 e 1972, o PRT-Combatente conhece várias cisões. Pereyra deixa-o, para fundar um pequeno grupo de propaganda armada. A Fracção Vermelha, saída dos bairros sul de Buenos Aires, que entrou em dissidência durante a prisão de Santucho e a sua evasão da prisão de Rawson, foi também excluída. Em vez de aproveitar, como o PRT-A Verdade, a breve abertura democrática de 1972-74 para acumular forças e consolidar a sua implantação social, o PRT-Combatente declara-se em paz armada com a polícia peronista, mas ainda em guerra com o exército apoiado pelo imperialismo americano. O desfecho desta declaração de guerra com armas tão desiguais não deixava espaço para muita incerteza. Cerca de um terço dos militantes da Fracção Vermelha foram mortos em menos de dois anos. O próprio Santucho, que tinha deixado a Internacional em 1973, cai em combate em 1976.

A questão da luta armada crispa-se tanto mais na Internacional, quanto estavam vidas em jogo. As divergências tornam-se o motivo principal da formação, em 1972, por iniciativa dos dirigentes americanos e do PRT-A Verdade (agora Partido Socialista dos Trabalhadores), de uma tendência minoritária, a Tendência Leninista Trotskista (TLT), à qual a maioria responde constituindo-se em Tendência Maioritária Internacional (TMI).

Na Europa, a greve geral de Maio de 1968 e as turbulências do "longo Maio" italiano, reanimam a esperança revolucionária. A recessão de 1967 tocava os finados dos Trinta Gloriosos e da fé num mundo de prosperidade ilimitada. A palavra de ordem testamentária do Che, "criar dois, três, muitos Vietnames", ressoava como um imperativo imediato aos ouvidos de uma geração militante tão entusiasta como inexperiente. Na maior parte dos países europeus, surgem então siglas, organizações, novas cabeças. Maoístas e trotskistas partilham a simpatia destas novas vanguardas, mas a influência dos primeiros não tarda a refluir, à medida que se obscurecia o mito da revolução cultural.

Os movimentos trotskistas saíram substancialmente reforçados desses anos de efervescência, principalmente em França e na Grã-Bretanha, passando de grupos estudantis a organizações socialmente melhor implantadas. Em Espanha, uma Liga Comunista Revolucionária nasce em 1971-72 das lutas estudantis e das mobilizações contra o processo de Burgos. No País Basco, a direcção saída da VI Assembleia da ETA e a maioria dos seus prisioneiros políticos, passados do nacionalismo ao internacionalismo sob a influência da revolução cubana, junta-se às fileiras da IV Internacional. Aparecem organizações na Suécia, na Suíça, na Dinamarca, ou ainda em Portugal, na véspera da Revolução dos Cravos. A posteriori, a primeira metade dos anos 70 parece também marcada por um esquerdismo febril que cultiva a escalada entre organizações revolucionárias.

Para nos protegermos da formidável "condescendência da posteridade", é necessário lembrar o contexto. Por um lado, houve realmente, sobretudo em Itália e na Inglaterra, um crescimento impetuoso das lutas sociais, até 1974. Por outro lado, em 1973, toda a esquerda europeia se define estrategicamente no espelho da tragédia chilena. Enquanto a ditadura franquista agonizava em Espanha, Portugal sofre em 1974-75 uma verdadeira crise revolucionária: o Verão de 1975 assiste ao surgimento nas fábricas, nos bairros, nos quartéis, de formas de dualidade de poder e, em Agosto, desfilam blind ados nas ruas de Lisboa ao lado dos manifestantes. Enquanto a Union de la Gauche (União da Esquerda) em França, ou o "compromisso histórico" preconizado por Berlinguer na Itália, visavam um alargamento das alianças à direita para se protegerem de um golpe de Estado reaccionário, a extrema-esquerda identificava-se numa larga medida com o MIR chileno e imaginava o futuro sob a forma de um apoio crítico à esquerda tradicional para melhor preparar os afrontamentos inevitáveis do depois de amanhã. Ela publicava, a meio dos anos 70, uma imprensa diária em Itália (Lotta Continua, Manifesto, Avanguarda Operáia), em França (Rouge) e em Inglaterra. Contava com vários milhares de membros.

O X Congresso mundial da IV Internacional tem lugar no início de 1974, num momento charneira. Entre a maioria e a minoria internacionais, a controvérsia tratava da apreciação geral da situação, sobre a luta armada na América Latina e sobre a violência revolucionária (a propósito nomeadamente da execução, pela ETA, do almirante Carrero Blanco, sucessor presumido de Franco), sobre as relações com as novas vanguardas e sobre a frente única com as organizações tradicionais do movimento operário. Cada bloco tinha no seu seio as suas próprias discussões. Mas a lógica fraccio-nal congelava as fronteiras e o congresso mais parece um encontro diplomático de delegações do que uma deliberação colectiva. As questões importantes foram abordadas separadamente e à porta fechada.

Do lado da maioria, este congresso a contratempo tenta fornecer um fundamento à actividade febril das jovens secções, profetizando a iminência de uma crise revolucionária na Europa e sonhando com um próximo congresso mundial reunido numa Barcelona libertada. Com o nascer das lutas anti-burocráticas no Leste, a história recomeçava a sua marcha onde a tinha parado nos anos 1930, por via da contra-revolução burocrática no Leste e da contra-revolução burguesa em Espanha. Algumas semanas após o congresso, em Abril de 1974, a queda da ditadura portuguesa parece confirmar o prognóstico. O derrube do governo conservador pela greve dos mineiros britânicos foi descrito como o anúncio de uma crise revolucionária na Grã-Bretanha! Se é correcto fazer tudo para actualizar uma possibilidade efectiva (colocando a tónica sobre as formas de auto-organização, desenvolvendo a contestação democrática do exército, ligando as lutas particulares a uma perspectiva de greve geral), pode, em contrapartida, revelar-se desastroso confundir a radicalização real das lutas com uma modificação qualitativa das relações de forças no seio do movimento operário.
O recrudescer das lutas na Europa foi bem traduzido pela queda das ditaduras na Grécia, em Portugal e em Espanha, e o controle do movimento social escapou parcialmente aos aparelhos da esquerda tradicional, mas esta conserva as chaves da situação política. Em França, a esquerda unida retoma a iniciativa a partir de 1972. Em Itália, o Partido Comunista atinge o seu apogeu eleitoral em 1976. A recessão internacional de 1973-74 marcava uma inversão do ciclo económico, e o travar da revolução portuguesa no Outono de 1975, uma viragem política. O reaparecimento de um desemprego de massas, a crise de certos ramos industriais e a política conciliadora das direcções reformistas, conjugam os seus efeitos para desactivar a explosão social. Em Espanha, o pacto da Moncloa e a legitimação da monarquia permitem canalizar a transição ordenada pós-franquismo. Em Itália, o compromisso histórico oferece uma trégua à Democracia-Cristã. Na Grã-Bretanha, o falhanço trabalhista preparava o advento do tatcherismo. Entre 1975 e 1978, desenhava-se também um novo dado, que a França, de fôlego suspenso pela perspectiva de uma vitória eleitoral da esquerda em 1978, regista tardiamente com a desunião da esquerda e o primeiro choque das políticas de austeridade.

Paralelamente, a América Latina sofre igualmente um refluxo das lutas no cone Sul (consecutivamente nos golpes de Estado na Bolívia, no Uruguai e no Chile em 1973, e na Argentina em 1975). A experiência chilena demonstra que o heroísmo de uma minoria determinada não é suficiente para "ultrapassar os aparelhos", se o seu controle sobre os sectores significativos do movimento de massa não tiver anteriormente sido garantido. Iniciava-se uma reorientação estratégica.

Finalmente, enquanto os povos indochineses tinham simbolizado as lutas anti-imperialistas no mundo e a ruína americana em Saigão parecia anunciar uma nova era para os povos oprimidos, as informações que começavam a vir à superfície sobre a "carnificina cambod-jana", e sobre os conflitos armados entre o Vietname e Cambodja, China e Vietname, faziam soar a hora do desencantamento.

Enquanto uma parte da esquerda revolucionária, sobretudo na Itália, e em menor medida na Alemanha ou em Portugal, se perdia numa fuga em frente pelo fetichismo da violência minoritária, tinha chegado a hora de nos armarmos com uma "lenta impaciência" e de inscrever o projecto revolucionário no longo prazo. O XI Congresso Mundial não teve lugar triunfalmente em Barcelona, mas discretamente, em Itália. Os protagonistas de uma década de debate fraccio-nal estavam no ponto de esgotamento. Tendências e fracções dissolveram-se no essencial, em 1977, e a preparação do congresso foi ocasião para uma paz de compromisso entre os trotskismos americanos e europeu, enquanto Moreno reconstituía uma Fracção Bolchevique. Os dirigentes da antiga maioria e os do SWP norte-americano põem-se de acordo sobre uma ordem de trabalhos privilegiando a actualização programática (com a adopção de documentos fundamentais sobre a democracia socialista e a libertação das mulheres), e as medidas organizativas (com um esforço brutal de estabelecimento dos militantes na indústria). A coerência de conjunto repousa sobre a ideia de que, com o refluxo da revolução colonial, se concluía um longo desvio histórico: a revolução mundial reencontrava o seu centro de gravidade nos países industrializados e consequentemente as suas formas "clássicas", urbanas e insurreccionais. A unificação do movimento trotskista internacional (nomeadamente em França e no Brasil) e a reunião das tribos em diáspora tornava-se, no mesmo golpe, uma tarefa prioritária. Em 1978, iniciam-se negociações com esse fim entre o Secretariado Unificado e os dirigentes do Comité de Organização para a Reconstrução da IV Internacional, de que Pierre Lambert era o principal dirigente.

Uma vez mais, as perspectivas preparatórias do XI Congresso foram abaladas pelos acontecimentos. Enquanto a orientação proposta contava com o esgotamento das revoluções coloniais e o regresso do epicentro revolucionário aos países industrializados, a contra-ofensiva liberal dos anos Tatcher e Reagan era desencadeada e a actualidade internacional determinada pelos acontecimentos do Irão e da América Central, em particular pela revolução sandinista de Julho de 1979 na Nicarágua. Em tal contexto, o congresso consagra uma coabitação racional, sem verdadeira paixão amorosa. Lambert, por um lado, e Moreno do outro, crêem ter chegado o momento da sua vingança sobre as frustrações passadas e de dar o golpe de misericórdia a uma organização internacional da qual foram, durante trinta anos, os dissidentes permanentes ou intermitentes. Aproveita a ocasião oferecida pela revolução nicaraguense para acusar o Secretariado Unificado de capitular perante a direcção sandinista pequeno-burguesa, ao recusar a construção de uma organização trotskista pura e dura na Nicarágua. No Outono de 1979, sem esperar o congresso mundial convocado para o início do ano seguinte, a Fracção Bolchevique de Moreno e a Tendência Leninista Trotskista (TLT, resultante essencialmente de um entrismo lambertista na secção francesa (pilotado por Jean-Christophe Cambadélis e dirigido por Daniel Gluckstein e Christian Phéline), deixam a Internacional para criar um comité paritário com o CORQUI (Comité de Organização para a Reconstrução da IV Internacional). A sua "Conferência Mundial Operária" de Dezembro de 1980, parece-se fortemente com um congresso de fundação de uma Internacional, visando os relatórios e as resoluções adoptadas delimitar o "trotskismo ortodoxo" do "revisionismo liquidador".

Como sublinha a intervenção do representante do Secretariado Unificado, a questão da América Central, pretexto para esta nova cisão, não tinha ainda sido abordada no quinto dia da conferência. Os documentos preparatórios caracterizavam, porém, o apoio das secções da IV Internacional à revolução centro-americana como "a pior traição na história do trotskismo", comparável à do falhanço da III Internacional na revolução chinesa de 1927, da derrota alemã de 1933 ou da guerra civil espanhola. Encontramos aqui um traço típico da seita incapaz de se içar à altura dos acontecimentos e reduzindo o mundo à sua própria escala minúscula. As tragédias do passado são então repetidas em farsas grotescas onde bonsais ridículos fingem ter o papel de gigantes de antigamente. Apesar do grotesco deste teatro de sombras, verifica-se uma constante na história das organizações trotskistas: por ridículos que sejam, os seus conflitos e as suas separações, fazem eco dos grandes acontecimentos que determinam o sentido de uma época.


Este texto foi uma colaboração
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Inclusão 15/04/2010
Última alteração 14/04/2014