História da Revolução Russa

Léon Trotsky


A conferência de Estado em Moscovo


Se um símbolo é uma imagem condensada, a revolução é a maior criadora de símbolos, porque ela apresenta todos os fenómenos e as relações sob um aspecto concentrado. É preciso somente observar que o simbolismo de uma revolução é demasiado grandioso e encaixa mal nos quadros da criação individual. Daí resulta uma tão pobre reprodução artística dos dramas mais maciços da humanidade.

A conferência de Estado de Moscovo terminou por um fiasco já anunciado. Ela não criou nada, não resolveu nada. Em contrapartida, ela deixou à história uma imagem inestimável, ainda se negativa, da revolução, onde a luz aparecia como uma sombra, onde a fraqueza mostra-se como uma força, a cupidez como um desinteresse, a traição como a mais alta virtude. O mais poderoso partido da revolução, que já em dez semanas devia chegar ao poder, viu-se relegado ao limiar da conferência como uma quantidade negligente. Em contrapartida, levava-se a sério o partido do «socialismo de evolução» que ninguém conhecia. Kerensky apresentava-se como a encarnação da força e da vontade. Sobre a coligação, que se tinha totalmente esvaziado do seu conteúdo no passado, falava-se como um meio de salvação para o futuro. Kornilov  que era odiado por milhões de soldados, foi saudado como chefe amado do exército e do povo. Os monárquicos e os Cem Negros assinavam declarações de amor pela assembleia constituinte. Todos os que deviam em breve desaparecer da arena política pareciam ter combinado em interpretar pela última vez os seus melhores papéis no palco. Eles esforçaram-se em dizer: aqui está o que queremos ser, o que poderemos ser se não nos incomodassem.

Mas incomodaram-os: os operários, soldados, camponeses, as nacionalidades oprimidas. Dezenas de milhões de «escravos revoltados» impedia-os de manifestar a sua fidelidade à revolução. Em Moscovo, onde eles procuraram refúgio, tinham perseguido a greve. Perseguidos pela «desinteligência», a «ignorância», «a demagogia», os dois mil e quinhentas pessoas que enchiam o teatro comprometeram-se tácitamente entre elas a não dissipar a ilusão cénica. Não se falou da greve. Tomaram cuidado em não designar os bolcheviques pelo seu nome. Plekhanov mencionou somente, de passagem, «o Lenine de triste memória», como se se tratasse de um adversário definitivamente liquidado. As características do negativo eram assim mantidas até ao fim: no reino das sombras meio sepulcrais, que se davam por «forças vivas do país», o verdadeiro líder popular não podia figurar de outra forma senão na qualidade de defunto político.

«A brilhante sala de espectáculos – escreve Sukhanov – partilha muito nitidamente em duas metades: à direita a burguesia e, à esquerda, a democracia. À direita, a orquestra e nos camarotes, via-se um grande número de uniformes de generais, mas, à esquerda, eram uniformes de alferes, sargentes, soldados. Em frente do palco, no antigo camarote imperial, tinham-se instalado os altos representantes diplomáticos das potências aliadas e amigas... O nosso grupo, extrema esquerda, ocupava um pequeno canto da orquestra.» A extrema esquerda, na ausência dos bolchevique, foi constituída pelos partidários de Martov.

Entre três e quatro horas, a cortina foi levantada, apareceu Kerensky acompanhado de dois jovens oficiais, um do exército e outro da marinha. Figurando a potência revolucionário, mantiveram-se sempre lá, como se estivessem pregados, por detrás do presidente. Para não incomodar os homens de direita ao nomear a república – foi combinado antecipadamente – Kerensky saudou «os representantes da terra russa» em nome do governo do «Estado russo». «O tom geral do discurso – escreve um historiador liberal – em vez de ser o da dignidade e da certeza, sob a influência dos últimos dias traem um medo mas disfarçado que o orador parecia querer abafar nele próprio ao tomar as notas da ameaça. «Sem designar directamente os bolcheviques, Kerensky começou porém por tentar intimidá-los: novas tentativas contra o poder «serão reprimidas pelo ferro e no sangue». Uma tempestade de aplausos rebentou nas duas alas da conferência. Uma ameaça acrescentada em direcção de Kornilov que ainda não tinha chegado. «Qualquer que sejam os ultimatos que me cheguem, saberei submeter esse homem à vontade do poder supremo e a mim que sou o chefe» - provocou muitos aplausos entusiastas, mas somente na metade esquerda da conferência. Kerensky volta sem descanso a ele próprio, «chefe supremo»: ele precisa de se avisos. «Vocês que vieram da frente aqui, digo-vos, eu, vosso ministro da Guerra e vosso chefe supremo... não há vontade e poder no exército acima da vontade e do poder do governo provisório.» A democracia está no entusiasmo dessas ameaças ocas, porque ela se imagina que, desta maneira, esquivar-se-á a necessidade de recorrer ao chumbo.

«Todas as melhores forças do povo e do exército, assegura o chefe do governo, associaram o triunfo da revolução russa à causa da nossa vitória sobre a frente. Mas as nossas esperanças foram espezinhadas e cuspiram sobre a nossa fé.» Tal foi a conclusão lírica da ofensiva de Junho. Ele, Kerensky, dispos-se de qualquer forma a fazer guerra até à vitória. Sobre o perigo de uma paz à custa da Rússia – esta via foi indicada pela proposição da paz do papa, datada do 4 de Agosto – Kerensky elogia a nobre fidelidade dos Aliados. «E eu, em nome do grande povo russo, direi o seguinte: nós não esperamos e não podemos esperar outra coisa.» Um ovação dirigida em direcção dos camarotes dos diplomatas aliados meteu toda a gente de pé, exceptuando alguns internacionalistas e raros bolcheviques presentes como delegados de sindicatos. De um camarote ocupado por oficiais, um grito: «Martov, de pé!» Martov, é preciso dizer com justiça, foi bastante firme para não se ajoelhar diante do desinteresse da Entente.

Dirigindo-se às nacionalidade oprimidas da Rússia que procuravam refazer os seus destinos, Kerensky formulou lições de moral misturadas com ameaças. «Torturados e exterminados nas cadeias da autocracia czarista – dizia, se gabam de ter utilizado as correntes dos outros – não poupámos o nosso sangue em nome da felicidade de todos os povos.» Num sentimento de gratidão para com as nacionalidades oprimidas, recomendava a paciência sob um regime que negava todos os direitos.

Onde está a saída? «... Senteis este grande ardor... senteis a força e a vontade de ordem, de sacrifício e de trabalho?... Darão aqui o espectáculo de uma grande força nacional solidamente ligada? ...» Estas palavras foram pronunciadas no dia da greve de protesto em Moscovo, e nas no momentos em que a cavalaria de Kornilov procedia a mudanças misteriosas. «Nós morreremos mas salvaremos o Estado.» Era tudo que podia declarar ao povo o governo da revolução.

«Muitos provincianos – escreve Miliokov – viam, nesta sala, Kerensky pela primeira vez, e saíram parcialmente desiludidos, parcialmente indignados. Diante deles se erguia um jovem de cara atormentada, pálido, numa posição de actor... Este homem parecia querer fazer medo a alguém e produzir sobre todos a impressão de força e de poder no antigo estilo. Na realidade, ele só suscitou a piedade.»

As declarações dos outros membros do governo não manifestaram muito a sua incapacidade pessoal senão a falência do sistema de reconciliação. A grande ideia que o ministro do Interior, Avksentiev propôs à apreciação do país foi a de uma instituição de comissários inspectores em circuito. O ministro da Indústria exortou os empreendedores a se contentarem com modestos lucros. O ministro das Finanças prometia baixar os impostos das classes dominantes aumentando as contribuições indirectas. A ala direita teve a imprudência de cobrir as suas palavras com um tempestade de aplausos na qual Tseretelli, não sem algum incomodo, atribuiu pouca interesse em fazer sacrifícios. O ministro da Agricultura, Tchernov, recebeu ordem de se calar para não irritar os aliados de direita agitando diante deles a ameaça da expropriação de terras. No interesse da união nacional tinha sido decidido de fingir que a questão agrícola não existia. Os conciliadores só incomodavam. A verdadeira voz do mujique não se ouviu na tribuna. Ora, justamente nessas semanas de Agosto, o movimento agrário desencadeou-se em todo o país para se transformar, no Outono, numa irresistível guerra camponesa.

Após uma suspensão de um dia empregada a fazer reconhecimentos e a mobilizar forças dos dois lados, a sessão do dia 14 abriu numa atmosfera de extrema tensão. O aparecimento de Kornilov num camarote, à direita da Conferência deu-lhe um acolhimento tumultuoso. A metade da assembleia, a esquerda, continuou sentada quase toda sentada. Os gritos: «De pé!» foram acompanhados de ofensas grosseiras vindas de um camarote ocupado por oficiais. Quando se apresentou o governo, a esquerda fez a Kerensky uma longa ovação à qual, como testemunha Miliokov, «desta vez, também de forma explicita, não participou a direita, que continuou sentada». Nessas correntes contrárias de aplausos ouviam-se os próximos confrontos da guerra civil. Porém, no estrado, sob o nome do governo, continuavam a tomar lugar os representantes das duas metades de uma sala dividida, e o presidente, que tomava em segredo medidas militares contra o generalíssimo, não esquecendo nem um minuto de incarnar no seu personagem «a unidade do povo russo». Nesse papel estilizado, Kerensky exclamou: «Proponho a todos que saudemos na pessoa do generalíssimo aqui presente o exército que morre valentemente pela liberdade e a pátria.» Em direcção deste mesmo exército, ele disse durante a primeira sessão: «As nossas esperanças foram espezinhadas e cuspiram sobre a nossa fé.» Mas que importa! A frase salutar foi encontrada: o auditório levantou-se e aplaudiu tumultuosamente Kornilov e Kerensky. A unidade da nação foi mais uma vez salvaguardada!

Apanhados pelas goelas por irremissível fatalidade da história, as classes dirigentes tinham resolvido recorrer à mascarada histórica. Parecia-lhes evidente que se elas se apresentassem mais uma vez ao povo em todas as suas metamorfoses, elas tornar-se-iam mais consideráveis e mais fortes. Como especialistas da consciência nacional, trouxeram à cena representantes de todas as quatro Dumas do Império. As divisões internas, tão graves outrora, desapareceram, todos os partidos da burguesia uniram-se sem dificuldades sobre «o programa à margem dos partidos e das classes» de homens públicos que tinham, alguns dias antes, expedido um telegrama de felicitações a Kornilov. Em nome da 1ª Duma – a de 1906! - o cadete Nabokov afastava a «hipótese mesmo da possibilidade de uma paz separada». Isso não impedia o político liberal em contar nas suas Memórias que ele assim com outros numerosos líderes cadetes tinham visto na paz separada a única via de salvação. Do mesmo modo, os representantes das outras Dumas czaristas reclamavam também, antes de tudo, da revolução, o tributo do sangue.

«A palavra é vossa, general!» A sessão aproxima-se do momento crítico. Que dirá o generalíssimo que Kerensky insistiu mas em vão exortado a contentar-se em fazer uma exposição da situação militar? Miliokov escreve como testemunha ocular: «Um personagem de baixa estatura, sólido, com aspecto de kalmuk, com um olhar incisivo, penetrante, surgiu no estrado. A sala trepidou com aplausos. Toda a gente estava de pé, exceptuando os soldados.» Em direcção dos delegados que não se levantaram, a direita lançou gritos de indignação, «Mal-educados! De pé! Dos bancos donde ninguém se levanta, parte um clamor:«Lacaios!» A barulheira tornou-se uma tempestade. Kerensky propôs que se ouvisse calmamente «o primeiro soldado do governo provisório». Hirto,  de forma autoritária, como convém a um general que se dispõe a salvar o país Kornilov leu uma nota escrita para ele pelo aventureiro Zavoiko ditada pelo aventureiro Filonenko. Pelo programa exposto, a nota era porém mais moderada que a intenção do seu preâmbulo.

Kornilov não se intimidou para descrever o estado do exército e a situação na frente com as cores mais escuras, com a intenção evidente de inspirar medo. A passagem essencial do discurso foi o prognóstico de ordem militar: «... O inimigo já está à porta de Riga e, se somente a instabilidade do nosso exército não nos dá possibilidades de nos manter-mos sobre a margem do golfe de Riga, a estrada de Petrogrado abrir-se-á» Kornilov dá aqui o golpe ao governo: «Por toda uma serie de medidas legislativas aplicadas após a insurreição pelos estrangeiros com compreensão do exército, este transformou-se numa horda demente que só cuida da sua vida». É claro: para Riga, não há salvação e o generalíssimo declara-o abertamente, com um tom provocador, à face do mundo inteiro, como se convidasse os alemãs a ocupar a cidade sem defesa. Mas Petrogrado? Eis o raciocínio de Kornilov: se eu obtenho a possibilidade de preencher o meu programa, Petrogrado talvez seja salva, mas despachem-se! O jornal moscovita dos bolcheviques escrevia: «O que é isso? Um aviso ou uma ameaça? A derrota de Tamopol fez de... Kornilov um generalíssimo. A rendição de Riga pode fazer um ditador». Esta ideia correspondia muito mais completamente aos objectivos dos conspiradores do que podia imaginar o mais desconfiado dos bolcheviques.

O concílio eclesiástico, que tinha participado na pomposa recepção a Kornilov, enviou então para apoiar o generalíssimo um dos seus membros mais reaccionários, o arcebispo Platon. «Vocês acabaram de ver o desolador quadro do exército, disse esse representante das «forças vivas». Subi aqui para dizer, deste lugar, à Rússia: não teimas, minha querida, não tenhas medo, a nossa fiel. Se for necessário um milagre para a salvação da Rússia, Deus, graças às rezas da Igreja, cumprir-se-à  o milagre ...» Para a protecção do domínio do clero, os altos dignitários ortodoxos preferiam contingentes de cossacos. O ponto forte do discurso não estava portanto lá. O arcebispo queixava-se de não ter ouvido, nos relatórios dos membros do governo, «nomear uma só vez Deus, mesmo incidentalmente.» Tal como Kornilov atribuía ao governo da revolução a decomposição do exército, Platon acusava «os que estão presentemente à cabeça do nosso povo religioso com fervor» de serem criminosos incrédulos. Clérigos que se tinham enrolado na poeira diante de Rasputine ousavam agora até confessar publicamente o governo da revolução.

Em nome de vinte e um contingentes de cossacos, uma declaração foi lida pelo general Kaledine, cujo nome era repetido com insistência, neste período, como o de um dos mais firmes no partido militar. «Não desejando, não sabendo lisonjear a multidão, Kaledine – após os termos de um dos seus panegiristas – separou-se no terreno, do general Brussilov e, como sendo incompatível com o espírito da época foi destituído do seu comando do exército.» Tendo voltado no início de Maio na província do Don, o general cossaco foi logo eleito ataman das tropas da região. Foi ele, colocado à cabeça da mais antiga e da mais forte das tropas cossacas, que foi encarregue de apresentar o programa das altas esferas privilegiadas da cossacaria. Afastando toda a desconfiança de espírito contra-revolucionário, a sua declaração lembrava impertinentemente aos ministros socialistas como, no momento de perigo, eles tinham solicitado a ajuda dos cossacos contra os bolcheviques. O triste general conquistou inesperadamente os corações dos democratas ao proferir com energia uma palavra que Kerensky não ousava dizer abertamente: a república. A maioria do auditório, e o ministro Tchernov com particular empenho, aplaudiu o general cossaco que reclamava seriamente da república o que a autocracia não estava em condições de oferecer.

Napoleão outrora tinha previsto que a Europa tornar-se-ia cossaca ou repúblicana. Kaledine consentia em ver a Rússia republican, com a condição que ela não deixasse de ser cossaca. Tendo lido estas palavras: «Os derrotistas não devem ter lugar no governo», o ingrato general tornou-se insolentemente para o infeliz Tchernov. Um relato de um jornal liberal notou isto: «Todos os olhares voltam-se para Tchernov, que baixa muito a cabeça debaixo da mesa.» não estando associado a uma situação oficial, Kaledine desenvolveu até ao fim o programa da reacção: suprimir os comités, restabelecer a autoridade dos chefes militares, meter ao mesmo nível a retaguarda e a frente, rever os direitos dos soldados, dito de outro jeito, reduzi-los a nada. Os aplausos da direita misturam-se aos protestos e mesmo aos apitos da esquerda. A assembleia constituinte, «no interesse de um trabalho calmo e metódico», deve ser convocada para Moscovo!

Esse discurso elaborado antes da Conferência foi lido por Kaledine no dia seguinte da greve geral, e a frase sobre «um trabalho calmo» em Moscovo tinha o acento de uma zombaria. O discurso do cossaco republicano levou a temperatura da sala até à fervura e levou Kerensky a dar mostras de autoridade: «Não convém a quem quer que seja, na presente assembleia, de intimidar as ordens do governo.» Mas, neste caso, porquê convocaram a conferência? Purichkevitch, reaccionário na moda, gritou do seu lugar: «Nós jogamos o papel de figurantes do governo!» Dois meses antes, esse organizador de pogromes nem sequer ousava exibir-se.

A declaração oficial da democracia, documento interminável onde se tentava dar respostas a todas as questões sem resolver uma só, foi lida pelo presidente do comité executivo central, Tchkeidze, acolhido por calorosas felicitações das esquerdas. Aclamações como «Viva o chefe da revolução russa!» fizeram tremer esse modesto caucasiano que se sentia tudo menos um chefe. Sobre um tom de defesa a favor, a democracia declarava que ela «não tendia para o poder, não desejava o seu monopólio».

Ela está pronta a apoiar todo o poder capaz de salvaguardar os interesses do país e da revolução. Mas não se pode abolir os sovietes: sozinhos eles salvaram o país da anarquia. Não se pode suprimir os comités do exército: só eles são capazes de assegurar a continuação da guerra. As classes privilegiadas devem fazer algumas concessões no interesse do conjunto. Porém, os interesses dos proprietários de terras devem ser protegidos contra as expropriações. A solução das questões nacionais deve ser adiada até à assembleia constituinte. É preciso portanto proceder às reformas mais urgentes. Sobre uma política de paz activa, a declaração nada dizia. Em suma, esse documento era especialmente estudado para não dar satisfação à burguesia ao mesmo tempo que provocava a indignação das massas.

Num discurso evasivo e sem cor, o representante do comité executivo camponês lembrou que a palavra de ordem «Terra e liberdade», sob a qual «morreram os nossos melhores militantes». Um relato de um jornal de Moscovo nota um episódio encurtado pelo estenograma oficial: «Todo auditório ergue-se e faz uma ovação tumultuosa aos antigos prisioneiros da fortaleza de Schlusselburg, que estão sentados num camarote.» Espantosa careta da revolução!» Todo o auditório «festeja os antigos presos políticos que a monarquia de Alexieiev, de Kornilov, de Kaledine, do arcebispo Platon, de Rodzianko, Gutchkov e, no fundo, também de Miliokov, não teve tempo de abafar completamente nas  suas prisões. Os carrascos ou seus cúmplices querem dotar-se da auréola do mártir das suas próprias vítimas.

Quinze anos antes, os líderes da metade direita da sala celebravam o segundo centenário da tomada da fortaleza de Schlusselburg por Pedro Iº. A Iskra (A Faísca), jornal da ala revolucionária da social democracia, escrevia nesses dias: «Como se suscitou a indignação diante desta cerimónia patriótica sobre a ilha maldita que foi o lugar de execução de Minakov, de Mychkine, de Rogatchev, de Stromberg, de Oulianov, de Gueneralov, de Ossipanov, de Andriuchkine e de Chevyrev; diante esses sacos de pedra, onde Klitnenko se estrangulou com uma corda, onde Gratchevsky se imolou, onde Sofia Ginsburg mortificou o corpo com golpes de tesoura; sob essas muralhas nas quais Chtchedrine, Iuvatche, Konachevitch, Pokhitonov, Ignatti, Ivano, Arontchik e Tikhonovitch morreram sem regresso nas trevas da demência, enquanto que dezenas de outros morreram de esgotamento, de escorbuto e de tísica. Entreguem-se aos seus bacanais patrióticos, porque hoje, vocês ainda são traidores a Schlusselburgo!» Em epígrafe, A Iskra levava esses três extractos de uma carta dirigida pelos dezembristas condenados à Puchkine: da faísca surgirá a chama. Ela surgiu. Ela reduziu em cinzas a monarquia e o seu degredo de Schlusselburg. E hoje, na sala da conferência de Estado, os carrascos da véspera ovacionaram as vítimas arrancadas às suas garras pela revolução. Mas o mais paradoxal foi que os antigos carrascos e os antigos presos juntaram-se num ódio comum em relação aos bolcheviques, de Lenine que tinha sido o inspirador da Iskra, de Trostky, autor das linhas citadas acima, dos operários revoltados, dos soldados insubordinados que encheram as prisões da república.

O nacional-liberal Gutchkov, presidente da IIIª Duma, que não tinha admitido, no seu tempo deputados de esquerda na comissão da defesa nacional e que, por essa razão tinha sido nomeado pelos conciliadores o primeiro dos ministros da Guerra da revolução, pronunciou o discurso mais interessante, onde, porém a ironia combatia debalde o desespero: «Mas porquê, porquê – dizia ele aludindo às palavras de Kerensky – os representantes do poder juntaram-se a nós «numa agonia mortal», «numa mortalidade espantosa», gritando histéricos, de desespero, e porquê esta agonia, este temor, esses gritos, encontram nas nossas almas a dor pungente das aflições da agonia?» Sem o conhecimento dos que, precedentemente, tinham sido os traidores soberanos, tinham comandado, agraciado e punido, o comerciante moscovita confessava publicamente as suas sensações das «aflições das agonias». «Esse poder – dizia – é uma sombra de poder.» Gotchkov tinha razão. Mas também ele, antigo parceiro de Stolpyne, não era senão a sombra de si próprio.

No próprio dia de abertura da conferência foi publicado no jornal de Gorki uma informação mostrando como Rodzianko lucrava com o fornecimento das culatras das espingardas inutilizáveis. Esta revelação inoportuna, feita por Karakhan, futuro diplomata dos sovietes, então desconhecido de todos, não impediu Rodzianko de falar com dignidade da conferência a favor do programa patriótico dos fornecedores do exército. Todas as desgraças vinham do facto que o governo provisório não tinha caminhado de mão dada com a Duma de Estado, «a única representação integralmente legal de todo o povo da Rússia.» Isso já parecia demais. Nos bancos da esquerda começaram a rir. Ouviram-se gritos: «O 3 de Junho!». Outrora, esta data, 3 de Junho de 1907 – no dia quando o constituição outorgada tinha sido espezinhada – tinha sido marcada a ferro sobre a frente da monarquia e dos partidos que a apoiavam. Agora, era somente uma longínqua lembrança. Mas o próprio Rodzianko, que trovejante com uma voz de baixo, enorme e imponente, parecia estar na tribuna um vestígio vivo do passado em vez de uma figura política.

O governo opôs aos ataques do interior os encorajamentos que lhe eram trazidos do exterior, Kerensky deu a ler um telegrama de felicitações do presidente Wilson, prometendo «todo o apoio materia e moral ao governo russo pelo sucesso da causa comum aos dois povos, e no qual não havia qualquer objectivo egoísta». Novamente os aplausos diante do camarote diplomático não podem abafar a ansiedade provocada na meia direita pelo telegrama de Washington: elogio do desinteresse significava muito nitidamente para os imperialistas russos a receita de se meterem à dieta.

Em nome da democracia conciliadora, o líder comum, Tseretelli, defendia os sovietes e os comités do exército como se defendo a honra numa causa perdida antecipadamente. «Não se pode ainda retirar os andaimes, o edifício da Rússia livre e revolucionária não está ainda construido». Após a insurreição, «as massas populares, propriamente dito, não tinham confiança em ninguém senão nelas próprias»: só os esforços dos sovietes conciliadores deram às classes conciliadoras a possibilidade de se manter na cimeira, pelo menos nos primeiros tempos, sem o conforto habitual. Tseretelli dava um mérito particular aos sovietes «de ter remetido ao governo de coligação todas as funções do Estado»: esse sacrifício «tinha sido arrancado à democracia pela força?» O orador parecia um comandante de uma fortaleza que se vangloria publicamente de ter dado sem combate a praça que lhe tinha sido confiada... E, durante as jornadas de Julho, «quem tinha dado o peito para defender o país contra a anarquia?» Da direita ouviu-se uma voz: «os cosaques e os junkers!» Como um golpe de chicote, essas duas palavras açoitaram o fluxo dos lugares-comuns democráticos. A ala burguesa da conferência compreendia perfeitamente o efeito saudável dos serviços dados pelos conciliadores. Mas a gratidão não é um sentimento político. A burguesia apresou-se a tirar as suas conclusões dos bons ofícios que ela devia à democracia: o capítulo dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques estava em via de se realizar; na ordem do dia colocou-se o capítulo dos cossacos e dos junkers.

Foi com uma prudência particular que Tseretelli abordou o problema do poder. Nos últimos meses tinha tido lugar eleições para as dumas municipais e, parcialmente, para os zemstvos, sobre a base do direito de sufrágio universal. E o que daí resultou? As delegações das municipalidades democráticas encontraram-se, na conferência de Estado, num grupo de esquerda, com os sovietes, sob a direcção dos mesmos partidos, socialistas-revolucionários e mencheviques. Se os cadetes têm a intenção de insistir sobre a sua reivindicação: acabar com toda a dependência do governo, em relação à democracia, para que serve uma assembleia constituinte? Teseretelli indicou somente os contornos deste argumento; porque, levado até ao fim, ele condenou a política da coligação com os cadetes como sendo contrária à democracia formal. Acusaram a revolução de abusar do discurso sobre a paz? Mas as classes possuidoras não compreendem que a palavra de ordem é actualmente o único meio de continuar a guerra? A burguesia compreendia-a: ela quis somente, com o poder, tomar também esse meio nas suas próprias mãos. Tseretelli terminou por um hino em honra da coligação. Na assembleia dividida que não se apercebia uma saída, os lugares comuns dos conciliadores tilintaram pela última vez com uma nuança de esperança. Mas Tseretelli também já não era senão um espectro dele próprio.

Em nome da meia direita da sala, Miliokov, representante irremediavelmente ressequido das classes às quais a história cortou as vias de uma política velha, respondeu à democracia. Na sua história, o líder do liberalismo relatou de uma maneira suficientemente expressiva o seu próprio discurso na conferência de Estado. «Miliokov fez... um relatório resumido, baseado em factos, erros cometidos pela «democracia revolucionária» e daí tirou conclusões: capitulação na questão da «democratização do exército», acompanhada pela partida de Gotchkov; capitulação sobre a questão da política exterior «zimmerwaldiana», acompanhada da partida do ministro dos Assuntos estrangeiros (Miliokov); capitulação diante das reivindicações utópicas da classe operária, acompanhada da partida de Konovalov (ministro do Comércio e da Indústria); capitulação diante das exigências excessivas das nacionalidades, acompanhada da partida dos restantes cadetes. A quinta capitulação diante das tendências espoliadoras das massas, na questão agrária... provocou a partida do príncipe Lvov, primeiro presidente do governo provisório.»

A história da doença não estava mal escrita. Quanto ao tratamento, Miliokov não ia para além das medidas policiais: era preciso abafar os bolcheviques. «Na presença dos factos evidentes ele censurava aos conciliadores – esses grupos mais moderados foram forçados em admitir que, entre os bolcheviques, há criminosos e traidores. Mas eles não admitem até agora que a própria ideia fundamental que une esses partidários dos actos combativos de anarco-sindicalistas, é criminal.» (Aplausos)

O muito humilde Tchernov parecia estar ainda ser o elo de união entre a coligação e a revolução. Quase todos os oradores da ala direita: Kaledine, os cadetes Maklokov e Astrov, golpeavam Tchernov que tinha recebido ordem de se calar e que ninguém o defendia; Miliokov, pelo seu lado, lembrou que o ministro da Agricultura «tinha estado em pessoa em Zimmerwald e em Kienthal e aí apresentou moções dolentes» . Foi um golpe directo, na cabeça: antes de se tornar ministro da guerra imperialista, Tchernov tinha efectivamente assinado certos documentos da esquerda de Zimmerwald, isto é a fracção de Lenine.

Miliokov não escondeu à conferência que, logo no princípio, ele tinha sido adversário da coligação, considerando que ela «não seria mais forte, mas mais fraca que o governo saído da revolução», a saber: o governo Gotchkov-Miliokov. E, presentemente, ele «teme que a composição actual do poder executivo... não garanta a segurança da pessoas e da propriedade». De qualquer forma, Miliokov promete o seu apoio ao governo «de boa vontade se sem obstrução». A traição incluída nessa promessa magnânima rebentará quinze dias mais tarde. O discurso, no momento onde foi pronunciado, não suscita qualquer entusiasmo, mas também não motivou protestos veementes. O orador foi acolhido por poucos aplausos.

O segundo discurso de Tseretelli em assegurar, com juras e lamentos: portanto tudo isso é bem para vocês; os sovietes, os comités, os programas democráticos, as palavras de ordem do pacifismo, tudo isso vos protege: «Para quem será mais fácil encaminhar as tropas do Estado russo revolucionário, ao ministro da Guerra Gotchkov ou ao ministro da Guerra KerenskyTseretelli repetiu quase palavra por palavra Lenine, mas somente o líder dos conciliadores via mérito onde o líder da revolução estigmatizava a traição. O orador justifica-se mais longe por ter demasiado poupado os bolcheviques: «Digo-vos, a revolução era inexperiente na luta contra a anarquia vinda da esquerda» (Tempestade de aplausos à direita). Mas, depois que «as primeiras lições foram dadas», a revolução corrigiu o seu erro: «Já aplicámos uma lei de excepção.» Ao mesmo tempo, Moscovo era clandestinamente governada por um comité de seis membros – dois mencheviques, dois socialistas-revolucionários, dois bolcheviques – protegendo a cidade contra o perigo de um golpe de Estado da parte daqueles que os conciliadores comprometiam-se em esmagar os bolcheviques.

O prego do último dia foi o discurso do general Aleixeiev cuja autoridade incarnava a falta de talento dos velho burocratas militares. Sob os vivas desenfreados da direita, o antigo chefe do estado-maior de Nicolau II, organizador das derrotas do exército russo, falou desses destruidores «nos bolsos de quem tilintavam melodiosamente os marcos alemãs». Para reconstituir o exército, é preciso uma disciplina; por disciplina, é preciso que os chefes tenham autoridade; por isso é ainda necessário a disciplina. «Falai de uma disciplina de ferro, ou chamai consciência, ou digam a verdadeira... as base dessas disciplinas são as mesmas. «A história delimitava-se para Aleixeiev nos estatutos do serviço interior. «Senhores, é tão difícil sacrificar uma prerrogativa ilusória, a existência das organizações (risos à esquerda) por um certo tempo? (ruídos e gritos à esquerda). O general sugeria que lhe remetessem a tutela da revolução desarmada, não para sempre, não, graças a Deus ! Mas somente «por um certo tempo»: terminada a guerra, ele prometia restituir o objecto em bom estado de conservação. Mas terminou por um aforismo muito bem vindo: «É preciso medidas e não meias medidas.» Essas palavras atingiram a declaração de Tchkheidze, o governo provisório, a coligação e todo o regime de Fevereiro. Medidas e não meias medidas! Sobre isso, os bolcheviques estavam de acordo.

Ao general Alexieiev logo se opuseram os oficiais de esquerda, delegados de Petrogrado e de Moscovo, que apoiaram «o nosso chefe supremo, o ministro da Guerra.» Depois deles o tenente Kutchine, velho menchevique, orador do «grupo da frente na conferência de Estado«, falou em nome de milhões de soldados que, todavia, não deviam de forma nenhuma se reconhecer no espelho da conciliação. «Nós lemos a entrevista do general Lukomsky, em todos os jornais, onde ele diz: se os Aliados não nos ajudam, Riga será entregue...» Porquê então o alto comando, que dissimulava sempre os insucessos e os revés, tinha sentido a necessidade de escurecer as cores? Os gritos: «É uma vergonha», partindo da esquerda, dirigiam-se a Kornilov que, na véspera, tinha desenvolvido o mesmo raciocínio em plena conferência.

Kutchine tocava no ponto mais sensível das classes possuidoras: as cimeiras da burguesia, o comando, toda a metade da direita do auditório estavam profundamente impregnados de tendências derrotistas no domínio económico, político e militar. A devisa desses patriotas sólidos e equilibrados era desde então: «Tanto pior, melhor é!» Mas o orador apressou-se a esquivar um tema que era para ele próprio um terreno escorregadio. «Salvamos o exército? Não sabemos, mas se não o salvarmos, não é o comando que o salvará...» «Ele salvará !» exclama-se sobre os bancos dos oficiais. Kutchine: «Não, ele não o salvará !»  Aplausos irromperam à esquerda. Assim se interpelavam hostilmente os comandantes e os comités sobre a solidariedade imaginária dos quais se edificou o programa de saneamento do exército. Assim se interpelavam as duas metades da conferência que constituíam a base de uma «coligação honesta». Esses conflitos eram só o fraco eco, abafado, parlamentarista, dos antagonistas que sacudiam o país.

Conforme à encenação do bonapartismo, os oradores da direita e da esquerda alternavam, equilibrando-se entre eles tanto quanto possível. Se os primatas do concílio ortodoxo apoiavam Kornilov, os monitores dos cristãos evangélicos iam para o lado do governo provisório. Os delegados dos zemstvos e das municipalidades saíam aos pares: um, para a maioria, juntavam-se à declaração de Tchkheidze; o outro, pela minoria, à declaração da Duma do Estado.

Os representantes das nacionalidades oprimidas, um após outro, asseguravam o governo do seu patriotismo, mas suplicavam-os de não os enganar mais: nas suas regiões, mesmos  os funcionários, mesmas leis, a mesma opressão. «Nao se pode diferir. Nenhum povo não pode viver somente de promessas. «La Rússia revolucionária deve mostrar que ela é a «mãe e não a madrasta de todos os povos». As tímidas censuras e as adjurações  resignadas não encontravam quase qualquer eco da simpatia mesmo na metade esquerda do auditório. O espírito da guerra imperialista é tudo menos compatível com uma política honesta na questão nacional.

«Até agora, as nacionalidades da Transcaucásia não fizeram qualquer manifestação separatista – declarou, em nome dos Georgianos, o menchevique Tchkenkeli – e elas não farão ulteriormente.» Esse compromisso, coberto de aplausos, logo se tornará caduco: a partir da insurreição de Outubro, Tchkenkeli sera um dos líderes do separatismo. Não há portanto aí contradição: o patriotismo da democracia não ultrapassará os quadros do regime burguês.

Entretanto, novos espectros do passado, os mais trágicos, surgem em cena. Os mutilados de guerra fazem ouvir as suas vozes. Eles também não são unanimes. Os manetas, os amputados da perna, os cegos têm a sua aristocracia e a sua plebe. Em nome «da imensa e potente associação dos cavaleiros de São Jorge, das suas vinte e oito secções disseminada por toda a Rússia», um oficial, ofendido no seu patriotismo, apoiou Kornilov (aprovação à direita). A União pan-russa dos mutilados de guerra junta-se por intermediário do seu delegado, à declaração de Tchkheidze (aprovação da esquerda).

O comité executivo da União dos ferroviários que acabara de se organizar e que devia, sob a denominação abreviada de Vikjel, desempenhar nos próximos meses um papel considerável, juntou a sua voz à declaração dos conciliadores. O presidente do Vikjel, democrata moderado e patriota extremo, traçou um quadro vivo de maniganças contra-revolucionárias sobre a rede, derrogações arbitrárias ao dia de oito horas, queixas diante dos tribunais. Forças clandestinas, dirigidas por centros escondidos mas influentes, tentam evidentemente provocar à batalha dos ferroviários alertados. O inimigo é inapreensível. A contra-espionagem acomodou-se, a vigilância do ministério público adormeceu.» E esse moderado entre todos os moderados terminou por uma ameaça: «Se a hidra contra-revolucionária levanta a cabeça, faremos de maneira a abafá-la com as nossas próprias mãos.».

Imediatamente se apresenta, formulando acusações contrárias, um ás dos ferroviários: «A fonte pura da revolução foi envenenada. Porquê? Porque os objectivos idealistas da revolução foram substituídos pelos fins materiais (aplausos da direita).» No mesmo espírito, Roditchev, cadete e latifundiário, acusa os operários de terem assimilado a ignóbil palavra de ordem recebida de França: «Enriquecei-vos!» Os bolcheviques asseguram em breve a formula de Roditchev um sucesso exceptional, embora não aquele  sobre quem contava o orador. O professor Ozerov, homem de ciência pura e delegado dos bancos agrários, exclamou: «O soldado nas trincheiras deve pensar na guerra e não na partilha da terra.» Não é espantoso: a confiscação dos proprietários de terras individuais significaria a confiscação de capitais bancários: no primeiro de Janeiro de 1915, a dívida da propriedade privada das terras era avaliada em três biliões quinhentos milhões de rublos!

Da direita falava-se em nome dos altos estados-maiores, de uniões industriais, de câmaras de comércio e de bancos, da sociedades de coudelaria e outras organizações que reagrupam centenas de personagens reputados. Da esquerda, falava-se em nome dos sovietes, dos comités armados, dos sindicatos, das municipalidades democráticas, cooperativas, por detrás das quais, entreviam-se sobre um fundo longínquo, milhões e dezenas de milhões de anónimos. Em tempo normal, a preponderância estava invariavelmente sobre o segmento curto da alavanca. «Não se pode negar – moralizava Tseretelli – sobretudo em tal momento, a densidade e a importância dos que são fortes pelo seu peso de possuidores.» Mas todo o assunto é este que este mal-estar tornava-se cada vez mais imponderável. Tal como o peso não é uma qualidade interna a tal ou tal objecto, mas somente uma relação recíproca entre eles, a densidade social não é uma qualidade inata de um individuo, mas somente o valor de classe que as outras classes são forçadas em lhe reconhecer. A revolução, todavia, chegava perto do limite mesmo onde se começa a não reconhecer mais as «qualidades» as mais essenciais das classes dominantes. Daí se torna incómodo a situação da minoria renomeada no segmento da alavanca.

Os conciliadores faziam os possíveis para manter o equilíbrio. Mas eles já não tinham forças: as massas pressionavam irresistivelmente sobre a outra parte, mais longa. Os grandes agrários, os banqueiros, os industriais defendiam os seus interesses prudentemente! E defendiam em geral? Nem por isso. Eles defendiam os direitos do idealismo, o interesses da cultura, as prerrogativas da futura assembleia constituinte. Um capitão de indústria pesada, Von Ditmar, terminou mesmo por um discurso em honra da «liberdade, fraternidade, igualdade». Onde se tinham metido os  barítonos metálicos do lucro, os baixos roucos da renda? Na cena surgiam somente os mais doces tenores do desinteresse. Mas um minuto de atenção: quanto vinagre sobre o melaço! De que maneira inesperada, as cambalhotas líricas quebravam-se num falsete colérico. O representante da câmara de agricultura pan-russa, Kapatsinsky, que aposta na próxima reforma agrária, não esquece de agradecer «ao nosso puro Tseretelli» pela sua circular defendendo o direito contra a anarquia.» E os comités agrários? Porque enfim eles enviam directamente o poder ao mujique! Ele, «um ser obscuro, quase analfabeto, louco de felicidade com a ideia que enfim... lhe dêem a terra, esse homem encarregado de instituir o direito em todo o país.» Se, na luta contra o obscuro mujique, os proprietários do domínios defendem a propriedade, não é para eles, não, mas somente para a sacrificar logo sobre o altar da liberdade.

O símbolo social parecia quase esgotado. Mas aqui Kerensky é iluminado por uma feliz inspiração. Ele propõe dar a palavra a um grupo ainda - «um grupo histórico na Rússia, o de Brechkovskaia, de Kropotkine e de Plekhanov». O populismo russo, o anarquismo russo e a social-democracia russa aparecem personificados pela geração dos idosos; o anarquismo e o marxismo dos seus eminentes fundadores.

Kropotkine pediu que se juntem a ele « aos que convidaram todo o povo russo a romper uma vez por todas com o zimmerwaldismo» O apóstolo negador da autoridade liga-se à ala direita da conferência. A derrota ameaça comportar não somente a perca de grandes territórios e das contribuições: «Saibam, camaradas, que há qualquer coisa de pior que tudo isso: é a psicologia de um país vencido». O velho internacionalista prefere a psicologia de um país vencido... situado do outro lado da fronteira. Lembrando-se como a França vencida se humilhou diante dos czares da Rússia – ele não tinha previsto como a França vitoriosa se humilhava diante dos banqueiros americanos – Kropotkine exclamou: «É possível que possamos passar por isso? Nunca na vida! A resposta foram os plausos de toda a sala.

Em contrapartida, que radiosas perspectiva abrem a guerra! «Todos começam a compreender que é preciso erguer uma vida nova sobre os novos princípios socialistas... Lloyd George pronuncia discursos penetrados de espírito socialista... Em Inglaterra, em França, e Itália, forma-se uma nova inteligência da vida, penetrada de socialismo, infelizmente estadista.» Se Lloyd George e Poincaré ainda não tinham renunciado, «infelizmente» ao princípio estadista, Kropotkine aproximava-se abertamente disso. «Penso, dizia ele, que nós não nos chocamos com os direitos da assembleia constituinte – reconhecendo perfeitamente que ela deve ter uma decisão soberana sobre tais questões – se nós, Assembleia da terra russa, exprimimos fortemente o desejo que a Rússia seja proclamada república.» Kropotkine, insiste sobre uma república federativa: «Necessitamos de uma federação tal como nos Estados-Unidos.» Aí está ao que chegaria a «federação das comunas livres» de Bakunine! «Prometamos entre nós – termina Kropotkine, esconjurando a assembleia – que nós não nos dividiremos mais em partidos de direita e de esquerda neste teatro... Porque enfim todos temos uma e mesma pátria, e, para ela, devemos ter ou necessitar, nós todos, os da direita e da esquerda.» Proprietários de terras, industriais, generais, cavaleiros de São Jorge – que todos recusavam reconhecer Zimmerwald – ovacionaram o apóstolo da anarquia.

Os princípios do liberalismo vivem na realidade de acordo com a actividade policial. O anarquismo é uma tentativa para apurar o liberalismo da influência policial. Mas, tal como o oxigénio em estado puro é irrespirável, os princípios do liberalismo desembaraçados do elemento policial significam a morte da sociedade. Como sombra caricatural do liberalismo, a anarquia, no conjunto, partilha o destino deste último. Tendo matado o liberalismo, o desenvolvimento dos antagonismos de classes mata também a anarquia. Como qualquer seita que funda a sua doutrina absurda não sobre o desenvolvimento real da sociedade humana, mas sobre o exagero até ao absurdo de um dos traços desta sociedade, o anarquismo rebenta como uma bola de sabão no momento quando os antagonismos sociais chegam a uma guerra ou a uma revolução. A anarquia representada por Kroptkine talvez seja o mais fantasmático de todos os espectros da conferência de Estado.

Em Espanha, país clássico do bakunismo, os anarco-sindicalistas e os que se chamam anarquistas «específicos» ou puros, recusam-se à política, renovam na realidade a política dos mencheviques russos. Os enfáticos negadores do Estado inclinam-se respeitosamente diante dele desde que ele se transforme um pouco. Prevenindo o proletariado contra as seduções do poder, eles apoiam com abnegação o poder da burguesia de «esquerda». Amaldiçoando a gangrena do parlamentarismo, eles passam, em segredo, aos seus apoiantes, o boletim de voto de vulgares republicanos. Qualquer que seja a solução da revolução espanhola, ela acabará de qualquer forma com o anarquismo.

Pela boca de Plekhanov, acolhido com tumultuosos aplausos de todo o auditório – as esquerdas festejavam o velho mestre, as direitas o novo aliado – falou de marxismo russo da primeira colheita, cuja perspectiva tinha parado durante dezenas de anos à liberdade política. Aí onde a revolução começava somente para os bolcheviques, ela tinha-se acabado para Plekhanov. Aconselhando aos industriais a «procurarem aproximar-se da classe operária», Plekhanov advertia assim os democratas: «sem dúvida é indispensável que vocês se Ententem com os representantes da classe dos comerciantes e industriais.» A título de exemplo cominatório, Plekhanov citou «o Lenine de triste memória» que caiu ao ponto de chamar o proletariado «a tomar imediatamente o poder político.» Precisamente em vista de prevenir a luta pela conquista do poder, a conferência tinha necessidade de Plekhanov, que entregou os restos da sua armadura de revolucionário à porta da revolução.

Na mesma noite onde se pronunciavam os delegados «históricos» da Rússia, Kerensky deu a palavra ao representante da câmara da agricultura e da união dos proprietários de coudelarias, outro Kropotkine, igualmente membro da antiga familia real que, se acreditarmos na genealogia, tinha mais direito ao trono da Rússia que os Romanov. «Não sou socialista – declarou o aristocrata feudal – mas respeito o verdadeiro socialismo. Portanto quando vejo as espoliações, as pilhagens, as violências, devo dizer que... o governo tem o dever de obrigar os homens que se intrometeram no socialismo a abandonar a obra de edificação do país.» Esse segundo Kropotkine, que lançava evidentemente a sua flecha contra Tchernov, não objectava nada aos socialistas género Lloyd George ou Poincaré. Em concorrência com o seu antípoda familial, o Kropotkine monárquico condenava Zimmerwald, a luta de classes, as expropriações de terras: infelizmente ele estava habituado a chamar isso «anarquia», e exigia igualmente a unidade e a vitória. Os processos verbais não constatam infelizmente se os dois Kropotkine aplaudiram-se reciprocamente.

Nessa conferência roída pelo ódio, falava-se de tal forma de unidade que esta não podia, pelo menos pelo momento, materializar-se num inevitável aperto de mãos simbólico. Este acontecimento foi contado em termos inspirações pelo jornal dos mencheviques: «No momento quando Bublikov toma a palavra, produziu-se um incidente cujo efeito é grande sobre todos os membros da conferência...» Se, ontem – declarava Bublikov – o nobre líder da revolução, Tseretelli, estendeu a mão ao mundo industrial, que ele saiba que esta mão não ficará suspendida!» Quando Bublikov termina, Tseretelli aproximou-se dele e apertou-lhe a mão. Tempestade de ovações.»

Que ovações! Demasiadas ovações! Oito dias antes da cena aqui descrita, o mesmo Bublikov, considerável personagem nos caminhos de ferro, gritava, no congresso dos industriais, dirigindo-se aos líderes dos sovietes: «Longe de nós os desonestos, os ignorantes, os que... foram levados à perdição!» - e as suas palavras ainda não tinham qualquer eco no ambiente de Moscovo. O velho marxistas Riazanov, que assistia à conferência, fazendo parte da delegação dos sindicatos, lembrou muito a propósito os beijos de Lamourette, os beijos do bispo de Lyon: «o beijo que trocaram duas partes da assembleia legislativa – não os operários e a burguesia, mas duas partes da burguesia, e vocês sabem que nunca a luta não foi tão ardente e furiosa depois desse beijo.» Com a franqueza rara, Miliokov também reconheceu que a união, da parte dos industriais não era sincera, mas praticamente indispensável para a classe que tinha demasiado a perder. É justamente por esta resignação sobre os cálculos que se tornou famosa o aperto de mão de Bublikov».

A maioria dos participantes acreditava na força dos apertos de mão e nos abraços políticos? Essa gente acreditava nela própria? Seus sentimentos eram contrários como os seus planos. Na verdade, em certos discursos, sobretudo vindos da periferia, viam-se ainda os primeiros entusiasmos, esperanças, ilusões. Mas numa assembleia onde a maioria de esquerda foi desiludida e desmoralizada, a direita irritada, os ecos dos dias de Março tinham o tom da correspondência de namorados lida no momento do divórcio. Retirando-se para o reino dos fantasmas, os políticos procuravam, por meios fantasmáticos, salvar um regime espectral. O frio mortal do desespero soprava sobre a assembleia das «forças vivas», sobre a revista dos condenados.

Pouco antes do fim da conferência produziu-se um incidente que manifesta uma profunda cisão no próprio grupo considerado como um modelo de unidade e de espírito estadista: o dos cossacos. Nagaiev, um jovem oficial desse corpo, membro de uma delegação soviética, declarou que os trabalhadores cossacos não seguiam Kaledine: os homens da frente não tinham nenhuma confiança no seu comando superior. Era verdade e o golpe foi desferido onde mais doía. Um relatório da imprensa descreveu logo a mais tumultuosa de todas as cenas da conferência. A esquerda aplaudiu Nagaiev com entusiasmo. Ouviram-se gritos: «Glória aos cossacos revolucionários!» Protestos indignados da direita: «Vocês responderão por isso!» Uma voz do camarote dos oficiais: «Os marcos alemãs!» Ainda se inevitáveis como último argumento patriótico, essas palavras produziram o efeito de uma bomba. Foi na sala um vacarme infernal. Os delegados dos sovietes saltaram dos seus lugares, ameaçando com o punho o camarote dos oficiais. Gritaram: «Provocadores!»... A campainha presidencial tocou sem parara. «Dir-se-ia que, pouco falta para começar a zaragata.»

Depois de tudo o que foi dito, Kerensky, no seu discurso de encerramento, deu este aviso: « Creio que sei... que nós chegámos a nos compreender perfeitamente entre nós, que chegámos a estimarmos reciprocamente... Nunca a duplicidade do regime de Fevereiro tinha atingido um grau de falsidade abominável e vão. Não conseguindo manter-se sobre o mesmo tom, o orador, nos seus últimos periodos, dá bruscamente num grito de desespero e de ameaça.» Com uma voz descontínua que ia da gritaria histérica ao sussurro trágico, Kerensky ameaçava – segundo a descrição de Miliokov – um adversário imaginário, procurando-o insidiosamente no auditório, com um olhar inflamado...» Na realidade, Miliokov sabia melhor que ninguém que o adversário não era imaginário. «Hoje, cidadãos da terra russa, não me entregarei mais a devaneios... Que o coração petrifica... - exclamava nas suas divagações Kerensky – que secava todas as flores e devaneios sobre a natureza humana (voz femenina do alto: «Não é preciso!») que hoje, do alto desta tribuna, que espezinharam. Esmagarei-os em próprio! Não haverá mais ! (Voz feminina do alto: «Você não pode fazer isso, o seu coração não lhe permitirá.«) Lançarei longe de mim as chaves de um coração que ama a humanidade, pensarei somente ao Estado.»

Na sala, as pessoas estavam desconcertadas e, desta vez, os da direita como os da esquerda. O símbolo social da conferência de Estado acabava-se sobre um intolerável monólogo de melodrama. A voz feminina que se tinha ouvido na defesa das flores do coração retiniu como um apelo aos socorro, como um S.O.S. da pacífica, solar, não sangrenta revolução de Fevereiro. E enfim sobre o teatro da conferência de Estado caiu a cortina.


Inclusão 10/06/2011