L. A. & Cª no meio da revolução

Texto de Maria Mata
Ilustrações de Susana Oliveira


A tia Luzinha conta uma história verdadeira


capa

— Nuno! Filipe! Venham cá depressa! — gritava a Ana, à porta dos gémeos.

— Rápido! Hoje temos um lanche especial, com bolo e tudo — juntava o Luís, entusiasmado.

— Mas o que é que aconteceu? Alguém faz anos?

— Há visitas?

— É por ser Sábado?

— Tiraste um "satisfaz plenamente" nalgum teste?

— Não, ao contrário! Foi a "Pulga" que tirou uma nega e como isso não acontece nunca, resolveu festejar!

E os gémeos, que aproveitavam todas as ocasiões para se divertirem, riam como uns tolinhos, só de imaginarem uma festa por causa da amiga ter tido uma negativa.

— Que gracinha! Se eu sabia não vos tinha vindo chamar! — barafustou a Ana, toda abespinhada.

— Temos visitas, temos! — disse o Luís, rindo-se também. — É uma senhora velhinha que foi viver para Chaves, quando nós éramos pequeninos e agora vem a Lisboa passar uns dias connosco. É muito amiga da nossa avó. Ajudou a criar a nossa mãe ...

— E é muito engraçada! — acrescentou a Ana, já esquecida dos remoques. — Chama-se Maria da Luz e a minha mãe chama-lhe tia Luzinha. Fala sem parar, com muitos gestos, com uma cara muito alegre ... Ri-se por tudo e por nada, nem parece ter a idade que tem ...

— Não sabia que a tua mãe era de Chaves! — admirou-se o Filipe.

— Não, não é de Chaves, é daqui de Lisboa. Ela é que parece que foi para Chaves, quando o marido morreu ... deve ter lá uma Quinta enorme, cheia de árvores, de vacas ...

— És palerma! Não vês que Chaves já é uma cidade?

— E isso que tem? Pela conversa dela, vive há dez anos numa Quinta! Porque é que não pode haver quintas no meio da cidade?

— É um bocado disparatada essa da Quinta no meio da cidade!

— E nunca mais veio a Lisboa?

— Como é que eu posso saber se ela não tem vindo a Lisboa?!

Entraram na sala em que a D. Helena e a tia Luzinha conversavam animadamente, em frente a uma mesa recheada de biscoitinhos e com um enorme bolo de chocolate no meio. A senhora era pequenina, vestida de cores claras, e tinha realmente um ar simpático e alegre.

— Venham cá, meninos! — disse a D. Helena para os gémeos. — Já falei muito de vocês. Tenho aqui uma amiga que está cheia de vontade de vos conhecer!

— Então são vocês os famosos gémeos? Realmente são iguaizinhos um ao outro! E então contem-me lá: têm feito muitas patifarias ultimamente?

Os gémeos nem acreditavam no que ouviam. Parecia que a senhora os conhecia desde pequeninos! E falava com uma tal naturalidade e tanta alegria que quase dava a impressão de ser mais nova que a mãe dos amigos!

O que os gémeos não sabiam é que a Tia Luzinha fora casada durante muitos anos mas nunca pudera ter filhos. E adorava crianças! Isso trouxera-lhe uma forma muito especial de lidar com todas as que conhecia. Via-se que a D. Helena também gostava muito dela pela forma afectuosa como a olhava.

ff

— Então! E a escola? — continuava ela.

— A escola ... bem ... — balbuciava um dos gémeos.

— Vai sempre bem, a escola — ajudou a Ana. — Principalmente a Ciências em que somos todos uns craques!

— A Ciências? Só a Ciências? E o resto? E as vossas brincadeiras? Contem-me lá as vossas brincadeiras! Quando eu tinha a vossa idade era muito aborrecido ... Tinha uma professora que ia lá a casa dar-me lições. Não tinha ninguém com quem brincar ...

— Então nunca brincava?

— Brincava, claro, mas brincadeiras muito sozinhas ... Havia um grande jardim à volta da casa e eu gostava de andar de bicicleta e subir às árvores ... só gostava de brincadeiras de rapazes. Passava a vida a rasgar o vestido e a esfolar os joelhos! Depois, era um drama para esconder da minha mãe a roupa estragada e as mazelas ... tinha uma criada velha que era muito minha amiga e me ajudava sempre ... mas isto não vos interessa. Falem-me mas é de vocês!

Era realmente uma maravilha aquela tia Luzinha que falava com muitos gestos e tinha uns enormes olhos, muito expressivos. Daí a nada já estavam os quatro à volta dela, falando entusiasmados das aventuras em que se metiam, da escola, das alcunhas que punham aos professores e dos jogos que mais gostavam. Ela interessava-se por tudo, fazia perguntas, falava, falava ... Até já tinham combinado uma próxima ida a Chaves, mal as aulas acabassem!

— A Quinta é muito grande! — explicava a senhora. — E estou um bocadinho farta de lá estar sozinha, apesar de ser lindíssima, no Verão. Até podem comer fruta directamente das árvores! Há pereiras, macieiras, pessegueiros ... E também temos patos, galinhas, ovelhas ... Uma coelha teve uma ninhada de coelhinhos na véspera de eu vir para Lisboa!

— Que giro! Quem me dera ver os coelhinhos! — suspirou a Ana, rendida aos encantos da Tia Luzinha.

— E eu comer fruta em cima das árvores!

— Porque é que foi viver para Chaves? — perguntou, de repente, o Luís.

— Isso são histórias muito compridas ... Eu criei-me em Sacavém, numa casa antiga ... Quando eu era pequena não havia vivalma, quilómetros em redor. Era por isso que eu era uma criança muito sozinha ... Só havia quintas naquela zona. Era um paraíso, embora muito isolado. E eu acabei por me casar com um vizinho que morava ... imaginem lá, a quilómetros da nossa casa, noutra quinta!

— Lembro-me muito bem do Tio Francisco! — disse de repente a D. Helena. — Falava muito pouco ....

— Pois é! — riu-se a Tia Luzinha. — Deve ser por isso que eu sempre fui muito faladora! Para contrabalançar ... pois o meu marido era Engenheiro e trabalhava lá em Sacavém, num laboratório. Quando casamos fomos morar para um dos primeiros prédios que se construíram na vila. Aquilo foi crescendo, crescendo ... e tornou-se muito feio. Prédios muito grandes no meio da confusão, sem árvores, sem nada ... Assim, quando o Francisco desapareceu, fui para Chaves, onde ainda conservo a casa dos meus pais. Reencontrei a minha solidão de menina ... e muitas outras coisas boas que não podia ter naquele andar apertado — e a Tia Luzinha calou-se de repente, como se estivesse a falar para dentro dela própria. — É verdade! As recordações também são como as cerejas, vêm umas atrás das outras ... Agora que me lembro do nosso andar de Sacavém, estou-me a lembrar de outra coisa ... De quatro meninos que moravam no andar de cima e eram por acaso muito parecidos com vocês. Dois deles até eram filhos de um colega do Francisco, lá do Laboratório ... E eu falava muito com a mãe deles. Éramos vizinhas, estávamos sempre em casa ... Eram danados, os catraios. Muito vivos ... Pois eles estiveram metidos numa grande aventura, numa época muito especial ...

— Uma grande aventura? Que aventura?

— E eram parecidos connosco? — admirou-se a Ana.

— Mas parecidos connosco, como? Se já foi há tanto tempo ...

— Não foi há tanto tempo como isso! — acudiu a senhora. — Foi há precisamente vinte anos ... Quando vocês crescerem vão descobrir que o tempo passa muito depressa e que vinte anos não são nada, desaparecem num instante. Pois, pensando bem, os tais meninos eram realmente iguais a vocês! Que engraçado!

— E a aventura deles? Conte-nos a aventura deles, Tia Luzinha!

— Conte! Conte depressa!

— Então lá vai ...


Inclusão: 29/04/2020