L. A. & Cª no meio da revolução

Texto de Maria Mata
Ilustrações de Susana Oliveira


Uma prisão original


capa

— Nuno! Nuno! — chamou, num sopro, o Filipe.

O Nuno olhou para todos os lados mas não via ninguém. O barulho que os dois faziam no forro era abafado pelo estardalhaço da rua.

Filipe, com medo que os ladrões ouvissem, não se atrevia a levantar a voz.

— Nuno! Nuno! Cá em cima!

O Nuno esbugalhou os olhos para cima e deu com as caras enfarruscadas do irmão e do Luís, a espreitar por uma frincha aberta no tecto.

— Como é que ... chegaram aí? — balbuciou baixinho, estupefacto.

— Depois contamos! Agora, vamos descer!

O Luís, com todo o cuidado, segurou o amigo por um braço e ajudou-o a descer sem barulho. Num ápice, Filipe cortou com o canivete as cordas que prendiam o irmão.

— Cá vou eu! — sussurrou o Luís, descendo a seguir.

Estavam os três num quarto espaçoso, mas quase sem móveis. Uma mesa coberta de uma mistura confusa de coisas, algumas tábuas encostadas à parede e duas cadeiras constituíam todo o mobiliário. Pelas janelas, apesar de fechadas, entrava a barulheira da rua.

— E agora? Eles estão cá os dois! E estão nervosíssimos ... Sempre a andarem de um lado para o outro, sempre aos berros ... Se entram de repente, que fazemos? — sussurrou o Nuno, esfregando os pulsos, magoados pelo esforço que fizera.

— Já te digo o que fazemos! — e à guisa de resposta, o Luís pegou numa das tábuas que estavam encostadas à parede, e escondeu-se atrás da porta.

Nem de encomenda! Mal o Luís acabou de se esconder, a porta abriu-se e o gordo, o mesmo gordo que tinha metido o Nuno na mala do carro, entrou com um ar muito mal humorado. Mas não teve tempo de se refazer do espanto! Pum! Com toda a força o Luís deu-lhe uma tal pranchada na cabeça que, num segundo, estendeu-o ao comprido.

— Deus meu! — disse muito nervoso, olhando a sua obra. — Espero não lhe ter batido com força demais!

— Bem o merece! — respondeu o Nuno. — Fartou-se de me dar pontapés e murros! O grande cobarde!

— Vamos mas é fugir! Se o outro nos apanha estamos fritos!

— E os papéis? Não nos podemos esquecer das pastas! — lembrou o Filipe.

Mas não tiveram tempo para mais nada. À entrada da porta, assomava, naquele momento, o falso "tio" dos gémeos que, à luz do dia, não se parecia nada, mesmo nada, com o verdadeiro.

O Luís, que ainda não tinha tido tempo de largar a tábua, deu um salto para trás, na direcção da porta. Mas o homem nem o viu! Em vez de um Nuno, manietado e no chão, viu dois Nunos, em pé, exactamente iguais e sem cordas. E, ao lado, estendido ao comprido, o seu comparsa!

Teve uma reacção inesperada! Deu meia volta, enfiou pelo corredor até à porta da casa e desceu as escadas quatro a quatro!

Os três ficaram aparvalhados a olhar uns para os outros.

— E os papéis? Vamos procurá-los depressa enquanto este não acorda! — disse o Filipe. — E não nos podemos esquecer que são duas pastas ...

— Ora ... este só acorda se a gente quiser! — respondeu o Luís, repetindo no ar o gesto de há pouco.

— E o outro? Deve estar encurralado ao fundo das escadas! Isto é, se o blindado continuar a atravancar a porta!

— O quê?! — espantou-se o Nuno. — Mas afinal o que é que se está a passar na rua?! O que é este barulho todo?!

— Depois contamos-te ... agora não há tempo!

— Talvez tenha chegado a hora de telefonarmos à polícia! E se o patife não conseguiu sair e ainda volta para cima?!

— Vão ver o que se passa! — disse o Luís. — Eu fico aqui a tomar conta deste para o que der e vier.

Depois de uns segundos de hesitação, os gémeos correram para as janelas.

— Tenho uma coisa para te dizer que ainda não disse a ninguém! — sussurrou o Filipe para o irmão. — Estão a fazer uma Revolução para nos dar a Liberdade! Sabes o que isto quer dizer? Sabes o que isto quer dizer? — e quase chorava.

O Nuno, por sua vez, olhava para ele com um ar aparvalhado.

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- Não sabes? Não te lembras? A mãe ... a mãe dizia que ... o pai ...

— O pai ... o pai ... — repetia maquinalmente o Nuno, como se estivesse a sonhar.

— O pai vai poder voltar, agora! Já temos a Liberdade que a mãe dizia ... para o pai voltar! Anda ver! — e o Filipe puxou o irmão pelo braço, em direcção à janela.

Entretanto o blindado movera-se para o meio do Largo e os gémeos puderam ver o vulto do bandido, tentando escapulir-se, o mais rápido que podia, pelo meio das pessoas. Mas, só o simples facto de correr pelo Largo fora, tentando abrir caminho à bruta, tornou-o logo alvo de suspeitas! E, de repente, os gémeos começaram a ouvir vozes que gritavam: "Agarrem que é da Pide!", "Agarrem que é da Pide!"

— O que é que aquilo quer dizer?!

— Não faço ideia, mas parece que tem um efeito mágico! Olha como correm atrás dele!

Passados poucos segundos já o homem estava imobilizado, no meio de uma pequena multidão.

O Capitão assomara a uma das janelas do Quartel, observara a cena e gritou pelo megafone: "Não se esqueçam que não se deve atentar contra a liberdade de cada um sem que primeiro seja julgado!"

— Olha, olha! Os soldados foram busca-lo!

Com efeito, três soldados tinham-se aproximado do grupo que o segurava e, tinham-no enfiado no interior de um blindado, o mesmo que antes bloqueava a porta de entrada.

— Ainda bem que o prenderam lá dentro! — disse o Nuno, sentindo um certo alívio. — Apesar de só ter razões para o detestar, cheguei a ter medo do que lhe pudesse acontecer ...

— É verdade ... Parecia que o queriam desfazer em pedacinhos! — respondeu o Filipe. — Livra! Não queria cair nas mãos de uma multidão assim furiosa!

— É essa história da Pide, de certeza ... — concluiu o outro, pensativo.

— Bom, este, para já, está arrumado ... Meu Deus! — lembrou de repente o Filipe. — E a Ana? Esquecemo-nos da Ana!

— A Ana? Ela está com vocês?! Onde?

— Deve ter ficado no telhado ... com os soldados!

O Nuno nem se espantou com a nova surpresa. Era só mais uma! A Ana, em cima do telhado, acompanhada de soldados! Esfregou os olhos para ter a certeza que estava acordado. Mas estava mesmo acordadíssimo!

— Vamos depressa buscá-la! — disseram os dois, antegozando a perspectiva de voltarem a subir ao telhado.

Mas ambos tiveram uma desilusão! Ana roubou-lhes o pretexto. Radiante, já assomava ao alçapão e descia, desta vez ajudada por um soldado que, depois, fez um gesto esquisito, em forma de "V", utilizando dois dedos.

— Estes são os meus heróis! — disse, pregando um grande beijo nos dois gémeos. — E este está a ser o melhor dia da minha vida!

— Pois é, mas ainda temos o gordo ali, estendido no chão!

— E ainda não procurámos as pastas com os malditos papéis!

— Eu sei onde estão! Estão em cima da mesa, no meio de uma grande barafunda! — anunciou o Nuno, triunfante.

O Luís continuava de tábua na mão e o homem estendido no chão tinha agora as mãos e os pés amarrados com a mesma corda que lhe servira para atar o Nuno.

— Assim estou mais descansado — disse à laia de justificação. — E olhem: Encontrei as duas pastas! — o Luís tinha os olhos muito brilhantes. — Nem precisei de procurar! Estavam ali, no meio de uma grande tralha! Espero que esteja tudo direitinho!

— Tem de estar! — disse o Nuno. — Eu estive sempre aqui dentro e não consegui pregar olho durante toda a noite. Eles quase nem tocaram na mesa ... A pasta que roubaram ao vosso pai já cá estava, de certeza. Pousaram aí a outra quando chegamos e nunca mais quiseram saber dela! A única coisa que eles queriam era telefonar ...

— Para a América, com certeza ... — lembrou a Ana.

— Acho que sim, só que não conseguiam. O telefone está noutro quarto mas eu ouvia-os muito bem ... Passaram a noite e o dia todo, até agora, a tentar. Mas deve ter havido uma grande avaria nos telefones ... Estavam desesperados! O mais alto berrava com o gordo ... Passaram o tempo todo a andar de um lado para o outro. Pareciam ursos enjaulados! Quando estava mais furioso, o gordo dava-me pontapés e ameaçava-me ... Dizia que me ia levar para os Estados Unidos para me vender!

— Não deixava de ser uma boa ideia! Ficava só um para me amolar o juízo! — brincou a Ana.

— Já cá faltava a espertinha com a mania que é engraçada! Grande medricas!

— Mas afinal, o que aconteceu ao que fugiu? — quis saber o Luís.

— Pois é, ainda não te contámos ...

— Nem imaginas! O tipo a tentar fugir no meio da confusão! E toda a gente a correr atrás dele, aos berros de: "Agarrem que é da Pide"!

— Foi apanhado em segundos! Está dentro de um blindado ...

— É verdade! O que é que quer dizer Pide?

— A Pide é a polícia política — explicou o Luís. — Prendem as pessoas que não são por este governo ... O pai até tinha um conhecido que estava na cadeia por causa disso, por causa da política ...

— Agora percebo! Se calhar também querem acabar com essa tal polícia política ...

— Sim, e daí que desatasse tudo a correr atrás dele ... e os soldados irem-no buscar para o prender no blindado! Agora bate tudo certo!


Inclusão: 29/04/2020