A REVOLUÇÃO DESFIGURADA
A Falsificação Estalinista da História

Leão Trotski

Resposta a Um Contraditor Bem Intencionado


Caro camarada:

Recebi a sua carta de 6 de Agosto, datada em Zaporoje, onde se encontra provisoriamente. Não tenho razão para duvidar que lhe tenha sido inspirada polas melhores intenções. Mas creio, com não menos firmeza, que os caminhos que conduzem directamente ao Termidor são revestidos de idênticas boas intenções.

Trabalha-se hoje bem mais energicamente a melhorar as vias termidorianas, do que os caminhos vicinais russos.

Quer você convencer-me do dano causado pola oposição em geral e pola «super-industrialização» em particular, e para isso utiliza como exemplo a lição que se colhe de Dnieprostroï(1*), onde se encontra presentemente. Escreve você na sua carta:

«Como prova abundante disso (quer dizer, da nocividade duma exagerada industrialização), pode-se utilizar a decisão sua [?] de apressar a marcha do Dnieprostroï, de que não se terá necessidade durante longo tempo e que, além disso, é construída segundo um projecto completamente ignaro...»

Seguidamente desenvolve você um grande número de outras considerações, acumulando-as, dando assim a toda a carta (permita-me que francamente o diga) um carácter bastante confuso. E de cada vez volta ao mesmo Dnieprostoï que, na sua opinião, «se apresenta como uma pedra de toque, como um meio infalível de analisar o que o senhor (quer dizer: eu) propõe que se faça».

Respondo à sua carta porque me parece ser, no mais alto grau, o produto típico duma forma corrente já de pensar existente no Partido e que se caracteriza por estes dous traços: incapacidade teórica de ser lógicos e, como conseqüência, negligência perante os factos.

O modo de pensamento dos Marxistas tem de ser infinitamente rigoroso e exigente: não admite lacunas, fossas, nem grosseiros ajustamentos de peças. Precisamente por isso é que tem estritamente em conta os factos; sem se fiar no ouvido nem na memória e controla partindo das fontes. A maneira de pensar do cidadão médio é trivial, aproximativa e erra, tacteia sem olhar em frente; não tem nenhuma necessidade duma rigorosa exatidão do ponto de vista dos factos. Isso é, sobretudo verdadeiro em política e é bem mais verdadeiro ainda na política de fracção. Apanhado em flagrante delito, pode também servir-se sempre dum amigo, que ouviu com os próprios ouvidos. A sua carta, infelizmente, faz parte desta última categoria...

Tudo o que diz sobre o Dnieprostoï ouviu-o sem dúvida dum amigo cuja falta de seriedade é evidente. Escreve que «se realiza a minha decisão de acelerar a marcha do Dnieprostoï». De que decisão se trata? Em que qualidade e com que autoridade podia eu adoptar semelhante resolução? Como o poderia ter feito, sobretudo em 1925, quando todas as decisões eram tomadas nas minhas costas polo Septumvirato fraccional(2*) e passavam depois, por simples formalidade, polo Buró político?

Ouça você: eis como na realidade se passaram as cousas. Durante o verão de 1925, o Conselho da Defesa e do Trabalho tomou a decisão — em que não participei — de nomear uma Comissão do Dnieprostoï sob a minha presidência. O princípio da construção duma central hidroelétrica tinha sido adoptado dous ou três anos antes. A organização que foi encarregada disso fez grandes trabalhos de estudos prévios e de cálculo. Fui completamente estranho a tudo isso. A minha Comissão, segundo a decisão do Conselho da Defesa e do Trabalho, tinha por missão verificar o projecto e os cálculos em dous ou três meses, para poder introduzir no orçamento, previsto para 1925-26, os primeiros créditos destinados a esta construção. Neste caso como em muitos outros, defendi um ponto de vista segundo o qual era preferível, dada a nossa miséria, calcular e verificar durante mais dous anos do que prolongar inutilmente de dous meses a execução dos trabalhos. Precisamente foi defendendo este ponto de vista que, graças a certas diligências, consegui que o prazo fixado para os trabalhos da comissão fosse prolongado por mais um ano. Como vê, isto não se parece nada com «a minha pressa» da que você fala. Os homens mais competentes do país e do mundo foram levados a trabalhar na verificação do projecto. Realizou-se uma larga troca de pontos de vista na Imprensa entre técnicos e economistas. Pola minha parte, nenhuma pressão foi exercida, quer sobre a Comissão, na qual estavam representadas todas as instituições económicas, quer, e com maior razão, sobre a Imprensa. De resto, não teria podido exercer nenhuma, dado o conjunto da situação que se tinha criado nas esferas superiores do Partido e dos Sovietes. Isto se passava em 1925-26, quando a história do Partido e da Revolução tinham sido refeitas de novo e quando Molotov se havia tornado teórico e Kaganovitch administrava Ucrânia...

É verdade que intervim na Imprensa, assim como nas sessões do Comitê Central, contra generalizações, inspiradas na inteligência do cidadão médio, tendentes a afirmar que o Dnieprostoï, no conjunto, excedia os nossos meios. Foi com argumentos deste género que se levantaram um dia alguns «amigos do povo» contra a construção do Transiberiano que, diga-se de passagem, era um empreendimento infinitamente mais difícil para a Rússia de então do que é para nós o Dnieprostoï. Todavia, a solução a dar à questão geral do ritmo da industrialização, não devia de maneira nenhuma resolver o problema particular que consistia em saber quando e em que proporções seria preciso construir o Dnieprostoï, e em geral, se seria preciso encará-la. A Comissão que eu dirigia apenas devia preparar os elementos que permitissem dar uma solução a este problema. As cousas nem chegaram tão longe. A luita contra o «trotskismo» transformou-se numa das suas ramificações, em luita contra o Dnieprostoï. Os dirigentes das diferentes instituições, e sobretudo os dos caminhos de ferro, de quem você fala por forma tão pouco elogiosa, acharam ser o seu dever sabotar por todos os meios o trabalho da Comissão. A única norma que guia certos sábios do Estado consiste, como sem dúvida deve saber, em dizer «barbeado» quando eu digo «tosquiado». Ora, como devido ao pequeno avanço dos trabalhos, eu não tinha emitido opinião definitiva sobre o projecto e sobre o prazo em que o Dnieprostoï devia ser terminado, as instituições faziam simplesmente arrastar as cousas, travavam, sabotavam e lançavam «rumores». Acabei por pedir que fosse libertado das funções de presidente da Comissão, no que consentiram. Depois disso, num prazo extraordinariamente curto, de apenas algumas semanas, a Comissão realizou todo o trabalho, formulou as suas conclusões e fê-las adoptar polo Conselho da Defesa e do Trabalho. É muito possível que a Comissão se tenha deixado guiar polo nobre desejo de mostrar que ela era competente.

Decerto também lhe teria sido transmitida de cima alguma ordem animadora. As cousas, com efeito, marcharam a um ritmo «forçado». Mas nada tive a ver com a verificação definitiva dos números e dos planos, nem, com mais forte razão, com os prazos fixados.

Enquanto fui presidente da Comissão, Estaline e, conseqüentemente, Molotov, intervieram como resolutos adversários do Dnieprostroï. Adoptando o tom dos «filósofos camponeses», Estaline emitia axiomas do género: construir o Dnieprostroï é, para nós, o que seria a compra dum gramofone para um camponês. Quando após a minha demissão se deu uma viragem de 180º, ante a qual exprimi a minha surpresa numa sessão do Comitê Central, Estaline explicou que antes tratava de cinco centos milhões enquanto que agora se tratava apenas de cento quarenta milhões. Tudo isto está registrado nas actas dum Pleno do Comitê Central. Muito simplesmente, Estaline demonstrou por esse modo que não compreendia nada quanto ao fundo do problema, e que o interesse que manifestara em relação ao Dnieprostroï se limitava a considerações acerca de combinações pessoais. Tinha-se falado dos quinhentos milhões a respeito de novas fábricas que deviam consumir a energia do Dnieprostroï. Em números redondos, o preço de custo tinha sido fixado na época em 200 a 300 milhões. Juntando a isso o Dnieprostroï, atingiam-se aproximadamente os quinhentos milhões. Mas estes estabelecimentos estavam incluídos nos planos de construção dos respectivos ramos da indústria. Não era o Dnieprostroï que tinha necessidade deles, mas sim eles necessidade do Dnieprostroï.

A última palavra a respeito destas novas fábricas devia caber à indústria química, ao centro da indústria metalúrgica, etc. No meu tempo, a Comissão apenas abordara o exame deste problema. Após a minha saída, foram resolvidos três movimentos em dous tempos; dir-se-ia que alguém tinha infundido vida à Comissão.

Neste breve esboço, que pode ser controlado texto em mão demonstra claramente com que leviandade de espírito entrou você na via da criação de certos mitos.

Não há razão, contudo, para se sentir especialmente envergonhado. Não é o primeiro nem será o derradeiro. Existem dezenas e centenas de outros... criadores de legendas. A amostra mais evidente — o exemplo clássico, poder-se-ia dizer — é o mito das fábricas Putilov. Quase toda a humanidade cultivada sabe agora que em 1923 eu quis «fechar» estas fábricas. Aparentemente, este crime é contraditório daquele de que me acusa: no Dnieper, eu teria decidido «construir» o que não tínhamos necessidade; no Neva, estava decidido a fechar aquilo do que nos era indispensável. Deve saber, creio eu, que a questão Putilov teve um papel enorme em tudo o que se chamou a luita contra o «trotskismo», sobretudo durante a sua primeira fase. Muitos relatórios e resoluções, não só dos nossos Congressos e Conferências, mas também dos da Internacional Comunista, contêm alusões a este respeito. Quando do V Congresso, a delegação francesa, ao conversar comigo, interrogoume procurando saber porque tinha querido encerrar uma fábrica que constituía uma das fortaleças de ferro da ditadura do proletariado. A resolução do XV Congresso até menciona novamente a fábrica Putilov.

Eis o que na realidade se passou: Rikov, que em 1923 foi nomeado pola segunda vez presidente do Conselho Superior da Economia — Rikov e não eu — interveio junto do Buró Político, propondo fechar este estabelecimento. Segundo os cálculos do Conselho Superior da Economia Nacional, dizia ele, esta fábrica não serviria para nada no decurso da próxima década. Seria, por conseguinte, um fardo que a nossa indústria metalúrgica não teria forças para suportar. O Buró Político votou a favor do encerramento. Eu não representava nada, nem no Conselho Superior da Economia nem no Gosplan (Pano do Estado), nem na indústria de Leninegrado. Não apresentei sobre este ponto nenhuma proposta que me pertencesse. Como membro do Buró Político, era obrigado a decidir a questão baseando-me no relatório de Rikov. O problema geral da industrialização, em si mesmo, não resolve nem a questão de Putilov nem a do Dnieprostroï. Estaline, depois de ouvir o relatório de Rikov, votou também polo encerramento. De seguida, ante o protesto de Zinoviev, este problema recebeu uma nova solução, fora do Buró Político e pola via fraccional. Numa das sessões seguintes do Buró Político, Rikov acusou Estaline de ter concluído um compromisso com Zinoviev, deixando-se guiar por considerações estranhas aos negócios. Eis como se deu o meu atentado contra a fábrica Putilov. O que é admirável é que a resolução do XV Congresso, repetindo a lenda da fábrica Putilov, foi adoptada por proposta de Rikov. O meu crime tinha-se limitado de facto a votar uma proposta emitida polo próprio Rikov! É incrível, dirá você. Mas houve tantas cousas incríveis!

No momento em que escrevo esta carta, abro por acaso um folheto publicado polas Edições do Estado, escrito por certo Chestakov intitulado: Aos lavradores. Sobre as resoluções do XV Congresso. Informo-me aí, a pgs. 49, que Trotski, «em seu tempo entregou ao Comitê Central do Partido uma declaração exigindo o encerramento das imensas fábricas Putilov e de Briansk». Não se diz por que o exigia. O facto é citado para desmascarar o suposto «amor da oposição polo obreiro». «Eis como são estes super-industrializadores, exigem o encerramento das imensas fábricas Putilov e de Briansk para prejudicar os operários». Em relação à Putilov, já relatei o que se passou e o que eu sei. Quanto a Briansk, não estando informado, nada lhe podo dizer. Talvez tenha sido simplesmente acrescentado, para completar a colecção. Duma maneira geral, seria difícil conceber libelo mais insolente e mais audacioso do que esta brochura oficiosa sobre as resoluções do XV Congresso. Têm surgido nos nossos dias filibusteiros da literatura em quantidade, prontos para tudo. Em 1882, Engels escrevia a Bernstein:

«Tais são os nossos senhores literatos. A exemplo dos escritores burgueses consideram que têm o privilégio de nada estudar e de tudo discutir. Criaram-nos uma literatura que, pola sua ignorância da economia, o seu utopismo e a sua insolência, não tem igual».

Isto é duma terrível actualidade. Os Chestakov deixaram mesmo muito para trás os literatos dessa época, tanto pola sua ignorância como polo seu utopismo oficial e, sobretudo, pola sua petulância. Num momento de perigo, estes senhores sem honra nem consciência serão os primeiros a atraiçoar. Em caso de derrota do proletariado cantarão louvores aos vencedores no mesmo estilo mendicante orientado para a pitança oficial.

* * *

Intervindo contra medidas de grande envergadura, escreve você, não sem certa ironia:

«A nossa época não é a dos grandes problemas.

De momento não há grandes reformas, a não ser nos caminhos de ferro, onde damos assim o golpe de misericórdia às vias, às locomotivas, e onde estamos a caminho de terminar com os vagões...

Tudo isto se chama “expedição despersonalizada”(3*), centralização das oficinas, etc.»

Segundo o texto da sua carta, poder-se-ia chegar à conseqüência que aqui também a culpada é... a oposição. Como na cantiga, lembra você?: «A culpa é de Voltaire»(4*). Seja. Fomos tornados responsáveis do encerramento ou semi-encerramento de Putilov e até das fábricas de Briansk. Suportamos também a responsabilidade da inauguração ou quase-inauguração do Dnieprostroï. Mas pode tornar-nos responsáveis da reforma de Rudzutak? Não se poderia, também neste caso, encontrar qualquer laço de parentesco com o despacho N.º 1042, do qual Lenine e Djerzinski disseram no seu tempo que tinha salvo as locomotivas e os vagões, mas que em 1924, isto é, quatro anos depois, foi denunciado como causador — ou quase — da destruição dos caminhos de ferro? Não se poderia achar que fui eu quem «arrastou» o inexperiente Rudzutak polo caminho da “expedição despersonalizada” de atrás para adiante? Se os seus próprios meios não bastam para resolver este problema da história e da filosofia, dirija-se a Iaroslavski, a Gussev e aos outros guardiões da lei; estes lhe fornecerão directamente tudo do que necessita — e ainda mais!

Visto que tenta abordar os problemas económicos gerais tomando como ponto de partida casos particulares (não faço objecção a este método, dum ponto de vista de princípio), proponho-lhe que fixe a sua atenção num exemplo. A industrialização está intimamente ligada à política das concessões. Lenine outorgava a esta última uma importância enorme. De facto, os resultados obtidos foram mais do que modestos. Como é evidente, houve para isso causas objectivas. Mas, também neste domínio, os métodos de direcção representaram um papel não secundário, e que decerto não é dos menos importantes. Vou dar-lhe um exemplo, que o aconselho a analisar cuidadosamente (melhor do que o fez no caso de Dnieprostroï) e, tirando partido do método da autocrítica, a submetê-lo ao julgamento do Partido. Convirá que se apresse, no entanto: a autocrítica está já dando o seu derradeiro suspiro...

O meu exemplo refere-se à nossa extracção do manganésio. Os nossos mais importantes jazigos deste metal, os de Tchiaturi, foram cedidos em concessão, como você deve saber, à American Harrimann. Os de Nikopol são explorados por nós próprios. Como homem familiarizado com os assuntos da metalurgia sabe, provavelmente, que o manganésio tem uma aplicação muito unilateral, e que, por esse mesmo facto, o seu mercado é bastante limitado. O manganésio de Nikopol é duma qualidade nitidamente inferior, muito mais difícil extrair e implica superiores despesas de transporte. Segundo cálculos aproximados que fiz na época e com a participação das melhores competências na matéria, o lucro diferencial por tonelada de manganésio, comparado ao de Tchiaturi, atinge entre 8 a 10 rublos. O que indica que quando uma tonelada de Tchiaturi origina um lucro de 4 ou 5 rublos, uma tonelada de Nikopol dá 4 ou 5 rublos de prejuízo. Segundo o contrato de concessão, nós recebemos um preço previamente fixado por cada tonelada vendida polo concessionário. A cada tonelada de Nikopol vendida por nós, corresponde um prejuízo. Se o Estado considera necessário reservar-se inteiramente a indústria de manganésio sem a dar em concessão (o defunto Krassin defendia esta tese e talvez com razão) torna-se necessário reduzir ao mínimo a exploração de Nikopol e desenvolver no máximo a de Tchiaturi. Então estaremos certos de obter avultados lucros. Ora, temos actuado exactamente ao inverso: depois de ter entregado em concessão Tchiaturi, começámos a desenvolver Nikopol investindo aí alguns dos milhões de que, como todo o mundo sabe, temos as bolsas cheias. Assim atingimos um duplo objectivo: vendemos o manganésio de Nikopol com prejuízo e eliminamos do mercado, graças a uma exportação deficitária, o manganésio de Tchiaturi, com o que reduzimos o nosso lucro sobre cada tonelada vendida polo concessionário. Numa palavra: à custa dum prejuízo em Nikopol, causamos outro em Tchiaturi.

De onde provém este hábil sistema de auto-sabotagem? Em casos idênticos, fala-se muito entre nós de erros de cálculo; encontra-se sempre um parente afastado, quando possível um pobrinho, que carga sempre com a culpa. Neste caso, contudo, não houve erro. Todos os cálculos tinham sido feitos antecipadamente. Todas as instituições tinham sido advertidas. Os documentos relativos a esta questão, com os dados necessários, existem nos respectivos arquivos. Foi o «feudalismo soviético» que representou aqui um papel fatal. Como nos é ensinado no caso da China, este feudalismo identifica-se inevitavelmente ao burocratismo, ao mandarinismo, que por vezes lhe está na origem. Tchubar e outros mandarins ucranianos desenvolveram o problema do manganésio de Nikopol encarando-o do seu «próprio» ponto de vista local. O ponto de vista de Kharkov entrava em contradição com o do Estado em geral. Num regime de ditadura centralizada do proletariado, a questão poderia ter sido facilmente resolvida com vantagem para toda a União e, por conseguinte, também para a Ucrânia. Mas, aplicando os métodos do feudalismo burocrático, invertera-se tudo. Por considerações que nada tinham a ver com o manganésio, chegou-se à conclusão como de todo impossível causar dano a Tchoubar; isso poderia ter arrastado uma alteração nas «relações de forças». Houve, pois, não um erro de apreciação económica, mas um cálculo político que apenas tinha um defeito: o de ser um plano profundamente corrompido.

Não tenho dados sobre o trabalho de Nikopol no tempo actual e sobre as relações deste com Tchiaturi. Mas, tanto quanto podo entender, duvido muito que a situação geral do mercado mundial tenha proporcionado a Nikopol os milagres com que contava, desprezando o bom senso, a direcção de Kharkov. Isso corresponde a uma grande perda de milhões. No entanto, isto não é mais do que uma suposição da minha parte. Poderá você talvez controlá-la e publicar os resultados? Se se verificar que me enganei, serei o primeiro a considerar-me ledo.

Mas voltemos ao Dnieprostroï. Dada a sua tendência para negligenciar os factos, não tenho razão nenhuma para acreditar em si quando diz que o Dnieprostroï tem demonstrado que a sua construção era prematura. A sua segunda afirmação, segundo a qual estaria sendo mal construída, é muito mais certa. Mas que podo eu aí fazer? Não se adiante aos Gussev, aos Kussinen, aos Manuilski, aos Pepper, aos Liadov e outros serventuários políticos, que demonstrarão que são eu o responsável, não só polas faltas cometidas no Dnieprostroï, mas também nas da construção do ferro carril Turquestão-Sibéria, em cuja vizinhança habito.

Diz-me sem cessar: «Pense nisso, reflicta no Dnieprostroï e reveja o seu programa de industrialização, para o qual arrastou infelizmente o Partido».

«Arrastou?». Como é isso? A super-industrialização foi condenada em todas as sessões do Partido. O Partido pronunciou-se contra ela com a unanimidade necessária. Os serventuários da literatura oficial escreveram a esse respeito centenas de folhetos. Montanhas de documentos foram espalhados por todo o país e, pode-se dizer, polo mundo inteiro. E todos sempre o mesmo tema: o «trotskismo equivale a saquear o camponês em proveito da super-industrialização». E agora, de repente, acha-se que é Trotski que «infelizmente» arrastou o Partido para este programa criminoso. Permita-me que lhe faça a pergunta: Que pensam do Partido e, sobretudo, da sua direcção, os que são adversários da oposição? Como podem dar um voto de confiança a tal direcção?

Escreve mais adiante:

«Experimentou-se falar a sua linguagem ao lavrador. E que resultou disso? A aliança entre camponeses e operários está abalada por anos, o que é grave, enquanto que o exército é camponês e o país camponês também; a colectivização é um pretexto para encobrir a percepção de subsídios; será necessário um século para a industrialização».

Estas poucas linhas sinceras contêm todo um programa, mesmo mais do que isso: toda uma concepção do mundo. Só que... que vento o terá levado com essas convicções para o Partido de Marx e Lenine? Tranquilize-se; é você quase um herói da época. Sai da ponta da sua caneta o que dezenas de milhares de camaradas pertencentes às camadas superiores têm na alma. No Partido de Marx e de Lenine deu-se uma profunda alteração e a sua carta reaccionária de cidadão médio, não é mais do que uma das inumeráveis manifestações disso.

«Experimentou-se falar a sua linguagem ao camponês». Quem experimentou? O Comitê Central. E nesse caso permita-me que lhe pergunte: porque ele «experimentou»? Começou por condenar, banir, deportar e depois se interrogou: «E se se experimentasse?» Mas então, deixe-me dizer-lhe, a que reduz o Comitê Central? Como aprecia a sua política? E a sua moral política? A sua posição não é atraente. Ou será a do Comitê Central que não o é? É isso exactamente o que dizemos nós.

Você pergunta: «Experimentou-se falar a sua linguagem ao camponês; e que foi que isso trouxe? A aliança entre lavradores e obreiros ficará abalada durante anos». Permita-me: é precisamente que toda a nossa discussão girava à volta da questão da aliança. E, contudo, é bem a oposição «que não quer a aliança com o campesino». Qualquer Manuilski poderia prová-lo. E, de repente, acha-se que a direcção teria abalado essa aliança por anos, simplesmente porque quis enbeber-se de «trotskismo». Que confusão é esta?

A sua desgraça é que, à força de ser «trabalhado» continuamente e da forma mais monótona, sem nenhuma base de princípio, esqueceu você a reflexão, a exatidão, a boa-fé. Assim como a cadeia fordista destrói o sistema nervoso, também a cadeia de documentos dos estalinistas desagrega os centros do pensamento. Você completa a sua confusão política com o galimatias dos comentários. Porque, afinal, a oposição publicou apesar de tudo uma plataforma e umas contra-teses para o XV Congresso. Todas estas questões foram analisadas muito claramente e de maneira tão concreta quanto o permite uma plataforma. E você nos atribui o programa das «medidas» aplicadas como um sentimento de pânico e de êxtase administrativo, causadas polo carácter errado de todo o rumo precedente. E se não é isso assim, então, porque foram elas causados? Se se admite, na seqüência duma trajectória socialista, dez anos após de Outubro, a necessidade de recorrer a um «arbitrário» destruidor (chamado não sei porquê «comunismo de guerra»), isso significa que, em geral, a situação não tem saída. Sendo assim, é a condenação da ditadura do proletariado no seu conjunto e os métodos de gestão socialistas. É dar-lhe a razão aos mencheviques e aos cães da burguesia em geral. É precisamente a isso que nos conduz, apesar das suas intenções, toda a casta dos parasitas ideológicos. Para eles tudo vai bem, tudo vai maravilhosamente bem até ao momento em que, de repente, tudo vai de mal em pior. Por que surge o mal assim, bruscamente, do bem? Por que, na seqüência duma aliança entre operários e camponeses, progressivamente consolidada, surgem umas medidas que abalam esta «aliança» por vários «anos»? Os parasitas de Estaline não se preocupam com esta questão. E, contudo, é ela que decide da sorte do socialismo.

É uma simpleza a sua afirmação, senhor, de que se experimentou falar a nossa linguagem ao camponês. As medidas desesperadas não eram deduzidas da nossa plataforma, mas do facto de não ter sido tomada em consideração em tempo oportuno. E ainda encontram-se maníacos da palavra, miseráveis, para contar aos operários que «a oposição pôs obstáculos» à armazenagem do trigo, que ela «desviou a atenção». De quê desviou ela a atenção? Da armazenagem do trigo? Era precisamente a oposição que disso falava; e, contudo, sois exactamente vós que desviais a atenção do Partido com a história do oficial de Wrangel! Tende cuidado, para que não sejais forçados amanhã a repetir esta «manobra», mas com uma extensão infinitamente maior.

«O exército é campesino, o país camponês também; a colectivização é um pretexto para encobrir a percepção de subsídios; será necessário um século para a industrialização». Apenas com estas palavras, vem à superfície todo o fundo do vosso pensamento. Porque não acaba o senhor de expressá-lo assim? A conclusão deveria ser a seguinte: Tendes decidido algo cedo, muito cedo, demasiado cedo, fazer a Revolução de Outubro. Dever-se-ia ter esperado ainda mais ou menos um século. Criar o poder dos Sovietes para manter simplesmente um exército camponês num país camponês, e para que a colectivização sirva de pretexto para a obtençao de subsídios... decerto, não, pois as despesas efectuadas para chegar a tal resultado são desmesuradas. Andou-se depressa demais, foi-se demasiado apressado em fazer Outubro. Eis o que exprime você através de todos os poros, quando rejeita a rima de documentos dos trapalheiros estudantes estalinistas e começa a deixar falar a sua natureza.

E de acordo com toda essa maneira de pensar, acrescenta de seguida:

«Penso que agora sois vós próprios a duvidar que já existam na China as premissas necessárias ao estabelecimento do poder dos Sovietes

A esse respeito só lhe podo responder uma cousa: o cidadão médio tornou-se audacioso e já coça o ventre em público. É certo que este espírito médio não tinha sido completamente eliminado em muitos revolucionários, não só após Outubro, mas mesmamente antes de Outubro. Apenas, outrora encondia-se; enquanto agora volta à superfície não só entre os intelectuais, mas também entre muitos antigos obreiros que se elevaram acima das massas, que receberam um cargo, que criaram um nome e podem contemplar as massas do alto, tanto na Rússia como na China(5*).

«Acaso se pode tratar o nosso povo de outra maneira? Que industrialização quer realizar você com os nossos mujiks? Talvez têm os chineses cabeça capaz de merecer o poder dos Sovietes?» O cidadão médio reaccionário devorou o revolucionário, não deixando mais que a pele e os ossos, e por vezes ainda menos.

Está a caminho de repetir, respeitável camarada, os sábios «argumentos» que nos foram expostos milhares e milhares de vezes, não só antes da Revolução de Outubro, não só dez ou doze anos antes desta, quando afirmávamos que na Rússia czarista, escrava, «mujik», atrasada, a revolução poderia conduzir o proletariado ao poder mais cedo do que nos países capitalistas mais avançados, mas até em 1917, depois de Fevereiro, nas vésperas de Outubro, durante Outubro e no decurso dos primeiros e penosos anos seguintes. Conte polos dedos: nove décimos dos «optimistas» dirigentes actuais, dos constructores do «socialismo integral» não acreditava sequer na possibilidade da ditadura do proletariado na Rússia. E para justificar a sua falta de fé argumentavam sobre a ignorância do mujik, tal como faz agora quanto à industrialização e aos sovietes na China.

Sabe o senhor como é que isso se chama? Como pode ser qualificado por uma só palavra? Chama-se degenerescência. Para outros, para muitos outros, é uma renascença, um retorno ao seu fundo natural de pequeno-burguês, momentaneamente triturado pola martelada do golpe de Estado de Outubro.

O pequeno-burguês não pode fazer política sem lhe criar mitos, legendas, mesmo mexericos. Os factos fazem-lhe face de maneira invariável, mostrando o seu aspecto mais inesperado, mais desagradável. Segundo a sua natureza, é incapaz de abarcar grandes idéias; como não tem nenhuma coerência, esforça-se por tapar os buracos por meio de suposições, de ficções, de mitos. Quando se resvala da linha proletária para cair na da pequena burguesia, torna-se mais indispensável ainda criar legendas. É que se trata então de trabalhar sem descanso na camuflagem, de ligar a jornada de ontem com a de hoje, de pisar a pés as tradições, aparentando ao mesmo tempo observá-las. É no decurso de semelhantes períodos que se criam as teorias feitas expressamente para comprometer os adversários de idéias no plano pessoal e, ao mesmo tempo, surgem os mestres nesta arte. A fé na omnipotência da táctica da intriga política expande-se. Multiplicam-se as mexericadas, sobrelevam-se, ganham classificação e depois são canonizadas. Cria-se um corpo de autores de documentos análogos aos dos alunos trapalheiros, muito fortes da confiança na sua própria irresponsabilidade. Dum ponto de vista exterior, tudo isso dá resultados verdadeiramente miraculosos. Na realidade, estes resultados são devidos à pressão das outras classes, transmitida por intermédio dos «mestres» do aparelho, dos intrigantes e dos autores de documentos escolásticos, que perturbam a consciência da sua própria classe e diminuem assim a força de resistência.

Voltaram-me à mão, por acaso, umas linhas que escrevi há cerca de vinte anos (em 1909):

«Quando a curva da evolução histórica se eleva, o pensamento social torna-se mais perspicaz, mais ousado, mais inteligente e aprende a distinguir imediatamente o essencial do insignificante e a avaliar, dum golpe de vista, as proporções da realidade. O pensamento apreende os factos que fluem e liga-os entre si polo fio da generalização... Mas quando a curva da política baixa instala-se a estupidez no pensamento social. É certo que na vida quotidiana persistem ainda restos de frases gerais que são reflexos de acontecimentos passados... Mas o conteúdo interior dessas frases foi levado polo vento; o precioso talento de generalização política desapareceu, não se sabe para onde e sem deixar vestígios. A parvoíce torna-se insolente e mostrando os seus dentes cacaranhados, troça de toda a tentativa séria de generalização. Sentindo que o campo de batalha lhe pertence, começa a actuar polos seus próprios meios».
(L. Trotski, vol. XX, A cultura do velho mundo, p. 310)

Não se incomode se a sua carta fez nascer em mim esta associação de idéias. Mas, bem o sabe, toda a cantiga perde o seu significado se se lhe suprime uma só palavra.

Para explicar o seu confusionismo, os seus erros e falhas, o pequeno burguês tem não só necessidade de mitos em geral, mas também dum manancial de que brote continuamente uma espécie de força demoníaca. O senhor sabe, provavelmente, que esta força é a encarnação mitológica da nossa própria fraqueza humana. E quem será mais fraco, do ponto de vista ideológico e na actual situação do mundo, do que o pequeno burguês? Ele vê uma força demoníaca em diversas cousas que dependem das suas condições nacionais, do seu passado histórico, do lugar que o Destino lhe fixou. Quando se trata, se podo falar assim, dum burguês sem mistura, a origem de todo o mal é, para ele, o comunista que quer espoliar os lavradores e os honestos trabalhadores em geral. Se é um democrata filisteu, o mal universal para ele é o fascismo. Num terceiro caso, são os estrangeiros, os metecos, os «boches», como se di na França. Num quarto caso são os judeus, etc., e assim sucessivamente até o infinito. Entre nós, para o homem médio do aparelho, para o pequeno burguês armado da sua carteira, essa origem universal do mal é o «trotskismo». Pessoalmente, você representa simplesmente uma variante «bem intencionada» desse tipo. Se se constrói mal o Dnieprostroï; se Rudzutak se deixa arrastar polos seus comboios valeiros; se ao corrigir apressadamente, polo artigo 107, os erros cometidos durante uma série de anos, se criaram erros perigosos — o «trotskismo» é o culpado. Qual outro poderia ser? Engels escreveu outrora que o anti-semitismo é o socialismo dos imbecis. Aplicando esta frase às nossas condições, o anti-«trotskismo» é o comunismo dos... que não são muito perspicazes. Dito de outra maneira: os autores da mitologia anti-«trotskista» sabem perfeitamente onde lhes aperta o sapato, mas contam com os «simples», cuja atenção pode ser desviada de forma doada das faltas cometidas pola direcção, atraindo-a para a origem universal do mal no mundo, ou seja, para o «trotskismo». Que lugar ocupa pessoalmente nesta engrenagem de enganadores e enganados?

Você está em qualquer lado, no meio deles, exercendo a função de elo de transmissão.

* * *

Escreve-me na sua carta:

«Exorto-o ardentemente, como amigo, a acabar com a sua presente posição. Não queira ser mais inteligente do que o Partido. Engane-se com a sua maioria, com essa maioria de funcionários, de homens do aparelho, de cidadãos médios, corrompidos e degenerados; mesmo que essa maioria tenha chegado realmente tão ao cabo, de qualquer modo não poderá nem transformá-la nem substituí-la por qualquer outra».

Que maravilhosas idéias! Não se poderia imaginar outras melhores. De resto nem sequer teve o trabalho de inventá-las. Deixou falar simplesmente o seu fundo de cidadão médio do Partido. Permita-me que lhe lembre que o espírito revolucionário colectivo é uma cousa, e outra o do rebanho de cidadãos médios. O espírito colectivo tem de ser conquistado sempre; o espírito de rebanho fornece-se já acabado, fabricado da véspera. Você já ouviu, com certeza, tagarelar sobre o «individualismo», a «aristocracia», etc. É assim que se expressa através de mexericos impudentes, o espírito gregário dos cidadãos médios, duma parte, e as faladas bisbilhoteiras de tagarelas, da outra.

O Partido tem necessidade, acima de tudo, duma linha política justa. É preciso saber e ousar defendê-la se necessário contra a maioria do Partido, mesmo contra a sua maioria real e ajudá-la assim a reparar os seus erros. Até no pior dos casos, nem mesmo é vergonhoso enganar-se com a maioria, se esta se engana naturalmente, tem por conta a sua experiência e aprende. Mas é isso o que nem mesmo está em causa precisamente. Desde há muito já, o aparelho engana-se em lugar da maioria e não permite que esta o corrija. É nisso que consiste a quinta-essência da «direcção» actual; é isso a alma do estalinismo.

O senhor considera que é preciso aceitar simplesmente a maioria existente tal como ela é. Se o Partido tivesse sido penetrado desse espírito, teria podido realizar a Revolução de Outubro? Teria podido imaginá-la sequer? Não, esse espírito é produto do último lustre. Antes do golpe de Estado de Outubro, os elementos colaboracionistas, de conciliação, de adaptação, de espírito pequeno-burguês agarravam-se a outras forças: ao movimento cultural liberal, ao educacionismo legal, ao patriotismo da época da guerra, à defesa nacional revolucionária de Fevereiro. Agora tudo isso sobe em força sob a bandeira do «bolchevismo» do aparelho, agrupa-se e treina-se batendo a oposição, isto é, o bolchevismo proletário. Conte quantos defensores actuais, veneráveis, de Outubro, protegendo-o contra «a oposição anti-soviética», estiveram nessa época do outro lado da barricada, e que, em seguida, durante os anos da guerra civil, desapareceram não se sabe para onde. O oportunismo procura invariavelmente apoiar-se sobre uma força já constituída. O Poder dos Sovietes é uma força. Todo o oportunista, pequeno burguês ou cidadão médio, tende a apoiar-se nele, não tanto porque é soviético, mas porque é poder. Os pseudo-revolucionários de toda a Europa, os antigos revolucionários devorados polo cidadão médio que dormitava neles, os antigos obreiros tornados dignatários vaidosos, os Martinov e os Kuussinen passados e presentes, podem, aferrando-se ao que existe, intervir como herdeiros directos de Outubro, e mesmo adquirir o sentimento de o serem.

Entre todas as espécies de «ex», ocupam actualmente um lugar muito sobressalente os ex-bolcheviques. Seria bom fazer um dia o seu recensamento. São os mesmos que, na qualidade de democratas revolucionários, aderiram em 1905 ao bolchevismo. Quando da contra-revolução, separaram-se do Partido; tentaram, com certo sucesso, instalar-se no regime de 3 de Junho; tornaram-se grandes engenheiros, grandes médicos, homens de negócios; fizeram-se os defensores e os compadres da burguesia; com esta, patriotas, entraram na guerra imperialista; a vaga de derrotas militares levou-os à Revolução de Fevereiro; tentaram ocupar as melhores situações no regime da «democracia»; arreganharam os dentes aos bolcheviques, que impediam a «ordem» de se estabelecer; foram furiosos inimigos de Outubro; depositaram as suas esperanças na Assembléia Constituinte; e quando, apesar de tudo, começou a constituir-se o regime bolchevique, lembraram-se bruscamente de 1905, apresentaram o seu ingresso no Partido, encarregaram-se da defesa da nova ordem e das antigas tradições; agora insultam a oposição servindo-se das mesmas expressões que aplicavam em 1917 aos bolcheviques. E são muitos assim. Veja apenas a Sociedade dos velhos bolcheviques. Esta é constituída numa boa metade, para não dizer mais, por antigos «militantes» intransigentes, que têm atrás de si um interregno de oito, dez ou doze anos, passado no seio da burguesia.

Todos estes burocratas estabilizados, «entorpecidos», um pouco embrutecidos, não podem suportar, sobretudo, a idéia da «revolução permanente». Para eles não se trata, decerto, de 1905 nem de dar vida artificial a antigas querelas de fracções relegadas desde há muito tempo aos arquivos. Tanto lhes tem arre como xó! Trata-se simplesmente, da nossa época, dum presente bem isolado dos abalos do mundo. Trata-se de garantirem, por uma «prudente» política externa, de construir o que se deixa construir e de chamar a tudo isso o socialismo num só país. O cidadão médio quer ordem, tranqüilidade, um ritmo moderado, tanto no económico como no político. Mais suavemente, mais lentamente. Não perdão a paciência, já chegaremos a tempo. Tenham paciência: já chegaremos. Não saltem as etapas. O país é campesino; na China há quatrocentos milhões de lavradores «ignorantes». Precisamos um século para a industrialização. Valerá a pena quebrar a cabeça a respeito de plataformas? Vive e deixa viver. Eis a substância do ódio contra a «revolução permanente». Ao dizer Estaline que nove décimos do socialismo estavam já constituídos no nosso país, dava uma satisfação suprema à burocracia tacanha e contente consigo própria. Construímos já os nove décimos ; quanto ao décimo que falta, já veremos. Nos últimos anos da sua vida, Lenine temia, sobretudo, esta responsabilidade colectiva dos indivíduos do aparelho e dos funcionários armados de todos os recursos do Partido dirigente e do aparelho de Estado.

E convida-nos você a capitular ante estes elementos impregnados do espírito cidadão médio, diante deste enorme vómito da História que se segue à Revolução de Outubro, mal digerida ainda? Enganou-se no endereço. «Reflicta de novo». Já reflectimos de novo. A sua carta apenas revela uma vez mais a imensa vantagem histórica que alguns milhares de bolcheviques-leninistas perseguidos têm sobre a massa quebradiça, néscia, sem idéias, dos funcionários, dos servidores ciumentos ou singelamente de espírito servil. Se nós tivéssemos chegado à sua conclusão —«não se pode transformar»—, não nos teríamos resignado; teríamos construído de novo; isto é, teríamos retirado os bons ladrilhos das velhas paredes, teríamos cozido uma nova fornada e com eles construiríamos um novo edifício num novo solar. Mas, por felicidade para a revolução, o seu trunfo — os vossos — ainda não chegaram tão longe. Saberemos encontrar os meios de estabelecer aliança com o núcleo proletário do Partido, com a classe operária. Pouco importa que sejamos perseguidos, que se ergam novas barreiras à nossa volta. Não abandonaremos nas vossas mãos nem as tradições dos bolcheviques, nem os quadros proletários do bolchevismo.

* * *

A propósito: um dia ou dous antes da minha partida de Moscovo, recebi a visita dum respeitável cidadão médio que queria ensinar-me de qualquer maneira a sua simpatia e o seu pesar, ou que, antes, procurava exteriorizar a sua impotência e a sua inaptidão congénita em face dos ameaçadores processos em curso no Partido e no país. Este digno militante do Partido declarou-me, no decurso da nossa conversa de despedida, que considerava como justa toda a política do Comitê Central; quanto ao regime existente no seio do Partido não era isento de erros. «Nisso — dizia ele — não há dúvida. E a deportação é absolutamente escandalosa». Assim se justificava, aproximadamente, este bravo funcionário. De resto, é preciso dizê-lo, não havia testemunhas. Quando lhe fiz a pergunta: «Como é, então, que uma boa política conduziu a um mau regime?» o meu visitante respondeu: «Tem havido erros isolados, mas “nós” corrigiremos. Todos, mas todos, com quem pude falar condenam a oposição, mas estão indignados com as deportações. Conseguiremos fazê-las suprimir» — disse este digno militante —. Fiz mofa do meu visitante e, se bem me lembro, disse-lhe algumas duras palavras, no género das que a você fui obrigado a dirigir. «Não conseguirão absolutamente nada, e amanhã, de seguro, aprovarão as deportações, porque não vos resta nada na alma». Naturalmente assim foi que as cousas se passaram.

Há pouco recebi uma carta dum outro «funcionário» um pouco menos importante. Este se queixa de eu não manter uma amistosa correspondência com ele, se bem que não esteja «de acordo» comigo, mas isso, dizia, não era uma razão. Muda de assunto nesse ponto para me descrever as modificações introduzidas nos seus serviços e que Ivan Kirilovitch engordou e toca violino. Uma bem intencionada «funcionária» deu-me os seus conselhos, aproveitando uma ocasião favorável: os homens só têm uma vida, e por isso não se deve chegar ao ponto de provocar o exílio, através de toda a espécie de oposições. As mulheres dos ex-jacobinos da época do Directório discorriam — é certo, mais com as coxas do que com a cabeça — exactamente da mesma maneira. Se se disser a esta «funcionária» que tem «apenas uma vida», que ela embria Thermidor, recitará uma citação literária tão encantadora que o próprio Iaroslavski se comoverá.

E eis que agora me aparece, falando, no vosso género, o mais «ideologicamente» e mesmo com certa paixão. Quere corrigir-me duma só vez dos meus erros, baseando-se no Dnieprostroï. E todos vós, pois sois legião, parecem esquecer que sois vós, quem enviou para as prisões centenas dos meus camaradas e eu próprio para o exílio. Se se vos dissesse isto cara a cara, arregalariam os olhos. «Sim, certamente que votámos qualquer cousa. É claro, não protestámos...» O cidadão médio do Partido prefere, em semelhante caso, representar o papel de Pôncio Pilatos, metendo os dedos no nariz com um ar benévolo. Se centenas de excelentes revolucionários, com idéias firmes, conseqüentes, heróis na sua maioria da guerra civil, transpuseram recentemente as portas da prisão, se enchem até as mesmas celas que os prevaricadores, os agiotas e a mais sinistra canalha, se agora voltam a aquecer com os seus corpos os antigos lugares do exílio czarista, tudo isso é, na sua opinião, simplesmente uma triste circunstância, uma imperfeição do mecanismo, um mal-entendido, um excesso de zelo. Não, queridinhos amigos, não podereis escapar-vos. Sois vós quem responde por isso e quem terá ainda a responder.

Nós, a oposição, estamos em vias de formar uma nova fornada histórica de verdadeiros bolcheviques. E vós, por meio da desonesta calúnia, pola repressão, submeteis à prova a todos, ajudando-nos a fazer a selecção. Há quem tenha medo de passar pola mesma cela que os prevaricadores e os agiotas. Esses «arrependem-se», reconhecem os seus erros e os guardas abrem-lhes as portas. São esses os melhores elementos? São esses, ao menos, os revolucionários? São esses, acaso, os melhores? São, acaso, revolucionários? Acaso são bolcheviques? E, no entanto, são esses que vão ocupar os postos donde são retirados os revolucionários autênticos. No Partido opera-se cada vez uma selecção dos «adaptados». Abandonam a oposição os cépticos, os vácuos, os homens de pouca fé, os diplomatas baratos, ou simplesmente as pessoas sobrecarregadas de família. E vão engrossar o número dos hipócritas e dos cínicos, que pensam uma cousa e em voz alta dizem outra. Uns justificam o seu acto por uma «necessidade de Estado». Outros, simplesmente atrelados ao carro, continuam a puxar, envenenados para sempre pola impossibilidade de explicar as suas idéias no seu próprio Partido. E, entretanto, Iaroslavski e outros coveiros fazem a estatística da «bolchevizaçao». Ora, a verdadeira massa obreira, fora e dentro do Partido, afasta-se intelectualmente do aparelho, fecha-se em si mesma, torna-se dura. É esse o processo mais ameaçador, o principal, o decisivo. A fracção estalinista trabalha, sobretudo agora, em favor dos mencheviques e dos anarco-sindicalistas preparando-lhes o terreno de acesso ao proletariado. Não tem qualquer possibilidade de êxito a tentativa de conservar os trabalhadores ligados ao aparelho, ministrando-lhes uma vez por ano uma pequena colherada do café da autocrítica. Apenas a oposição, que combate até a morte não só o menchevismo e o anarco-sindicalismo (é até supérfluo dizê-lo), mas também o centrismo estalinista e o espírito oficial do aparelho é capaz de exprimir duma maneira bolchevique as necessidades e as aspirações da melhor parte da classe obreira mantendo-a sob a bandeira de Lenine.

* * *

Tem certamente você, conhecimento do caso Malakhov, membro da Comissão Central de Controle que durante vários anos cometeu roubos. Dirá que isso acontece nas melhores famílias,. Quando se dispõe a raciocinar, o cidadão médio safa-se sempre por meio de provérbios nos casos difíceis. Contudo, permito-me crer que a Comissão Central de Controle, tal como foi concebida, é uma família notável demais para explicar tão facilmente a tão prolongada estadia no seu seio dum «monstro» tão excepcional. Mas não se trata só disso. Porque, afinal, todo o «trust» Kardolenta, polo menos todas as personalidades deste, conheciam todas as valentias de Malakhov. E também o sabiam aqueles que estavam ligados com ele pola mesma amizade. Ou então, Malakhov não tinha nem amigos, nem relações, nem íntimos na Comissão Central de Controle? Nesse caso, como lhe teria sido possível chegar a esta tão elevada instituição? Ele não caiu ali vindo do céu! Havia, portanto quem soubesse e se calasse, e eram até numerosos. Os colegas e os subordinados dissimulavam: uns, porque se aproveitavam disso, outros, por medo. Tinham duplamente medo porque Malakhov era membro da Comissão Central de Controle e era ele quem tinha poder de sentença. Malakhov tinha, por conseguinte, a possibilidade de roubar quanto quisesse, precisamente porque era membro do Tribunal Supremo que julgava os costumes do Partido. Esta é bem a dialéctica do burocratismo!

Sabe você por acaso que foi o próprio Malakhov que nos julgou e expulsou, a nós, oposicionistas? Entre «uma garrafa de vinho» de vários milhares de rublos e uma orgia na companhia de especuladores, Malakhov tinha tempo para participar no julgamento de Rakovski, I. N. Smirnov, Preobrajenski, Mratchkovski, Serebriakov, Muralov, Sosnovski, Belobodorov, Radek, Grunstein e muitos outros, qualificando-os de «traidores à causa do proletariado». Foi também Malakhov quem expulsou Zinoviev e Kamenev e que, depois do seu «arrependimento», os agraciou e enviou ao Centrosoius(6*). Eis o caminho que segue a «dialéctica».

Sou certo que, enquanto se julgava Rakovski ou Mratchkovski como traidores ao proletariado, era Malakhov quem formulava as mais sanguinárias intervenções. Já quando do XIV Congresso, sentado no Presidium, e observando Moïseenko colocado no primeiro banco, com alguns ventríloquos ucranianos para sabotar com os seus aulidos os discursos dos oposicionistas de Leninegrado, eu manifestava ao meu vizinho Kalinine a hipótese seguinte: «Não sei por que mostra esse (Moïseenko) tanto zelo. Muito receio que tenha qualquer cousa a reprovar-se!» Isto não era na altura mais do que uma incerta intuição, mas depois disso e após verificação, reconheceu-se que era bem assim; Moïseenko, que enriqueceu as actas das sessões plenárias de frases indecentes lançadas contra a oposição, faz parte da mesma religião malakhovista. Por mais duma vez durante os últimos anos, guiando-me pola mesma intuição psicológica, consegui atingir o fundo das cousas. Se um homem do aparelho vocifera com demasiada arrogância, mente, calunia e estende o punho à oposição, em nove de dez casos é um malakhovista que manobra para dissimular o seu negócio. Eis a dialéctica...

Tem o senhor a audácia de dizer que as cousas continuarão no estado que estão: «Não fomos nós que começamos e não será por nós que acabará todo isto». Não, senhor. Fomos nós que começamos. Ou mais exactamente, fostes vós, isto é, o regime do Partido que sustentam. É o regime do burocratismo auto-suficiente, brutal e desleal. Lembra-se de quem deu esta definição? Não foi qualquer moralista impotente, mas o maior revolucionário do nosso século. O regime desleal, eis o maior dos perigos. Não conhecemos, evidentemente, normas de moral imutáveis ou impostas de fora. O fim justifica os meios. Mas o fim deve ser um fim de classe, revolucionário, histórico; os meios, então, também não podem ser desleais, desonestos, repugnantes. Porque a deslealdade, a desonestidade, a má-fé, podem produzir por algum tempo efeitos «úteis»; mas se aplicadas durante um longo período, corroem o próprio fundamento da força revolucionária de classe, a confiança no interior da sua vanguarda. Passa-se assim das citações falsificadas e da ocultação de documentos autênticos, para o caso do oficial de Wrangel e do artigo 58. Trata-se aqui uma vez mais de problemas políticos, de salvar acima de tudo o prestígio político abalado por toda uma série de fracassos oportunistas. No caso do trust Kardolenta, é menor o que está em jogo e os meios são proporcionais ao fim em vista. Mas o Malakhov do Kardolenta protege-se comendo as autoridades com os olhos: «Vês, eu não duvidaria, caro amigo, em dar a minha vida por ti; mas tu protege-me também». A semente da brutalidade e da deslealdade, semeada com tanto método, acaba por germinar. Quem semeia o oficial de Wrangel colhe Malakhov. E se ao menos crescesse um apenas! Mas esta colheita tende a cêntuplo e até mesmo mais...

Quando tiver pensado em tudo isto, quando tiver compreendido tudo isto, poderemos falar doutra maneira.

* * *

Já que deu probas de tanto interesse quanto à minha situação em relação ao Partido, permita-me que me interesse um pouco pola sua. Você fala constantemente do Partido e da sua maioria. Mas os pensamentos que expõe são os duma fracção clandestina. Acusa o Comitê Central de ter arrastado a industrialização polo caminho «trotskista». É a voz da fracção rikovista, isto é, da direita. Afirma que, na política agrária, o Comitê Central falou no princípio do ano a linguagem da oposição. É assim que se exprime o próprio Rikov. Considera que fantasias como a do Dnieprostroï constituem «uma destruição criminal dos nossos recursos». Mas é o Comitê Central, ou seja, a sua maioria, que têm que responder por essas «fantasias». As medidas excepcionais aplicadas no campo abalaram, parece-lhe, a aliança entre os obreiros e os camponeses por uma série de anos. Portanto, a política da actual maioria do Comitê Central não vale absolutamente nada. Por outras palavras, censura você em cheio a direcção do Partido. Só que a sua reprovação conduz para a direita, no espírito dos políticos que Estaline começa a designar vagamente sob o termo de «filósofos camponeses». Não sei se faz parte, oficialmente, desta fracção. Mas ninguém terá dúvidas de que a sua carta esteja inteiramente impregnada do estado de espírito desse grupo, e que ela é absolutamente oposicionista, mas oposicionista de direita. Você é um rikovista. Enquanto rikovista ataca a oposição, mas visa Estaline. Bater num para atingir o outro, como diz o provérbio.

Como imagina logo o desenvolvimento ulterior das relações existentes entre a fracção rikovista dos «filósofos camponeses», com fundas raízes no país, e a fracção estalinista que tem em suas mãos o aparelho? A polémica secreta de Estaline contra Frumkine lembra os primeiros passos da luita entre as esquerdas e o bloco centro-direita. Do ponto de vista oficial é, naturalmente, a unanimidade que reina. Conta-se até que, para provar a unanimidade, ter-se-ia distribuído às delegações do Congresso uma folha explicando que os rumores referentes a «supostas» divergências no seio do Buró Político, são inventadas polos trotskistas. Em Abril de 1925, o Comitê Central enviou a todas as organizações do Partido uma circular advertindo que os rumores de divergências acerca da questão camponesa no seio do «núcleo» leninista, continuavam a ser postos em circulação polos mesmos trotskistas. Contudo, a maioria dos oposicionistas só por esta circular compreendem que existiam divergências bastante sérias, para que fosse preciso desmenti-las desta maneira. O autor desta circular foi, parece-me, Zinoviev, que poucos meses mais tarde teve de assinar documentos de género totalmente diferentes. Não pensa que também se pode repetir agora um pouco a história? Um homem inteligente disse um dia que quando a História se da ao trabalho de se repetir, substitui geralmente a comédia ao drama, ou polo menos introduz neste elementos burlescos.(7*)

É preciso dizer-se que, por mais dramático que seja o ambiente geral, as constantes afirmações que se fazem acerca do monolitismo que impera no Partido ressoam como uma comédia burlesca em que ninguém acredita, nem actores nem espectadores. Tanto mais que o desfecho deve dar-se daqui a alguns meses. A fracção dos «filósofos camponeses» é bastante forte no país, mas teme o Partido, o seu núcleo proletário. Não fala em voz alta, polo menos publicamente. Até agora, os thermidorianos só tomam essa liberdade em conversas particulares ou em cartas, como por exemplo, a sua.

Não sei se, num futuro próximo, estalará a batalha à luz do dia, ou se, entretanto, se vai desenvolver ocultamente e numa ordem monolítica e burocrática. Também por isso é que não tento adivinhar qual será a «maioria» que se vai formar na próxima etapa. Mas você pode alinhar antecipadamente com qualquer «maioria», mesmo que esta abale a aliança entre os operários e os campesinos durante anos? Ou tem a intenção de luitar contra a super-industrialização, mesmo com o risco de ter de mudar bruscamente de residência? Porque os Iaroslavski vigiam. Têm nas suas mãos grandes recursos, - não decerto no campo das idéias-, mas recursos que, no seu género, são também eficazes, polo menos até nova ordem. Tentarão afogar-vos, aplicando no fundo a vossa própria política, retardando simplesmente o fatal desfecho. Por esta via, contra vós ou convosco, eles poderiam contar talvez com um êxito completo se não existisse a oposição. Mas esta existe. E terá você mais do que uma ocasião para se aperceber.

* * *

Vai-me perguntar: «Mas afinal, quais são as suas conclusões?» Já expus noutro lado as conclusões essenciais e não vou repeti-las agora. Mas farei aqui mesmo algumas deduções particulares.

O regime existente no Partido conduziu-o na totalidade ao longo dos últimos anos, ao estado de ilegalidade. A fracção estalinista arranja clandestinamente os assuntos mais importantes do Partido. A fracção de você, a de Rikov, age polos mesmos métodos ilegais. Quanto à oposição, é inútil falar dela, visto que é oposição. Os únicos santos que terão permanecido até ao presente na legalidade do Partido, são provavelmente Zinoviev e Safarov... Se estes são santos, quem são os pecadores? E se, unindo os nossos esforços, reconduzíssemos o Partido dirigente a uma situação legal? Perguntar-me-á: «Porque meios?» Muito simplesmente: restituindo ao Partido os seus direitos.

Faz falta começar por reduzir brutalmente (cerca de vinte vezes mais ou menos) o orçamento do Partido, que medrou monstruosamente e que se tornou a base financeira do arbítrio burocrático que domina o Partido. É preciso que este tenha um orçamento limpo, severamente controlado e do qual tenha que prestar contas. As despesas revolucionárias secretas devem ser verificadas em cada ano por uma Comissão especial do Congresso.

Faz falta preparar o XVI Congresso de tal maneira que, distinguindo-se por isso do XV, do XIV e do XIII, seja o Congresso do Partido e não um Congresso do aparelho fraccional. Antes do Congresso o Partido deve prestar ouvido a todas as fracções em que está disperso devido ao regime dos últimos anos. Os obstrucionistas, os destructores, os fascistas devem ser enviados, por comum acordo, para trabalho nos novos domínios soviéticos, mas sem que lhes seja aplicado o artigo 58. Porque há ainda um mui longo caminho a percorrer até chegar à verdadeira libertação do Partido, é preciso instituir o voto secreto em todas as eleições preparatórias do XVI Congresso. Estas são as minhas propostas rigorosamente práticas. Sobre estes fundamentos poderíamos chegar a entender-nos mesmo com os direitistas. A realização destas elementares premissas daria ao núcleo proletário do Partido a possibilidade de fazer comparecer na teia não só os direitistas, mas também os centristas, isto é, à principal muralha dos defensores do oportunismo no Partido.

Tais são as conseqüências que derivam... do Dnieprostroï.

Alma-Ata, 12 de Setembro de 1928


Notas:

(1*) Central eléctrica da bacia do Dnieper. (retornar ao texto)

(2*) O Septumvirato é o grupo fraccional no Buró Político para combater Trotski, que tornou depois em Buró Político próprio. (retornar ao texto)

(3*) Por “expedição despersonalizada” entende-se a organização dos transportes que evita a circulação duma mercadoria em dous sentidos opostos, por exemplo: expedição duma mercadoria de Moscovo para Leninegrado ao tempo em que sai a mesma de Leninegrado para Moscovo. A aplicação desta fórmula à Rudzutak é uma alusão às suas viagens, tão freqüentes como inúteis, objecto de escárnio geral. (retornar ao texto)

(4*) Trotski refere um texto célebre do romance de Victor Hugo «Les Misérables» (Os Miseráveis) onde relata a morte do arriscado rapazinho Gavroche, o Sorriso de Paris, no motim de 1832. Desafiando os perigos de ser fuzilado nas barricadas polos guardas nacionais, lança quatro quadras antes de cair morto:

 

On est laid à Nanterre, Se um é feio em Nanterre
C´est la faute à Voltaire, É a culpa de Voltaire,
Et bête à Palaiseau, E tolo em Palaiseau,
C´est la faute à Rousseau. É a culpa de Rousseau.
   
Je ne suis pas notaire, Eu não são tabelião,
C´est la faute à Voltaire, É a culpa de Voltaire,
Je suis petit oiseau, Eu são passarinho,
C´est la faute à Rousseau. É a culpa de Rousseau.
   
Joie est mon caractère, Ledo é o meu carácter,
C´est la faute à Voltaire, É a culpa de Voltaire,
Misère est mon trousseau, Pena o meu feixezinho,
C´est la faute à Rousseau. É a culpa de Rousseau..
   
Je suis tombé par terre, Cai em terra,
C´est la faute à Voltaire, É a culpa de Voltaire,
Le nez dans le ruisseau, O nariz no rego das ruas,
C´est la faute à ... É a culpa de...

(retornar ao texto)

(5*) Este processo foi, na altura, traçado com mestria e genialidade sem igual polo poeta Maiakovski em “O percevejo”, farsa que critica não apenas os pequeno-burgueses que erguiam a cabeça na sociedade soviética, mas também o obreiro empolado que, ao se pôr a estudar, separa-se dos seus camaradas, merca e veste como os burgueses e casa com a filha dum «nepman» que mora na rua de Lunatcharski (alusão evidente ao homem de estado soviético). A questão é posta cruamente ao lume quando Skripkine discursa: “Quero casar organizadamente, na presença dos invitados de honra e, particularmente, do secretário do sindicato, estimado camarada Lassálchenko (o apelido desta personagem alude ao revolucionário Lassalle, partidário do socialismo de estado e firmemente combatido por Marx e Engels)”. O antigo revolucionário Skripkine tinha-se convertido num parasita. (retornar ao texto)

(6*) Órgão central da União das Cooperativas. (retornar ao texto)

(7*) Trotski comenta Marx. O livro do qual extrai o trecho é O 18 de Brumário de Luís Bonaparte onde escreveu textualmente: “Hegel observa numa de suas obras que todos os grandes factos e personagens da história universal ocorrem, por assim dizer, duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. C. Marx – F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos [edição em espanhol]. Ed. Progresso, Moscovo, 1981, T. I, p. 408. (retornar ao texto)

Inclusão 25/10/2007
Última alteração 30/04/2014