Processo de Nuremberga

Arkadi Poltorak


II - Hermann Goering visto de perto


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Entre Cila e Caríbdis

O interrogatório de Hermann Goering durou dez dias.

Foram dez dias em que os seus depoimentos chamaram a atenção de todo o mundo.

Ao rever mentalmente a enorme documentação oral e escrita que neste lapso de tempo passou pelo Tribunal e comparando-a ao que vi e ouvi noutros lados, posso garantir que nenhum outro réu oferecia um tão típico conjunto dos traços do político imperialista actual: pieguice e sadismo, respeitabilidade de fachada e imoralidade profunda, aparência de arreigamento fanático a uma ideologia e cinismo devido à falta absoluta de princípios.

Os historiadores sustentam que Napoleão, vencido na Rússia, teria procurado a morte. Dava-se conta que a sua estrela declinava, mas não pensava no suicídio: isso repugnava à sua natureza. Teria preferido fazer-se matar no campo de batalha.

Nada de semelhante aflorou ao espírito dos chefes da Alemanha, hitleriana. Arrivistas e aventureiros que não hesitavam em massacrar milhões de inocentes, saqueadores e rapinantes a quem as hecatombes enriqueciam, eles não procuraram a morte no campo de batalha quando a catástrofe se tornou iminente. Mandavam os outros morrer pela querida Pátria, pelo grande Vaterland, pelas geniais ideias do «divino» Fuhrer. Sacrificavam os garotos de dezasseis anos e os velhos de sessenta, as mulheres e os doentes. Mandavam, fosse quem fosse, para uma morte certa só para ganharem mais um ou dois dias e se enfiarem no último minuto num buraco, fugirem, esconderem-se, acachaparem-se, sobreviverem.

Durante quase um ano considerei o banco dos réus sem poder habituar-me à ideia de que quase todo o governo hitleriano ali estava alinhado. Como era possível que os cabecilhas nazis não tivessem podido fugir, beneficiar da hospitalidade dos seus numerosos amigos no estrangeiro?

Nada que se parecesse ao navio em perigo cujo capitão se mantêm na ponte de comando para não abandonar o barco ou abandonala em último lugar. Não, não era com capitães que estávamos a lidar, nem mesmo com capitães de piratas. Os grandalhões do Reich fascista lembravam mais ratos que se houvessem saciado em escuros porões, quando os ventos eram propícios, e tinham fugido em debandada quando o navio se começou a afundar.

...20 de Abril de 1945. No abrigo subterrâneo da Chancelaria, Hitler festeja o seu quinquagésimo-sexto aniversário. Os seus íntimos Goering, Himmler, Goebbels, Bormann, Ribbentrop, Speer, Doenitz, Keitel e Jodl — vêm felicitá-lo. E algumas horas mais tarde eles já se desunham para fugir das ruínas de Berlim à revelia do seu querido Fuhrer e às escondidas uns dos outros.

Hermann Goering — o «fiel paladino» de Hitler, como ele gostava de a si mesmo se intitular nos recentes tempos da sua prosperidade — escolheu Berchtesgaden. Tinha necessidade de, na calma e no silêncio, pôr os seus pensamentos em ordem.

Já se tinha dado conta de que perdera a partida, uma queda vertiginosa ia precipitá-lo na linha fatal para além da qual já nada mais existia: nem Fuhrer, nem partido nazi, nem grande Alemanha, nem vida. Sim, até a sua própria vida estava ameaçada. E se Hermann Goering podia em vigor aceitar a perda do seu Fuhrer, da grande Alemanha, da sua própria glória, das suas riquezas e poder, era incapaz de se resignar à mais terrível das perdas: a morte. Salvar-se!... Salvar-se custasse o que custasse, fosse qual fosse o preço! Este pensamento fazia-o fugir a sete pés de uma Berlim em chamas tal como o instinto de conservação empurra a besta-fera para fora do covil à aproximação do perigo.

E Goering pôs-se em fuga...

Mal chegou a Berchtesgaden fechou-se no escritório e proibiu que o incomodassem. Queria estar enfim só para se concentrar no único problema do momento: a salvação da sua pele...

Há dois dias que não dormia. O seu plano estava ultimado. Um plano que devia salvar não só a vida de Hermann Goering mas também a do Reichsmarschall Goering...

Do mesmo modo que nas palavras cruzadas uma letra bem colorada sugere o preenchimento de várias palavras ao mesmo tempo, as medidas por ele previstas deveriam socorrê-lo em todas as circunstâncias, ou quase. Tendo-se tornado, em virtude da lei de 29 de Julho de 1941, sucessor oficial do Fuhrer, Goering poderia negociar uma paz separada com os representantes das potências aliadas ocidentais, em primeiro lugar com Eisenhower.

No caso de ser bem sucedido (ele acreditava nisso), as tropas alemãs retiradas da frente ocidental seriam lançadas na decisiva batalha com os russos, para travar o avanço destes. Mas o Reichsmarschall visava mais alto, muito mais alto: estava à espera de uma aliança com os seus inimigos da véspera, os EUA e a Inglaterra, para uma cruzada anticomunista contra a Rússia soviética.

Mas não tinha a audácia suficiente para agir. Paralisava-lhe a vontade um horroroso medo a Hitler, aos costumes de quadrilha fascista (disso sabia ele!). Um medo negro, insuperável.

Só se decidiu na manhã de 23 de Abril, quando o general Koller apareceu, vindo de Berlim. Este mensageiro da Chancelaria trazia-lhe notícias frescas: Hitler, desesperado após o fracasso da pretensa «ofensiva» de Steiner, tinha declarado que nada mais lhe restava senão suicidar-se e caíra numa total prostração.

O «fiel paladino» foi como se tivesse curado a mordedura da cobra com o veneno da própria cobra. Supondo que o seu «Fuhrer bem-amado» já não fazia parte dos vivos e que, mesmo que fizesse não podia sair de Berlim e aparecer em Berchtesgaden, Goering passou à acção. Telegrafou para a Chancelaria:

«Meu Fuhrer, em consequência da sua decisão de se manter no seu posto na fortaleza de Berlim, aceita que eu assuma na minha pessoa todo o governo do Reich, com plena liberdade tanto no interior como no exterior, de acordo com o seu decreto de 29 de Junho de 1941? Se não receber qualquer resposta até às dez horas da noite; concluirei que perdeu a liberdade de acção e agirei da melhor maneira nos interesses do país e do nosso povo».

Ao mesmo tempo ordenou que lhe fosse preparado um avião para, a manhã seguinte. O sucessor de Hitler queria dirigir-se sem demora ao Q.G. americano para conferenciar com Eisenhower. Não punha o êxito da sua empresa em dúvida. A acreditar no general Koller que almoçou com ele, Goering estava radiante e

«não se cansava de repetir que se entenderia às mil maravilhas com os americanos e os ingleses».

Mas os projectos luminosos do ainda tão verde recém-Fuhrer não viriam a ser concretizados: no decorrer dessa noite Goering e Koller foram presos por ordem de Hitler.

No entanto o general Koller de modo nenhum tinha exagerado quando falou a Goering da prostração de Hitler. Um outro general, Weidling, confirmou a coisa. Eis como ele descreve o seu último encontro com o Fuhrer:

«O que estava à minha frente era uma ruína. A cabeça abanava-lhe, as mãos tremiam-lhe, a sua voz era confusa e tremebunda».

Mas a mensagem-rádio de Goering, entregue em mão própria por Bormann, reanimou-o subitamente. Foi tomado de um terrível acesso de raiva.

Hitler e Goering disputavam as rédeas de um poder que já nem um nem outro seguravam nem podiam segurar. Desde há anos que eles olhavam nos olhos essa esfinge enigmática e já não podiam separar-se dela. Saboreavam a embriaguez que o poder ilimitado provoca, poder de escravizar toda a gente, de atacar os outros países, de queimar seres humanos nas fogueiras de Treblinka e de Buchenwald. Eles tinham o hábito de representar o papel do destino para milhões de pessoas. E, até nestes dias da Primavera de 1945, um se esforçava por conservar o poder supremo e o outro tentava arrebatar-lho.

Hitler, à beira do túmulo juntamente com todo o seu Estado nazi, lança uma ordem em que estigmatiza Goering de traição. É por isso que Goering é preso a 23 de Abril por SS acantonados em Berghof.

O «fiel paladino» conhecia bem demais o seu Fuhrer para esperar sossegadamente o curso dos acontecimentos. Não duvidava que em plena agonia do Terceiro Reich se encontrariam dois ou três SS fanáticos para o fuzilarem como traidor. Hermann Goering reagiu. Chamou em seu socorro os oficiais da Luftwaffe(12) que o libertam. Mas o perigo de ser executado pelos SS persiste. Goering só vê um meio de escapar: entregar-se como prisioneiro aos americanos.

Na manhã de 9 de Maio de 1945 o estado-maior da 36ª divisão americana ficou surpreendido com a visita do coronel alemão Bernd von Brauchitsch. Este vinha da parte do Reichsmarschall com a finalidade de parlamentar. Goering mandava dizer aos seus inimigos da véspera que dava a guerra por terminada e mais não pedia que colocar-se à mercê dos vencedores.

E eis que o comandante da 36ª divisão se acha pacificamente de conversa com este importante «prisioneiro». Goering não perde tempo e lança-se na exposição do seu credo, de como renegou Hitler e camarilha. Sim, ele, Goering, há muito que tomava a peito a tarefa de pôr a Alemanha no bom caminho, mas «o espírito limitado do Fuhrer», «a excentricidade de Hess», a «baixeza de Ribbentrop», não lho permitiam. Vinha mesmo a jeito recordar aos americanos as palavras de Churchill que lhe tinham um dia sido comunicadas:

«Por que é que nos mandam este Ribbentrop, em vez de Goering que é um excelente tipo?»

A pedido de Goering, foi-lhe trazida a família, a criadagem e as bagagens em dezassete camiões. O Reichsmarschall inspecciona com prazer as instalações postas à sua disposição. Dir-se-ia a chegada de um turista milionário a um hotel de luxo. Mas os volúveis Fados não tardaram em pregar-lhe uma partida: teve de trocar a faustosa vivenda por uma cela de prisão.

Vista interior de uma cela da prisão
Eis o «espaço vital» queacabaram por conquistar.
Vista interior de uma cela da prisão
(clique na foto para maior resolução)

Hermann Wilhelm Goering ocupava a cela n° 1. Dispunha de cinco metros quadrados de superfície, de uma mesa, uma cadeira, uma tarimba, um WC. Ali estava, em suma, todo o espaço vital que ao Marechal do Terceiro Reich tinha cabido.

Passou trezentos e sessenta intermináveis dias e outras tantas ainda mais intermináveis noites na expectativa da sentença do Tribunal Internacional. O seu corpo maciço, atormentado por insónias, dava voltas e mais voltas no enxergão duro. O seu esquentado cérebro era obcecado por visões: a «noite de cristal» e o incêndio do Reichstag, a «noite das facas longas» e as cinzas de Auschwitz, a Europa escravizada e a «ratoeira» de Stalinegrado. Evocava os milhões de escravos levados para o cativeiro, as dezenas de milhões de vítimas massacradas, fuziladas, queimadas vivas, as centenas de milhões de marcos de lucros da guerra.

E a sentinela vigiava constantemente pelo postigo o agitado Reichsmarschall. O criminoso de guerra Hermann Goering era guardado à vista por quatro potências.

Ao bater das oito horas, a pesada porta abriu-se diante da guarda que o levava pelos sonoros corredores para a sala de audiências e o colocava no lugar que vitaliciamente lhe fora destinado: o primeiro lugar da primeira fila dos grandes criminosos de guerra.

A Táctica dos Sarcófagos de Mármore

Durante os meses que antecederam o processo de Nuremberga, todos os réus tiveram a possibilidade de tomar posição, de elaborar a sua táctica frente aos pontos de acusação que certamente não seriam, mistério para ninguém.

Foi o que Goering fez. Mas em vez de uma táctica elaborou duas.

A primeira destinava-se a si próprio. O que lhe era subjacente consistia no aproveitamento das mínimas ocasiões para se justificar dos mais graves crimes.

A segunda destinava-se ao público. O seu advogado resumiu-lhe o sentido com extremo laconismo:

«O que o Reichsmarschall defende não é a sua cabeça, mas a sua cara».

O réu n° 1 queria, transmitir a impressão de que estava resignado a morrer e que a morte era o único castigo que o Tribunal lhe podia infligir.

— A sentença de morte não tem qualquer importância para mim — garantia ele ao doutor Gilbert. — Mas a minha reputação na História tem muita.

Isso não passava, claro, de mais uma fanfarronada. Vê-lo-emos por mais de uma vez a esbracejar com toda a força para prolongar a vida. Mas aplicava-se a representar o papel de fatalista e persuadia os outros réus de que estavam irremediavelmente perdidos. Uma vez que era assim, nada mais havia a fazer do que comportarem-se de modo a que a posteridade apreciasse a hombridade dos antigos chefes da grande Alemanha.

Ei-lo que passeia com Frank no pátio da prisão e o exorta a morrer com dignidade, como um mártir, visto que a sua vida está a chegar ao fim. Como um pregador apaixonado, promete-lhe a glória além-túmulo.

— Talvez que dentro de cinquenta anos o povo alemão de novo se levante e nos considere como heróis; mais, os nossos restos mortais serão colocados nos sarcófagos de mármore de um mausoléu nacional.

Frank, céptico, fez-lhe notar que dentro de cinquenta anos teriam eles desaparecido da face da Terra sem deixarem rasto. Os sarcófagos eram pois inúteis…

Como resposta Goering evoca cinicamente a lenda do Cristo. Tinha sido crucificado e de seguida, milhões de outras cruzes apareceram. Os homens veneram-nas e osculam-nas como se fosse nelas que Cristo expirou.

— É o que acontecerá aos nossos restos mortais — repete ele obstinadamente. — Serão encontradas ossadas, dirão que são as nossas, metê-las-ão em sarcófagos de mármore e milhões de peregrinos virão adorar as relíquias dos mártires...

Goering debitava tiradas deste género a outros inculpados. Sobretudo aos que, segundo ele, tinham tendência para manifestar um «arrependimento sincero».

Muito à vontade no seu ingrato papel de «Fuhrer» do banco dos réus, Goering constantemente exercia pressão sobre os seus companheiros, para que nada confessassem. E não era unicamente para sabotar o processo. Outra coisa o preocupava. Como conhecia muito bem os seus antigos colegas do governo, previa que, lançados na via das confissões eles não deixariam de atirar para cima dele as culpas mais gravosas.

Um outro móbil agia nele, conscientemente. Vaidoso, presumido, queria fazer a imprensa mundial acreditar que ele conservava apesar de tudo a sua «fé na ideia» e que se considerava responsável para atitude dos outros réus. Lembrava o domador de chicote na mão que, na jaula, obrigava de vez em quando o animal a saltar para cima de um tamborete.

Logo a partir do primeiro dia do seu interrogatório, não deixou de fanfarronar perante Gilbert:

— Não esqueça que tenho, mobilizados contra mim, os melhores cérebros de juristas da Inglaterra, da América, da Rússia e da França, com toda a sua artilharia legal.

Não pôde evidentemente esconder a sua satisfação quando o Tribunal (para poupar tempo) decidiu que para todas as questões relativas à história e ao programa do partido nazi só Goering teria o direito de testemunhar: isso proporcionava-lhe uma ocasião mais de dar a entender aos outros que ele estava ali a desempenhar o papel principal. E depois disso o chicote do domador redobrou de violência.

Speer revela de chofre ao Tribunal que havia preparativas de assassinar Hitler. Na suspensão da audiência Goering enche-o de censuras:

— Você não me avisou que ia dizer isso!

Ora Speer por nada deste mundo pensava em consultar Goering sobre os métodos a empregar para salvar a pele. À noite gritou indignado:

Goering julgava que ia poder armar-se em senhor e que nós íamos alinhar nisso imediatamente e gritar: «Bravo!»...

O chicote do domador também não poupou Keitel. Interrogado sobre a execução de cinquenta aviadores ingleses, este teve de reconhecer o facto, assediado por provas irrefutáveis. Mas ainda mal o ex-marechal-de-campo tinha voltado ao seu lugar e já o ex-marechal do Reich o admoestava severamente:

— Para quê considerar-se culpado sem necessidade?

Goering embebedava-se de gloríola nos tempos do seu poder. No banco dos réus esta paixão não o largou. A sua vaidade hipertrofiada dominava-o dia e noite e assumia por vezes aspectos grotescos.

Estando Jackson a pronunciar o seu requisitório, toda a gente se apercebeu que Goering tomava notas diligentemente. O doutor Gilbert contou depois que o ex-marechal do Reich tinha escrupulosamente contado o número de vezes que o nome de cada réu era mencionado e tivera a alegria de constatar que o seu o fora quarenta e duas vezes, com muita mais frequência portanto que o dos outros.

Gilbert fez-lhe notar que se Himmler estivesse ali teria provavelmente tornado o nome de Reichstnarschall ainda mais popular. Goering apercebeu-se da armadilha e declarou que Himmler foi seu rival político:

— Sempre disse que as primeiras quarenta e oito horas depois da morte de Hitler teriam sido as mais perigosas para mim, porque Himmler teria tentado afastar-me do seu caminho por meio de um «acidente de automóvel» ou de um «ataque de coração causado pela morte do querido Fuhrer» ou outra coisa qualquer... Mas aqui, na sala dos prisioneiros, ele ficaria feliz se pudesse ceder-me o primeiro lugar!

Diga-se o que se disser, Hermann Goering conhecia bem Heinrich Himmler e dava-se perfeitamente conta que o Reichsfuhrer SS se teria regozijado de depor uma coroa no túmulo do Reichsmarschall. Este, de resto, quanto a «acidentes de automóvel» e a «ataques de coração» em relação aos seus émulos políticos podia pedir cem vezes meças a Himmler.

No dealbar do regime nazi, no Verão de 1933, Hermann Goering convocou um alto funcionário da polícia prussiana, Arthur Nebe, e encarregou-o de organizar um «acidente de automóvel» para Gregor Strasser, um outro chefe nazi, rival de Hitler e do próprio Goering. Acabou por ficar mais manso e admitiu que esse «acidente de automóvel» fosse substituído, se necessário, por um «acidente de caça».

Ficaríamos pois em dificuldade de dizer se foi Himmler quem serviu de modelo a Goering ou o inverso.

Início de uma Carreira

Tanto pela sua vida como pela sua carreira, Hermann Goering diferia quer dos réus que alardeavam as suas origens aristocráticas no meio da plebe nazi, quer dos que se faziam passar por corifeus ideológicos e políticos do regime. O seu passado lembrava de certo modo aos aristocratas do tipo de Neurath e de Papen que ele era oriundo do seu meio, ao passo que a sua actividade provava à saciedade que ele era um homem de acção, diferentemente dos «demagogos puros» como Rosenberg e Streicher.

Hermann Goering nasceu na Baviera em 1893. O seu pai, que era governador da África Sudoeste, estava relacionado com grande número de homens de Estado britânicos, particularmente com Cecil Rhodes e o mais velho dos Chamberlain; estava muito ligado a Bismarck. O futuro marechal do Império passou uma parte da sua juventude na Áustria.

— Conte sucintamente a sua vida ao Tribunal antes e depois da Primeira Guerra Mundial — perguntou-lhe o advogado Stahmer.

E Goering começou:

— Educação normal, primeiro em casa; depois entrei para o Corpo de Cadetes, sendo de seguida oficial no activo... No início da Primeira Guerra Mundial era tenente num regimento de infantaria... Em Outubro de 1914 fui aviador de observação. Pilotei aviões de reconhecimento e depois, por um curto período, bombardeiros. No Outono de 1915 passei a piloto de caças. Depois fui gravemente ferido num combate aéreo; a seguir ao meu restabelecimento fui comandante de uma esquadrilha de caças e, após a morte de Richthofen, comandante da bem conhecida esquadrilha Richthofen.

Nessa remota época, o ar empolado da cara de Hermann Goering, que para os pequeno-burgueses alemães representava o ideal da beleza viril, não largava as páginas dos jornais ilustrados. E facilmente se notava, observando o ex-Reichsmarschall em Nuremberga, com que suficiência ele evocava os inícios da sua longa e sangrenta carreira.

Ao falar das suas condecorações, ele preferiu silenciar os feitos que valeram a sua atribuição. Também não falou dos bombardeamentos de cidades pacíficas feitos pela sua esquadrilha. E achou que era absolutamente descabido assinalar aos juízes que já em 1918 o seu nome constava da lista dos criminosos de guerra...

A derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial nada ensinou aos militaristas alemães. Não demorou muito que eles de novo se pusessem a brandir armas, que constituíssem uma Reichswehr. Muitos amigos de Hermann Goering aí se alistam. Mas ele recusa. Considerações de ordem ideológica? Sim e não.

— Recusei entrar para a Reichswehr como me tinha sido proposto porque eu estava de antemão em oposição à República; ela tinha tomado o poder após a revolução, de modo nenhum poderia estar em consonância com as minhas próprias convicções.

Goering tinha com toda evidência herdado do seu pai o culto fervoroso da política interna de Bismarck. Desgostado com a República, expatria-se. Parte com o intuito de «arranjar uma situação» ou, mais exactamente, de não ter de responder pelos seus crimes de guerra.

Viaja pela Escandinávia. É aviador civil na Suécia. Mas logo que os revanchistas começam a erguer cabeça na Alemanha, ele volta para lá.

Um dia assistiu em Munique a um comício de protesto contra os pedidos de extradição dos «chefes militares» formulados pela Entente. Goering não gosta de chamar as coisas pelo nome, de outro modo ele deveria ter dito «criminosos de guerra». E o réu n° 1 é decididamente demasiado modesto quando declara ao Tribunal que tinha ido a essa manifestação na qualidade de «testemunha ocular». Ele sabia, sem sombra de dúvida, que o seu nome figurava na lista das pessoas reclamadas pela Entente.

Neste comício Hitler, que ele ainda não conhecia sequer de nome, foi convidado a usar da palavra. Mas recusou declarando, para grande alegria de Goering, que depois daquelas «tiradores burgueses completamente domesticados» ele não queria dizer nada. Hitler achava «inútil fazer protestos que não teriam qualquer efeito».

— Eu era da mesma opinião — afirma o ex-marechal do Império perante o Tribunal Internacional. — Essas concepções correspondiam ponto por ponto à minha íntima convicção. Pouco depois dirigi-me ao gabinete da NSDAP...

Aderiu a Hitler sabendo muito bem que a palavra «socialismo», que entrava no nome do partido, não significava absolutamente nada. O garboso oficial do exército do Kaiser deparou logo com uma tarefa que lhe convinha; formar destacamentos armados nacionais-socialistas, a guarda pretoriana de Hitler.

Por causa do seu passado, era em Goering que os industriais alemães depositavam mais confiança. Por isso era a Goering que eles confiavam os fundos para a manutenção da guarda hitleriana. Tornou-se, a pouco e pouco, no principal intermediário entre a Reichswehr e os monopolistas, por um lado, e o partido hitleriano por outro.

Goering narra em pormenor esta etapa da sua carreira. Fá-lo com uma calma aparente e um mal dissimulado orgulho, como se estivesse a dirigir-se a, um auditório nazi.

— Isso levou-nos rapidamente aos acontecimentos de 9 de Novembro de 1923(13) — conclui. — Creio que esses acontecimentos são conhecidos: fui gravemente ferido... e aqui dou por concluído este primeiro capítulo.

O doutor Stahmer está visivelmente satisfeito com o seu constituinte:

«Um grande homem defende-se com grandeza».

Deixa-o «respirar» e pergunta-lhe de seguida:

— Em que momento entrou de novo em relações com Hitler?

E Goering passa ao «segundo capítulo».

Após o fracasso do golpe de Munique ele preferiu passar-se de novo para o estrangeiro. Soube aí que Hitler e outros activos participantes no golpe tinham sido presos e intimados judicialmente. Quanto a ele, absteve-se de comparecer e viveu à grande, primeiro em Innsbruck e depois em Itália, a expensas da sua mulher.

Regressado à Alemanha em 1927, lança-se com redobrado ânimo na consolidação do partido nazi. Hitler tem em alto apreço as suas relações com os meios financeiros e militares. Mas é a Ernst Roehm que confia os destacamentos armados. Isso não caiu lá muito no gosto de Goering, não deixando porém de o estimular. Várias manobras brilhantemente urdidas fazem subir em flecha o seu prestígio e torna-se uma notabilidade do nazismo. Os magnatas alemães continuam a testemunhar-lhe as suas simpatias. Krupp e Thyssen, Flick e Klockner estão encantados por vê-lo alheio à fraseologia pseudo-socialista própria dos outros militantes nazis. Por mais necessária que seja esta fraseologia, ela irrita sempre os poderosos da Terra.

Goering esforça-se, através de todo o seu comportamento, por adquirir a reputação de homem voluntarioso e activo. Despreza o parlamentarismo. O seu ideal é o absolutismo, a ditadura fascista. Não quer partilhar o poder com ninguém, nem mesmo com o campo dito nacionalista de Papen e de Hugenberg.

Claro que aqui não se trata unicamente de «ideologia». Hermann Goering é o elemento mais egocêntrico do partido nazi. Ambicioso até ao fanatismo, ele sabe muito bem que se os nacionais-socialistas acederem ao poder em coligação com os outros partidos burgueses reaccionários a cimeira monopolista encontrará sem dificuldade outras personagens influentes para representarem os seus interesses. Os outros partidos poderão mesmo fornecer-lhes defensores mais dotados.

Se o partido nacional-socialista se achar sozinho no poder já isso não será de temer. No aparelho de Estado criado por este partido Goering terá certamente o prestígio suficiente para tomar nas suas mãos as rédeas do governo e da polícia. Será então, e só então, que aos olhos dos grandes potentados do Ruhr ele se imporá como o ministro ideal.

Hermann Goering convence grande número de funcionários nazis de todos os níveis, oficiais da Reichswehr, intelectuais desclassificados, que só uma ditadura fascista lhes garantirá lugares lucrativos. Por outro lado promete aos industriais e aos banqueiros uma polícia de pulso férreo, que saberá defender os seus interesses neste agitado mundo.

Prussiano por educação e por natureza, bonapartista por carácter, é em consonância com estes traços que ele mobila o seu apartamento de Berlim. A parede do seu gabinete de trabalho é ornada por um enorme gládio de carrasco alemão da Idade Média, simbolizando os métodos que ele virá a empregar para conquistar o poder. A secretária é alumiada por velas em candelabros maciços. O seu vacilante clarão dá a Goering o ar de um patrício medieval.

A sala está literalmente apainelada com retratos dos Hohenzollern e um de Benito Mussolini. Mas à frente da sua poltrona o dono da casa pendurou Napoleão Bonaparte. À noite, à luz das velas, ele olha nos olhos esse grande arrivista político do século passado, como que para o consultar. Sonha manifestamente com a mesma carreira do «grande Corso» e imagina ser o único dos bonzos nazis a ter esse direito...

Neste gabinete recebe ele cada vez com mais frequência a visita de banqueiros e industriais, assustados com os progressos do movimento revolucionário. A linguagem que usa com eles não se ressente da demagogia pseudo- socialista do nazismo. Que Adolfo Hitler e Alfred Rosenberg debitem as suas tiradas ribombantes! Hitler intitulou-se um dia a si próprio «tambor nacional». Que lhe faça bom proveito! Deixemo-los ficar com o papel de demagogos. Goering, nada tem a fazer desse falso romantismo, desse socialismo pequeno burguês.

Aproximam-se dias decisivos. A 28 de Janeiro de 1932 realiza-se uma reunião secreta no castelo de Landsberg que pertence ao monopolista Thyssen. Três directores do trust do aço, Thyssen, Poensgen e Voegler conferenciam aí com três corifeus do nacional-socialismo: Hitler, Goering e Roehm. Mas há todo um ano de batalhas em perspectiva. Em fins de Julho, nas eleições para o Reichstag, os nazis obtêm 37% dos votos. Mas o partido nacional-socialista, gravemente comprometido nos meses seguintes por causa das suas relações com os monopólios e desmascarado pelos partidos de esquerda, perde dois milhões de votos nas eleições de 6 de Novembro.

No processo de Nuremberga, Goering foi obrigado a reconhecer que nesta época o partido comunista alemão era extraordinariamente forte.

Hitler compreendia que, a não tomar medidas de excepção, a depressão do nazismo corria o risco de se transformar em derrocada. Muitos dos seus acólitos tinham perdido o norte. Mas Goering continuava activo, e a 19 de Novembro de 1932, no seguimento das suas conversações com os magnatas da indústria, Schroeder, Krupp e outros endereçaram ao presidente Hindenburg uma carta exigindo que Hitler fosse nomeado chanceler do Reich.

Fevereiro de 1933. Os representantes dos grandes monopólios reúnem-se em casa de Goering. Hitler tem necessidade de dinheiro para garantir o êxito nas eleições marcadas para 5 de Março. Goering sabe bem o que mais pode impressionar os assistentes.

— Meus senhores, — diz ele — os sacrifícios pedidos pareceriam muito mais leves à indústria se ela soubesse que estas eleições serão certamente as últimas nos dez anos futuros, provavelmente mesmo no espaço de um século.

Esses cavalheiros não se fizeram rogados. Em poucos minutos foi feita uma colecta de três milhões de marcos.

As eleições para o Reichstag de 5 de Março decorreram sob o terror fascista. O partido nazi, não obstante, só obteve 44% dos votos. Só depois da prisão dos deputados comunistas é que os hitlerianos obtiveram, ilegalmente, a maioria.

Goering acumula as mais altas funções: presidente do Reichstag, ministro do Ar do Reich, ministro prussiano do Interior. Proclama-se a si mesmo, não sem orgulho, o «Homem n° 2», se bem que no seu íntimo aspire a ser o n° 1. E esse número virá a calhar-lhe, mas só em Nuremberga, diante da forca.

De uma inaudita vaidade, mórbida, ele nem nestes trágicos dias pode conter a sua satisfação quando o procurador Jackson lhe diz:

— Está consciente de que é o único homem vivo capaz de nos expor as verdadeiras finalidades do partido nazi e o funcionamento da sua direcção?

— Sim, perfeitamente.

Após o que se entabulou o seguinte diálogo:

Jackson. Desde o princípio que tinham a intenção de derrubar — e depois acabaram efectivamente por fazê-lo — a República de Weimar?

Goering. No que me diz respeito estava firmemente disposto a isso.

Jackson. E quando tomaram o poder aboliram imediatamente o regime parlamentar na Alemanha?

Goering. Para nós ele não tinha qualquer utilidade.

Heimann Goering achou também inúteis montes de outras coisas.

Teria por exemplo passado muito bem sem Hindenburg. Se não fosse a Reichswehr não se ensaiaria para mandar prender o velho presidente.

Os do «campo nacional» — todos esses Papen, Schleicher, Hugenberg — o enfastiavam. A «palavra de honra» que o Fuhrer tinha dado: a Hindenburg de ficar sempre com eles, desgostava-o.

Mas o que ele antes de mais desejava era ajustar contas com os comunistas. Assestar um golpe violento que varresse todos os adversários do absolutismo nazi. Goering, perito em provocações, pensava nisso noite e dia. Invejava o seu ídolo, Bonaparte, por ter tido ao seu serviço um polícia de génio como Fouché que lhe dava a papinha feita.

«Isto não é um Comunicado Político, isto é uma Merda»

Hermann Goering acabou por encontrar algo. E a sua descoberta fê-lo comparecer por duas vezes perante os tribunais: como testemunha em Leipzig e como réu em Nuremberga.

O leitor conhece bem este sinistro episódio da história universal. Na noite de 27 de Fevereiro de 1933, Goering contemplava juntamente com Hitler, do alto de uma sacada, o incêndio do Reichstag, símbolo da República de Weimar. As chamas ensanguentavam o negro céu de Berlim.

Em Nuremberga pediram-lhe pormenores sobre este bizarro acidente...

Valeria na verdade a pena o Tribunal Internacional ocupar-se do assunto uma vez que no processo de Leipzig Dimitrov e os seus amigos comunistas tinham sido absolvidos? Eles tinham-no sido, sim, mas quem era então o verdadeiro culpado? O Tribunal de Leipzig condenou Van der Lubbe. A sentença não lançava a mínima sombra de suspeita sobre os figurões nazis. Quem era, em suma, o incendiário?

Anos depois da Segunda Guerra Mundial, a revista alemão ocidental Der Spiegel anunciará que segundo informações recentemente obtidas, Hermann Goering nada teria a ver com isso. É de facto assim? O procurador americano Jackson interroga Goering:

— O senhor encontrou o Fuhrer nos locais do incêndio, não é verdade?

— É exacto.

— E decidiu, logo ali, prender todos os comunistas constantes de uma lista que tinha preparado?

Goering tergiversa. Não sabe ainda quais as provas que a Acusação tem contra ele.

— Eu não tinha qualquer razão para incendiar o Reichstag... Do ponto de vista artístico, não lamento que a sala das sessões tenha ardido.

E acrescenta cinicamente:

— Mas fiquei muito desolado por me ter achado na necessidade de procurar um novo local para as reuniões do Reichstag. Como não tivesse encontrado outro melhor, vi-me obrigado a utilizar o edifício da Opera Real. Nessa altura a Ópera parecia-me mais importante que o Reichstag.

Goering esperava livrar-se de apuros por meio destas sentenças cínicas: desde há algum tempo que o Reichstag e toda a Berlim estavam aniquilados. No entanto ainda lá havia qualquer coisa. E essa «qualquer coisa» era quanto bastava para o confundir!

Jackson pergunta-lhe se ele conhece Karl Ernst, Helldorf e Heines. Goering reconhece que se trata das SA. Então Jackson faz referência a uma declaração de Ernst na qual consta que eles tinham, os três, incendiado o Reichstag por ordem de Goering.

Esta frechada é seguida de uma outra: Jackson apresenta os depoimentos do general Halder, ex-chefe do grande Estado-Maior nazi, que afirma que no aniversário de Hitler Goering contou aos convidados como tinha organizado o incêndio do Reichstag.

Veio a seguir o interrogatório de Gisevius, alto funcionário da Gestapo bem colocado para saber a verdade. Este dá mais precisões:

— Foi seleccionado um grupo de dez SA de confiança e Goering foi informado de todos os pormenores do projecto, de maneira que nessa noite ele nem pronunciou um discurso eleitoral mas à hora marcada estava no seu gabinete no Ministério do Interior em Berlim... Estava acordado, desde o princípio que este crime seria atirado para as costas dos comunistas.

Vem a saber-se, de passagem, do fim pouco glorioso de Roell, um dos executantes da provocação. Culpado de um crime de direito comum, foi excluído das SA e cortaram-lhe o prémio que devia receber por ter regado com o líquido inflamável os muros do Reichstag. Furioso, decidiu vingar-se endereçando uma declaração ao tribunal de Leipzig que estava a julgar o caso Dimitrov. Cometeu a imprudência de revelar as suas intenções a um investigador da polícia. Este mandou de imediato um relatório a Goering e no dia seguinte o incendiário já não fazia parte do número dos vivos.

Um outro indiscreto, o chefe dos bombeiros de Berlim, Walter Gemp, também não teve sorte. No decurso da investigação, teve a falta de tacto de descobrir e contar que na noite de 27 de Fevereiro; de 1933, por ordem de Goering, o Reichstag tinha sido deixado sem guarda e todos os empregados tinham partido às 20 horas. A Gestapo denunciou-o imediatamente a Goering que, em casos deste tipo, nunca estava com meias medidas. Foram imputadas ao chefe dos bombeiros «infracções ao regulamento de serviço». Foi atirado para uma prisão e não tardou a aparecer morto.

Mas recuemos à noite de 27 de Fevereiro de 1933. Goering, que se atrasara no Ministério do Interior, viu pelas janelas do seu gabinete o Reichstag em chamas.

— É o início da insurreição comunista! — gritou.

Mas que grande premonitório!

Diels, que era então chefe da Gestapo, recorda que ao lançar-lhe estas palavras Goering estava vermelho de excitação. Parecia ter perdido todo o controlo.

Martin Sommerfeld, agente de imprensa de Goering, recebe a ordem de fazer no local do incêndio uma comunicação oficial para os jornais. O texto comporta umas vinte linhas: descrição do incêndio, trabalho dos bombeiros, primeira investigação da polícia. Goering percorre-o com os olhos.

— Isto é uma merda! — rugiu. — É um relatório policial e não um comunicado político.

Sommerfeld salientava, entre outras coisas, que o volume do carburante detectado era avaliado em um hectolitro.

— Mas que bagatela! — indignou-se Goering. — Dez hectolitros, cem hectolitros!

Em grandes algarismos traça o número 100 a lápis vermelho numa folha de papel. Depois chama a secretária e dita-lhe um outro comunicado:

«Este incêndio premeditado é o mais monstruoso acto de terror do bolchevismo na Alemanha. Depois disto devia ser pegado fogo a todos os edifícios públicos, aos castelos, aos museus e aos outros edifícios de importância vital. O Reichminister Goering tomou as mais enérgicas medidas para pôr cobro a este terrível perigo».

Por «as mais enérgicas medidas» devia entender-se uma desenfreada campanha de terror, em vésperas de eleições, contra o partido comunista e as outras organizações democráticas que se opunham ao advento do fascismo.

Doze anos se passaram. Goering encontra-se num gabinete do Palácio da Justiça de Nuremberga. Um representante do Ministério Público, o Dr. Kempner, interroga-o.

Kempner. Como pôde o senhor dizer ao seu agente de imprensa, uma hora depois do início do incêndio, que eram os comunistas que tinham ateado o fogo, quando ainda não tinha sido feita qualquer investigação?

Goering. O agente de imprensa disse isso na altura?

Kempner. Sim, fez o relatório das suas palavras.

Goering. É possível; quando cheguei ao Reichstag, o Fuhrer e a sua comitiva já lá estavam. Nesse momento ainda não tinha bem a certeza, mas a opinião deles era a de que os comunistas tinham ateado o incêndio.

Kempner. Mas o senhor era, em certo sentido, a personagem oficial colocada mais alto... Não acha que era demasiado cedo para dizer que tinham sido os comunistas a atear o incêndio?

Goering. Sim, é possível; mas o Fuhrer assim o desejava.

É verdade que era esse o desejo do Fuhrer. Mas era-o também de Goering e Goebbels, autores e encenadores dessa monstruosa provocação.

No decorrer do processo de Nuremberga, o advogado Stahmer informou o seu cliente de que tinha sido encontrada uma testemunha importante, o único sobrevivente dos que tinham apagado o incêndio do Reichstag. Goering não deu indícios de ter ficado contente. Pelo contrário, perdeu a arrogância e pediu a Stahmer para ser circunspecto na escolha das testemunhas e de não se fiar demasiado nos seus depoimentos neste assunto.

— No fim de contas, se na verdade foram os SA quem pegou fogo ao Reichstag, isso não implica que eu tenha tido conhecimento de alguma coisa...

Isto era o que dizia o próprio Goering, doze anos depois do infame processo de Leipzig!

«A Noite das Facas Longas»

Ao incêndio do Reichstag sucedeu uma longa série de crimes atrozes dos nazis contra a liberdade e a dignidade do povo alemão e depois de outros povos da Europa. E um dos piores demónios deste sangrento drama foi Hermann Goering, cuja energia e talentos de organizador eram indiscutíveis.

Cria a Gestapo e utiliza-a ao máximo para ir reduzindo os seus adversários políticos. As torturas nas caves e as execuções sumárias tornam-se métodos usuais de luta contra a oposição. Pratica-se no país a reclusão dita «de protecção» os campos de concentração.

No dia a seguir ao incêndio do Reichstag, a 28 de Fevereiro de 1933, Goering intervém numa reunião do governo nazi para propor a lei de excepção contra os comunistas. A proposta foi aprovada. O governo Hitler arroga-se direitos legislativos. Suprime as liberdades individuais, de opinião, da imprensa, garantidas pela Constituição.

Os jornais comunistas são proibidos. O Reichstag transforma-se nu vulgar centro de cavaqueira, numa farsa nazi.

Ao mesmo tempo que assesta o grande golpe contra os comunistas, Goering não esquece os sociais-democratas. Este partido cujos líder de direita ajudaram Hitler e Goering a apossar-se do poder, é rejeitado. Goering tinha as suas razões para rir ao ler no Vorwarts de 3 de Janeiro de 1933 que a social-democracia recebia com «viva sati fação» a declaração do ministro Frick de que os nazis se manteriam «no terreno da legalidade». Pouco tempo depois explica ele próprio aos sociais-democratas que, sempre «nó terreno da legalidade», o seu partido é dissolvido. E doze anos mais tarde, no processo de Nuremberga, o réu n° 1 fará o seguinte depoimento:

— Alguns funcionários do PSDA eram mais radicais que outros. Os radicais eram igualmente vigiados. Ao passo que muitos antigos ministros e altos funcionários eram pura e simplesmente exonerados e recebiam uma pensão de reforma sem nunca serem incomodados.

Goering inspira-se constantemente em dois princípios: em política externa, a agressão (em primeiro lugar contra a URSS); em política interna, o esmagamento da democracia. E está persuadido de que o êxito destas duas tarefas gerais dependerá directamente dos êxitos da sua própria carreira. O poderoso aparelho policial fruto da sua criação é de extrema vigilância.

Goering sabe que Hitler tem entrevistas com o nacional-socialista Gregor Strasser. Este não faz parte do governo, mas sabe-se lá se o Fuhrer não quererá apostar nele na sua próxima formação governamental?

Goering fica ainda mais alarmado com as investidas de Ernst Roehm, chefe das SA. Estes numerosos destacamentos que se intitulam «braço poderoso do partido» provocavam dantes rixas nas cervejarias e eram utilizados nos combates de rua contra os adversários políticos. Em 1933 constituíam-na seiscentos mil salteadores. Depois do advento de Hitler o seu número cresceu para três milhões. Lojistas, pequenos empregados sem trabalho afluíam à organização. Esperavam com impaciência que o governo nazi melhorasse a sua condição. Mas o carácter demagógico da propaganda nazi não tardou a ficar à vista. Muitos SA perderam as ilusões quando começaram a mandá-los em massa para o trabalho obrigatório. Corriam rumores sobre a necessidade de uma «nova revolução». Roehm esforçava-se por abafar a fermentação dos espíritos, ao mesmo tempo que tentava explorá-la. Projectava transformar as SA em tropas regulares e colocá-las no âmbito da Reichswehr. Esperava assumir o comando das Forças Armadas alemãs e assim relegar Goering para segundo plano.

Mas Goering tomou a dianteira. Ninguém como ele sabia insinuar-se junto de Hitler e coarctá-lo do que lhe restava de bom senso. Passava-lhe dezenas de relatórios policiais onde era questão de «germes de uma conspiração chefiada por Roehm». Um desses relatórios assinala que o comandante das SA da Silésia disparou contra o retrato do Fuhrer prometendo fazer a mesma coisa ao modelo se este «traísse a revolução e os seus grupos de assalto». Ao mesmo tempo, Goering aproveita de uma outra circunstância: o descontentamento dos generais que se deparavam, além das tropas regulares, com grupos armados de três milhões de homens.

Deu-se perfeitamente conta que a partir do momento em que Hitler se aliara à grande burguesia e à Reichswehr, consentiria sem dificuldade em sacrificar os chefes das SA. As zaragatas nas cervejarias tinham passado à história. Doravante o Fuhrer dispõe de um apoio mais sólido que os seus grupos de assalto.

A finalidade é atingida. Hitler decide-se a liquidar a «horrível conspiração» das SA.

São distribuídos os principais papéis: o Fuhrer e Rosenberg irão a Munique onde se encontra Roehm, Goering «encarrega-se de Berlim».

Todos os seus tiros acertam em cheio, sem esquecer os que incendiaram o Reichstag (para quê deixar testemunhas incómodas?) Nessa noite são suprimidos Heines, Ernst e outros executantes da provocação de 27 de Fevereiro de 1933.

Enquanto Goering castiga os «conspiradores» em Berlim, Hitler abate o seu rival em Munique. Roehm é detido, levado para à prisão e executado pelos SS.

Todos os chefes das SA mortos na «noite das facas longas» mereciam ter sido condenados à morte por um tribunal. Mas ao organizar esta hecatombe Goering estava longe de pensar no justo castigo de criminosos.

A agitação entre as SA pressagiava uma crise nas relações entre o governo nazi, os monopolistas e os generais que mexiam os cordelinhos, por um lado, e as massas da pequena burguesia por outro. Esta crise devia ser liquidada ao mesmo tempo que Roehm. Por isso Hermann Goering se mostrou tão activo na «operação das despedidas». Achava ele que era indispensável eliminar o seu rival político e consolidar a aliança com os monopólios e a cúpula militarista, mesmo liquidando algumas centenas de amigos da véspera. Neste caso dava a mecha para o sebo.

Por que se zangaram os Advogados de Goering e Schacht!

O posto de comandante da Força Aérea não era o bastante para Goering. Tal como Roehm, ele ambicionava o de comandante supremo da Wehrmacht. Enquanto esperava, queria ver à frente das armas generais mais dóceis.

Intriguista até à medula, tomara Goering renovar o pessoal do ministério da Guerra e do Estado-Maior. Mas aí, claro, uma «noite das facas longas» não era indicada. No decorrer dos três anos que seguiram os generais deram a entender que não se podia pensar levar a cabo sem eles os programas nazis de política externa. Foi então que brilharam com um fulgor novo os talentos de provocador de Hermann Goering.

...De súbito o seu advogado, Dr. Stahmer, travou-se de razões com o Dr. Dix, advogado de Schacht. Foi um dos raros conflitos públicos no seio da Defesa.

Qual o motivo do conflito?

Na sala de audiência estava a ser interrogado Gisevius, um homem» de passado agitado. Alto funcionário da Gestapo, tinha conspirado contra Hitler desde antes da guerra e ainda mais activamente durante as hostilidades.

O interrogatório foi longo. Mas quando as coisas pareciam aproximar-se do seu termo, Gisevius pediu autorização para se afastar do assunto com a finalidade de dar a conhecer um incidente que se produzira na sala do foro. Mas acabava de pronunciar estas palavras e já o Dr. Stahmer subia à tribuna com uma invulgar prontidão, arredava sem maneiras o seu colega Dix do microfone e protestava violentamente.

Um grande silêncio se instalou na sala. Goering torcia-se nervosamente e dardejava sobre Schacht um olhar de ódio. Aquele ali nunca perdia a ocasião de lhe passar uma rasteira!

Entrementes a testemunha contava coisas que, no fundo, não tinham grande interesse para o tribunal. Antes da audiência Stahm tinha abordado Dix que falava com Gisevius na sala dos advogados dissera-lhe que Goering não se preocupava em saber se Gisevius seria para ele, ou não, uma testemunha de acusação. As preocupações dela eram outras: o ex-ministro da Guerra, Blomberg, acabava de falecer na prisão de Nuremberga e, por respeito a esse velho soldado, Goering quereria evitar que fosse divulgado um episódio muito desagradável do passado do defunto. Goering esperava que Schacht e o seu advogado não fossem utilizar com esse fim o depoimento de Gisevius. Senão…

O Dr. Dix precisa. Repete o que lhe disse Stahmer:

— Ouça, colega, Goering acha que Gisevius pode atacá-lo com bem entender. Mas se ele atacar Blomberg, que morreu, Goering desbobinará tudo o que sabe de Schacht, porque ele está ao corrente uma série de coisas que podem ser desagradáveis para Schacht...

Goering, bem entendido, estava-se nas tintas para a reputação de Blomberg. Tinha simplesmente medo de aparecer uma vez mais aos olhos do Tribunal e da História como um sujo provocador. É que cheirava mesmo mal, essa aventura do falecido marechal-de-campo, maquinada por Goering para fazer vagar a cadeira do ministro da Guerra.

Blomberg, resvalando para a idade crítica, contava casar com uma jovem vamp cuja graça era Erna Gruhn. Mas veio a saber no último momento que a mulher era pouco recomendável. Que fazer? O marechal-de-campo resolveu consultar Goering. Ora Goering desde há muito que mandava vigiar todos aqueles que queria abater. Sabia perfeitamente que Erna Gruhn estava registada em sete grandes cidades da Alemanha como mulher de vida fácil.

Quando Blomberg lhe foi perguntar se era conveniente desposar uma «senhora de baixa extracção», Goering fez o que pôde para dissipar as dúvidas do velho. Convencido dos «bons sentimentos» do Reichsmarschall, Blomberg visita-o uns dias depois para se queixar de que a dama do seu coração está a ser alvo das assiduidades do seu antigo amante. Goering de novo lhe estende um braço protector. Por ordem sua, o inoportuno Don Juan é mandado para sítio conveniente, admoestado, de mãos bem untadas, expulso da Alemanha.

Celebra-se o casamento de Blomberg em grande pompa. Com o concurso de Goering, naturalmente. Mas este não veio sozinho: teve a gentileza de convidar o Fuhrer para esta festa de família.

No dia seguinte ele «sabe de súbito a verdade» e informa disso o Fuhrer «com indignação». E arranja maneira de o escândalo ser propalado aos quatro ventos.

Blomberg foi de imediato exonerado.

Mas o curso dos acontecimentos toma um rumo imprevisto. Hitler quer nomear para o lugar de Blomberg o general Fritsche, que então comandava as Forças terrestres.

Esta candidatura não convinha a Goering. Fritsche, enérgico e independente, tinha assimilado bem a ideologia nacional-socialista. Venerava Hitler e escrevia-lhe em 1936, no dia do seu aniversário:

«Eu próprio e as Forças terrestres seguimos-vos com uma orgulhosa segurança e a fé sagrada no caminho em que abriu a marcha, em nome do futuro da Alemanha».

Em relação a Goering, o general comportava-se de modo diferente: sem o respeito que lhe era devido e com um cepticismo mal dissimulado. Por que toleraria o Reichsmarschall que um sujeito destes sucedesse a Blomberg.

E ei-lo que começa a urdir novas intrigas.

Na época a polícia tinha intensificado a luta contra os homossexuais. A Gestapo um belo dia recebeu então a declaração de um forçado que denunciava a detestável conduta de um tal senhor Frisch ou Fritsche (o forçado não se lembrava bem).

O homem é de imediato levado a Karinhall, uma propriedade que Goering possuía nos arredores de Berlim. Este interroga-o e ameaça-o de morte se ele não confirmar que se trata do general de corpo do exército Fritsche. Depois desta chantagem, a declaração é enviada a Hitler e o seu autor é conduzido à Chancelaria.

Seguidamente, diz Gisevius, é convocado Fritsche. O general indignado rejeita a incriminação. Na presença de Goering ele dá a Hitler a sua palavra de honra de que isso é falso. Então Hitler manda entrar o forçado.

— É ele! — afirma o homem apontando o general. Fritsche fica siderado. Só pede uma coisa: que se faça um inquérito sério. Hitler recusa e exige a sua demissão imediata.

Depois de ter esboçado este quadro bastante evocador, Gisevius acrescentou que a Gestapo tinha feito um inquérito sobre a declaração do forçado muito tempo antes da acareação com o general. O Fritsche em questão era capitão. Não obstante, Goering fez a história girar no sentido desejado e a 28 de Janeiro de 1938 mais um indesejável foi varrido do seu caminho.

Schacht estava encantado com este depoimento. O doutor Gilbert, ao entrar à noite na sua cela, foi recebido em altos gritos:

— Pois bem, que é que eu lhe dizia? Isto põe ponto final, sim ou não, à lenda de Goering? Estou mesmo contente! Depois de tantos anos, ver este criminoso que enredou e aterrorizou os alemães honestos, aparecer finalmente como o bandido que é! A máscara foi arrancada!...

Algumas semanas depois, foi do rosto de Schacht que a máscara foi, lenta mas seguramente, arrancada.

«A Noite de Cristal»

É a noite de 10 de Novembro de 1938. Não foi assim chamada por namorados que conservam a encantadora lembrança de uma atmosfera límpida ou do reflexo da lua no espelho das águas. Este nome tem uma origem completamente diferente: milhares de vitrinas, dezenas de milhões de metros quadrados de vidros preciosos, orgulho das vidrarias belgas, escaqueirados pelos vândalos nazis. Nessa noite foram saqueadas as lojas dos judeus em toda a Alemanha.

De manhã, as ruas comerciais estavam juncadas de vidros partidos. Seis meses de produção de empresas da Bélgica — o paciente trabalho de hábeis artesãos de um país inteiro, concretizado em lâminas esplêndidas de vidro — juncavam o chão, partidos em mil pedaços.

Não era uma estroinice de pândegos de grão na asa, como seríamos levados a pensar se víssemos cada caso em particular. Também não era a manifestação espontânea da cólera popular, em resposta ao assassínio do conselheiro da embaixada alemã em Paris pelo jovem judeu Grunspahn, como pretendia a propaganda mentirosa de Goebbels. A sinistra noite de Novembro, baptizada «noite de cristal», constituía um elemento da «teoria» racial elaborada em pormenor e metodicamente aplicada pelos fascistas. O fascismo, pela primeira vez na História da humanidade, ousou proclamar como tarefa política a exterminação de todo um povo. Uma vaga de pogroms inundou o país. Casas e sinagogas arderam, os bens dos judeus foram pilhados, foi selvaticamente destruído tudo o que não podia ser levado, foram ultrajadas e molestadas milhares de pessoas.

Ao som destas arruaças eram proclamadas as famosas «leis raciais de Nuremberga». A partir de então a perseguição dos judeus tomou na Alemanha um carácter oficial.

Que pensava disso o Reichsmarschall Goering?

A Rudenko, que lhe fizera a pergunta, respondeu ele, como já assinalei, que sempre tinha desaprovado a teoria racial. E nas suas conversas com os outros réus fazia teatro, elogiando os judeus, vendo neles qualidades que os alemães, dizia ele, não possuíam. Tendo sabido pelos jornais dos sangrentos incidentes entre judeus e colonizadores ingleses na Palestina, fez uma «confissão» surpreendente: se, por milagre, ele fosse libertado, teria «considerado como uma honra» juntar-se aos judeus para com eles lutar contra os ingleses.

Este pormenor, anedótico à primeira vista, caracteriza bem o político sem princípios e o refinado aventureiro. Mas arrancando-lhe a máscara farisaica com que se disfarçava em Nuremberga para tentar esconder o seu verdadeiro rosto, ver-se-á que ele sabia perfeitamente por que era necessário, a partir da subida dos nazis ao poder, cultivar o anti-semitismo.

Cínico até à medula dos ossos, esforçava-se por explicar ele próprio aos seus «confrades» do processo de Nuremberga que a política anti-semita, o anti-semitismo nada tinham a ver com as pretensas particularidades nacionais ou raciais dos judeus. Assim, o anti-semitismo estava muito espalhado no Tirol onde em muitas aldeolas nunca na vida tinha sido visto um judeu.

Neste capítulo nada a replicar, mesmo a Goering. Ao elaborarem a teoria racial, nomeadamente a política anti-semita, os bonzos nazis agiam nada menos que por sentimentalismo. Batoteiros políticos inveterados, eles compreendiam bem, tinham mesmo a certeza que num país com a economia desorganizada era preciso encontrar uma saída, um bode expiatório para dar livre curso ao crescente descontentamento do povo.

Entre os velhos truques utilizados pelos governos falidos para desviarem a atenção das massas das suas dificuldades políticas ou económicas, o anti-semitismo tem sido desde sempre um poderoso trunfo. Os nazis, incapazes de darem ao povo alemão um programa económico são, decidiram fazer o seu jogo apostando forte numa carta que já dera as suas provas. Os judeus eram acusados de todos os males e o anti-semitismo era proclamado o melhor meio de resolver as dificuldades, panaceia universal para o presente e para o futuro da Alemanha.

Depois tudo se desenrolou segundo leis puramente psicológicas. Os autores dos primeiros pogroms cada vez tomavam mais gosto à pilhagem impune. Os torcionários cada vez odiavam mais as suas vítimas. E cada qual tentava convencer-se a si próprio que o seu ódio era justificado, que tinha razão para lhe dar livre curso.

Hermann Goering ouviu com frequência Rosenberg e Goebbels (bem como Streicher, o principal «teórico» das medidas anti-semíticas) declararem que ao perseguir os judeus era absolutamente necessário dizer que eles eram odiosos. Goering era suficientemente entendido em psicologia para perceber isto. Mais, ele dava-se conta de que se um homem culpado de ter violentado ou mesmo assassinado judeus inocentes não consegue convencer-se da justiça dos seus actos, ainda mais se exasperará e voltará a sua raiva contra pessoas indefesas.

Estava bem colocado para saber que não era o ódio do povo alemão pelos judeus a causa dos pogroms, mas, pelo contrário, os pogroms organizados pelos nazis e pela sua propaganda desenfreada é que tinham levado muitos alemães a detestarem os judeus. Ele e os seus cúmplices esforçaram-se durante anos por insuflar nos alemães o ódio racial, por despertar em certos meios da sociedade os mais baixos instintos. E em 1938, Goering, Goebbels, Streicher, Rosenberg puderam constatar com satisfação que a coisa «já estava no papo». No interior do país, de momento. E só em relação aos judeus. Mas amanhã poder-se-ia dirigir o racismo contra os russos e os polacos, os ucranianos e os checos, os franceses e os sérvios.

Perante o Tribunal, Goering e o seu advogado tentaram no entanto fazer crer que a «noite de cristal» tinha indignado o marechal do Reich. Que absurdo!

O mais surpreendente é que o procurador acreditou nisso. Fez mesmo questão de corroborar esta versão por meio de documentos. Não foi debalde que os investigadores espiolharam os arquivos do Ministério do Ar, chefiado por Goering. E encontraram...a acta da reunião por ele presidida logo após a «noite de cristal».

A composição da assistência parecia mais para o bizarro. Que Heydrich fizesse parte dela era normal visto a Gestapo ser um dos organizadores dos pogroms. Quanto a Frick, esse era ministro do Interior, veterano do nazismo e executor de numerosas medidas racistas. No que a Goebbels diz respeito, nem vale a pena falar: os pogroms eram do seu pelouro. Mas que estavam lá a fazer Funk e o respeitável Schwerin von Krosigk, ministro das Finanças?

O próprio Goebbels se interrogaria do porquê de ele e o chefe da Gestapo, Heydrich, terem por vizinho um Krosigk. Enquanto este não tinha ainda o hábito de conferenciar com «colegas» como Heydrich.

O espanto geral só poderia ser dissipado por quem tinha convocado toda esta gente: Hermann Goering. Que não tardou a fazê-lo.

Se Goering é, à primeira vista, um demagogo, um fala-barato e um fanfarrão, isso não passa de uma capa desta odiosa personagem. Na verdade ele é menos um tagarela que um homem de acção que pondera bem os seus golpes mesmo quando parece estar a construir castelos na areia.

Os altos participantes na reunião puderam convencer-se disso uma vez mais.

O seu discurso começa por estes termos categóricos:

— Que a questão judia seja...resolvida.

O que ainda não é o bastante para espantar a assistência. Mas o que segue é imprevisto: Goering declara que em relação aos pogroms não partilha do entusiasmo de Goebbels ou Streicher.

— Estou farto — grita — destas demonstrações que não fazem mal nenhum aos judeus, mas sim à economia alemã...

Imagine-se o ar com que ficaram Heydrich e Frick, Goebbels e Funk. Desde quando os pogroms eram proveitosos para os judeus?

Goering explica-se. Que os senhores ali presentes não tenham a candura de supor que ele lamenta o assassínio de algumas dezenas de judeus. Mas o zelo dos saqueadores levou a que se tivessem feito em fanicos dezenas de milhares de vitrinas.

«E depois? — parecem dizer os olhares perplexos de Heydrich e de Goebbels. — Foi para nos dizer isto que Goering nos reuniu?»

Mas Goering continua, fazendo-lhes ver que as famosas vitrinas são mercadorias importadas pagas em divisas.

E de novo os outros levantam para ele olhos atónitos: de qualquer modo essas divisas não foram pagas por Schwerin von Krosigk! Aí Goering informa-os que os judeus puseram as suas lojas no seguro e que serão reembolsados na totalidade por companhias de seguros «arianas».

— Seria uma loucura — exclamava ele sobre-excitado — esvaziar e incendiar um armazém judeu, porque isso prejudicaria a companhia de seguros, e de cobrir as perdas e danos...

Goering está indignado por a chusma ter pilhado 1 700 000 marcos de valores só no armazém Margraf.

Novas perguntas, mudas, nos rostos dos assistentes: «Que fazer?»

Goering não os faz esperar pela resposta. É preciso acabar com o trabalho biscateiro. Quanto a pilhar, pois pilhemos! Enriqueçamos o Tesouro e enchamos os bolsos. E demos à pilhagem uma forma decente. Para que serve partir as vitrinas? Se Hermann Goering lutou ao lado de Hitler para se apossar do poder foi com a finalidade de em seguida fazer uso dele de todas as maneiras. Ele propõe, portanto, que se «organizem» os bens judeus. O que quer isso dizer?

— Os judeus — explica ele aos seus companheiros — ficam doravante eliminados da economia e cedem os seus lugares ao Estado. Receberão uma indemnização que será lançada nos livros de crédito e viverão dos juros que lhes forem pagos…

Não duvido que nesse instante o ministro da Economia Funk tenha trocado um olhar de entendimento com o ministro das Finanças Krosigk, apreciando esta maneira tão simples quanto genial de enriquecer o Tesouro.

Mas acontece que muitos proprietários de lojas asseguraram as suas mercadorias e material em companhias estrangeiras. Goebbels está furioso: então eles podem, apesar de tudo, ser pagos pelos prejuízos? Goering sossega-o, bem como aos outros membros da reunião:

— Os judeus terão o reembolso das suas companhias de seguros, mas esses pagamentos serão confiscados.

Desata a rir e desbobina-lhes outra surpresa:

— Peço, cavalheiros, que sobre a totalidade dos judeus alemães seja lançada uma contribuição de mil milhões de marcos como penalidade pelos seus abomináveis crimes...

Os «cavalheiros» naturalmente o aprovaram e Goering lançou-se de imediato na concretização dos seus projectos. Era a pilhagem em grande, mas pilhagem «legítima», baseada num «decreto». E Goering foi o primeiro a tirar proveito da «arianização» dos bens judeus.

Só um erro crasso ele cometeu: não ter mandado embora os estenógrafos da sala onde exibira os seus belos dotes de saqueador. E esse erro custou-lhe caro em Nuremberga.

A acta estenografada caiu nas mãos do procurador que teve a amabilidade de a mostrar a Goering.

O ex-marechal do Reich range os dentes e nunca mais acaba de ler. Procura em vão uma escapatória. Por fim nada mais pode fazer senão reconhecer a autenticidade do documento. Mas abstém-se de o comentar.

O «Pacificador»

No dia 10 de Março de 1946 os guardas introduziram na sala de audiências, um quinquagenário entroncado, envergando uniforme sem dragonas. Era o marechal-de-campo Erhard Milch, braço direito de Goering.

A Defesa estava à espera que ele fosse revelar ao Tribunal as qualidades de «pacificador» do réu. A escolha da testemunha parecia ter sido feliz. Milch era amigo de Goering desde a Primeira Guerra Mundial. Goering tomou-o ao seu serviço e defendeu-o energicamente quando as SS se começaram a interessar pelas suas origens. Soube-se que um dos seus avós era judeu e foi exigida a sua imediata expulsão do Estado-Maior da Força Aérea. Mas Goering declarou alto e bom som:

— É a mim que compete decidir se os oficiais do meu estado-maior são judeus ou não...

Por isso Milch fala no Tribunal do pacifismo de Goering. Fazem-lhe a objecção da agressão contra a URSS.

— Era uma guerra de protecção — replica Miilch. — Como de um momento para o outro o Exército Vermelho ia atacar a Alemanha, Hitler teve de se antecipar. Mas mesmo essa guerra não era desejada por Goering.

O procurador soviético Rudenko observa ironicamente que a guerra contra um país que se prepara para nos atacar é uma guerra defensiva.

Goering era contra semelhante guerra — afirma Milch.

— Ele era também contra uma guerra defensiva? — especifica o procurador.

— Pessoalmente ele opunha-se a toda e qualquer guerra — insiste Milch sem pestanejar.

A reacção da sala foi uma homérica gargalhada, enquanto Goering fulminava com os olhos esse amigo demasiado devotado.

Hermann Goering sabia melhor que ninguém que papel desempenhara na preparação e desencadeamento do programa de agressão hitleriano. E teria atingido o cúmulo da indignação se alguém tivesse tido a coragem de afirmar, digamos, no Verão de 1941, o que Milch deitou cá para fora em Nuremberga. Estava fora de dúvida que ele aceitara de antemão determinada passagem do veredicto do Tribunal Internacional, por mais ameaçadora que fosse para ele:

«Não há lugar para duvidar que, imediatamente depois de Hitler, Goering foi o verdadeiro promotor das guerras de agressão».

...Abril de 1936. Goering é encarregado de assegurar a coordenação das matérias-primas e o controlo das despesas de divisas estrangeiras. Esse cargo permite-lhe resolver mais rapidamente o problema da mobilização.

Ainda em 1936 e na própria Nuremberga, o congresso do partido nazi adopta um plano de quatro anos com vista à preparação económica da Alemanha para agressão armada contra outros países. Goering, que goza de preponderância na preparação deste programa, formula assim a sua própria tarefa:

«Pôr em quatro anos, toda a economia do país em pé de guerra».

Intervém, em Julho, numa conferência de grandes industriais alemães da aviação, para os exortar a produzirem mais. Conhecedor dos seus desígnios secretos, ele avança um argumento de peso:

—Se a Alemanha ganhar a guerra será a maior potência do mundo, dominará o mercado mundial e tornar-se-á uma nação rica. Para se atingir esta finalidade é preciso aceitar os riscos.

Ele próprio não hesitava em atirar para os pratos da balança os destinos de milhões de alemães e de outros povos da Europa, ao desempenhar com frequência o principal papel na política externa da Alemanha nazi. O pessoal diplomático do Terceiro Reich não era precisamente o que ele gostava que fosse. Neurath, ministro dos Negócios Estrangeiros, desagradava-lhe pelo seu conservatismo, pelas suas lentidões, a sua aparente indecisão. Hitler substituiu-o por Ribbentrop. Goering considerou este acto um grave erro. Achava que Ribbentrop era estúpido, absolutamente inadaptado à diplomacia.

Na Alemanha nazi as funções diplomáticas foram exercidas por Ribbentrop e Goering, por Schacht e Rosenberg, por Raeder e por outros. Mas Goering tinha o seu «estilo» muito pessoal. À parte do carácter aventureiro próprio de toda a política externa hitleriana, o seu «estilo» caracterizava-se por uma extrema impudência e um acentuado cinismo.

...Fevereiro-Março de 1938. Anexação da Áustria.

Esta operação tem como actores, nas suas sucessivas etapas, von Papen, embaixador da Alemanha em Viena, Keitel e Jodl, cuja mera presença nas conversações já significa a vontade de a Wehrmacht levar a cabo a Anschluss, Ribbentrop que garantiu um ambiente favorável nas margens do Tamisa, os nacionais-socialistas austríacos com Seyss-Inquart à cabeça. Mas a personagem principal é sem sombra de dúvida Hermann Goering.

Dir-se-ia que nunca tantos telefonemas fez como nesses «dias decisivos». Tinha tomado nas suas próprias mãos a direcção efectiva da Anschluss e era quase exclusivamente para esse fim que utilizava o telefone.

Anunciaram-lhe do outro lado do fio que, sob a pressão das massas, o chanceler Schuschnigg instituíra um plebiscito que decidiria da independência da Áustria. Goering vê nisso um perigo sério e toma as consequentes medidas. Schuschnigg capitula: a 11 de Março, às duas horas da tarde, o plebiscito é anulado.

Uma hora e cinco minutos depois, Goering manda chamar Seyss-Inquart, chefe dos nazis austríacos, e diz-lhe:

— O nosso governo tem desconfianças em relação a Schuschnigg...

De seguida Goering impõe ao presidente da Áustria, sob a forma de ultimato, que nomeie Seyss-Inquart chanceler.

As actas estenografadas oficiais destes encontros foram apresentadas em Nuremberga. Fora o próprio Reichsmarschall quem mandara estabelecer escutas nas linhas telefónicas. E agora isso volta-se contra ele. Empalidece de raiva ao ouvir, palavra por palavra, as suas antigas directrizes.

À notícia de que o presidente da Áustria Miklas faz finca-pé, Goering, furioso, berra aos seus agentes pelo bocal do telefone:

— Pois bem! Que Seyss-Inquart o ponha no olho da rua...

Pela mesma altura dita ele ao telefone a composição do novo governo austríaco, sem esquecer de nele incluir parentes seus. E à cautela vai lembrando que todo o austríaco que oferecesse resistência seria levado a tribunal pelas tropas de invasão.

Já tarde na noite de 11 de Março, o telefone de Goering retine de novo. Keppler, seu principal agente na Áustria, informa-o com satisfação:

— Somos nós quem representa o governo!

— Sim, são vocês — confirma Goering. — Ouça bem. Que Seyss-Inquart me envie um telegrama. Vou ditar. Escreva: «O governo provisório austríaco que, após a demissão do governo Schuschnigg, considera seu dever estabelecer a paz e a ordem no país, pede instantemente ao governo alemão para o apoiar na sua tarefa. Com essa finalidade solicita ao governo alemão que envie tropas alemãs logo que possível».

E no dia seguinte, «a pedido do governo austríaco», as tropas alemãs penetram na Áustria.

Estes acontecimentos alarmaram vivamente o embaixador da Checoslováquia em Berlim. Goering encontrou-o numa recepção e garantiu-lhe com o seu mais amável sorriso que a Checoslováquia não tinha razões para se inquietar, que a Alemanha não tinha más intenções a seu respeito e que «nem um só soldado alemão se aproximaria da fronteira checa». E para se tornar mais convincente acrescentou:

— Dou-lhe a minha palavra de honra!

Entrementes, o comandante da Força Aérea preparava o ataque contra a Checoslováquia.

Alguns anos depois, procuradores e juízes do Tribunal Internacional lembraram a Goering a sua deslealdade. Mas ele, de modo nenhum desorientado, indignou-se: «Que falta de compreensão dos elementos da política externa!» Sim, ele tinha «dado a sua palavra». E depois?

Quando falava na sua cela com o doutor Gilbert, ia filosofando:

— Claro, pode-se falar de palavra de honra em negócios, quando se prometeu entregar mercadorias. Mas quando se trata dos interesses da nação a questão da moralidade não se põe!

Goering responde com um riso cínico a Gilbert que falou do pacto de não agressão germano-checoslovaco assinado em 1933. Só uma criança não compreenderia que esse pacto e as garantias pessoais de Goering só tinham servido para impedir que a Checoslováquia se mobilizasse. Goering sabia muito bem que o plano de guerra contra as Checoslováquia existia na Alemanha desde 24 de Junho de 1937.

O tenente-coronel Schmundt, ajudante de campo de Hitler, tinha tido o cuidado de reunir num dossier todos os documentos relativos a este plano. Esse documento, escondido numa cave perto de Berchtesgaden, caiu nas mãos do Tribunal Internacional. E Goering olha agora com olhos turvos o Ministério Público que está a compulsá-lo para provar as provocações contra o povo checoslovaco por parte do réu.

Goering, do mesmo modo que os outros cabecilhas nazis, contava sobretudo com a quinta coluna: os nazis da Checoslováquia. De tempos a tempos, eles eram passados em revista na Alemanha sob a égide de festivais de canto ou de competições de ginástica, sendo-lhes simultaneamente ensinados o manejo das armas, a sabotagem e a arte das provocações.

Goering gostava dos «incidentes». Sabia que era preciso um para a «operação checoslovaca». O que ele mandou fabricar era simples mas muito eficaz: matar o embaixador alemão em Praga, imputar o assassínio aos checos e bombardear Praga pela aviação à guisa de «represálias».

Assinatura do Acordo de Munique
1938. Munique. Com gesto imperioso Ribbentrop exige que Daladier
assine o vergonhoso acordo
(clique na foto para maior resolução)

Mas o embaixador Eisenlohr teve sorte: um outro «incidente» se produziu. Aconteceu em Munique com a participação de Chamberlain e de Daladier, que tranquilamente entregaram a Checoslováquia à Alemanha hitleriana, sob o pretexto de salvar a paz na Europa. Na verdade, eles apenas salvaram, sem o saberem, Eisenlohr, e puseram o mundo às portas de uma grande guerra.

Vinte anos depois, o jornal inglês Sunday Express, achou seu dever relevar o «mérito» de Chamberlain. Saiu com um artigo com este título singular: Devemos continuar a ter vergonha de Munique? E a resposta era:

«Chamberlain entrará na História como um mártir que expôs a cabeça às farpas dos insultos e do desprezo para que os povos civilizados tivessem tempo de adquirir espírito combativo e coragem».

Quanto a Goering, a impressão com que ficou dos seus colegas, inglês e francês de Munique era bem outra.

Por uma noite de Dezembro de 1945, estando o Tribunal Internacional em férias de Natal, ele conversou longamente a este propósito com o doutor Gilbert.

Ofereceu à visita a única cadeira da sua cela e sentou-se ele na tarimba, pondo-se a meditar em voz alta nas causas da derrota da Alemanha. O principal erro de Hitler, segundo ele, foi o de não ter assinado em 1940 a paz com a Inglaterra e a França para lançar a totalidade das suas forças contra a URSS. O acordo de Munique permitia esperar o êxito dessa nova transacção. Goering sabia melhor que ninguém o que valia o enganoso reclame da «coragem» de Chamberlain e de Daladier em Munique...

— O caso estava, positivamente, resolvido de antemão. Nem Chamberlain nem Daladier pensavam por nada deste mundo sacrificar ou arriscar o mínimo que fosse para salvar a Checoslováquia. Para mim a coisa era clara como água. A sorte da Checoslováquia foi na verdade decidida em três horas. Depois eles discutiram ainda durante mais três horas sobre a palavra «garantia».

Goering tinha sobretudo retido a atitude de Daladier:

— Ele estava sentado assim. — Goering estendeu as pernas, refastelou-se na tarimba e inclinou a cabeça com uma expressão de mortal aborrecimento. — O que fazia era só abanar de vez em quando a cabeça em sinal de aprovação. Nunca punha a mínima objecção a nada! Eu estava espantado com a facilidade com que Hitler tinha levado a sua avante... Quando ele sugeriu que certas fábricas de armamentos estacionadas perto da fronteira dos Sudetas seriam transladadas para o território dos Sudetas quando tomássemos posse dele, eu estava à espera de uma explosão. Mas não, ninguém tugiu nem mugiu. Obtivemos tudo o que queríamos. Assim! — Goering estalou os dedos. — Eles não insistiram em consultar os checos, nem que fosse por pura formalidade. No fim, o representante da França na Checoslováquia disse: «Bem, só me resta levar a sentença ao condenado». E foi tudo... A questão da garantia foi resolvida deixando a Hitler o cuidado de garantir o resto da Checoslováquia. Vejamos, eles sabiam perfeitamente o que isso significava...

Goering em Munique
1938. Goering em Munique
(clique na foto para maior resolução)

A vergonhosa conferência de Munique terminou a 30 de Setembro de 1938 às duas e trinta da manhã. Chamberlain e Daladier subiram para os carros que os levariam ao hotel. Goering conta que Hitler os seguiu com os olhos dizendo enojado:

— Meu deus, que nulidades!

Mas a coisa estava no saco: a região dos Sudetas fora anexada à Alemanha. Tinha começado a reacção em cadeia visando a supressão pura e simples da Checoslováquia.

O Ministério Público de Nuremberga, ao espiolhar os arquivos dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, encontrou neles um curioso documento: o texto de um encontro de Goering com os separatistas eslovacos Durcanski e Mach. O Reichsmarschall, de súbito apaixonado pelos eslovacos, dá uma vez mais a sua «palavra de honra». Que lhes promete ele? Que a Alemanha os ajudará a obter a «independência». E os separatistas eslovacos, enternecidos até às lágrimas, comprometem-se em contrapartida a resolver o «problema judeu como o fizeram os alemães» e a proibir imediatamente o partido comunista. Goering é previdente. No decorrer da entrevista ele nota negligentemente que as bases aéreas da Eslováquia serão de grande importância para a Força Aérea alemã, em caso de guerra «contra o Leste».

Veio de seguida a etapa decisiva. A 14 de Março de 1939, o presidente da Checoslováquia Hacha e o ministro dos Negócios Estrangeiros Chvalkovski, prontos para todas as concessões, são convocados a Berlim onde lhes é anunciado que o «exército alemão passou à ofensiva». Hitler acrescenta que «quase tem vergonha de o confessar mas que existe uma divisão alemã para cada batalhão checo». Goering é ainda mais ameaçador: se a capitulação se arrastar, a aviação da Alemanha destruirá Praga em duas horas.

Hacha, capitulacionista, deixa-se facilmente convencer. Às 4 h e 30 a Checoslováquia deixou de existir.

Depois é a vez da Polónia. A 15 de Abril de 1939, no decorrer de uma entrevista com Mussolini e Ciano, diz-lhes Goering com satisfação:

— A Alemanha pode atacar agora este país em duas frentes separadas por uma distância que os nossos aviões são capazes de cobrir em 25 minutos.

No primeiro de Setembro desse mesmo ano, as tropas fascistas alemãs invadem a terra mártir polaca. É o início da Segunda Guerra Mundial. À Polónia seguem-se a Noruega, a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo, a França, a Grécia, a Jugoslávia. E a 22 de Junho de 1941 os agressores nazis atacam à traição a URSS.

Gostaria de me deter sobre dois episódios históricos que a reacção utilizou no processo de Nuremberga e na historiografia alemã ocidental do após-guerra para reabilitar Goering. Este teria tentado em 1939 impedir a guerra com a Polónia e teria sido em 1941 o único membro do governo alemão a desaprovar a agressão contra a URSS.

Para demonstrar o «pacifismo» de Goering, o seu advogado Dr. Stahmer pediu que Birger Dahlerus fosse chamado à barra na qualidade de testemunha.

Birger Dahlerus, capitalista sueco e parente próximo da mulher de Goering, mantinha relações continuadas com os meios influentes de Londres. Relações, que Goering tentou explorar para tomar posse da Polónia seguindo a receita de Munique.

Em Julho-Agosto de 1939, Dahlerus faz de medianeiro entre Berlim e Londres. A 7 de Agosto prepara um encontro de Goering com grandes industriais ingleses. No desfecho de prolongada entrevista «chegou-se à questão de Munique e aos acontecimentos que se lhe seguiram», declara Dahlerus em Nuremberga. Foi encarada a reunião de uma outra conferência de estadistas da Grã-Bretanha, França, Itália e Alemanha.

Depois do encontro de Goering com os «homens de negócios ingleses», Dahlerus multiplica as suas viagens entre Berlim e Londres e vice-versa. Nessas intermináveis negociatas, sem dúvida que muito pouco se trata da Polónia. Aos olhos dos negociadores não paira sequer a sombra de uma dúvida quanto ao facto de esse país vir a ser vítima da agressão nazi. O que os preocupa é outra coisa: a Inglaterra quer ter: a garantia de que as tropas alemãs, uma vez conquistada a Polónia, não se deterão às portas da União Soviética.

É aí que surgem os insuperáveis obstáculos: por um lado os exagerados apetites da Alemanha hitleriana em relação tanto ao Ocidente como ao Leste; por outro as hesitações da Inglaterra que tivera já a prova da deslealdade dos nazis, sempre prontos para enganarem as potências ocidentais, a despeito dos acordos. Desta vez a «diplomacia secreta» de Goering não levou a lado nenhum.

Ele próprio não estava convencido do êxito. E por isso não suspendeu nem abrandou por um só momento os preparativos para a invasão da Polónia.

A 22 de Agosto de 1939 Hitler convoca todos os comandantes. Goering toma lugar ao lado do Fuhrer. São ultimados os derradeiros pormenores do ataque. Hitler conclui nestes termos:

— Avante contra o inimigo! Festejaremos a nossa vitória em Varsóvia!

Um participante na reunião anotou no seu canhenho de recordações:

«Este discurso é recebido com entusiasmo. Goering salta por cima da mesa. Dança como um selvagem. Muito poucos são os que ficam calados».

A partir do primeiro dia da intrusão dos conquistadores fascistas na Polónia, os seus bombardeiros lançam-se num bárbaro ataque sobre Varsóvia. A cidade está em chamas. Bairros inteiros desmoronam-se, soterrando vítimas inocentes.

A guerra-relâmpago repete-se em todas as campanhas de 1940: Noruega, Bélgica, Holanda, França, Jugoslávia, Grécia. Goering manda bombardear Roterdão, Belgrado e outras cidades.

Por fim, a 22 de Junho de 1941, a Alemanha hitleriana assalta a URSS.

O Tribunal Internacional examina da maneira mais escrupulosa as provas de culpa de todos os réus que se envolveram neste crime. E de novo o Dr. Stahmer ergue a sua voz:

Goering não quis esta guerra. Seria injusto não reconhecer o seu amor pela paz...

O advogado dirige-se ao seu constituinte:

... Que pensava, nessa época, de um ataque contra a Rússia?

E Goering responde:

— Primeiro fiquei muito surpreendido e pedi ao Fuhrer para me conceder algumas horas de reflexão antes de dar a minha opinião. Fui apanhado desprevenido. À noite disse ao Fuhrer que lhe rogava instantemente que não desencadeasse nesse momento uma guerra contra a Rússia.

Que acontecera a Goering? Tê-lo-ia apavorado um olhar retrospectivo sobre os seus múltiplos crimes de calejado nazi? ... De modo nenhum. O nazi n° 2 não acalentava sonho mais querido que o de esmagar o primeiro Estado dos Sovietes. Não obstante, quando o projecto de atacar a URSS passou do terreno da propaganda para o da realidade, talvez Goering tivesse a suficiente lucidez de encarar as diversas variantes do desfecho de semelhante guerra. Ele tinha uma bela situação, riquezas fabulosas, glória, em suma, tudo o que a sua alma de arrivista podia desejar. E se um belo dia tudo isso se viesse a desmoronar?

Goering tinha dúvidas.

A Defesa esforça-se por apresentá-las como uma firme oposição à agressão contra a URSS. Esforços baldados! O Ministério Público está na posse das provas objectivas da sua culpa. Ele próprio se trai ao declarar que formulou as suas dúvidas a Hitler «não por considerações de Direito Internacional ou outras do mesmo género, mas unicamente por razões políticas e militares».

Pretende ter dito a Hitler:

— Lutamos actualmente contra uma das mais fortes potências do mundo, o Império Britânico... Estou absolutamente convencido de que, cedo ou tarde, a segunda grande potência mundial, os Estados Unidos, se juntará ao nosso adversário... Estaremos então em luta contra duas grandes potências mundiais. E em caso de ruptura com a Rússia, a terceira grande potência mundial entraria em luta contra a Alemanha. Estaríamos sozinhos contra o mundo inteiro.

Então? Teria Goering, com estes argumentos, a intenção de dissuadir Hitler de atacar a URSS? Claro que não.

Eis o que a este propósito ele próprio diz:

— Eram essas as minhas razões para adiar a ofensiva.

Os arquivos governamentais alemães não continham um único documento que confirmasse o seu depoimento. Mas como nenhum dos réus ou testemunhas os desmentiu, o Tribunal teve bons motivos para anotar no seu veredicto de sentença que mesmo que Goering

«se tenha oposto aos planos de Hitler contra... a URSS, como ele pretende, é claro que o fez unicamente por considerações estratégicas, e quando Hitler tomou uma decisão ele seguiu-o sem hesitação».

Goering não teria sido Goering, o mais desavergonhado arrivista que imaginar se possa, se tivesse agido de outro modo. Estava-se razoavelmente marimbando para o pacifismo e para o pacto de não- agressão germano-soviético. Só o medo — aliás rapidamente dissipado — de que a sorte o abandonasse o tinha incitado à prudência.

Perguntar-me-ão por que volto a falar disto. Unicamente para salientar uma vez mais a falsidade, a hipocrisia de Hermann Goering? Não.

Nem a Defesa nem ele próprio, absorvidos na exposição da sua versão, notaram a perturbação de Keitel, de Jodl, de Ribbentrop, como não notaram o sorriso irónico do procurador-geral soviético Rudenko. É que a táctica de todos os réus consistia sobretudo em negar a agressão contra a URSS. Não teria havido agressão mas apenas uma guerra defensiva. Os réus e respectivos advogados tinham-se desunhado a demonstrar que a União Soviética se preparava para atacar a Alemanha e que Hitler, ao desencadear a ofensiva a 22 de Junho, mais não fizera do que «prevenir o ataque russo».

E eis que Goering lhes faz esta surpresa! A sua atitude contribuiu grandemente para desmentir as suas calúnias. Na verdade, se a URSS se preparava para atacar a Alemanha e a agressão contra esta estava iminente, como podia Goering em «circunstâncias tão críticas» recomendar ao Fuhrer que esperasse?

O leitor está já ao corrente de que durante o discurso de Rudenko, Goering tinha ostensivamente retirado os auscultadores, dando assim a entender que o início do requisitório soviético não o interessava. E informou os seus vizinhos de que desfrutava de antemão do prazer de terçar armas com Rudenko. Diga-se o que se disser, os russos tinham as suas razões para concentrarem sobre ele os seus ataques, mais do que sobre qualquer outro. Haveria algum réu que fosse mais anticomunista do que Goering? O Dr. Gilbert, que assistia à conversa entre eles, observou:

— Creio que Rosenberg lhe disputaria esse título.

Goering não era dessa opinião. Rosenberg? Um ideólogo, um filósofo, tudo o que se quiser, mas não um homem de acção como toda a vida foi Goering!- E é mesmo porque a sua hostilidade para com o comunismo se exprimia em actos e não só em palavras que os russos nunca lhe perdoariam. Recordou as perseguições às quais tinha submetido os comunistas logo após ter acedido ao poder.

— Como chefe da Polícia prussiana prendi milhares. Foi em primeiro lugar para eles que criei os campos de concentração.

Fazendo chacota como um garoto que tinha posto um prego na cadeira do professor, espraia-se sobre as suas «proezas» durante a guerra de Espanha. Os patriotas espanhóis vertiam o seu sangue. Os melhores filhos dos outros povos — russos, franceses, polacos, húngaros, americanos, alemães — batiam-se a seu lado. Tinham falta de armas. E ele, Goering, fazia os possíveis por impedir que os amigos da Espanha republicana lhas fornecessem.

— Eles tinham pago a um país neutro um carregamento de armas destinado à Espanha vermelha, mas eu tinha homens meus na equipagem que carregava o navio e enviei um carregamento de tijolos com apenas uma pequena camada de munições em cima. Ha-ha! Essa nunca mais eles me vão perdoar!

Com efeito, os povos da Europa tinham muitas contas a ajustar com Goering. Mas as do povo soviético eram as mais pesadas. Goering passou bastantes horas desagradáveis quando Rudenko o interrogou. Os tijolos entregues à Espanha transformaram-se em terríveis boomerangs. Rudenko arrancou com mão vigorosa a máscara de estadista que Goering ainda arvorava. Pôs a nu os mais odiosos aspectos das suas actividades e do seu carácter.

Depois de ter tratado das circunstâncias dos preparativos da agressão contra a URSS, Rudenko declara a sua intenção de analisar af finalidades dessa agressão. Goering está despreocupado, visto que era «contra» o ataque à União Soviética. Mas o procurador perguntar -lhe:

— Reconhece que as finalidades da guerra contra a URSS eram a conquista dos territórios soviéticos até aos Urais, a anexação ao Reich das regiões dos Países Bálticos, da Crimeia, do Cáucaso, das regiões do Volga, a anexação pura e simples da Ucrânia, da Bielorrússia e de outras regiões da União Soviética? Reconhece isso?

— Claro que não — responde Goering com segurança.

Mas de súbito o seu rosto altera-se: Rudenko anuncia que vai ser apresentada a acta da reunião de 16 de Julho de 1941 realizada no Q. G. de Hitler. Tinha sido redigida por Martin Bormann. Rudenko pergunta a Goering se tem dúvidas a propósito desse documento.

De olhos a flamejar de ódio, Goering murmura entre dentes que o documento é autêntico.

Hitler, Goering, Rosenberg, Keitel, Bormann e o ministro Lammers eram os presentes nessa reunião. Foi aí debatida, para começar, a questão de saber quem tiraria vantagens da guerra contra a URSS. Um jornal de Vichy tinha declarado que uma guerra contra a União Soviética seria uma guerra de toda a Europa. A acta regista esta colérica réplica de Hitler:

«O jornal de Vichy quer dizer com semelhantes alusões que esta guerra é proveitosa para todos os Estados europeus e não só para os alemães».

A cólera do Fuhrer é naturalmente partilhada pelos outros. Mas uma coisa é a propaganda de Goebbels, os seus clamores de que a guerra contra a URSS é uma cruzada europeia «contra o bolchevismo»; e outra é decidir quem terá o monopólio da pilhagem, de uma pilhagem «eficaz» como mais tarde dirá Goering.

Rudenko metralha-o de questões assassinas. Pede-lhe para seguir o texto da acta e começa a citar:

«A Crimeia deve ser liberta de todos os estrangeiros e povoada de alemães. Do mesmo modo, a Galícia austríaca(14) deve tornar-se uma província do Reich.»

Rudenko. Encontrou esta passagem?

Goering. Sim.

Rudenko (continua a ler). «O Fuhrer salienta que toda a região dos Países Bálticos se deve tornar território do Reich»,

O réu n° 1 é forçado a reconhecê-lo.

As citações abatem-se uma a uma, como chicotadas, sobre o corpo flácido de Goering.

«...A região do Volga deve também tornar-se território do Reich, e a província de Baku será uma colónia militarmente ocupada».

Goering, descoroçoado, mais não faz do que concordar com a cabeça.

Os finlandeses reclamam a Carélia oriental. Mas os participantes na reunião reservam para a Alemanha a província de Kola, rica em níquel.

Os finlandeses querem a região de Leninegrado? Seja. E logo ali é decidido «arrasar primeiro Leninegrado, depois entregá-la aos finlandeses».

Goering confirma. Depois irrita-se, o rosto afogueado:

— Mas é insensato discutir, alguns dias depois de desencadeada uma guerra, questões como as que Bormann relatou neste documento, quando ninguém pode antever o fim dessa guerra e quais serão os seus possíveis resultados. Como velho caçador eu agia sempre segundo o consagrado princípio de não vender a pele do urso antes de o ter abatido.

Com certeza que o princípio é correcto, mas Goering só deve ter-lhe dado o devido valor na solidão da sua cela em Nuremberga.

Sim, Goering teria andado melhor se se tivesse lembrado a tempo do bom princípio da pele do urso. Se ele sempre se tivesse inspirado nele, não teria discutido as candidaturas dos Gauleiter para os territórios soviéticos.

Rudenko recorda-lhe a sua disputa com Rosenberg. Este queria que o governador dos Países Bálticos fosse Lohse, e Goering propunha para o cargo Koch. Rosenberg todo se esfarrapava para meter como Gauleiter Petersdorf, criatura sua. Mas Goering imediatamente se opôs:

«Von Petersdorf é certamente um desequilibrado».

Moscovo é «oferecida» a um tal Kasche. Goering não vê nisso inconveniente. Consegue, em contrapartida, que seja confiada a Terboven a exploração da península de Kola.

Assim fazia o «velho caçador», mostrando as garras de colonizador ávido e salteador a frio, interessado em enriquecer os monopólios alemães e a encher a sua própria algibeira.

O Marechal do Reich Muda de Pele

Hans Frank gritou um dia com admiração:

— A maneira como Goering se conduz dá-me prazer. Se ao menos ele tivesse sido sempre assim! Disse-lhe hoje na brincadeira: «É pena que você não tenha estado na cadeia durante um ano, mas há uns tempos atrás!»

Estas palavras foram pronunciadas a 16 de Março de 1946, no próprio dia em que Goering tinha respondido, perante o Tribunal Internacional, às perguntas do seu advogado. Os réus estavam contentes por ele se ter intitulado o homem n° 2 do Reich e ter parecido arcar com a parte maior da responsabilidade dos crimes nazis.

— Nunca antes ouvi falar de Fritzsche — disse ele um dia ao olhar para a extremidade esquerda do banco. — E que faz aqui o pequeno Funk? Que tem ele a ver com a preparação económica da guerra? ...

A propósito de uma insignificante questão de restrições do câmbio, surgida na altura em que eram apresentadas os documentos estabelecendo a culpabilidade de Funk, Goering escreveu ao advogado do ex-ministro da Economia:

«É a mim que compete responder. Pode declará-lo».

Mas tudo isso não passava de comédia e fanfarronice. Ele sempre se prestava a declarar-se culpado quando as acusações eram sem gravidade. Mas tinha o «bom-senso» de ceder a palma aos outros quando se tratava de crimes que tinham horrorizado o mundo inteiro.

Goering não temia confessar certas coisas dizendo respeito à anexação da Áustria, sustentar que a Inglaterra queria atacar primeiro a Noruega, fazer valer os esforços que empreendera em 1939 para «salvar a paz» por intermédio de Birger Dahlerus. Mas por nada deste mundo teria assumido a responsabilidade de Auschwitz e de Maidanek, dos assassínios de prisioneiros de guerra, das execuções de reféns, da espoliação monstruosa de mortos e vivos em territórios ocupados!

Se fizéssemos uma representação gráfica da sua linha de conduta, durante o interrogatório, esta seria uma sucessão de sinuosidades, de ziguezagues e de inflexões fazendo lembrar o rasto de um animal perseguido.

Antes de ter perdido a cabeça, procura sustentar com uma «teoria» os crimes hitlerianos. Eis o que declara ele no processo:

— Foi antes do conflito polaco que pela primeira vez tomei conhecimento das disposições de Haia. Lamentei então não as ter conhecido mais cedo. Teria dito ao Fuhrer que as disposições destes regulamentos proibiam toda e qualquer guerra moderna e que a evolução actual da técnica nos obrigaria a pôr-nos em contradição com as obrigações estabelecidas em 1906 ou 1907.

A ideia é simples: o material de guerra progrediu de tal maneira que já não é possível evitar a dizimação da população civil. Mas o Ministério Público pergunta-lhe com razão que relação vê ele entre o progresso do material de guerra e os massacres de prisioneiros, doentes e feridos? A Defesa tenta de imediato arranjar uma «correcção» para as explicações de Goering, que deu origem ao esquema seguinte: o exército hitleriano começou a guerra cavalheirescamente e foram as crueldades do inimigo que o levaram às represálias. Mas, nem de propósito, a Acusação está na posse da prova de que as ordens mais ferozes tinham surgido muito antes do início da guerra. De que «represálias» se podia tratar se Hitler e os seus sátrapas ordenavam actos criminosos aos seus soldados e oficiais antes de ter sequer sido desferido o primeiro tiro?

Goering começa a compreender que os seus «esquemas» não valem nada: Rudenko apresenta-lhe um a um documentos esmagadores. Esquece-se da sua bravata («sou eu quem responde por tudo!») e prefere bater em retirada.

— Se todas as ordens e directrizes... me tivessem sido submetidas, afogar-me-ia em toda essa papelada — gagueja este presunçoso falhado. — Só as questões mais importantes me eram comunicadas.

Entre essas «coisas mais importantes» não figuravam evidentemente nem a ordem de fuzilar em massa os prisioneiros soviéticos, nem a de matar os comissários do Exército Vermelho, nem a de destruir Leninegrado. Goering nada sabia dessas atrocidades!

Perante esta nova táctica, tão diferente da outra, Rudenko assinala:

— Informavam-no simplesmente dos acontecimentos muito importantes, mas as ordens para a destruição de cidades e o assassínio de milhões de homens passavam pelo que se chama a «via hierárquica».

Aí o procurador-geral soviético apresentou documentos comprovativos de que Goering estava bem informado das ordens criminosas do comando alemão e que até tinha tomado parte activa na sua elaboração.

Evocando milhões de vítimas, Rudenko pergunta:

— Então não lia nunca os comunicados da imprensa estrangeira, não escutava as emissões da rádio estrangeira, que falavam desses crimes?

E Goering responde que nunca aproveitou desse direito durante toda a guerra, por aversão a «essa propaganda».

— Só ouvi a rádio estrangeira nos últimos quatro dias da guerra — precisa.

Esta resposta, digna do mentiroso que ele foi toda a vida, provoca gargalhadas na Sala.

Na mesa dos juízes é disposta a «Acta de Wannssee», de triste fama. A 20 de Janeiro de 1942, no prédio n° 56-58 de Tross-Wannsee, em Berlim, realizou-se uma conferência de altos funcionários da Alemanha hitleriana, onde foram apontadas medidas para a «solução completa» da questão judia. Goering era representado pelo secretário de Estado Neumann. A Acta regista claramente que

«o Reichsmarschall tinha encarregado Heydrich de proceder a todos os preparativos necessários à organização material e prática das medidas a tomar para chegar a uma solução completa da questão judia na zona de influência alemã na Europa».

Não, Goering não poderá provar que nada sabia dos milhões de infelizes fuzilados, enforcados, gaseados, queimados vivos, destroçados pelos cães, espancados a pontapé. Tal como as cinzas de Claes, os frágeis punhos das crianças de cinco ou seis anos enviadas para as câmaras de gás batem no coração do género humano, esses pobres punhos que elas apertavam ao peito murmurando com lábios exangues, na esperança de salvarem a vida:

— Nós somos robustos, podemos trabalhar... Olhai, ainda podemos trabalhar!...

Era o que repetiam também os velhos fracos e as mulheres que antes do suplício eram despojados sem vergonha, tirando-lhes anéis e relógios, arrancando-lhes os dentes e as coroas de ouro. E depois era necessário armazenar tudo isso, convertê-lo em valor monetário. As SS tinham concluído um acordo com o Reichsbank que assumiu o encargo de realizar os frutos do saque.

Foi assim que o Banco do Reich se tornou cúmplice de um crime abominável. Goering olhava atento e mesmo compadecido o «pequeno Funk» a torcer-se sob o peso das provas irrefutáveis que o tomavam réu convicto, a ele, presidente do Reichsbank, de ter odiosamente transigido com as SS. Mas o rosto de Goering exprimia também uma violenta indignação. Ah, esses «chacais de Himmler» tinham-na feito bonita! Segundo parece havia mesmo no Banco uma «conta Melmer» cifrada, na qual eram depositadas as centenas de quilos de relógios, de dentes e de coroas em ouro.

Mas eis que a sua expressiva pantomima cai por terra. Rudenko apresenta a prova provada de que na manobra bancária das SS o papel de primeiro larápio lhe cabe a ele, Goering. Essa prova é um memorando de 31 de Março de 1944, de título assaz nebuloso: «Emprego dos valores e objectos similares requisitados pelas autoridades em proveito do Reich». Aí está escrito, preto no branco:

«O marechal do grande Império Alemão, comissário do plano de quatro anos, informou o Reichsbank na sua carta de 19 de Março de 1944... que uma grande parte do ouro, dos objectos em prata, joias, etc., encontrando-se na Direcção Central dos territórios do Leste, devem ser depositados no Reichsbank à ordem do ministro Funk e do conde Schwerin von Krosigk».

É aí que é mencionada a «conta Melmer».

A «compaixão» por Funk dá lugar a um furor bestial chamejando no olhar fugidio de Goering. Que é feito da sua bazófia, da sua máscara de «benfeitor» dos outros réus? Rosenberg, que nem desconfia desta súbita evolução, pede-lhe para apresentar as confiscações em territórios ocupados do Leste de maneira a ilibá-lo, a ele. Goering repele-o com vigor.

— Respondi-lhe que era ele próprio quem tinha de o fazer: é preciso que eu pense em mim num momento destes — diz ele sucintamente ao doutor Gilbert.

«Confiscações no Leste!» É um bom modo de dizer! Hermann Goering tinha pessoalmente elaborado a pilhagem organizada dos territórios ocupados.

Lev Cheinine procurador soviético
L. Cheinine, vogal da URSS
(clique na foto para maior resolução)

Um outro procurador soviético, Lev Cheinine, sobe à tribuna. Este homem de estatura média, largo de ombros, cabelos castanho-claros e olhos vivos, continua com êxito o trabalho encetado por Rudenko. Numerosas investigações desdobradas por uma longa experiência e talento literário permitem-lhe fazer nalgumas pinceladas seguras o acabamento do retrato fiel do «marechal do grande Império Alemão».

Em Setembro de 1945 em Iena, Turíngia, as autoridades militares soviéticas descobriram um muito curioso documento cujo conteúdo teria bastado para fazer entrar Goering na história como um saqueador sem precedentes.

A 6 de Agosto de 1942 às quatro horas da tarde, reuniu ele no Ministério do Ar os comissários do Reich dos países e regiões ocupadas. No discurso que lhes dirigiu constatava com satisfação:

— A Alemanha domina actualmente, do Atlântico ao Volga e ao Cáucaso, os mais ricos celeiros de trigo que jamais existiram na Europa.

E como se duvidasse que os governadores nazis tivessem compreendido até ao fim quais as suas tarefas, Goering previne-os:

— Deus sabe que não fostes enviados lá abaixo para cuidar do bem-estar da população, mas para extirpar tudo o que puderdes desses territórios, a fim de que o povo alemão viva. É isso o que espero de vós.

Os reunidos espantam-se: será preciso ensiná-los a pilhar? Quanto ao marechal do Império, passa das recomendações às ameaças:

— Senão voltaremos a encontrar-nos noutro terreno...

O significado desse «outro terreno» não escapava a ninguém.

— Deveis, como bons cães de caça — grita Goering — estar de emboscada a tudo o que possa ser útil ao povo alemão. É necessário então tirá-lo rapidamente dos depósitos e enviá-lo para aqui... Eu tenho a intenção de pilhar, e de pilhar eficazmente!

Enquanto Cheinine citava o seu discurso, Goering parecia esmagado. Acabara-se-lhe a exuberância, a fingida indignação. Só arrebitava quando o acusador substituía o título de Reichsmarschall pelo nome do réu.

Reichsmarschall!... Reichsmarschall! murmurava Goering congestionado de furor.

Os Medíocres não Podem Compreendê-lo

Há alguns anos atrás a imprensa ocidental fez sair um local informando que o industrial alemão Flick (julgado, ele também, em Nuremberga, mas libertado pouco depois) tinha visitado a senhora Emmi Goering. Tinham mais do que uma recordação comum a evocar. O marido de Emmi tinha proporcionado grandes lucros ao velho Flick.

Apesar dos seus oitenta e dois anos, mantinha-se nos negócios. Sentimento é coisa que não entra nas suas vivências. Mal acaba de beijar a mão de Madame e já lhe comunica a finalidade da sua visita. É que ele soube que a cara Emmi defende em juízo nos tribunais alemães ocidentais que lhe sejam restituídos os bens de Hermann Goering, incluindo uma grande colecção de quadros. Flick espera que em consideração pela sua velha amizade possa vir a ser o primeiro a escolher o que mais lhe agradar.

A velha raposa farejava um rico despojo.

Hermann Goering não perdia o seu tempo nos diversos cargos que ocupava. Era ele próprio o chefe dos «cães de caça». A sua fé no dinheiro era ilimitada. Os homens podem enganar-nos, trair-nos, entregar-nos. Goering sabia isso por experiência própria. Ao passo que o ouro é sempre ouro, o garante da salvação nas mais desesperadas situações, disso tinha ele a certeza. Goering conhecia bem tanto o valor da demagogia como o do ouro.

Talleyrand, diz-se, teria ficado louco de alegria ao obter de Napoleão a pasta de ministro dos Negócios Estrangeiros. Não queria saber das honras e glória que esse cargo implicava. Outra coisa o preocupava. Na carruagem que o transportava ia repetindo como um maníaco, sem se preocupar com os companheiros:

«Conseguimos o lugar! É preciso fazer uma fortuna imensa, uma fortuna imensa, uma fortuna imensa, uma fortuna imensa!»

A história não regista nenhum caso análogo na vida de Goering. Mas isso não muda nada. Se bem que, diferentemente de Talleyrand, ele desse grande importância aos sinais exteriores do poder, às honrarias e à glória, era realista o bastante para repetir, na linha de Talleyrand:

«Antes de mais, o que é preciso é não ser pobre».

Havia na Alemanha um rei dos cigarros cujo nome era Reemtsma e que corria grande perigo por ter feito batota no respeitante aos impostos. Mas ofereceu sete milhões duzentos e cinquenta mil marcos «de presente» a Goering e o caso foi abafado.

Goering chegou mesmo a «salvar» judeus, ajudou alguns a emigrar, depois deitava a mão aos seus bens abandonados na Alemanha.

Isso não passava porém da fase de «acumulação inicial». A verdadeira pilhagem começou com a fundação do consórcio «Hermann Goering Werke» no qual foram englobadas à força muitas empresas confiscadas. Na Áustria tragou o «Alpine-Montan» que controlava os jazigos de minérios de Estíria, na Checoslováquia engoliu as fábricas Skoda.

Todo o avanço das tropas alemãs em território estrangeiro trazia a Goering novas riquezas.

Tinha especial predilecção pelas obras de arte, nomeadamente pela pintura. Foi sem dúvida aí que o «elemento moral» do homem n° 2 do Terceiro Reich melhor se manifestou.

Goering sabia da fama do Louvre, da galeria Tretiakov, do British Museum. E resolveu ter uma colecção que rivalizasse com as dos templos mundiais da arte. Os grandes museus tinham levado décadas, mesmo séculos, a encher-se. Goering, quanto a ele, contava tornar célebre o seu Karinhall em poucos anos.

Os preços de compra dos quadros não lhe interessavam absolutamente nada. Tinha uma maneira de os adquirir ignorada dos outros amadores. Os seus agentes espiolhavam tudo pelas cidades da Europa ocupada e traziam para Karinhall quadros que tinham pertencido às vítimas da Gestapo.

Que fazia ele quando um apetecido quadro não podia ser confiscado? Pedia ao proprietário para «ter a bondade de o trocar» por outras obras. Mostrava-se então de uma incrível generosidade: por um ou dois quadros dava cinco, dez. Recebia assim, naturalmente, quadros de Van Dyck, Rubens ou tapeçarias flamengas e cedia em troca pinturas alemãs modernas sacadas às vítimas da Gestapo.

Explorava sobretudo as colecções privadas francesas (Rothschild, Sligman, etc.). Segundo o relatório de um funcionário da administração militar de Paris, um comboio especial do Reichsmarschall Hermann Goering compreendia vinte e cinco vagões carregados de objectos preciosos.

Em finais da guerra Goering apropriou-se de uma escultura do Monte Cassino.

Escreve com orgulho, numa carta a Rosenberg, que

«possui a colecção privada talvez mais importante da Alemanha, senão da Europa».

Em Nuremberga tentou justificar a sua cupidez. Dizia a Hans Fritzsche:

— Sabe, a única coisa que tenho a censurar-me... é a minha paixão de coleccionador... Queria possuir tudo o que é belo... Os medíocres não podem compreendê-lo.

Infelizmente havia demasiados «medíocres» na sala de audiências! E o mais curioso — Goering dava-se conta disso — era que os juízes e muitas testemunhas faziam parte do grupo.

E os outros réus?

Nenhum deles tentou «compreender» o desafortunado «coleccionador». A opinião geral desse «meio restrito» era a de que Goering, ainda por cima réu convicto por roubo, já nada mais tinha a esperar. Speer indicou sorrindo:

— Esgotaram-se as oportunidades de Goering, partiram, voaram.

Funk murmurou entre dentes:

— Vergonhoso! Vergonhoso!

Ribbentrop disse a Kaltenbrunner abrindo os braços:

— Já não sei em quem me fiar!

Mal sabia esse hipócrita que dentro de poucos dias teria ele próprio de responder pelas rapinas do «batalhão «Ribbentrop».

E Schacht, bem entendido, também não deixou escapar a ocasião de se pronunciar:

— Considero Goering um criminoso nato. Mal posso olhar para ele... Roubar é, em certo sentido, pior ainda que matar. Isso revela o carácter de um homem... Um crime passional ainda pode conceber-se; mas roubar é tão ignóbil!...

Ao debitar esta tirada, Schacht era tão «modesto» que silenciou as suas próprias desonestidades. Não as canalhices grandiosas que perpetrava em nome do Reich, mas as banais acções que tinham por finalidade encher-lhe os bolsos.

Aliás, voltaremos ao assunto.

O Desenlace

Terminaram os interrogatórios. Foram apresentados milhares de documentos reveladores, ouvidas dezenas de testemunhas. Os filmes, testemunhos imparciais de um passado criminoso, fizeram o seu trabalho. Defesa e Ministério Público disseram o que tinham a dizer. Os réus fizeram a sua última declaração.

O processo está a chegar ao fim.

Goering, reconduzido à sua cela, tem um mês inteiro de espera pelo veredicto de sentença. Enquanto os juízes deliberam, pode ele entregar-se pela última vez às suas recordações, lançar um olhar retrospectivo à sua vida, repassar pelo espírito os debates.

Este processo provou ao mundo inteiro que Goering foi bem a alma danada da conspiração nazi. Ele, mais do que qualquer outro, estava marcado pelo estigma de provocador e assassino, saqueador e ladrão.

E ele devia saber isso muito bem, embora muitas vezes tivesse estado em desacordo com o Tribunal na apreciação dos factos e acontecimentos. Enquanto ele fala de «solução completa» do problema judeu, o Ministério Público chama a isso extermínio de inocentes. Ele diz «tratamento especial dos prisioneiros de guerra» e a Acusação qualifica estas coisas de massacre. Jura nunca ter ameaçado a Checoslováquia, mas são-lhe citadas as palavras que dirigiu ao presidente deste país: «Detestaria ter de bombardear a bela cidade de Praga...».

E os inumeráveis documentos que provam a pilhagem dos territórios ocupados, os roubos puros e simples de obras de arte? Ah, como é desagradável! Sobretudo quando os juízes mencionam o testemunho de Koerner apresentando Goering como «o último grande homem do Renascimento». Em má hora Koerner se lembrou de debitar as suas bajulices!...

Desde os primeiros dias do processo que Goering se armou em campeão da fidelidade.

— Creio — dizia ele — que é preciso manter o nosso juramento não só nos dias felizes, mas também quando chegam os maus tempos, e isso é muito mais difícil.

Ora foi precisamente isso que ele se mostrou incapaz de cumprir. Nos sombrios dias de Abril de 1945, quando Hitler se encurralou no Bunker da Chancelaria, o seu «fiel paladino» fugiu à socapa. Mais, tentou surripiar o poder a Hitler. E mal se viu prisioneiro dos americanos apressou-se declará-lo «limitado» e a prodigalizar-lhe outros epítetos pouco lisonjeiros.

Speer deu disso em Nuremberga uma explicação muito simples:

— Por que é que, para vocês, Goering não estava em Berlim, a defender o seu Fuhrer bem-amado? Porque estava lá um ambiente demasiado quente... Do mesmo modo que Himmler. Mas nenhum deles pensou em poupar o povo a alguns dos efeitos dessa loucura. Todos foram uns cobardes corruptos nas horas de crise atravessadas pelo país...

Cobarde? Sim, Goering teve de engolir também esse insulto. Outrora passava por um «aviador corajoso» mas não era proeza nenhuma bombardear cidades sem defesa! Em 1923 participou no golpe de Munique, mas logo depois do seu fracasso raspou-se para o estrangeiro deixando prender os seus companheiros. Depois preconizou a guerra e encafuou-se no interior do país, em Karinhall, a fazer o cálculo dos quadros roubados. Finalmente, uma vez caído no banco dos réus, gabou-se de dar água pela barba ao Ministério Público e de novo mergulhou na desonra: a despeito da promessa de arcar com tudo em cima dos seus ombros, tentou mas foi descarregar para cima dos outros.

— Mas você? Você não assumiu a mínima responsabilidade por nada! Você só faz discursos enfáticos! É vergonhoso!

Esta a opinião de Papen a propósito da atitude adoptada por Goering durante o processo. Goering não foi capaz de esconder o seu nervosismo aos seus vizinhos de banco: Submetido a um interrogatório cruzado, tremia como varas verdes, as mãos crispadas no pedaço de cartão em que tinha escrito para seu próprio uso a lápis vermelho, de um lado: «Falar mais devagar, com pausas», e do outro: «Calma, dignidade».

Mas a «dignidade» subtilizava-se catastroficamente a cada pergunta do procurador, diante de cada testemunho de Acusação. Era a «dignidade» do mentiroso, do provocador, do hipócrita.

É bem conhecido o retrato de Thiers traçado por Karl Marx:

«Encartado na mesquinha pulhice política, virtuoso do perjúrio e da traição, batido em tudo o que é baixo estratagema, manhosos expedientes e perfídias vias... sempre pronto, uma vez corrido do ministério, a acender uma revolução para depois a abafar em sangue quando para lá voltou, com preconceitos de classe à guisa de ideias, com vaidade à guisa de coração, levando uma vida privada tão abjecta quanto desprezível é a sua vida pública — ele não é capaz de deixar, mesmo agora que representa o papel de um Sula francês, de realçar o abominável dos seus actos com o ridículo das suas fanfarronices».

Quantos pontos desta imortal definição se aplicam à personalidade de Goering, se bem que os epítetos de Marx não possam caracterizar todos os aspectos da sua criminosa carreira.

Denunciando os crimes daquele que estrangulou a Comuna de Paris, Marx escreve:

«Para encontrar um paralelo com a conduta de Thiers... é preciso remontarmos aos tempos de Sula e dos triunviratos de Roma».

Mas em lado nenhum encontraríamos paralelo à conduta de Goering.

No primeiro de Outubro de 1946, no Palácio da Justiça de Nuremberga, o Tribunal Internacional pronunciou o veredicto da sentença.

A maior parte foi lida perante todos os réus. Depois o presidente anunciou uma suspensão da audiência e os réus foram levados. Foram depois trazidos um a um e ouviram de pé os termos da sua culpabilidade e a sua condenação.

Goering foi o primeiro a voltar à sala. Foi recebido por um silêncio tenso. Lord Lawrence articula:

— Réu Hermann Wilhelm Goering, segundo os pontos do libelo acusatório mantidos contra si, o Tribunal Militar Internacional condena-o...

Goering pôr-se a falar gesticulando. Lord Lawrence quer continuar mas Goering gesticula cada vez mais. Parece que o sistema das traduções se avariou. Os técnicos põem-se em acção. A avaria é logo reparada e Goering ouve:

— ...condena-o à morte por enforcamento.

Por algum tempo Goering fica imóvel.

Esta era uma sentença que ele tinha há muito por inelutável. Estava à espera dela, nela pensara constantemente todos esses meses, noites e dias sem fim. Mas agora, que sabia, não podia acreditar. A palavra «morte», de que ele abusara nas suas actividades correntes a ponto de lhe tirar a força, ganhava um sentido novo, terrífico, que o arrancava à vida para o lançar num abismo de assombro.

Goering vacilou mas ficou de pé. Deu uma brusca meia-volta com cara de quem desperta de um pesadelo. Os homens da escolta reconduziram-no à cela.

Gilbert foi logo atrás dele. Eis as suas impressões:

«Tinha o rosto pálido e parado, os olhos brilhavam-lhe de um brilho febril. «A morte!», diz ele deitando-se para cima da tarimba e pegando num livro. Tremiam-lhe as mãos, se bem que se esforçasse por parecer indiferente... Arquejava».

Que fora feito das suas jactantes considerações de que estava certo de ser condenado, que procurava salvar «a cara e não a cabeça» no processo? Pela primeira vez sentia a corda à volta do pescoço, justo desenlace da sua vida criminosa, e o disfarce com que se maquilhara depressa se lhe varreu do rosto.

O seu advogado Dr. Stahmer interpôs um recurso de perdão ao Conselho de Controlo para a Alemanha. Já prevendo uma recusa, o próprio Goering pediu que o enforcamento fosse comutado em execução pelas armas. Mas ambos os requerimentos foram indeferidos.

Na noite de 15 de Outubro de 1946 o coronel Andrews, comandante da prisão, fazia o giro das celas para informar os réus dos resultados das suas diligências. Dentro de algumas horas cumprir-se-ia o último acto da Justiça.

Todas as delegações do Tribunal Internacional tinham já deixado Nuremberga. Só eu me encontrava no Palácio, por acaso, de regresso de uma missão em Leipzig. No corredor encontro de súbito Andrews. Parece perturbado. Pergunto-lhe o que se passa.

— Uma grande desgraça — diz-me ele sem parar.

Goering suicidara-se. E o coronel Andrews, que tinha feito os possíveis por evitar que o caso de Robert Ley se repetisse, está naturalmente consternado.

Veio depois a saber alguns pormenores.

Já noite avançada, a sentinela americana lançou pelo postigo uma vista de olhos para dentro da cela. Goering estava deitado, de olhos abertos. Tinha as mãos em cima da roupa, como o exigia o regulamento.

Ao cabo de um momento o guarda olhou outra vez e apercebeu-se de que Goering, agitado por estremeções, amarfanhava convulsivamente o cobertor com mãos trementes. O rosto franzia-se-lhe de esgares. Ouvia-se claramente um estertor.

A sentinela e o oficial de serviço precipitam-se para dentro da cela... Tarde demais! A luz crua da lâmpada ilumina uma cara lívida. Pflucker, o médico, debruça-se sobre o corpo e toma-lhe o pulso... O coração deixou de bater.

— Está morto — constata Pflucker.

Goering tinha engolido uma ampola de cianeto. Foram-lhe encontrados restos na boca.

Quem lhe passara o veneno?

Na altura falou-se muito disso, as pessoas perderam-se em conjecturas. O jornalista austríaco Bleibtray não perdeu tempo para espantar os seus leitores: tinha sido ele quem de manhãzinha se introduzira na sala de audiências vazia e colara a ampola no banco dos réus com pastilha elástica. Mas esta versão foi refutada alguns anos depois pelo general SS Bach-Zelewski. Provavelmente ciumento do reclame que o hábil jornalista tinha dado promovido em prol da sua pessoa, o general sustentou que fora ele quem dera a Goering, ao cruzar-se com ele no corredor da prisão, um sabonete dentro do qual estava a ampola.

Nunca se soube a verdade. Goering tinha tido mais ocasiões que as necessárias. Todos os dias se avistava com uma quantidade de advogados que lhe entregavam papéis e não teriam tido dificuldade em passar-lhe ao mesmo tempo o cianeto. A sua mulher, autorizada a visitá-lo nos últimos dias antes da execução, teria igualmente podido fazê-lo.

Uma coisa é certa: Hermann Goering cessou de viver a 15 de Outubro de 1946 às 22h. 45. Assim desapareceu esse pretensioso fanfarrão e grande criminoso, um dos chefes do nazismo.


Notas de rodapé:

(12) Força Aérea (retornar ao texto)

(13) Data do golpe hitleriano em Munique. (retornar ao texto)

(14) Trata-se aqui das terras ucranianas ocidentais unidas à RSS da Ucrânia em 1939. (retornar ao texto)

Inclusão 16/09/2015
Última atualização 05/04/2016