Camponeses de Barcouço:
Não vamos morrer agarrados à enxada

José A. Salvador


A diocese de Coimbra é contra a cooperativa de Barcouço

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Quando entrei a missa já levava os seus cinco minutos. Tinha começado seriam umas dez horas da manhã. Duas centenas de mulheres, na sua maioria já idosas, uma dezena de homens e inúmeras crianças não enchiam totalmente aquele templo.

Deve dizer-se que a igreja não feria a consciência dos crentes. Era simples, sem luxos opulentos que se opusessem ao subdesenvolvimento da aldeia. A maioria das mulheres ia vestida de negro, o que contrastava com a brancura das paredes pintadas de cal.

Um altar central onde até as velas não abundam, dois altares laterais com imagens de santos. Também para estes as velas não se tinham multiplicado. Pode afirmar-se que a igreja de Barcouço parecia respeitar as próprias dificuldades dos paroquianos mantendo-se a um tempo austera e simples nas vestes.

«Segundo me disseram há dias — confessou-nos um camponês — o padre fez um discurso atacando muito os ricos, e Írisou bem aquela passagem de Cristo em que era mais difícil entrar um rico para o céu do que passar um camelo pelo buraco de uma agulha. Parece-se que é um indivíduo que está ao lado dos desprotegidos. Eu vejo-o assim.»

Nesse domingo, entretanto, o padre abordou na sua homilia a falta de vocações sacerdotais. Após interrogar-se sobre a necessidade ou não de sacerdotes nos dias de hoje, concluiu pela afirmativa. Sem padres corria-se o risco de o mundo perder a sua espiritualidade, pois os cidadãos seriam colonizados pelas preocupações materiais. Para ilustrar a sua opinião socorreu-se de algumas gravações que realizara sobre o assunto num encontro de leigos. Quando poisou o gravador sobre a mesa do altar e fez ouvir as respostas gravadas, todos os entrevistados defenderam por razões variadas a necessidade dos sacerdotes no mundo contemporâneo. Aproveitando os testemunhos divulgados insistiu na urgência de se criar um ambiente propício ao florescer das vocações eclesiásticas.

Neste sentido não se afastou muito de João, Bispo de Coimbra, que em mensagem dirigida aos seus diocesanos os exortava a reflectirem em grupo e em família sobre a falta de vocações sacerdotais. Na mesma exortação, o bispo informava que o Seminário da Figueira da Foz tinha 61 alunos inscritos nos seis primeiros anos, que o Seminário de Coimbra tinha 16 nos sete últimos anos do Curso, e que há cinco anos para cá só se tinham ordenado 13 padres, «enquanto se afastaram do trabalho pastoral pela morte ou por outros motivos 26».

O celebrante referiu ainda durante a missa que se aproximavam as eleições para as autarquias locais. Muitos paroquianos já se lhe tinham dirigido procurando o que fazer, e manifestando-lhe alguns a intenção de não irem votar. Esta constatação levou o padre a afirmar: os paroquianos devem votar. Para isso no domingo seguinte se iria referir ao acto no sentido de esclarecer as pessoas de Barcouço. Afinal existiam 1300 eleitores na freguesia, e também neste aspecto o padre se não afastava do jornal da diocese «O Amigo do Povo»; que, na SS edição de 28-11-76, citava a Conferência Episcopal Portugesa:

«Mesmo vencendo o natural cansaço de sucessivas eleições ou até o sentimento de frustrações porventura resultante de nem sempre se terem vista traduzidas em acções e reais as esperanças depositadas nas eleições anteriores é grave dever votar.»

Não é abusivo considerar que todo o ritual da missa circulou em redor de exortações diversas: exortação para as vocações sacerdotais, exortação ao voto nas eleições, exortação à dádiva de esmolas para os seminários, e exortação à leitura de «O Amigo do Povo», semanário pertencente a diocese de Coimbra. É evidente que o padre não é o bispo, é evidente que a Igreja pode não ser Helder da Câmara mas Francisco, o Bispo de Braga, é evidente que a Igreja pode não ser a «Pacem in Terris» mas a «Humana Vitae». Destas ambiguidades nasce também a sua natureza de classe. É evidente que a Igreja apoiou o fascismo português. A Igreja de Lisboa e a de Roma. A de Cerejeira e a de Paulo VI em Fátima.

Por tudo isto não nos surpreende que a edição do «Amigo do Povo» de 28 de Novembro de 1976 tenha publicado um artigo exortando os seus diocesanos ao mais primário anticomunismo. O registo com título do próprio jornal:

«Ão calor da fogueira»

— Infelizmente, Tio Ambrósio, não é ainda desta que eu lhe posso falar dos Açores, sem ser com um pé lá e outro cá! Esperançado andava eu em lhe dar hoje conta duma longa conversa tida à com o meu amigo Bettencourt, na Ilha do Faial, contemplando a Horta do alto da Espalamaca! Mas é assim, Tio Ambrósio! A gente não pode deixar ao desamparo cá o nabal político do Continente, pois, mal uma pessoa se descuida, dá logo o bicho na fruta!

— Para assim falares, Carlos, alguma p'raí deve ter acontecido!

— Evidentemente, Tio Ambrósio! Uma vez mais, Cunhal é notícia! O camarada tem-se desunhado ultimamente a falar p'raí aos quatro ventos, e quando Cunhal abre a boca, à falta de moscas agora no inverno, já se sabe o que é que costuma acontecer!

Não sei se o Tio Ambrósio o viu e ouviu um dia destes, na Televisão!

— Por acaso não, Carlos! Mas dizem-me que o homem está cada vez mais na mesma!

— Pior, Tio Ambrósio! Parece-me bem que é um caso arrumado! Naturalmente terá mesmo de ser enterrado assim! Eu estava a ouvi-lo naquela noite, e a pensar cá para comigo: há-de ser custoso encontrar no mundo filho de mulher que minta com mais sinceridade e franqueza do que o nosso Estalinito lusitano! Tal homem mente com o coração nas mãos!...

Eu já nem sabia que mais admirar: se a desfaçatez do sujeito se o temor reverencial dos senhores jornalistas!

Estou em crer, Tio Ambrósio, que o Cunhal é capaz de tentar enganar S. Pedro no dia de Juízo! Vamos ao caso— isto é um supôr! — que lhe dava agora um vadagaio qualquer, e ele era chamado a contas! (Podia ser uma doença progressista como, por exemplo, a rubéola, ou mesmo samica a moléstia reaccionária que levou prós anjinhos o parvo da Barca do Inferno de mestre Gil Vicentel!...) Estou a imaginar aquela alma a comparecer diante do santo porteiro da Corte Celestial! E S. Pedro, olhando-o por cima dos óculos, a principiar este diálogo:

— «Olá, Alvaro! Então por aqui hoje?

— Olhe que não, olhe que não, Senhor S. Pedro!

— Antes de irmos a contas, amigo Alvaro, desejava fazer-te uma pergunta! Mas não respondas a rir, pois falta-te um dente no queixal de baixo e o riso sai-te pouco a condizer com o prestígio e a dignidade do teu partido! Além disso, Alvaro, tu não tens o dom do risol!.. Como não tens o dom das lágrimas! Em humanidade, Alvaro, és um triste proletário!

Mais desejava que, ao responder, te não pusesses prai a assar castanhas, porque isto aqui não é a Televisão em Portugal! Responde portanto sim ou sopas!

É uma pergunta muito simples! Não quero estar agora a perguntar-te se entraste ou não na intentona de 25 de Novembro! Também te não pergunto por que razão se não fez ainda o julgamento dos assassinos do Humberto Delgado ou como é que a ditadura na Rússia é melhor do que a democracia em França! Ou então como é que as comissões de trabalhadores que, lá em Portugal, empandeiraram quase todas as empresas, têm sido, em teu entender, o grande sustentáculo da economia portuguesa! Apesar de levar já quase dois mil anos de Visão Beatífica e outros tantos a gozar cá dos dotes dos corpos gloriosos, essas coisas estão acima do meu pobre entendimento de humilde pescador que nunca teve sindicato!

A pergunta é esta, Álvaro: tu morreste ou não morreste?

— Bem, Senhor S. Pedro, não posso responder-lhe sim ou não assim sem mais!

Sabe, a questão é muito complicada, não menos complicada do que esta coisa estranha de Portugal, depois da nossa Reforma Agrária, ter andado a importar cortiça!

Só poderei dar-lhe uma resposta adequada depois de consultar as bases do meu partido que, como toda a gente sabe, é o partido mais democrático do mundo! A democracia dentro do Partido Comunista é total! Nisto, reconhecêmo-lo humilde- mente, somos de facto um partido totalitário! Ali toda a gente pensa como quer, dando-se é a singular coincidência de todos pensarem sempre exactamente como eu! E isto é que dana esses palermas dos partidos burgueses onde as sentenças são ainda mais que as cabeças!

Como sabe, teve ainda há pouco lugar a realização do nosso modelar Congresso! Nele até se decretou, a bem da economia nacional, que a colheita do trigo, no Alentejo, fosse, este ano, a maior de todos os tempos! E se o P. C. decreta tão solenemente que nunca em Portugal os pardais comeram tanto trigo, é escusado vir o ministro Barreto dizernos o contrário com números na mão, pois mais vale uma mentira comunista do que noventa e nove verdades reaccionárias e fascistas!

Mais se determinou nesse congresso que um grupo de comunistas cubanos fosse a Coimbra oferecer uma bandeira à Mondorel! Os dois gestores comunistas dessa empresa, a ganharem apenas, um, trinta contos e outro, cinquenta, lutavam há muito com uma aflitiva falta de bandeiras cubanas!... plas! Pois a coisa, veja lá, apesar de vir de quem

Agora, com a bandeirita comunista a tremular lá no alto, a economia da empresa começará a caminhar de vento em pôpa!

Mas eu queria era falar-lhe da exemplar democracia que reinou no congresso do P. C.! Deram-se coisas verdadeiramente espantosas!

Veja só, Senhor S. Pedro! Um obscuro militante do Sobreiro mandounos um cartucho de adjectivos para figurarem no texto final das nossas conclusões! Pois esses adjectivos foram todos (!) democraticamente aceites pelas cúpulas e caritativamente distribuídos pelos substantivos mais necessitados!

Da Cooperativa do Barcouço recebemos também esta sugestão: em vez de chamarmos sempre fascista e reaccionário ao P.P.D.-P.S.D., deveríamos, para variar, chamar-lhe, de vez em quando, reaccionário e fascista! Tal sugestão foi aprovada por unanimidade, com o aplauso até do meu patrão que a achou bastante original!...

Mas para o Senhor S. Pedro ver até onde vão os requintes democráticos do nosso partido, ouça lá mais esta. Um tal Carlos do Cabeço que é um reaça do piorio e tem todo o jeito de ser pelo menos do P.P.D.-P.S.D., esse maroto mandou também uma proposta que me dizia pessoalmente respeito! Propunha esse fascista duma cana que eu cá não devia estar sempre a falar em amplas liberdades, mas, de vez em quando, dizer também... liberdades amplas! Pois a coisa, veja lá, apesar de vir de quem veio, foi aceite com aplausos e música!

Por fim, de punho erguido e ao som da Internacional, foi votada a moção soprada pelo P.U. de Coimbra! Dizia assim: propõe-se que o camarada Cunhal, quando voltar à televisão, em lugar de dizer sempre: olhe que não, olhe que não, diga também às vezes: olhe que sim, olhe que sim!

Pois, apesar de todas estas demonstrações de espírito verdadeiramente democrático, os partidos a chamar-me estalinista e a dizer até que eu ando já a embirrar com o eurocomunismo do camaradita Vital Moreira...»

— Não sei, Carlos, é como S. Pedro esteve assim calado, todo esse tempo, sem pôr travão à taramela do Cunhal!

— Bem, Tio Ambrósio, S. Pedro deve estar agora muito mais paciente do que naqueles tempos em que ele, no Jardim das Oliveiras pegou no chanfalho e cortou a orelha a Malco que ao que me consta, era do M.F.A. lá do sitio! (Eu nem quero imaginar, Tio Ambrósio, os estragos que S. Pedro p'raí teria feito no orelhame da nossa tropa, se acaso por cá tivesse andado nestes dois anos e tal de Revolução!...)

Mesmo assim, diante do Cunhal, não há paciência que se não esgote! A alturas tantas, S. Pedro teve mesmo de o interromper:

— «..Mas então, Alvaro, diz-me lá: tu morreste ou não morreste?

— E Vossa Santidade a dar-me e eu a fugir Santa Catarina Eufêmia me valha!

Como eu lhe digo, Senhor S. Pedro, não lhe posso responder sem um amplo debate a fazer pelas nossas bases, alargado às bases do Serra e do Tengarrinha donde acaba de sair o P.U. mais monumental que alguma vez se viu e ouviu nos reinos da Portugal e dos Algarves!...

Além disso, nada lhe posso dizer sobre o caso sem uma consulta prévia aos meus amantíssimos patrões da Rússia que continuam a mandar para Portugal a mais-valia dos trabalhadores soviéticos que gostosamente passam misérias e privações de toda a ordem, não apenas para as grandes e faustosas recepções da Embaixada russa nos salões da Hotel Ritz, como também para os funcionários do P.C.P. poderem viver com algum desafogo económico! Depois, os nossos congressos têm de ser coisá que se veja em comparação com os congressitos burgueses! A Rússia, a inesgotável vaca leiteira do nosso partido!

Como sabe, Senhor S. Pedro, a Rússia, mesmo no inverno, continua a ser o «Sol do Mundo», como, ainda agora se pôde ver com o oportuno filme passado na R.T.P. sobre a famosa e meiga K.G.B.!

Até agora, tirante talvez a perspicácia do Senhor Arnaut, do P.S. e da Cumieira, ainda ninguém tinha dado pela existência daquele maravilhoso paraíso!...

— Mas então, ó Alvaro, tu morreste ou não morreste?...»

Como vê, Tio Ambrósio, não há nada a fazer! Se fosse eu a S. Pedro, desistia e deixava-o em paz!

Cunhal teria corda para toda a Eternidade!.. Está a ver o que é a gente ter de ir um dia pró céu com tal criatural!...»

A transcrição deste texto ilustra por forma exemplar que a Igreja de Cerejeira continua viva em Portugal. Que os bispos a alimentam, como alimentam as fogueiras da inquisição, e o napalm |despejado sobre os guerrilheiros da FRELIMO, do PAIGC ou do MPLA.

Galileu está entre nós: hoje parece ser a Cooperativa de Barcouço. Só que o povo não está com esta Igreja.


Inclusão 14/06/2019