Caminho e Caráter da Revolução Brasileira

Érico Sachs (Ernesto Martins)

1970


Primeira Edição: Escrito em 1970, quando o autor se encontrava exilado na Alemanha. Circulou no mesmo ano no Brasil entre militantes da esquerda revolucionária, em edição mimeografada providenciada pela organização Política Operária. O documento é composto por quatro partes distintas. “Ernesto Martins” foi um codinome utilizado por Eric Sachs em seus escritos durante a ditadura militar. Parte II digitalizado e revisado em out/2007, com base na coletânea “Andar com os Próprios Pés”, Belo Horizonte, SEGRAC. 1994; Parte III digitalizada em set/2007 e revisada com base em cópia mimeografada datada de 1970.

Fonte: Centro de Estudos Victor Myer.
HTML: Fernando Araújo


Parte I— Revolução Socialista ou Caricatura de Revolução

"Por outra parte as burguesias autóctones perderam toda a sua capacidade de oposição ao imperialismo— se alguma vez a tiveram— e só formam seu vagão de reboque. Não cabem dúvidas, ou revolução socialista ou caricatura de revolução". (Mensagem à Tricontinental— E. Guevara)

Guevara, nos últimos anos de sua vida, havia chegado à conclusão, expressando-a por escrito, que a revolução na América Latina será socialista ou será uma caricatura de revolução. Com isto se afastou publicamente das correntes aparentemente radicais que não pretendiam passar da caracterização "popular" e "democrática" da atual fase de luta e que simplesmente se negaram a definir o caráter do processo revolucionário, fugindo da definição sob pretexto de não querer "cicatrizar" o problema. Já se tornava extremamente difícil defender a debilitada tese da "revolução burguesa na América Latina" e a definição de Guevara foi um golpe a mais contra o populismo "teórico" nas esquerdas em toda América Latina, as quais se viram obrigadas a uma precipitada revisão de suas concepções ideológicas e, não poucas vezes, se sentiram forçadas a enfatizar profissões de fé socialista para poder sobreviver.

Para a elaboração de uma estratégia e tática marxista no Continente, o simples abandono da tese da revolução burguesa não é o bastante. O recuo tático e as profissões de fé socialista, na maioria das vezes, servem só para encobrir o (conservadorismo) das concepções de luta superadas e a manutenção de princípios e práticas pequeno-burguesas sob um rótulo novo.

Já o movimento revolucionário, que se nomeia marxista-leninista, tem que ter claro, não só os objetivos da luta, como também os meios para alcançar a meta.

As implicações da Revolução Socialista

Que significa a afirmação de que a revolução na América Latina é socialista?

Aplicando o conceito aos temos concretos da luta de classes nos diversos países da América Latina, evidentemente tem implicações diferentes nas regiões do Continente diferenciadas pelo seu grau de desenvolvimento e composições de classe. Parte, no entanto, das premissas de que:

  1. há um denominador comum na estrutura, na história e no futuro dos países latino-americanos, e
  2. que o processo revolucionário é continental ao menos no que diz respeito a parte latina do Continente.

Parte igualmente de outra premissa, tirada da experiência histórica da América Latina.

Já que o processo revolucionário é continental no sentido de que só nesta dimensão vencerá a inimigo comum, o imperialismo, e enfrentará os problemas sociais herdados do domínio de uma burguesia subdesenvolvida, a solução terá que ser socialista. Somente os objetivos socialistas e as classes que os encarnam podem desenvolver a solidariedade continental necessária à luta de emancipação e superar os particularismos "chauvinistas" e interesses locais, que caracterizam a fase das lutas burguesas.

Então, isto significa que a América Latina já está na iminência da revolução? Que nos encontramos diante de uma situação revolucionária ou em véspera de sua eclosão, na qual as condições para a instalação de um sistema e de governos socialistas já estão dadas?

Evidentemente que não. A caracterização socialista da revolução, em si não significa mais que constatar que hoje não há mais lugar no Continente para outras revoluções a não ser as socialistas, tomando revolução no sentido marxista de mudança de domínio de classes e transformação da sociedade, tanto da sua infra como da sua superestrutura.

Significa que, enquanto se mantiverem intactas as bases e as estruturas burguêsa-capitalista, todos os movimentos, mesmo os iniciados com método revolucionário, ficarão no meio do caminho, isto é, produzirão caricaturas de revolução. E revoluções feitas pela metade, como a história já nos ensinou, acabam em reações contra-revolucionárias. Estas conclusões são feitas, e não podem ser feitas de outro modo, independentemente do fato de que a situação esteja ou não madura para lançar a palavra de ordem da revolução socialista, de que as classes exploradas estejam ou não prontas para acatá-la, de que todas as condições estejam dadas, etc. Este aspecto da questão se relaciona com as tarefas da vanguarda revolucionária, da sua estratégia e tática a seguir — e que representa outro ponto do debate. A constatação do objetivo da revolução socialista parte do fato de que o ciclo das revoluções burguesas, mesmo tal como existiu nas condições latino-americanas se esgotou como fator de progresso social. Não significa que essas revoluções burguesas tenham sido concluídas, levadas até o final, como se deu em países de capitalismo clássico, dos quais a França é o exemplo mais nítido. Indubitavelmente as "tarefas" que as revoluções burguesas deixaram, não passam de aspectos secundários das futuras revoluções socialistas. Desde a "questão agrária" até as "tarefas democráticas" existem uma série de problemas que a sociedade burguesa em decadência já não soluciona.

Não menos importante para essas conclusões é o fato comprovado de que dentro das bases e da estrutura burguêsa-capitalista não há solução para o problema mais agudo entre os que oprimem os povos deste Continente, problema que freia e corta todas os caminhos do progresso e impede o desdobramento de suas forças produtivas: o domínio imperialista. Nenhum povo, e não só desta parte do globo, soube se liberar das garras da exploração imperialista sem romper as bases capitalistas das relações de produção. O único país que conseguiu escapar ao "domínio Imperialista" foi Cuba. E conseguiu unicamente mediante uma revolução socialista.

Cuba não deu esse salto de uma maneira premeditada. Nem a guerrilha na serra, nem as organizações de luta dos operários nas cidades tinham se colocado objetivos socialistas de revolução. Mesmo depois da insurreição vitoriosa o governo revolucionário tentou primeiro expropriar somente os capitalistas estrangeiros, deixando intacta a economia de mercado.

Viu-se forçado em seguida a expropriar sua própria burguesia para não por em perigo todo o processo revolucionário. Com isto criou um fato consumado nas lutas de classes na América Latina, um novo ponto de partida para seu processo revolucionário e delineou seu objetivo histórico. Esta é a importância primordial que a revolução cubana tem para nós, independentemente da interpretação que seus próprios dirigentes podem dar e da estratégia e tática que podem nos recomendar.

O que é a "Revolução Popular?"

O populismo reinante nas esquerdas procura diluir sistematicamente as categorias marxistas, originadas em uma concepção materialista da história da sociedade da qual evidentemente não compartilham. Por muito tempo tentou e evidentemente ainda tenta por outros meios substituir conceitos marxistas definidos como revolução burguesa ou socialista, por indefinidas revoluções "populares". Consequente com essa linha populista, parte de "movimentos" e "lutas populares" para chegar através da formação de "frentes populares" ao apoio a "governos populares". Se Marx já denunciou esse populismo no seu tempo (em que as contradições de classes ainda não haviam alcançado a agudeza de hoje) e Engels não poupou observações sarcásticas sobre o "Estado Popular" dos social-democratas alemães — Lênin por sua vez dedicou considerável lugar nas suas polêmicas para restabelecer os conceitos revolucionários do marxismo. Hoje, a tarefa se coloca de novo e em escala muito maior. Com a expansão do marxismo desde a segunda Guerra Mundial, (hoje todo mundo é marxista-leninista), o populismo penetrou novamente no movimento operário. E hoje ninguém se dá ao trabalho, ao incômodo de dizer que está "revisando" o marxismo e o leninismo. A profissão de fé de adesão à doutrina dos fundadores do socialismo científico serve de "salvo-conduto" para as "teorias" e práticas mais absurdas.

Sem dúvida esta não é a única porta pela qual o populismo entrou no movimento comunista internacional. Além do revisionismo iniciado por Stálin, que inventou as "Frentes Populares" como pretensa tática de "Cavalo de Tróia" e as "Democracias Populares" para não espantar a burguesia ocidental com Repúblicas Socialistas e Ditaduras do Proletariado, em consequência da guerra se deu o fenômeno de revoluções como as asiáticas, que eram populares de fato, de um ponto de vista marxista e sob o prisma marxista. Eram populares justamente porque não eram proletárias. Eram revoluções agrárias, levadas adiante e realizadas por camponeses em países em que o proletariado era numericamente reduzido demais para chefiar (encabeçar) fisicamente a revolução. Naqueles países era igualmente insignificante o papel da pequena-burguesia urbana, e muito mais reduzida numericamente que esta a burguesia incipiente. Nesses países o campesinato era o povo, a força motriz da revolução.

Entretanto, transportar esses modelos de revolução agrária para sociedades industrializadas, com suas divisões de classes cristalizada e antagonismos em outro nível, choca-se não só com qualquer dialética da luta de classes como também serve geralmente a segundas intenções. Essas tentativas mecanicistas de generalizar experiências podem, consciente ou inconscientemente, serem ocasionadas pelo fenômeno de querer ver o desenvolvimento das lutas de classe em escala internacional como continuação da própria revolução (assim como existiram generais que viram em cada nova guerra o prosseguimento da guerra anterior). Cabe aos revolucionários dos demais países retificar esse erro a tempo.

Mas o modelo também é transportado consciente ou inconscientemente (o resultado será o mesmo) porque convém para sustentar concepções políticas já existentes de antemão. Pois se na China, por exemplo, o papel da pequena-burguesia da cidade, como classe, era insignificante, não sucede o mesmo nas sociedades industriais. Nestas, a pequena burguesia tem reivindicações próprias que pesam na luta de classe, uma delas, e não a menos importante, é representar o povo, falar em nome do povo, estar por cima da contradição trabalho assalariado-capital. E mesmo quando se radicaliza, quando participa de movimentos revolucionários e "aceita" o marxismo, traz consigo suas concepções populistas e procura, agora sob o rótulo "teórico", opô-las ao "sectarismo" da luta de classe proletária. E é por isso mesmo que as profissões de fé revolucionárias não produzem sempre uma prática consequente.

Para os marxistas, as possibilidades históricas e, portanto, os objetivos de um determinado processo revolucionário, tem que ser definidos com toda a clareza, para que se possa desenvolver uma estratégia correspondente.

Só queremos recordar de passagem a atuação de Marx. Mesmo dizendo na Revolução de 1848 que o proletariado "tenha interesse em tornar a revolução permanente", deixava claro que a fase então presente era burguesa e elaborava uma estratégia e tática apropriada para a revolução burguesa. O que previa na estratégia era melhorar a situação do proletariado, deixá-lo em situação mais favorável para iniciar a luta pela revolução socialista. O mesmo pode-se verificar na atuação de Lênin, que em 1905 não deixou dúvidas de que se tratava de abrir as portas do capitalismo russo, mas em 1917 formulou clara e insofismavelmente o objetivo da revolução socialista e da Ditadura do Proletariado nas "Teses de Abril". Ainda que Lênin tenha falado da "revolução ininterrupta", nunca aceitou a diluição subjetivista da "revolução permanente" de Trotsky, por exemplo.

Os dois teóricos do socialismo científico trataram a revolução socialista como duas etapas histórica e qualitativamente distintas, que podiam se encontrar em um processo revolucionário "permanente" ou "ininterrupto", mas que tinham de ser distinguidos tanto por seus objetivos inerentes como pelas alianças de classe que lhes servem de bases.

Lênin, em o "Estado e Revolução", se refere especificamente a "revoluções populares" e usa o adjetivo para distinguir o desenvolvimento da Revolução Russa de 1905, um movimento com ampla participação de massas populares, da revolução turca de 1911, realizada por jovens oficiais através de golpes militares.

Não usa o termo para substituir os conceitos fundamentais de revolução burguesa ou socialista, mas sim para distinguir dois modos de realização da revolução burguesa como se deram na realidade. Não aplicou essa distinção para a revolução socialista, pois desta supôs, de antemão, que só poderia ser realizada através da intervenção das massas populares. E nesse sentido nossos populistas são consequentes, pois na maioria dos casos se escondem concepções e objetivos burgueses sob o pretexto da "revolução popular". Basta dizer que quase todos eles deixaram "aberta uma porta" para que os burgueses nacionais dêem sua adesão a tais movimentos.

O exemplo concreto da revolução chinesa

O exemplo clássico em nossa época de uma revolução que pode ser chamada de popular é dado pela revolução chinesa. Trata-se justamente de um processo histórico em que as duas fases, a da revolução burguesa e a da socialista se encontraram, em que uma revolução agrária desembocou no socialismo.

As circunstâncias históricas concretas que possibilitaram a execução da revolução chinesa são conhecidas. A revolução burguesa, cujos inícios se situam nos levantes dos Taiping, foi retomada sob a direção de Sun Yat-Sen, que criou o Kuomintang como instrumento político partidário. Os comunistas chineses, depois de discussões internas, entraram no Kuomintang onde encontraram suas bases de massas e procuraram criar um pólo proletário para impelir o processo à diante e radicalizá-lo. Depois da traição do Kuomintang o PC não soube reconhecer o momento adequado para separar-se dele e se tornou vítima do terror contra-revolucionário. Isso mais as aventuras ultra-esquerdistas do fim da década dos anos 20 destruíram não só as organizações comunistas nas cidades como também eliminaram praticamente o numericamente reduzido proletariado chinês como fator político ativo, o qual não interveio como classe senão até o fim da guerra civil. Os comunistas sobreviventes se deslocaram até o interior e criaram as bases camponesas armadas. A revolução se tornou agrária, alimentada pelos remanescentes do feudalismo asiático.

No entanto, as lutas proletárias anteriores haviam criado um Partido Comunista e o fato de que a burguesia chinesa traiu o campesinato e desistiu de uma luta frontal contra o feudalismo no campo, fez com que os camponeses aceitassem a liderança comunista para completar a tarefa da revolução burguesa. Esse aspecto da revolução burguesa, antifeudal, foi completada na China sem e contra a burguesia, como Mao-Tse-Tung sublinhou mais de uma vez. Entretanto, o fato dos comunistas terem conquistado essa liderança dos camponeses, mais a influência do exemplo e o escudo material da vizinha União Soviética, permitiu aos comunistas chineses a instauração de um poder socialista, ainda que fosse socialista somente em sua tendência, como ocorreu na própria Rússia Soviética em 1917.

O caráter popular dessa revolução e da República que criou foi proporcionado pelo seu caráter agrário, pelo fato de terem sido os camponeses a sua força motriz, os quais representavam a imensa maioria da sociedade agrária chinesa e pelo fato de que os camponeses em rebelião podiam e tinham que ignorar por muito tempo as divisões de classe nas cidades.

Inseparável de revolução chinesa é o conceito da Guerra Popular Revolucionária que se caracterizou pela prolongada confrontação armada entre unidades guerrilheiras camponesas e o Exército da repressão. Protegidas por bases liberadas, essas unidades guerrilheiras cresceram durante mais de 20 anos de luta, de regimento a brigadas, divisões e exércitos. A revolução vai do campo até as cidades que são cercadas e tomadas no final da guerra e cuja libertação marca o fim da guerra civil.

É duvidosa a interpretação que frequentemente se dá ao papel da burguesia nacional chinesa. Apesar de existirem as já citadas constatações de Mao sobre que a revolução foi feita sem e contra a burguesia, falam mais alto outras versões, igualmente de fonte chinesa que insistem em uma pretensa "colaboração da burguesia nacional". Nestas versões se apóia Lin Pião, no célebre ''Viva o triunfo da guerra popular" (que leva como subtítulo "A significação internacional da teoria do Camarada Mao-Tse-Tung sobre a guerra popular") quando recomenda aos povos do mundo capitalista subdesenvolvido a inclusão das burguesas nacionais na luta.

A falta de clareza sobre o papel da burguesia chinesa na Revolução é facilitada provavelmente pelo fato de que os comunistas chineses, durante a guerra contra o Japão, convidaram a burguesia chinesa para a formação de "frentes nacionais" (quando Mao-Tse-Tung desenvolvia a teoria dos Quatro Meses). Mas mesmo essa frente surgida com o Kuomintang, que se deu e se manteve sob pressão soviética e norte-americana sobre Chiang Kai-Chek, não passava de um armistício mal disfarçado em uma guerra civil que recrudesceu quando o perigo japonês foi eliminado. Os comunistas nunca conseguiram a formação de um governo de coalizão para a coordenação comum do esforço de guerra.

A burguesia nacional chinesa participou do dispositivo de Chiang Kai-Chek no seu território, ou colaborou forçadamente com os japoneses nos territórios ocupados, da mesma maneira como colaboraram os burgueses continentais europeus com o nazismo. A facção da burguesia chinesa que chegou a colaborar com a Revolução e que continua colaborando, o fez depois da vitória comunista e o fez porque não tinha outra saída levando em conta os meios de coerção que o governo revolucionário dispunha. Isso é o que há de concreto sobre a "colaboração de burguesia nacional", mas trata-se evidentemente de uma experiência dificilmente aplicável a nosso terreno na atual fase de luta.

É evidente também que nossos companheiros chineses conhecem esses fatos tão bem como nós. Se continuam sustentando a ficção da "colaboração da burguesia nacional" e recomendam a participação das burguesias nacionais na "revolução anti-imperialista e antifeudal" dos povos da Ásia, África e América Latina, isso tem causas e razões concretas.

Em primeiro lugar, generalizam a situação reinante na China pré-revolucionária a todo mundo capitalista subdesenvolvido e abstraem as condições sociais e históricas reinantes nas diversas regiões. Para eles trata-se evidente e genericamente de vencer as fases burguesas do processo revolucionário (Revoluções Nacional-Democráticas), que desembocará como na China (Nova Democracia) no socialismo, mas que quer ser tratado e iniciado a base de alianças de classe da revolução burguesa. O que pelo menos no caso da América Latina já não corresponde aos fatos.

Em segundo lugar, mesmo nos casos onde ainda se coloca na ordem do dia as revoluções burguesas, a participação de burguesias nacionais em revoluções se torna cada vez mais duvidosa. A burguesia hoje prefere o caminho das reformas e dos compromissos, que não põe em risco sua base social. Se, no entanto, a ficção contrária é sustentada deve-se provavelmente ao fato de que no caso chinês ajudou a neutralizar agressões internas e externas a parte revolucionária chinesa. Mas no caso chinês a ficção pôde ser proveitosa aos revolucionários em virtude de condições internacionais particulares, reinantes na ocasião. O armistício na guerra civil se enquadrou na aliança formada entre uma potência socialista, a União Soviética, e parte do campo imperialista, contra outra coalizão imperialista mais agressiva. Esta possibilidade de aproveitamento de contradições inter-imperialistas passou. A situação internacional agora é completamente diferente. Hoje, quando aparece a contradição entre sistemas sociais, isto é, entre socialismo e capitalismo, como a contradição fundamental da política mundial, quem se torna vitima da ficção do papel revolucionário das burguesias nacionais é o próprio movimento revolucionário, como demonstrou, entre outros, o caso da Indonésia.

A experiência chinesa representa um enriquecimento ao marxismo e às revoluções do nosso século precisamente pela capacidade que os comunistas chineses demonstraram em adaptarem as lutas de classe nos seu país em situações concretas e novas. Seus ensinamentos são aproveitados e igualmente adaptados em todos as regiões em que predominem condições socialmente similares às da China pré-revolucionária, aonde o campesinato representa a força motriz da revolução por não ter surgido um proletariado industrial, bastante desenvolvido para exercer o papel de coveiro do capitalismo. Entretanto, querer generalizar o modelo chinês como válido para todo o "mundo colonial e semi-colonial", isto é, para o mundo capitalista subdesenvolvido, é atuar tão esquematicamente como atuaram os "conselheiros" de 1927, quando insistiram junto aos chineses de que sua revolução tinha que se comportar à maneira russa. O mundo subdesenvolvido não é tão homogêneo, e hoje muito menos que um quarto de século atrás, quando os exércitos de guerrilheiros entraram em Pequim.

Querer que a revolução no Brasil ou no Chile, se comporte conforme o modelo chinês é desconhecer toda uma realidade de desenvolvimento capitalista nos dois países e no Continente. Propagar nesses países a guerra popular revolucionária, a revolução do campo à cidade, é ignorar o papel que o proletariado já conquistou nas lutas de classe nos citados países e abrir as portas do movimento revolucionário ao populismo pequeno-burguês, que continua ignorando a importância da contradição trabalho assalariado-capital, que domina a vida de seus países e que proporciona a base imperialista do Continente.

Na sociedade capitalista — insistiu Lênin mais de uma vez — já não podemos falar de povo genericamente. O povo se dividiu em classes, que se comportam conforme os interesses sociais criados pela sociedade capitalista. Nosso problema mais urgente é dar consciência de classe ao proletariado e o único caminho para isso é não deixar nenhuma ilusão sobre os interesses de classes existentes na sociedade.

Lutamos contra uma sociedade capitalista

POLÍTICA OPERÁRIA, desde a sua fundação (pode-se dizer que foi essa uma das razões de sua fundação), defendeu a tese da revolução socialista como única solução possível dos problemas sociais no Continente e especificamente no Brasil. Fomos os primeiros e por muito tempo os únicos no país que se deram ao trabalho de uma fundamentação teórica e que procuraram tirar as consequências práticas da situação. Ainda que, desde logo, devemos muito aos trabalhos pioneiros de companheiros de outros países latino-americanos, como o equatoriano Manuel Agustin Aguirre.

Tínhamos chegado a duas conclusões básicas:

a) que a América Latina não conheceu em sua história revoluções burguesas no sentido europeu ou asiático, onde a burguesia das cidades compactuava e até participava de uma luta popular contra uma velha ordem feudal.

A América Latina não conheceu o feudalismo como ordem social própria, apesar das tentativas espontâneas dos descobridores e conquistadores de transportar para o Novo Mundo os valores reinantes ainda em suas pátrias. O continente foi conquistado, povoado e desenvolvido (isto é, subdesenvolvido) em função do capitalismo mundial, no inicio principalmente pelo capitalismo mercantil, e formado pelas necessidades deste. Participou passivamente desse sistema capitalista desde o início, fonte de acumulação primitiva para as Metrópoles e reserva para futuras expansões do sistema. Quando se libertou do estado colonial direto, continuou como fornecedor de matérias primas, mercado e domínio das Metrópoles capitalistas até ser absorvido e integrado ao imperialismo, que englobou essas regiões em um sistema mundial sem necessitar destruir a decompor velhas relações feudais, como na Ásia por exemplo. A miséria latino-americana, tal como a conhecemos através de sua história, já é miséria da própria sociedade capitalista.

O problema da transformação social, que encontramos na América Latina, se desenrolou dentro do quadro de uma sociedade capitalista. Trata-se do deslocamento do peso da burguesia do campo para a cidade, fenômeno que foi acompanhado pela destruição dos chamados governos oligárquicos, como no Brasil em 1930.

A "revolução burguesa”, na medida em que se deu, não foi tanto uma luta contra o feudalismo, mas sim uma luta entre a burguesia industrial nascente contra a antiga estrutura mercantil e rural. A sociedade "pré-revolucionária" era formada por um capitalismo primitivo e primário, mas que apesar de tudo já era capitalismo na sua essência. A "revolução burguesa" no Brasil, acabou em compromissos com a bênção do imperialismo e é característico que o movimento "revolucionário" não chegou a tocar no campo. A facção rural da classe dominante ganhou tempo para se transformar em industrial e para adaptar o primitivo capitalismo rural às novas necessidades. Isso quer dizer que a revolução burguesa no Brasil (e em geral na América Latina), em termos de transformação social, não se deu como "negação" de uma sociedade pré- capitalista, mas sim "como transformação de quantidade em qualidade" a base da ordem social existente. Dentro do compromisso das classes dominantes, a hegemonia da burguesia da cidade foi assegurada pelo crescimento de seu poder econômico.

Foi A.G. Franck quem analisou melhor e aprofundou mais os estudos do desenvolvimento capitalista na América Latina. Mostra concretamente, nos casos do Brasil e Chile, as origens e o crescimento das classes dominantes nativas e suas relações com as burguesias da Metrópole capitalista. A grande contribuição de Franck consistiu em demonstrar com base em investigações históricas e de análises da sociedade atual: a) que durante quatro séculos a função de nosso sub-desenvolvimento dentro do capitalismo mundial como fornecedor de recursos para a acumulação nas metrópoles não mudou; b) porque não há perspectivas de libertação dos países subdesenvolvidos dentro de relações de produção capitalistas. A classe dominante do Continente não fez mais e não faz mais do que se adaptar às necessidades do capitalismo mundial, sem poder superar seu papel de dependente. Esta "continuidade na troca", representa um fator fundamental na análise histórica e dialética. Mas no instante de realçar o fenômeno da "continuidade na troca", Franck deixa em segundo lugar o significado do salto qualitativo, que representa a transformação das economias agrário-mercantís, de características coloniais, em capitalista industrial subdesenvolvidas dentro do contexto geral das lutas de classes em escala internacional. Entretanto, não se apercebeu da importância do surgimento do proletariado industrial o de sua intervenção no cenário da política latino-americana e isso explica porque apesar de ver claramente a incapacidade da burguesia de encabeçar ou participar de qualquer movimento revolucionário e de ver a solução socialista como a única saída para os problemas vitais do Continente considera, entretanto, essa luta sob o ângulo da "libertação nacional".

Para a discussão em termos de uma estratégia revolucionária, tal como se está dando atualmente, é importante ter em mente o quanto essa situação contém de elementos que podem ser levados em conta. Tanto a revolução russa como a chinesa, em escala ainda maior, tiveram tarefas da revolução burguesa para cumprir. A mais importante era a da transformação do campo, que havia sido o baluarte do antigo regime. Em ambos os casos — na China novamente em grau muito maior — essa ingerência da revolução burguesa influiu ativamente para assegurar a vitória socialista.

A situação na América Latina já não é a mesma. Ainda que o campo conserve toda sua potencialidade revolucionária e a aliança entre operários e camponeses (e entre operários e trabalhadores do campo — isso varia de país para país) seja uma das bases fundamentais de qualquer estratégia revolucionária, existem características próprias que influem no transcurso da luta.

Em primeiro lugar a não existência de uma sociedade feudal no Continente faz com que tampouco haja, na maioria dos países, tradições de "guerras camponesas", como se deram na história européia e asiática. Uma exceção a essa regra está representada pelos países que antes da conquista já dispunham de uma ordem agrária tática, destruída pelos brancos. A rebelião das populações indígenas e mestiças não restabelece, evidentemente, a antiga ordem, mas torna-se um elemento da revolução burguesa, lhe dá o caráter popular o contribui ao restabelecimento do poder burguês-capitalista nas cidades, ainda que contra a vontade da burguesia. O grande exemplo é o México, mas a revolução boliviana de 1952, mesmo não contando com a participação ativa camponesa na fase de luta, trouxe resultados não menos radicais. A atual reforma do Peru, de caráter preventivo, mostra que a força da pressão indígena não se esgotou ainda. Nesses países, a transformação do estatuto agrário deu-se principalmente pela criação do minifúndio. Entretanto a burguesia peruana está procurando outro caminho, o da formação de cooperativas agro-capitalistas.

No resto da América Latina a transformação se dá principalmente pela chamada racionalização e modernização dos latifúndios, isto é, a inversão do capital em base de um cálculo industrial, na agricultura. Neste sentido, Cuba pré-revolucionária representa provavelmente o exemplo clássico no Continente. Isso significa a existência de um proletariado assalariado e de um semi-proletariado (meeiros) no campo capaz de desenvolver formas de luta próprias, que se aproximam das do proletariado industrial.

Ambas as formas de transformação burguesa no campo não resolvem o problema agrário. A sociedade capitalista na América Latina não assegura a existência nem do pequeno camponês, nem do assalariado rural. E a luta no campo, que se agrava e se aprofunda a longo prazo já se desenrola no terreno da economia e sociedade capitalista, isto é, em um nível mais alto, como demonstrou Cuba.

Em termos gerais pode-se constatar que a revolução burguesa, tal como se deu na América Latina tinha duas tarefas essenciais a cumprir:

  1. levar a burguesia urbana ao poder e isso com todas as consequências de adaptação do aparato estatal a sua necessidade;
  2. a transformação do campo, cuja estrutura criada pelo capital mercantil-colonial já não corresponde às necessidades da expansão da burguesia industrial e urbana, integrada ao sistema imperialista.
    E isso indica que as tarefas que a revolução burguesa deixou para nós já não têm o mesmo peso na revolução como tiveram na China e ainda na Rússia. Pesarão, na verdade, na construção do socialismo, quando sentimos a incapacidade da burguesia de criar uma sociedade industrial que nos facilite a expansão das forças produtivas em bases socialistas.
O papel do Imperialismo

O auge do processo de industrialização da América Latina deu-se em uma fase do imperialismo que foi caracterizado por August Thalheimer, em 1956, como sendo de "cooperação antagônica", sob a égide dos Estados Unidos.

O resultado da Segunda Guerra Mundial trouxe para o mundo capitalista uma situação em que as contradições inter-imperialistas, que dominam as relações internacionais desde a fim do século passado, se tomaram secundárias em vista de uma contradição mais profunda e fundamental entre os dois sistemas sociais que dominam o globo.

A expansão do campo socialista e o predomínio material e tecnológico dos Estados Unidos no mundo capitalista fazem com que as potências imperialistas mais débeis se submetam às mais fortes, em uma pirâmide invertida, que é dominada pelos Estados Unidos, a superdotada potência imperialista e policial do sistema capitalista. Essa integração do mundo imperialista não elimina nem supera nenhum dos antagonismos existente no sistema, entre as potências imperialistas e entre elas e as não imperialistas, as quais são objeto da exploração imperialista. Sem dúvidas, evita que esses antagonismos cheguem às últimas consequências de confrontações armadas entre potências imperialistas, em virtude de uma cooperação que predomina contra a ameaça do socialismo e da revolução mundial.

A cooperação antagônica entre as potências imperialistas encontra sua prolongação lógica nas relações entre essas e as burguesias nacionais do mundo capitalista subdesenvolvido. Na América Latina e no Brasil, isso teve como consequências gerais:

  1. que ficou limitado o campo de manobras para as burguesias nativas, que periodicamente souberam explorar as contradições entre potências imperialistas (Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, etc.) para melhorar suas próprias posições;
  2. uma aceitação e crescente dependência do domínio do imperialismo norte americano em uma associação econômica, na qual o capital imperialista participa na industrialização, ocupa posições de mando virtual e influi decisivamente no ritmo das atividades econômicas.

A "cooperação antagônica", não libera o mundo capitalista de choques internos em todos os níveis, altos e baixos. Há momentos em que o antagonismo parece predominar, em que as burguesias nacionais ameaçam com uma política externa "independente", se rebelam contra os esquemas do Fundo Monetário lnternacional e nacionalizam empresas estrangeiras particularmente impopulares. O mesmo fenômeno se dá entre as próprias potências imperialistas nos momentos de relaxamento periódico da tensão internacional. Desaparece quando surge um novo recrudescimento da tensão internacional e, como na França em 1968, quando o regime capitalista está posto em cheque. A prazo prevalece a cooperação pela manutenção do sistema.

Na América Latina o fenômeno é particularmente presente nas cidades e no campo e nas crises econômicas agudas. Nos momentos em que os antagonismos vem à superfície, a oposição burguesa, entretanto, não visa o sistema em si e é limitada de antemão pelos interesses de auto-conservação. A oposição é dirigida unicamente contra o sistema de distribuição da mais valia produzida pelo proletariado do Continente, da qual o imperialismo leva a parte de leão.

Quando consegue melhorar sua posição na sociedade com o imperialismo (o que nem sempre acontece na realidade), a burguesia nativa continua colaborando com o imperialismo em novos termos.

Que esse processo está vivo no Continente, demonstram os exemplos do Peru e da Bolívia de antes do golpe de Banzer. O Peru, na mesma semana em que expropriou a empresa de má fama "Internacional Petroleum Co”, outorgou outras três concessões de exploração petroleira a companhias norte-americanas "independentes" em condições "mais vantajosas" e não deixou de entregar novamente suas minas de cobre ao imperialismo norte americano. Na Bolívia, aonde o processo parecia tomar rumos mais radicais, pouco antes do golpe de Banzer, houve um recesso que indicava que a burguesia boliviana não estava disposta a correr o risco de provocar um choque com o imperialismo que poderia por em perigo sua precária estabilidade interna. Tanto na Bolívia como no Peru, o regime oscilou entre ditadura militar aberta e tentativas de um populismo controlado. Seu instrumento de "cooperação antagônica" nas suas diversas fases é o Exército e este tem seu papel específico a desempenhar nos governos burgueses do Continente.

Exército e revolução burguesa

Na maioria dos países da América Latina o papel desempenhado pelo Exército está em estreita dependência do desdobramento da revolução burguesa. No Brasil, por exemplo, o processo de transformação das tropas coloniais em exércitos a serviço da nascente burguesia urbana começou cedo. É conhecido o papel de Deodoro da Fonseca na questão dos escravos fugidos e do Exercito na instalação da República. Se a consciência burguesa dos oficiais se expressava através do positivismo isso refletia o estado de espírito da burguesia da época, que não nasceu sob signos revolucionários. Esse aburguesamento do corpo de oficiais foi facilitado pelo fato de que a classe média e a pequena-burguesia foram as fontes de recrutamento. E se por um lado, a carreira da hierarquia militar possibilitou um ascenso na escala social e abriu perspectivas da integração de uma minoria nas classes dominantes, por outro lado, o grosso dos oficiais trazia consigo a ideologia da classe média isolada do poder. O fenômeno persiste até hoje e os exércitos, desde sua formação no sentido moderno, desempenham o papel de tropas de choque da burguesia, em sua ascensão como em sua decadência.

A Revolução de 1930, no Brasil, se deu sob o signo do "tenentismo" e representou de certo modo o auge de um movimento que esses jovens oficiais iniciaram em 1922. Entretanto, mais importante que o signo em si foi o fato da revolução ter se dado praticamente sob a direção de uma parte do Exército, que não perdeu o controle do movimento em âmbito nacional e, onde o perdeu localmente o recuperou em seguida. Ainda onde houve armamento da população civil, isso se realizou sob a vigilância de unidades do Exército e sob o mando de oficiais. Mas os tenentes revolucionários não continuaram sendo tenentes para sempre e tampouco "revolucionários". Acompanhando o desenvolvimento de sua classe de origem, deram lugar aos coronéis e generais que prepararam o realizaram o Golpe de Estado em 1964.

O Brasil, seguramente, não é o único exemplo nesse sentido. Na Bolívia o processo foi mais rápido e mais radical. Nesse país o Exército foi praticamente extinto na Revolução de 1952. Os oficiais foram mortos ou fugiram para o exterior, com exceção de uma pequena minoria que havia participado da tomada de La Paz. Os governos revolucionários, que no início representavam uma coalizão entre representantes da pequena-burguesia nacionalista e cujas bases foram proporcionadas por camponeses, que continuavam apoiando o regime. Esse exército criado "para proteger a revolução e a democracia" a princípio débil, começou a crescer e se fortalecer tornando-se um dos pilares do Estado e, finalmente, o próprio árbitro do Estado, quando a burguesia já não soube governar com os recursos populistas.

O Peru nunca conheceu uma revolução burguesa como a boliviana nem ainda nos moldes de brasileira de 1930. A lembrança dos governos oligárquicos está entretanto presente. A situação do campo peruano continua mais explosiva ainda do que na Bolívia, por exemplo, que teve uma válvula de escape em 1952, com a divisão das terras. Nestas circunstâncias, a atuação do Exército peruano tem um duplo caráter:

  1. reformador, no sentido de adaptar a estrutura social do país às necessidades da burguesia urbana, e
  2. preventivo, no sentido de eliminar o potencial revolucionário existente, principalmente no campo, para garantir o desenvolvimento da sociedade burguesa-capitalista.

O que os oficiais "revolucionários" peruanos e bolivianos tem em comum é sua ideologia nacionalista, que pode adquirir matizes os mais diversos, mas que se situa no terreno da defesa da sociedade burguesa. Isso, dito de passagem, é também característica de um grande setor da oficialidade brasileira, de mais baixa graduação (a "interdependência" de Castelo Branco nunca chegou a ser popular entre eles). Mas as consequências práticas desse nacionalismo latente dependem das necessidades objetivas de suas burguesias, às quais estão servindo, e o nível da "cooperação antagônica" que está prevalecendo. E neste sentido não há diferença entre os militares peruanos e bolivianos, a não ser que estes mataram a Che Guevara, e aqueles "só" mataram a De La Puente. Em ambos países os guerrilheiros continuam presos e as forças armadas matarão de novo se a ordem social for ameaçada.

O que os regimes militares entendem por política nacionalista é que todas as decisões nacionais passem por suas mãos, que sejam eles que cuidem dos termos e das condições de cooperação com o imperialismo. Entendem que são eles mesmos os "donos em sua casa" sua própria polícia, que serão eles os que prendem e matam seus próprios operários revolucionários e guerrilheiros. Que são eles mesmos os que oprimem e governam a seus próprios povos, de acordo com a hierarquia de sua oficialidade.

O caminho mais longo nessa direção foi percorrido pelo Exército brasileiro. De "guardião das tradições democráticas" se tornou símbolo continental de gorilismo, fazendo sombra até a seus inspiradores argentinos. Hoje, o Exército brasileiro instalou uma máquina de terror em moldes fascistas, a qual se distingue de seus precursores italianos e alemães somente pelo fato de não haver conseguido uma mobilização de massas como sustentáculo de seu regime. A estrutura e a situação geral do país ainda não gerou o fenômeno fascismo. Somente permitiu copiar os métodos de repressão.

Entretanto, o que a ditadura militar brasileira tem em comum com o fascismo (e ainda com o bonapartismo populista) é que se trata de um governo indireto da burguesia. Ainda que haja deixado cair a máscara democrática e a ditadura está aberta e nua, foi necessário que ela fosse confiada ao Exercito quando, no momento da crise, a própria burguesia se sentiu incapaz de exercê-la de maneira tradicional e velada. Lançou mão do instrumento que já havia servido no passado, no caminho de ascenso ao poder.

Nesse sentido, a ditadura militar no Brasil não passa de um capítulo a mais da "revolução burguesa". Esperemos que seja o último.

Processo revolucionário e governo de transição

Dissemos que a revolução no Brasil será socialista por não restar alternativa para que o processo revolucionário se imponha no país.

Dissemos também que a constatação do caráter socialista da revolução não quer dizer que a situação já esteja madura para desencadeá-la e, implicitamente, colocar o problema da formação de um governa socialista.

Que significado tem isto na prática? Significa que não estamos interessados nas lutas que não tenham objetivos socialistas? Significa que não estamos interessados em derrubar a ditadura militar se esta derrubada não conduzir ao estabelecimento de um governo socialista no país? E, finalmente, significa que não podemos mais apoiar a nenhum governo se não for socialista?

Evidentemente que não. Uma tal conclusão seria contrária a toda a experiência da luta de classes e a todos os ensinamentos do marxismo revolucionário.

Em princípio apoiamos todas as lutas parciais, todo o movimento que ajude de fato a objetivos socialistas, quer dizer, nossa estratégia atenta a melhorar a situação do proletariado e de sua vanguarda na luta de classe, para colocá-la em posição favorável ao enfrentamento da revolução socialista. No caso concreto do Brasil, nas atuais circunstancias, não podemos partir da premissa que a derrubada da ditadura militar já leve automaticamente a uma solução socialista. Isso não corresponde às relações das forças sociais existentes no país. Além disso, a experiência geral ensina que o processo revolucionário é mais complexo.

Não seremos nós evidentemente, que engrossaremos o coro da oposição burguesa e pequeno-burguesa da "redemocratização". Ao contrário, o combatemos. Em primeiro lugar porque não temos interesse em restabelecer o antigo "status quo", que consolidará novamente o domínio da burguesia com uma folha de parreira "democrática". Em segundo lugar porque, se houver uma derrocada do presente regime militar, o equilíbrio artificial da sociedade burguesa estremeceria tanto que qualquer nova experiência em termos de república democrática não passará de um intervalo para que a classe dominante prepare outra forma de ditadura aberta. Qualquer democracia real e duradoura que seguir a derrubada da ditadura militar, para impor-se, terá que ter um caráter revolucionário, isto é, terá que se apoiar nas classes revolucionárias do país — inclusive militarmente.

Em outras palavras, pode e deve surgir uma fase de transição em que a velha ordem burguesa esteja estremecida, mas o salto qualitativo para uma nova ordem não foi dado e não pode ser dado ainda de imediato. Como deve se comportar o proletariado e seus aliados frente ao poder que a burguesia já não está em condições de exercer, ainda que o momento da revolução socialista não esteja madura?

Isso coloca o problema do governo de transição.

Trata-se de uma das noções de estratégia de luta do marxismo revolucionário que se perdeu durante os anos do reformismo stalinista e que foi definida justamente em uma época em que Lênin e os comunistas procuraram elaborar, pela primeira vez, uma estratégia global da revolução mundial: nos quatro primeiros Congressos da III Internacional Comunista. A resolução adotada (no IV Congresso), prevê que o proletariado e os partidos comunistas, que não integram e nem apóiam os governos burgueses, podem se encontrar em situações nas quais se impõe a participação e a sustentação de governos não socialistas, sob a condição que esse ato leve adiante o processo revolucionário (como foi a perspectiva naquele momento) e evite a vitória de um movimento de direita que tenda a destruir o movimento operário (fascismo). Tal governo já não será burguês, será um "Governo Operário" nos países altamente industrializados, onde os partidos operários estiverem em condições de formá- lo, e será um "Governo Operário e Camponês" nos outros onde o proletariado não poderá governar sem o apoio efetivo do campo. Adverte a resolução do Congresso que não se trata ainda de um governo socialista nem da Ditadura do Proletariado e não deve ser confundido com eles.

Nós, no Brasil, levando em conta as particularidades do país, definimos esse Governo de Transição como o "Governo Revolucionário dos Trabalhadores" a ser formado por uma Frente dos Trabalhadores da Cidade e do Campo.

Levando em conta, igualmente, as particularidades do país, acreditamos que o surgimento desse governo não pode ser produto de um processo eleitoral e terá, para se impor, que resultar da intervenção ativa e violenta das massas trabalhadoras.

Acreditamos que tal governo não pode exercer seu poder por intermédio dos instrumentos "democráticos" tradicionais — Congresso, Judiciário, Polícia, Exército, etc os quais tem que ser neutralizados e eliminados. Tem que se apoiar diretamente nas organizações de massas dos trabalhadores e suas forças armadas e estimular seu crescimento.

Esta é a característica principal que distingue o Governo Revolucionário dos Trabalhadores dos governos "populares" e "democráticos" que sob rótulo radical procuram salvar e conservar o aparelho estatal burguês e governar com ele. Estes serão "governos de transição" da burguesia e para a burguesia e procurarão fazer com que a estrutura básica da sociedade burguesa passe ilesa pelas convulsões até que possa ser nova e abertamente consolidada.

Tomemos os exemplos já clássicos de governos de transição na América Latina: Bolívia e Cuba. O Governo Revolucionário de La Paz, em 1952, foi de transição. Mas o já mencionado predomínio da liderança pequeno-burguesa que, além disso, soube assegurar-se o apoio camponês e, por outro lado, a falta de perspectiva e clareza da representação do proletariado, que ficou isolado, fez com que os sucessivos governos se tornassem de "transição" para o restabelecimento da ordem burguesa.

Em Cuba, por outro lado, o Governo de Transição encontrou sem maiores dificuldades o caminho mais curto para a revolução socialista. Realizado a base da aliança entre os trabalhadores da cidade e do campo e apoiado nas forças armadas revolucionárias — do exército convencional não sobrou uma pedra em pé — a revolução marchou para frente apesar e graças a defecção da ala pequeno-burguesa do Movimento 26 de Julho.

A prática das lutas sociais na América Latina comprovou que o Governo de Transição, entretanto, não é um poder socialista, nem a Ditadura do Proletariado, assim como a democracia revolucionária não se identifica com a democracia socialista. Representa uma encruzilhada no caminho revolucionário. Se este governo se limita aos métodos de democracia burguesa, ou tenta restabelecê-la, prepara o caminho para a restauração do poder burguês. Para se impor e se manter deve lançar mão de métodos democráticos que sobrepassem e destruam a democracia burguesa, ainda não sendo, entretanto, socialista.

Pode-se perguntar por que o proletariado, se está em condições de estabelecer tal governo, não institui imediatamente a Ditadura do Proletariado e o socialismo. Mas, essa pergunta abstrai as relações de forças existentes em cada momento concreto do processo revolucionário. Abstrai a situação de seus aliados nos diversos momentos do processo e dos termos em que estão dando seu apoio à classe operária. Abstrai, finalmente, a situação do próprio proletariado, de sua atuação objetiva e de sua consciência nas diversas fases de luta.

O Governo de Transição se justifica e se impõe em um momento da luta de classe em que as massas já se encontram em rebelião contra a velha sociedade mas ainda não alcançaram as consequências práticas para enfrentar a construção de uma nova. Quando ainda não compreendem que para garantir a expropriação das propriedades imperialistas é necessário também expropriar, econômica e politicamente, a própria burguesia. Quando não compreendem ainda que para acabar a exploração e a miséria é necessário trocar as relações de produção com toda sua super estrutura. Isto é, se justifica e se impõe em um momento em que já há rebelião contra a ordem burguesa mas essa rebelião se dá ainda dentro do quadro ideológico burguês herdado da velha sociedade. Mas será a própria agudização das contradições sociais durante o Governo de Transição e o papel impulsor que a vanguarda revolucionária desempenhará em seu meio, o melhor e mais rápido meio de elevar a consciência das massas trabalhadoras ao nível necessário para uma revolução socialista.

Está também implícito aqui que o Governo de Transíção não representa uma solução social a longo prazo. Seu tempo de vida está limitado, de um modo natural. Nenhuma classe operária pode governar por muito tempo com base em uma estrutura social burguesa capitalísta. Ou dá o passo decisivo para a Ditadura do Proletariado ou será vencida pelas leis econômicas sociais capitalistas e terá que ceder o lugar novamente às forças burguesas aliadas ao imperialismo.

O papel que o Governo de Transição desempenhará (será importante porque decidirá se situações potencialmente revolucionárias desembocarão em transformações sociais ou serão contornadas pela classe dominante) estará na dependência direta da possibilidade desse governo mobilizar e se apoiar nas massas trabalhadoras e da situação da classe que teoricamente representa a força matriz e hegemônica do próprio processo revolucionário: o proletariado.

E isso quer dizer que todo processo revolucionário depende do nível e dos rumos que as atividades das vanguardas estão tomando atualmente no país. Para que desempenhemos o papel de vanguarda hoje não basta mais as profissões de fé sobre objetivos socialistas. Ao fim e ao cabo todo mundo "quer" o socialismo. Ser vanguarda marxista-leninista no Brasil é saber tirar as consequências práticas da caracterização socialista do processo revolucionário. Significa, pelo menos, contribuir na prática parta a maturação dos fatores que levam à revolução socialista.

Parte II - A Força Motriz do Processo Revolucionário

"E a revolução no Brasil será proletária ou não será revolução...".
(II Congresso da ORM Política Operária— 1962)

Se a caracterização socialista da revolução no Brasil foi uma das causas fundamentais do surgimento da Política Operária, outra, não menos decisiva, foi a sua definição proletária. A intervenção direta da classe operária e sua liderança sobre as demais classes e camadas oprimidas da sociedade é premissa para a revolução, nas condições do Brasil, atingir os objetivos socialistas que a história coloca na ordem do dia. Isto é, para não ficar no meio do caminho, para não se tornar "caricatura da revolução".

Para chegar a essa conclusão partimos da análise da sociedade brasileira. Esta tinha dado passos decisivos no caminho da industrialização na década de 50, quando a parte industrial do Produto Nacional ultrapassou a contribuição agrária, tradicionalmente preponderante. Podemos nos poupar de citar as estatísticas correspondentes que são amplamente conhecidas e divulgadas: basta lembrar que, tomando em conjunto a produção industrial e os chamados Serviços, o total começou a perfazer mais da metade do Produto Nacional e essa situação evidentemente não mudou mais, a não ser no sentido de uma crescente acentuação dos fatores industriais capitalistas.

Essa análise e suas conclusões óbvias pairavam sobre a vintena de delegados reunidos pela primeira vez, vindos dos quatro cantos do país para elaborar as diretrizes da Política Operária em escala nacional, e foram confirmadas poucos anos depois. O golpe militar de 1964 foi um nítido produto das contradições de trabalho assalariado e capital, que tinham se tornado fundamentais na sociedade brasileira. Foi produto direto da crise econômica cíclica do capitalismo brasileiro, começada em 1961/62, tendo atingido o seu ponto mais baixo em 1964/65 e da qual o regime começou a sair lentamente dois anos mais tarde. Foi, de certo modo, o cartão de visita do capitalismo brasileiro no cenário econômico mundial. Não é que o país não tenha conhecido o fenômeno das crises cíclicas no passado, mas o conheceu como apêndice da economia mundial e em consequência das crises nas metrópoles capitalistas. A crise brasileira, iniciada em 1961, entretanto, foi legitimamente nacional e se deu justamente numa fase de alta da conjuntura econômica, tanto nos Estados Unidos como nos centros do Mercado Comum Europeu. Foi a saturação da mais recente onda de industrialização no Brasil e suas consequências sociais e políticas que fizeram a classe dominante temer pela manutenção do sistema e entregar o poder às forças armadas, como garantia da ordem existente.

Uma vez estabelecida a contradição fundamental como sendo entre capital e trabalho assalariado, tínhamos de enfrentar as consequências. Tratava-se antes de tudo de definir a força motriz do processo revolucionário. Está implícito à concepção materialista e histórica do marxismo que a força motriz da revolução se encontra nos centros de produção, que sustentam a sociedade, e como estes, lenta mas seguramente, tinham-se mudado para as cidades como resultado da industrialização, não havia mais dúvidas sobre o papel do proletariado industrial como classe hegemônica no processo revolucionário. Falar de uma classe hegemônica significa raciocinar em termos de uma aliança de classes e esta, em termos brasileiros, tinha de abranger além da classe operária industrial, os trabalhadores do campo e as camadas radicalizadas da pequena-burguesia urbana. Falamos de camadas radicalizadas e não da pequena-burguesia, contraditória e dividida e que representa também uma reserva da burguesia na luta de classes (a justeza dessa análise foi igualmente confirmada em 1964, quando a grande maioria da pequena-burguesia aderiu e apoiou o golpe militar). A formação dessa aliança revolucionária e, concretamente, a mobilização do potencial revolucionário do campo, o despertar e a organização dos onze milhões de trabalhadores rurais e camponeses de duvidosas posses de terra, na luta de classes no terreno de uma sociedade preponderantemente capitalista-industrial, exige a presença de uma classe operária que tivesse consciência do seu papel e capacidade de liderança. Isso quer dizer que nas condições da sociedade brasileira a hegemonia proletária não pode se limitar a uma liderança ideológica (como foi o caso na China) e sim implica na intervenção e liderança física dos quatro milhões de operários no processo revolucionário. Isso significava também que o partido revolucionário tem de ser um partido operário e que as vanguardas marxista-leninistas existentes tem de encontrar o caminho para o proletariado, se quiserem desempenhar o papel que pretendem.

Já assinalamos que a caracterização da revolução brasileira como socialista não significa ainda que as condições já estivessem maduras para pô-la na ordem do dia da luta imediata. Tampouco, o fato de constatar o papel hegemônico do proletariado no processo revolucionário não significa ainda que a classe operária brasileira já estivesse em condições de exercê-lo. Há, porém, uma diferença implícita nas duas colocações. Como a revolução socialista depende do fato do proletariado exercer realmente o papel hegemônico e como este não se limita ao ato da revolução, mas é necessário no processo revolucionário em todas as suas fases, o problema fundamental das lutas de classe no país é o da formação dessa classe operária capaz de dar conta da sua missão.

Esse problema fundamental se revelou em todos os momentos da política brasileira que levou ao golpe militar. Foi confirmado diariamente na política nacional pelo fato do proletariado não estar exercendo esse papel independente e muito menos hegemônico. Ele atuava como instrumento de facções da classe dominante e estava a mercê da política delas. Trinta anos de reformismo e de política de colaboração de classe do Partido Comunista Brasileiro tinham atrasado o processo histórico que Marx chamava de transformação do proletariado de classe em si em classe para si, da formação de uma classe operária independente, livre da tutela ideológica e política da burguesia e oposta à sociedade burguesa.

O que significa "classe operária para si" em condições latino-americanas?

Historicamente, isto é, até hoje, o nível político mais alto atingido por um proletariado, neste Continente, foi sem dúvida em Cuba. Foi o país onde o proletariado agiu como classe mesmo quando a ditadura de Batista destruiu as suas organizações de massa legais, procurando substituí-las por entidades oficiais sob o controle do Estado. A classe operária cubana formou suas organizações clandestinas (os Comitês de Defesa) que continuavam a dirigir a luta nas empresas. O proletariado, que já contava com a experiência da greve geral contra Machado, em 1933, soube conservar e reforçar sua consciência de classe coletiva também sob a repressão de Batista. E foi essa consciência e a oposição ativa ao regime que a guerrilha conseguiu catalisar e que conduziu à greve insurrecional e à revolução socialista. Todavia, e isso explica também a política interna e externa de Cuba nos dias de hoje, a organização proletária em Cuba não chegou a um nível de representação política direta da classe, como os "sovietes" no início da Revolução Russa, ou órgãos semelhantes que outras revoluções produziram. O proletariado cubano entregou o poder executivo a uma cúpula revolucionária, que fala em seu nome e isso explica porque Cuba, até hoje, não se preocupou em adotar uma Constituição Socialista.

Atualmente, na América Latina capitalista, o proletariado mais amadurecido como classe é, sem dúvida, o chileno. Trata-se de um proletariado que, embora dominado por partidos reformistas, age como classe. É em sua imensa maioria socialista ou comunista, "marxista", levando em conta as limitações do reformismo oficial. Pode flutuar e hesitar entre socialistas, comunistas e agrupamentos menores, mas não dará mais a sua confiança e seu voto aos representantes políticos da burguesia, que é reconhecida como classe antagônica (a não ser que as lideranças reformistas o recomendem, mas mesmo isso já criou dificuldades). Se este potencial de classe na luta política chilena— como nos casos francês e italiano— não se traduz em ações mais consequentes, isso se deve a circunstâncias políticas e históricas, que não se limitam àquele país.

O proletariado mais agressivo, nos últimos anos, mostrou ser o argentino. Foi na República Argentina, principalmente no interior, onde o operário industrial foi às ruas, as massas parcialmente armadas, para enfrentar a repressão. Os operários de Córdoba deram uma lição prática de luta de classe ao proletariado de toda a América Latina. A consciência do proletariado argentino, todavia, ainda se esconde por baixo de uma ideologia peronista, que se torna um ônus para a formação da classe independente. Existe uma grande discrepância entre o movimento real do proletariado argentino e as formas sob as quais toma consciência de sua luta. A superação dessa discrepância é uma condição para a formação da classe para si.

Entre as classes operárias maiores do Continente, é provavelmente a mexicana que se encontra num estágio de amadurecimento mais remoto ainda. Tradições históricas particulares— país de maior revolução agrária do Continente e que mais tarde iniciou o processo de industrialização— atrasaram o processo de formação política do proletariado. A isso se juntou o fato de o Partido Comunista Mexicano nunca ter preenchido o papel de um partido do proletariado e o resultado foi a institucionalização do movimento operário dentro do partido burguês oficial (PRI) nas últimas duas décadas de quase ininterrupta expansão do capitalismo mexicano.

A posição do proletariado brasileiro se situa hoje entre os graus de desenvolvimento do argentino e mexicano. Rompeu as amarras de uma integração oficial, que no Brasil se deu principalmente por intermédio de um sindicalismo estatal, sob o controle do Ministério do Trabalho, mas não encontrou ainda suas formas de organização próprias, que lhe permitissem travar a luta como classe em escala nacional. Foi a própria ditadura que mais contribuiu para afastar o proletariado dos organismos sindicais oficiais. Sendo o congelamento salarial uma das metas do golpe de Estado, a Ditadura tem pouca margem para desenvolver uma demagogia trabalhista. O proletariado compreendeu isso instintivamente e resistiu como classe ao golpe. Na medida em que se pode movimentar como classe depois do golpe— geralmente em escala regional— manifestou-se contra a ditadura. As greves gerais de Minas e de Osasco, no fundo, eram greves políticas, apesar das reivindicações terem se limitado ao terreno salarial. Não se pode afirmar, todavia, que o proletariado brasileiro já tenha adquirido a sua independência e maioridade. Apesar do desencanto com o trabalhismo e o desgaste das antigas lideranças populistas, o vácuo ainda não foi preenchido pelo surgimento de uma liderança política operária e isso significa que fica aberta a possibilidade de novas influências burguesas e pequeno-burguesas, estranhas à classe.

Esse atraso da classe operária brasileira se deve antes de tudo ao atraso das suas chamadas "vanguardas", a histórica, representada pelo PCB, mas não menos às novas, produto da desintegração do PCB, como veremos em seguida. Mas para compreender o fenômeno em toda a sua amplitude temos de fazer um balanço critico do desenvolvimento objetivo do proletariado brasileiro nos últimos anos.

O caminho do proletariado brasileiro

A atual classe operária brasileira se formou e se desenvolveu durante o Estado Novo — a ditadura bonapartista de Getúlio Vargas, e nos anos do pós-guerra, nas fases de expansão industrial do país. Ela é produto dessas fases maiores mais recentes da industrialização, iniciada com a instalação da indústria pesada, começada em Volta Redonda, e pouco ou quase nada tem em comum com o jovem proletariado brasileiro da Primeira Guerra Mundial, formado em grande parte por imigrantes de tradição anarquista, bastante combativos para produzir as greves gerais que abalaram São Paulo e Rio de Janeiro, entre 1917 e 1919. A quebra na continuidade do crescimento, no sentido político, a ruptura entre as gerações, foi causada pela repressão do Estado Novo, que destruiu o sindicalismo livre operário e, simultaneamente, inaugurou uma política paternalista de legislação social e de salário mínimo, apoiada num sindicalismo oficial e estatal. Essa situação só foi possível também em virtude da atuação desastrosa do Partido Comunista Brasileiro, que, sob a nova orientação do Komintern e a liderança de Prestes, tinha perdido o caráter de partido operário — a começar pela infeliz tentativa de quartelada de 1935 — e, isolado da sua base de classes, não sobreviveu à clandestinidade do Estado Novo como organização nacional.

Dividido em grupos regionais e ideológicos e sem atividade no seio do proletariado, acentuou-se no meio do Partido a influência e a liderança pequeno-burguesa, à base de apoios "à burguesia progressista" e "antifascista", os quais tiveram continuidade lógica em apoios "às forças progressistas no seio do governo", da "política de industrialização" e do "esforço de guerra". Isso tudo ainda se deu numa fase de violenta repressão ao movimento operário e enquanto os próprios quadros comunistas estavam sendo presos e torturados.

O resultado dessa situação foi que a jovem classe operária, formada agora em grande parte por migrantes do campo, ficou durante quase uma década sob a influência unilateral da demagogia governamental, sem que a esquerda tivesse força material ou ideológica para se opor a isso e quebrar o monopólio burguês.

Com o fim da guerra, a anistia política e a reorganização do PCB em bases legais, essa linha política foi oficializada. Quando a burguesia brasileira, cansada da tutela do Estado Novo, procurou se desfazer da ditadura e estabelecer uma democracia burguesa, que lhe garantisse uma participação maior e mais direta no exercício do poder, Getúlio Vargas pôde mobilizar massas operárias em sua defesa, alegando que a volta de "políticos" destruiria a legislação trabalhista criada por ele. O PCB não via caminho melhor nessa situação do que apoiar Vargas. Estabeleceu-se a aliança trabalhista-comunista. Prestes aparecia ao lado do ex-ditador nos comícios públicos. "Constituinte com Getúlio", "Getúlio é governo de fato" e outras foram as palavras de ordem que dominavam os comicios-monstros do Rio e São Paulo, onde o Partido reunia massas operárias não menos numerosas do que o ex-ditador.

Apesar da confusão reinante no seio do proletariado e por baixo do trabalhismo reinante, havia uma profunda radicalização das massas. Os salários reais tinham caído durante a ditadura para menos da metade e o relaxamento da repressão e do clima político geral, em 1945, bastavam para que o proletariado se lançasse em ondas de greves de massa inéditas na história do país e que arrastavam as camadas mais atrasadas e getulistas do proletariado. Este movimento espontâneo da classe operária teria sido a maior oportunidade para um partido revolucionário erradicar o trabalhismo do seu meio e reduzi-lo às suas bases peleguistas. O Partido Comunista, entretanto, consequente com sua nova linha, prestou-se a desempenhar o papel de "bombeiro" para apagar o fogo. O governo exibiu entrevistas filmadas em todos os cinemas do país, nas quais Prestes se pronunciava contra as greves e apelava para os operários a "apertar o cinto" e a fazer "sacrifícios patrióticos".

Pela mesma razão, tanto antes como depois da queda final de Vargas, o Partido Comunista Brasileiro negou-se a atacar a estrutura sindical criada pelo Estado Novo nos moldes do sindicalismo italiano dos tempos do fascismo, contentando-se com postos de cúpula nas direções sindicais, em aliança com os velhos pelegos. A estrutura sindical não mudou até os dias de hoje. É evidente que o pós-guerra era decisivo para a formação, ou não-formação, de um proletariado independente no Brasil. Não pode ser subestimada a importância do fato de o proletariado brasileiro não conhecer sindicatos operários livres desde 1937 e, praticamente, desde aquela época, não ter tido vida sindical. E isso foi, talvez, nas condições brasileiras, o fator mais poderoso de atraso do amadurecimento da classe.

Esse aspecto, todavia, só representou uma face da política de colaboração de classes. Outro foi a completa ausência de propaganda e educação socialista no seio das massas. Não houve nem ao menos uma agitação anticapitalista. Qualquer colocação de classe dos problemas foi evitado sistematicamente, em nome de uma pretensa revolução democrático-burguesa, posteriormente "nacionalista" e "anti- imperialista".

As consequências políticas não se fizeram esperar. A política burguesa do PCB, que tinha se adaptado ao nível do trabalhismo, decepcionou as massas e destruiu sua combatividade. Os apoios eleitorais a políticos burgueses "progressistas", como Ademar de Barros em São Paulo, o qual poucos meses depois de sua eleição começou uma política de repressão contra a classe operária e os próprios comunistas, desmobilizaram essa política também no terreno eleitoral. A decepção das massas se traduziu em passividade e apoliticismo crescentes. O número dos membros do PCB caiu de 200 a 40 mil, entre 1945 e 1947 — última vez que foram publicadas cifras oficiais. E a retificação da linha partidária, tentada com o Manifesto de Agosto (que não passou de uma reação sectária ao oportunismo anterior), não mudou mais a situação geral de declínio do movimento operário.

Uma nova ascensão do movimento de massas iniciou-se em 1957/58 e inaugurou novo marco no desenvolvimento do proletariado como classe. O movimento começou lentamente, como resultado da intensificação da política inflacionista do governo Kubitscheck. O PCB, embora ainda desfrutasse do monopólio "marxista" na classe operária, enfrentou essa nova onda em posição mais fraca do que em 1945. Liquidando a fase sectária do Manifesto de Agosto, procurou adaptar-se a uma situação de semilegalidade e o fez voltando às posições de colaboração de classe com a burguesia, sob um novo rótulo. Prestes, voltando do esconderijo, inaugurou a política de "apoio à burguesia nacional" e o novo programa do Partido foi adaptado a uma pretensa revolução "nacionalista-democrática". Igualmente foi renovada a aliança com o trabalhismo, que tinha revigorado sob a direção de Goulart, herdeiro de Getúlio Vargas.

As contradições de classe no Brasil estavam se aprofundando. O ritmo de expansão econômica sob o governo Kubitscheck só foi possível se sustentar ao preço da intensificação do processo inflacionário, que aumentou não só as contradições no seio das classes dominantes, mas também, fundamentalmente, entre as classes dominantes e o proletariado.

A intranquilidade no meio do proletariado se manifestou primeiro por uma série de greves isoladas e movimentos parciais. O ritmo destas, entretanto, estava crescendo e em pouco tempo deu lugar às greves gerais. Sob a pressão desse movimento de massas, o governo desistiu de aplicar as leis de repressão da Consolidação Trabalhista, fez concessões e limitou-se a recorrer à corrupção, mediante os recursos do Fundo Sindical. As greves vitoriosas automaticamente foram tratadas como "legais". Não houve mais intervenções nos sindicatos e as diretorias eleitas foram empossadas.

A política governamental foi novamente facilitada pela aliança trabalhista-comunista, que apoiou praticamente o "desenvolvimentismo" de Kubitscheck.

O barômetro da situação de classe do proletariado, nessa primeira fase de nova ascensão, foram as eleições presidenciais de 1960, que revelaram profunda divisão do proletariado brasileiro e o pouco amadurecimento de sua consciência de classe. O voto operário no país se dividiu principalmente entre os dois candidatos burgueses, entre o "nacionalista" General Lott, e o demagogo populista Jânio Quadros. Este já tinha unificado em torno de si praticamente toda a burguesia brasileira e o capital estrangeiro, contando ainda com a esmagadora maioria do voto das classes médias, como protesto contra a inflação. O voto operário só foi unânime na eleição do vice-presidente, João Goulart. O atraso do proletariado se manifestou de modo duplo: primeiro, por ter dado os seus votos a candidatos burgueses, inimigos naturais de sua classe e, segundo, pelo fato de não ter dado pelo menos o seu voto como uma classe unida, e ter-se deixado dividir pela burguesia.

Não havia dúvida que a consciência de classe tinha regredido, de certo modo, em relação a 1945. Isso se via tanto pela votação dos candidatos apoiados pelos comunistas, como pelo número de comunistas eleitos, que era ridículo em comparação ao pleito de 1945, apesar do número de eleitores inscritos ter crescido para mais do dobro. O vácuo criado pela decepção com a política do PCB não foi preenchido pela esquerda. Os votos iam para as diversas facções do trabalhismo populista.

Isso, todavia, só foi a primeira fase. A situação não ficou nesse pé. A renúncia de Jânio e a tentativa de estabelecer a primeira Junta Militar, aceleraram rapidamente o progresso de radicalização das massas. Radicalização, entretanto,— já havíamos visto isso antes— ainda não significou conscientização. Por enquanto a luta política se travava ainda sob matizes burgueses. A investidura de Jango como Presidente da República tinha como consequência imediata um renascimento das ilusões reformista-populistas, alimentadas pelo PCB. Em seguida, com as decepções em torno da gestão de Jango e o desgaste de Jânio, causado pela sua renúncia, e na medida em que o PCB perdia posições e o controle da situação, foi outro líder burguês, Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul, quem penetrou no proletariado nacional.

A aceleração da inflação aumentou a intranquilidade da classe operária. A desvalorização constante dos salários reais tinha financiado, em grande parte, a expansão industrial. No fim da década dos anos 50, a burguesia brasileira, todavia, já tinha chegado à conclusão de que o ritmo inflacionário atingido não lhe ofereceria mais vantagens. De um lado, a desvalorização da moeda não impedia mais a queda da taxa de lucro e não representava mais garantia contra a crise cíclica; de outro, criava um fator de instabilidade social com consequências imprevisíveis. No início, o reajustamento salarial, à base do salário mínimo, se dava de dois em dois anos. Em seguida, passou a vigorar de ano em ano. Depois da renúncia de Jânio, impôs-se um reajustamento virtual de seis em seis meses e os operários do Rio de Janeiro e de São Paulo começaram a exigir aumentos periódicos de três em três meses. A política nacional da época girava em grande parte em torno da corrida entre preços e salários.

O PCB se viu obrigado a protestar publicamente contra os "sacrifícios impostos ao povo", mas pela boca dos seus ideólogos partidários defendia a inflação como único recurso de desenvolvimento de um país subdesenvolvido. Na prática tinha de tomar alguma medida e, assim, convocou greves gerais de apoio ao governo, como a célebre greve a favor do "Gabinete Nacionalista de San Thiago Dantas", na época em que a burguesia tentava a experiência parlamentarista.

O modo como se realizaram as greves gerais também refletia a situação de classe do proletariado. Na Guanabara, por exemplo, onde as tradições proletárias estavam mais diluídas por influências pequeno-burguesas e pela proximidade do foco do peleguismo — o Ministério do Trabalho — o PCB e seus aliados não confiavam no acatamento da palavra de ordem pelos operários, que não dispunham de organizações de base nas empresas. Os reformistas também não se dispunham a encorajar esse tipo de organização de base, pois o receava como fator de radicalização da luta. Encontraram então um expediente para solucionar o problema: limitaram-se a parar as duas estradas de ferro, a "Central" e a "Leopoldina", e as barcas dos transportes marítimos Rio-Niterói. Como 80% do proletariado tinha de usar esses meios de transporte para chegar aos lugares de trabalho, a greve geral estava "declarada" e "cumprida".

Em São Paulo, onde o proletariado era politicamente mais retraído em virtude das decepções do passado, também as chamadas greves políticas (em apoio a políticos burgueses) geralmente fracassaram. Mas na greve de reivindicações operárias, de 1962, o proletariado paulista se lembrou das suas tradições de luta e a parede funcionou nos próprios locais de trabalho, onde organizações de base foram improvisadas na hora.

É preciso levar em conta também que as greves não eram nacionais. Limitavam-se a uns poucos centros industriais maiores. No interior do país não havia organização. Somente no decorrer das greves e sob a pressão de baixo, se formou a Central Sindical, a base da aliança entre PCB e pelegos, mas que não chegou a alterar o nível de organização operária no país.

Foi nessa situação que o proletariado enfrentou a crise política que precedeu ao golpe militar de 1964. Para completar o quadro é preciso destacar alguns fenômenos ainda.

Primeiro, a penetração de Brizola no meio da classe operária. Para conseguir isso, adaptou a sua linguagem à situação radicalizada. Falava em "classes dominantes" e "explorados"— sem com isso descuidar das suas relações com a burguesia nacional, na medida em que essa ainda lhe dava crédito. A decepção com Jango e a atitude dúbia do PCB fez que ele conseguisse vencer as desconfianças do proletariado industrial e que suas alocuções radiofônicas encontrassem um público crescente. Seus apelos a favor da criação de "Grupos de Onze" encontraram eco nas regiões mais afastadas do país e células e bases sindicais inteiras do PCB começaram a ignorar praticamente as diretrizes partidárias e se colocaram à disposição de Brizola.

Em segundo lugar, o campo começou a se movimentar em seguida à classe operária e em dependência da cidade. Pouco tempo antes tinha fracassado o intento de organizar as "Ligas Camponesas" em escala nacional. As Ligas só tomaram importância regionalmente, no Nordeste, especificamente nas regiões açucareiras de Pernambuco e Paraíba. No resto do Brasil, não passavam de pequenas ilhas isoladas. Em troca, os primeiros anos da década de 60 assistiram ao surgimento de sindicatos rurais e à organização de camponeses em bases improvisadas, acompanhadas de invasões de terras. O movimento só estava em seu começo e como os camponeses não tinham condições de se organizarem, nem nacionalmente, nem em âmbito regional, ficou a mercê do ritmo das conjunturas da luta de classes nas cidades.

Em terceiro lugar, deu-se no decorrer da crise um processo de decomposição no seio das forças armadas. O movimento dos sargentos e o ainda mais radical dos marinheiros ameaçavam cindir horizontalmente as forças armadas, provocando espontaneamente uma aproximação entre os setores mais combativos do proletariado e os militares rebeldes. Ambas as partes sentiam o que a Política Operária formulou publicamente: "o movimento dos sargentos e dos marinheiros tinha de formar a cobertura armada da classe operária no presente estágio da luta". E, quando houve a confraternização entre metalúrgicos e marinheiros no sindicato de São Cristóvão e a conseguinte adesão dos fuzileiros navais, mandados para prender os marinheiros, estava dado um exemplo histórico de "modelo" da revolução proletária no Brasil.

Foi, evidentemente, uma antecipação de "modelo", que ainda não correspondia às relações de forças existentes e que, além disso, não contava com o elemento do trabalhador rural presente — a não ser indiretamente pela origem social dos marinheiros — mas que indicava o caminho. A burguesia compreendeu a ameaça e tratou de dar o golpe, antes que o movimento se alastrasse.

Resumindo, os poucos meses antes do desfecho do golpe tinham contribuído mais do que anos anteriores para o amadurecimento objetivo da classe operária. A classe estava em movimento e por isso mesmo a situação estava contraditória. As manifestações de certos setores avançados ainda não refletiram a consciência geral da classe, que ainda não ultrapassara o nível do trabalhismo. Isso foi demonstrado pelo comício monstro em frente à Central do Brasil, convocado pelas três facções, que então predominavam: Jango, Brizola e o PCB. Mas na hora do golpe, quando as ditas correntes estavam em franca debandada e tinham desaparecido, o proletariado foi a única classe urbana que se mantinha como classe contra o golpe. Foi uma posição defensiva, mas a classe estava unida. Estava sem liderança. A velha, reformista e populista, tinha desaparecido e a nova, revolucionária, não tinha surgido ainda. E sem um partido revolucionário não se completa o processo de transformação da classe em si em uma para si.

A colocação política depois do golpe

A Ditadura Militar mudou as condições de luta, mas não alterou o problema fundamental das relações de classe e do processo revolucionário no Brasil.

O problema fundamental continua a ser a formação do proletariado, a conquista de sua independência ideológica e política. A mobilização das massas proletárias sob bandeira própria e sua intervenção ativa na política nacional é o único meio para alterar as relações de classe, que deram lugar à ditadura militar.

A essa conclusão a Política Operária já tinha chegado depois do golpe e seu primeiro Pleno Nacional o declarou nas suas "Teses Tiradentes":

"O traço essencial que caracterizou a política nacional antes do golpe e que possibilitou a instauração da ditadura militar sem uma resistência das massas e dos partidos políticos foi a ausência de um movimento operário independente, capaz de aglomerar em torno de si o campesinato e as camadas radicalizadas da pequena burguesia. O populismo reinante no movimento das massas trabalhadoras, que diluiu as fronteiras de uma política de classe mediante a penetração das concepções e ilusões pequeno-burguesas no proletariado, permitiu que este ficasse a reboque de uma das frações da classe dominante, que o traiu para evitar um aguçamento das lutas sociais, entregando a proteção da sociedade burguesa-latifundiária às Forças Armadas e escolhendo o acerto com o imperialismo norte-americano".

Isso não significa que nós restringimos o processo revolucionário no Brasil à atuação do proletariado, como os nossos críticos de ontem e hoje gostam de dar a entender. Estava perfeitamente claro para nós que o proletariado isolado não pode, nas condições da estrutura social do Brasil, lançar-se sozinho à luta revolucionária da conquista do poder e da transformação da sociedade. Ele tem os seus aliados naturais em potencial: os trabalhadores do campo e as camadas radicais e proletarizadas da pequena burguesia urbana. Mas qualquer aliança de classe a ser criada se torna ilusória e não passará além das quatro paredes dentro das quais costuma ser gerada, enquanto não houver a transformação qualitativa do proletariado, que lhe permita de fato exercer o papel de liderança e levar os seus aliados potenciais a uma luta mais consequente. Por isso as "Teses Tiradentes" constatava:

"A formação dessa classe operária independente continua sendo a tarefa fundamental de qualquer movimento consequente no país... é a premissa de qualquer luta revolucionária consequente, seja contra a exploração imperialista, seja contra a opressão da reação interna".

A transformação do proletariado em classe política e independente não pode ser confiada à ação espontânea da história. Esta só cria as condições objetivas. A criação da classe para si pressupõe a atuação consciente e contínua de um agente da história, a vanguarda revolucionária que, na medida em que o processo avança e é acelerado por ela, se transforma em partido político do proletariado. E o partido surge na medida em que a classe operária fornece os quadros para integrá-lo e segue a sua orientação na luta.

"Apesar de depois da derrota de Abril, provocada por uma prolongada política reformista e revisionista das esquerdas, todas as condições objetivas para uma conscientização da classe operária estarem dadas, o proletariado dificilmente dará esse passo decisivo sozinho, de força própria. Para a formação da classe operária independente é necessária a atuação de agitadores e propagandistas revolucionários, que definam para ela os seus interesses, despertem a sua solidariedade de classe e a autoconfiança na sua força, liderem-na nas lutas parciais e indiquem claramente os seus objetivos finais. Essas tarefas só podem ser preenchidas pelas vanguardas marxista- leninistas existentes, que no decorrer da luta se transformem em partido. O processo da formação da classe operária independente está estreitamente ligado ao surgimento do partido revolucionário da classe operária e o progresso deste reflete o amadurecimento da classe operária'. (Teses Tiradentes)".

Foi esta a estratégia com que a Política Operária entrou na luta clandestina contra a ditadura. Ou melhor, foi esta a linha estratégica elaborada, pois uma estratégia na luta de classe só existe na medida em que se formam as forças materiais, os "exércitos" a serem levados para a batalha. Nossa tarefa ainda consistia e ainda consiste em criar a força material, o "exército" proletário.

Como organização política, como vanguarda marxista-leninista, a Política Operária subordinou todos os aspectos da luta de classes, o estudantil, o do campo, a luta armada e sua forma particular de guerra de guerrilha, ao objetivo estratégico da mobilização e organização do proletariado industrial. E como toda estratégia é uma questão de economia de recursos disponíveis, concentrou todas as suas forças e quadros:

  1. nas indústrias-chave, cujo movimento repercute em toda a classe, e
  2. no movimento estudantil, que naquela altura era a grande fonte de quadros revolucionários com a mobilidade exigida pelas condições de clandestinidade e os quais, naquele momento, eram indispensáveis para a organização de vanguardas operárias.

Trabalhamos em dois níveis. Primeiro, penetramos diretamente nas fábricas e nos bairros, formando quadros operários, criando organizações de base e dando o exemplo da atividade revolucionária no seio da classe; segundo, dirigimo-nos à nova esquerda, que estava surgindo depois do golpe de maneira confusa, mediante uma série de lutas internas nas organizações tradicionais, principalmente o PCB. Grande parte da nossa literatura estava destinada a esse fim e concentrava seu peso na importância, na orientação e nas particularidades do trabalho operário. Os resultados se fizeram sentir durante a reorganização da nova esquerda e o estabelecimento de frentes formais e tácitas nas fábricas e bairros. Fomos favorecidos nesse sentido pelo começo de um movimento em ascensão da classe operária, em 1966, que atingiu o seu auge em 1968, para recuar novamente perante a repressão do novo golpe.

Nem as greves gerais de Minas nem de Osasco teriam sido realizadas sem o insistente e concentrado trabalho da Política Operária no seio do proletariado e junto às esquerdas.

O fato de quase toda a nova esquerda ter acompanhado a onda do trabalho operário nos dois anos de relativo ascenso não significa que já tivesse se definido para uma linha proletária de luta de classe. Ao contrário, quando a onda começou a declinar, em fins de 1968, e a atingir em seguida o seu ponto mais baixo, os novos revolucionários escolheram objetivos mais "imediatos" e sua concepção de "luta armada" os fez desertarem do trabalho nas fábricas. A consequência geral foi à liquidação, destruição e desaparecimento de grande parte das organizações operárias construídas nos últimos dois anos, com seus núcleos de operários revolucionários, Comitês de Empresas e redes de distribuição de literatura. Quando o proletariado, no ponto baixo da onda, mais precisou da assistência das vanguardas, ficou abandonado e mais uma vez se criou uma situação em que a imensa maioria da classe operária ficou submetida a um monopólio da influência governamental.

O "marxismo-leninismo" da maioria da nova esquerda não teve muito fôlego. Mas, para poder dar continuidade à luta, impõe-se o esclarecimento do problema fundamental para a esquerda brasileira: em que consiste a concepção marxista- leninista da luta de classes e da revolução proletária? Impõe-se voltar às fontes, para ter o critério da medida.

Marx, Lênin e o papel do proletariado

Desde que Marx, na "Miséria da Filosofia", definiu o processo de transformação do proletariado de classe em si à classe para si, isto é, da transformação de uma classe que existe objetiva e passivamente em uma classe consciente do seu papel na sociedade e que se lança na luta pela sua emancipação, dedicou sua vida e obra à aceleração do processo histórico que considerava premissa para a libertação de toda a humanidade. Não o fez de maneira "obreirista" ou populista, cortejando ou idealizando o proletariado, como tinham feito Proudhon e outros, antes e depois dele. Marx se dispôs a educar a classe operária a fim de dar-lhe consciência do seu papel, procurando transmitir a ela o máximo dos conhecimentos das leis da sociedade e da luta de classes, os quais ele mesmo, em companhia de Engels, descobrira e sistematizara. Como educação, Marx não entendeu uma atitude paternalista ou acadêmica e sim a assistência e orientação na luta diária que o operário trava contra o capital, nas lutas parciais e políticas no seio e contra a sociedade burguesa e que servem de escola para a formação de um proletariado com consciência de classe. De certa fase em diante, como instrumento principal dessa luta surgiram os partidos políticos da classe operária, para cuja formação Marx e Engels apelaram por ocasião da liquidação da Primeira Internacional. Esses partidos políticos operários, por sua vez, não eram outra coisa senão a fusão do socialismo científico, do marxismo, com o movimento operário vivo da época. A penetração da teoria revolucionária nas massas tinha-se transformado em força material.

Depois da morte de Marx, Engels continua a obra na mesma direção e no mesmo sentido, assistindo diretamente às vanguardas revolucionárias e aos partidos já criados em uma dúzia de países europeus (e alguns americanos), no empenho de formar o proletariado mundial independente, coveiro do capitalismo. A tarefa dos revolucionários— escreveu ele, e isso era quase um testamento legado aos companheiros de luta— em todos os países modernos (industrializados) consiste em organizar o proletariado em partido político.

Lênin retomou essa herança em circunstâncias particulares. Retomou-a num país que não tinha feito ainda nem a tentativa de revolução burguesa e onde esta ainda estava na ordem do dia; e a retomou numa época que se destacou pelo início da revolução mundial.

No começo da sua atividade política militante, colocou de imediato a fundação do partido do proletariado da Rússia como problema fundamental e primordial. Vejamos como coloca a questão nas "Tarefas dos Social-democratas Russos".

"O trabalho socialista dos socialdemocratas russos consiste em fazer propaganda das doutrinas do socialismo científico, em difundir entre os operários um conceito justo sobre o atual regime econômico-social, sobre seus fundamentos e seu desenvolvímento, sobre as diferentes classes da sociedade russa, sobre suas relações mútuas, sobre a luta dessas classes entre si, sobre o papel da classe operária nessa luta, sua atitude perante as classes que estão em decadência e perante as que estão em crescimento, sua atitude perante o passado e o futuro do capitalismo, sobre a tarefa histórica da socialdemocracia internacional e da classe operária russa".

"Nosso trabalho, antes de tudo e, sobretudo, é dirigido para os operários de fábrica das cidades. A social-democracia russa não deve dispersar suas forças, deve se concentrar na atividade entre o proletariado industrial, que é mais suscetível de assimilar as idéias social-democratas, é o mais desenvolvido intelectualmente e politicamente, o mais importante pelo seu número e pela sua concentração nos grandes centros políticos do país. Por isso se enganam profundamente os que acusam a social-democracia russa de estreiteza, de tender a fazer caso omisso das massas da população trabalhadora, para atender somente aos operários de fábricas. Ao contrário, a agitação nas camadas avançadas do proletariado é o caminho mais seguro, o único caminho para conseguir também o despertar de todo o proletariado russo".

"Ao radical russo parece frequentemente que o social-democrata, em lugar de chamar de um modo direto e imediato os operários avançados à luta política, afirma a necessidade de desenvolver o movimento operário, de organizar a luta de classes do proletariado; parece-lhe que a social-democracia retrocede assim do seu democratismo, relega a um segundo plano a luta política. Mas, se há retrocesso, somente pode se tratar do retrocesso do qual fala o provérbio francês: 'é preciso recuar para saltar melhor'."

"A um partidário da "Vontade do Povo" o conceito da luta política é equivalente ao conceito da conjura política... Mas (os social-democratas) sempre acreditaram e continuam a acreditar que essa luta não deve ser realizada por alguns conjurados, e sim por um partido revolucionário, que se apóie no movimento operário. Acham que a luta contra o absolutismo não deve consistir em organizar conjuras, e sim, em educar, disciplinar e organizar o proletariado ". (As tarefas dos social-democratas russos'. Grifos de Lênin) fasa

Não pretendemos abusar de citações, mas aqui Lênin coloca de maneira sucinta os problemas fundamentais da formação de um proletariado como classe e as tarefas decorrentes de uma vanguarda. É evidente que a questão da concentração de forças não é um princípio do marxismo: trata-se de um problema de relações de forças e do grau de amadurecimento do proletariado. Questão de princípio é a formação e organização do proletariado, mas todo movimento tem de saber decidir se o número de quadros disponível é bastante para que a organização se dedique a mais de uma frente e desempenhe de fato um papel na luta de classe.

Que essa concepção de luta deu os resultados desejados nas condições russas, já evidenciara a Revolução de 1905, cujos traços mercantes Lênin destaca no seu relato do mesmo nome:

"A peculiaridade da revolução russa consiste precisamente em que foi uma revolução democrático-burguesa, pelo seu conteúdo social, enquanto que pelos seus meios de luta foi uma revolução proletária... foi simultaneamente uma revolução proletária, não só por ser o proletariado a sua força dirigente, a vanguarda do movimento, mas também porque o meio especificamente proletário de luta, a greve, foi o meio principal das massas em movimento..."

"Somente as ondas de greve de massas, que se estendiam por todo o país, despertaram as vastas massas camponesas do seu sono letárgico. A palavra 'grevista' adquiriu para os camponeses um sentido completamente novo, chegando a ser algo como rebelde ou revolucionário, conceitos que antes se expressava com a palavra de 'estudante'. Mas como o 'estudante' pertencia às camadas médias, à gente de 'letras', aos 'senhores', ficava estranho ao povo. O 'grevista', ao contrário, havia saído do povo, figurava entre os explorados."

Não se deve perder de vista que essa situação descrita por Lênin se deu sete anos depois da publicação das "Tarefas", citada mais acima, quando se tinha dado início ao trabalho sistemático na classe operária e dois anos depois da fundação do Partido, que foi em 1902. Os liberais ainda puderam duvidar da capacidade revolucionária do proletariado russo. O Partido era fraco e os quadros poucos, mas como salientou o próprio Lênin:

"Não obstante, o panorama mudou por completo no curso de uns poucos meses. As centenas de social-democratas revolucionários se transformaram 'prontamente' em milhares, os milhares se converteram em dirigentes de dois ou três milhões de proletários. A luta proletária suscitou uma grande efervescência e, em parte, um movimento revolucionário no seio de uma massa de camponeses de cinquenta a cem milhões de pessoas; o movimento camponês repercutiu no Exército e provocou insurreições de soldados, choques armados de uma parte do Exército contra outra. Assim, pois, um país enorme, de 130 milhões de habitantes, se lançou à Revolução... " ('Sobre a Revolução Russa de 1905"— Grifos de Lênin).

Se citamos aqui o exemplo de revolução proletária dado por Lênin, não o fazemos com o intuito de querer substituir a análise dos fatores que caracterizam as lutas de classes no Brasil, nem queremos dizer com isto que a situação na Rússia, em 1905, era semelhante a do Brasil de hoje. Ao lado das particularidades nacionais, sociais, culturais, etc., que toda revolução apresenta, há ainda a particularidade específica da revolução russa de 1905 ter sido democrático-burguesa, dirigida contra os remanescentes feudais, que se mantinham sob a forma do absolutismo. Mas o que a Rússia já tinha em comum com os países industriais era a existência do proletariado e, consequentemente, o papel que desempenhava nas lutas de classe. Por isso mesmo podemos citar o caso russo como exemplo de colocação do problema. Lênin mostra o método marxista aplicado à prática revolucionária.

Podemos escolher outros exemplos: a luta de classes em escala internacional está rica em experiências, positivas e negativas, e todas aquelas colhidas em países capitalistas, onde já existe uma contradição fundamental e a polarização de trabalho assalariado e capital, revelam problemas fundamentais semelhantes, causados pela estrutura de classes da sociedade capitalista. Se escolhemos Lênin, de primeira mão, é porque o líder revolucionário russo ainda está, cremos, acima da suspeita de "revisionismo", "pacifismo", etc., porque "teoricamente" ainda representa um critério, um ponto de referência, numa fase de luta que se destaca pela absoluta falta de critérios, sejam teóricos ou práticos.

Mesmo assim isso não quer dizer que os pontos de vista de Lênin não possam estar superados. O marxismo não é um dogma fossilizado, no qual os "papas" já pensaram todos os problemas para nós, antecipada e definitivamente. Marxismo é antes de tudo método e é experiência acumulada e aproveitada. Mas é método materialista dialético. E na medida que surgem constantemente novas experiências, experiências que contradizem as anteriores, elas devem poder ser digeridas e aproveitadas à base da concepção materialista da sociedade e da dialética da luta de classes.

Acreditamos que isso foi feito no caso da revolução chinesa, que foi uma contribuição completamente nova ao marxismo de então. No caso da América Latina (inclusive da Revolução Cubana) e, especialmente no do Brasil, o aproveitamento critico dos novos fatores na luta de classes e da própria experiência passada ainda está num modesto início. A discussão sobre os rumos da revolução brasileira não chegou ainda ao nível de um debate entre marxista-leninistas, de um lado, e não-marxistas e não-leninistas, de outro.

Olhemos mais de perto e veremos porque.

Parte III - A teoria e a prática

"Pois sem o povo trabalhador são impotentes todos os gêneros de bombas." (Lênin)

Em que consiste o tão falado papel da classe operaria?

Hoje todo mundo concorda que o proletariado é a classe mais revolucionária da sociedade, a qual cabe a liderança na luta das demais classes oprimidas e exploradas. Como todo o mundo é "marxista-leninista", paga este tributo teórico à causa, mas...

Geralmente há um "mas" no fim da definição. Não nos referimos aqui aos malabarismos "teóricos" do velho PCB cuja "prática", bastou para desmoralizar qualquer justificativa por escrito. Se olharmos a nova esquerda, saída das rebeliões internas do PCB e do movimento estudantil, veremos igualmente que a "hegemonia do proletariado" toma as formas mais diversas e duvidosas.

Para a cisão "chinesa", o PCdoB (que, dito de passagem, encara a revolução brasileira como burguesa-democrática e continua a propagar "frentes de unidade patrióticas"), a hegemonia da classe operária é ideológica e se manifesta através da liderança do partido revolucionário (concretamente, do PCdoB). A revolução, que se realiza mediante a Guerra Popular, vai do campo para a cidade e sua força motriz principal são os camponeses brasileiros. Não é preciso um conhecimento particularmente aprofundado para saber que o PCdoB decalca o modelo da revolução chinesa para o cenário nacional. Raúl Villa(1) já tratou extensamente da esterilidade teórica e prática dessa corrente, mas para não pensar que as coisas tenham mudado no meio-tempo, basta ler o último documento do PCdoB, divulgado pela Agencia Sinjua, no qual se reafirma que:

  1. a revolução brasileira tem um caráter nacional e democrático;
  2. a questão camponesa é o problema chave da revolução brasileira; e
  3. portanto, as cidades não podem ser o cenário principal da guerra de libertação do povo brasileiro.

Assim mesmo, nem o PCdoB pode ignorar a existência de um proletariado industrial no Brasil. O papel que lhe atribui, entretanto, na luta prática, é puramente auxiliar:

"Não obstante, isso não significa que as grandes cidades não tenham um importante papel a desempenhar. Nos centros urbanos se encontram três milhões de operários e uma grande camada da pequena-burguesia, as quais, junto com os camponeses e assalariados agrícolas, constituem as forças motrizes da revolução" (Retraduzido do espanhol— E.M.)

É evidente que não tem nenhum papel de liderança para o proletariado neste "modelo" de revolução. As grandes cidades têm "importante papel", mas não são o cenário principal. E se a "questão camponesa" é o problema chave da revolução, o papel do proletariado se reduz, na prática, ao de um simples aliado, no mesmo nível da "grande camada da pequena-burguesia", — nas melhores tradições do populismo prestista. Não é por acaso a ausência prática do PCdoB nas lutas operárias contra a ditadura. Estava ausente nas greves de Minas como também na de Osasco. E onde poderia ter estado presente, como na Guanabara em 1968, sabotou a greve dos metalúrgicos da mesma maneira e dentro da mesma linha do velho PCB.

Pela concepção teórica que essa corrente tem da revolução brasileira e pela sua prática política diária, a "hegemonia do proletariado" do PCdoB, não passa de um principio abstrato, de um tributo obrigatório que se paga aos clássicos do marxismo, mas não tem consequência prática alguma.

No extremo oposto da escala das organizações da nova esquerda brasileira encontramos os grupos e agrupamentos, que surgiram direta ou indiretamente sob o impacto do "debrayismo" adaptado as suas necessidades imediatas. Para tais correntes, independente das divergências que as separam entre si, o partido não pode desempenhar o papel "chinês", de representante ideológico do proletariado junto ao "povo", pois negam de antemão o papel do partido político do proletariado nas lutas de classe, substituindo-o, em nome da "luta armada", por uma vanguarda militar, geralmente por "Comandos Político-Militares".

Com essa liquidação das concepções leninistas de luta, negam automaticamente o papel do proletariado no processo revolucionário, pois é justamente por intermédio da formação do partido político revolucionário que o proletariado se constituí como classe independente na sociedade burguesa e se torna capaz de liderar as demais classes e camadas de classe na luta comum.

Tomando o agrupamento que, embora já não seja o mais importante, também influiu decisivamente no sentido ideológico para a formação de grupos análogos, o de Marighela, vemos que o papel da classe operária é tão pouco definido como o foi no caso anterior, do PCdoB. Não encontramos as fórmulas simplistas da "revolução do campo para a cidade...", mas "a cidade é a zona de luta complementar", "a zona rural é a estratégica" e a cidade "a zona tática". Trata-se evidentemente de uma variante da "guerra popular", mas com uma diferença: o papel do camponês é tão pouco definido como o do operário na luta atual. O vácuo é preenchido pela classe média: "ela constitui atualmente uma das forças mais combativas".

Veremos em seguida que esse "atualmente" não é tão transitório como poderia parecer e que a classe média "combativa" serve de base para a elaboração de toda uma estratégia. Para compreender melhor o fenômeno, lemos em "Operações e táticas de guerrilhas" (Retraduzido do espanhol):

"Os revolucionários não podem atingir seus objetivos a não ser com o apoio das classes capazes de lutar para a conquista do poder. No Brasil, em consequência de condições históricas e do fato da motivação patriótica, essas classes são o proletariado, os camponeses e a classe média. Graças aos seus interesses e a sua posição, seja em relação ao socialismo, seja em relação à libertação nacional, essas classes se opõem aos grandes capitalistas e latifundiários e são inimigos do imperialismo norte-americano. O proletariado é a única classe cujo interesse imediato é o socialismo, mas todas as classes que se opõem às classes dominantes e ao imperialismo são unidas pelo seu interesse pela libertação nacional".

Trata-se de um documento escrito em linguagem "marxista" herdada do PCB. Também no velho partido é obrigatório respeitar a hierarquia "teórica" de proletariado, camponeses e classe média, sem que isso implicasse nas consequências práticas que a formulação poderia sugerir. Também no velho PCB se falava da classe média, ignorando as suas contradições internas, procurando um denominador comum entre ela e o proletariado, mas que sempre sacrificava os interesses do proletariado aos da classe média. No presente caso, o proletariado é a única classe cujo interesse "imediato" é o socialismo, mas o objetivo é a "libertação nacional".

O grupo de Marighela foi um dos últimos a fazer a profissão de fé da luta pela revolução socialista. E o fez em seguida ao Manifesto de Guevara e sob pressão das próprias bases, descontentes com a não definição que perdurou por muito tempo. Mas o que a profissão de fé significa na luta prática, mostra o citado documento (e todos os demais), é que o socialismo é subordinado a uma pretensa "libertação nacional". Dizemos pretensa porque trata-se da ficção de poder libertar o pais sem romper o sistema capitalista, sem uma revolução socialista. E essa, justamente, é a ficção própria da classe média, da pequena-burguesia. E essa ficção perdura quando e enquanto o proletariado não está sendo preparado, ideológica e organizatoriamente, para se colocar à testa do processo revolucionário. Essa autolimitação se manifesta igualmente no declarado objetivo da revolução brasileira, que consistiria na formação de um "Governo Popular Revolucionário" e igualmente nos diversos "programas de unidade", que não ultrapassam o terreno de uma revolução democrático-burguesa. Mas trata-se de uma revolução democrático-burguesa sem nenhum traço de hegemonia proletária na luta.

Encontramos o tema e a formulação com as mais diversas variações. A ex-Colina, que mais tarde integrou a VAR, colocou-se no mesmo ponto de vista quando defendeu que "a classe média tinha de abrir as portas para a luta proletária". Na prática, essa linha não deve ter dado certo, pois não foi por puro acaso que na greve industrial de Minas não foi possível mobilizar os estudantes para ações de apoio e de solidariedade, e que entre as poucas fábricas que não entraram em greve estavam justamente aquelas "sob controle" da Colina.

No seio das dissidências estudantis do Rio de Janeiro, e de São Paulo, as quais posteriormente se juntaram a Marighela, uma das piores acusações lançadas contra inimigos internos e externos era ser "insurreicionalista", que era tido como sinônimo de "revisionista" ou "reformista" e dirigido contra aqueles que viam no levante do proletariado urbano o auge do processo revolucionário. Esses companheiros que ficaram sinceramente surpreendidos quando descobriram que os leninistas tinham sido "insurreicionalista", não tinham deixado em nenhum momento das suas atividades políticas de pagar o seu tributo ao papel do "proletariado na revolução brasileira".

É evidente que, por baixo de uma fina capa de "marxismo-leninismo" e por trás das profissões de fé de revolução socialista, se abrigam as concepções mais diversas de luta de classe. E do mesmo modo como— nas palavras de Marx— não se pode julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos julgar as correntes dessa nova esquerda pelas suas profissões de fé.

Entre essas concepções mais diversas há de tudo, menos uma concepção proletária de luta de classes e da revolução. O proletariado entra aqui "em termos", como princípio e álibi. Na melhor das hipóteses, a guerrilha, o "exército popular" ou de "libertação nacional", age em seu nome, toma o poder em seu nome e, pelos planos militares pré-estabelecidos, exercerá o poder em seu nome.

Essas concepções, anti-materialistas e irracionais de luta de classes e da revolução têm evidentemente as suas causas e origens sociais. Não só que se alimentam na luta diária na pequena-burguesia radical, como as "concepções teóricas" igualmente refletem uma origem social. Mas a irracionalidade pequeno-burguesa não pára aqui. Ela encontra a sua continuidade lógica na "estratégia e tática", independente da fraseologia marxista, sob a qual pretende se esconder.

A concepção estratégica

Tomemos o documento de fundação da VAR, em 1968. Começa dizendo que o espectro da luta armada ronda a América Latina. E que os fuzis nas mãos dos explorados e oprimidos estão ameaçando jogar por terra seu domínio secular.
É de supor que o documento explicasse melhor porque chegou o momento da luta armada. Mas nada disso acontece. Depois de constatar que o capitalismo nasceu do feudalismo e se transformou posteriormente em imperialismo, e de prestar o seu tributo à revolução socialista e à hegemonia do proletariado, chega à conclusão que o único caminho é "um longo processo de luta armada, que levará atrás de si massas crescentes e resolutas até a tomada do poder". A forma de luta armada é a guerra de guerrilhas.

O documento não coloca nem a luta armada, nem a sua forma específica, dentro do contexto da luta de classes no Brasil. Para a VAR, a guerrilha é a luta de classes, é a revolução. A luta armada existe independente de qualquer consideração de conjuntura e é uma consequência do fato do capitalismo ter se transformado em imperialismo.

Marighela, por sua vez, apelou para a "guerra revolucionária". Declarou essa guerra formalmente em circulares "aos homens das classes dominantes", nas quais se anuncia a instalação de um "Imposto Compulsivo Revolucionário". Sua concepção de guerra revolucionária, ou luta de guerrilha, era mais complexa do que as expostas no documento da VAR. Dividiu a guerra revolucionária em três fases: a da guerrilha urbana, a da rural e a do Exército Revolucionário de Libertação Nacional, sendo que a primeira fase era tida como premissa do surgimento das seguintes. Marighela, todavia, só "teorizou" a posteriori uma prática imposta pelas circunstâncias. Institucionalizou a guerrilha urbana depois de uma série de tentativas frustradas de guerrilha no campo e, ele como todos os outros grupos semelhantes, se especializou na atividade "preparatória" da segunda fase rural. De resto, a concepção sobre luta armada e guerrilha é idêntica a da VAR. Em 1968, Marighela chegou à conclusão que:

"A primeira fase da guerrilha revolucionária está em vias de se completar, o que não significa, de maneira alguma, diminuir o ritmo da guerrilha urbana, e da guerra psicológica (...)"

"A segunda fase da guerrilha revolucionária é a guerrilha rural. E não surge por casualidade. É fruto de tudo quanto se preparou e realizou anteriormente dentro da lei básica da guerra e segundo o plano estratégico e tático global estabelecido de antemão. E é através da guerrilha que criaremos o exército revolucionário de libertação nacional, o único que tem capacidade para aniquilar as forças militares dos gorilas." ("Sobre a guerrilha rural").

Em que se baseia esse plano estratégico geral? Em alguma experiência viva de luta de classes na América Latina? Marighela explica:

"O principio básico da estratégia revolucionária nas condições de uma crise política permanente é desencadear tanto na cidade como no campo um tal volume de ações revolucionárias que o inimigo se vê obrigado a transformar a situação política em uma situação militar. Então, o descontentamento alcançará todas as camadas e os militares serão responsáveis absolutos por todos os abusos". ("Sobre problemas e princípios estratégicos").

Não se pode afirmar que se trate de uma estratégia elaborada à base de experiência das lutas de classe no Continente, ou à base de uma análise das relações de classes da sociedade brasileira, a qual procuramos em vão nos documentos — a não ser que se queira tomar como análise a simples constatação de que o povo está oprimido e descontente. Trata-se de uma estratégia construída à base de premissas subjetivas. Da premissa de ser a ação do revolucionário que cria a situação revolucionária. Com isso, depois de ter liquidado o conceito do partido revolucionário do proletariado como instrumento de formação da classe independente, Marighela abandona um segundo princípio básico do marxismo-leninismo.

Tanto para Marx, como para Lênin, os revolucionários não criam as situações revolucionárias e não fazem as revoluções. Esse conhecimento foi uma das premissas para o socialismo se tornar científico. Os revolucionários só podem aproveitar as situações revolucionárias que a própria sociedade produz, na medida em que aprendem a discernir as leis sociais que regem a vida da sociedade e transformar essas situações em revolução, na medida em que souberem mobilizar e dirigir a classe revolucionária para preencher o seu papel. Pois revolução significa a substituição do domínio de uma classe por outra classe.
Toda a atividade militante, tanto de Marx como de Lênin, estava marcada pela defesa e aplicação desse conhecimento. Marx, no fim da sua primeira experiência revolucionária de 1848, foi obrigado a enfrentar a facção WillichSchapper na Liga dos Comunistas, porque essa queria continuar as insurreições a todo custo. Mostrou ele como a situação revolucionária tinha sido provocada pela crise econômica e como a superação dessa crise impedia naquele momento um recrudescimento do movimento revolucionário, que tinha sofrido derrotas militares. A situação mudara e os revolucionários tinham de se adaptar às condições criadas para poder preparar o proletariado para enfrentar melhor as novas situações revolucionárias, que surgiriam inevitavelmente, porque é a própria sociedade que se encarrega de produzi-las. Mas os revolucionários certamente não preencheriam seu papel se insistissem em bater com a cabeça contra a parede. O mesmo problema, em outros termos, Marx enfrentou ainda quase no fim da vida, nas lutas com os adeptos de Bakunin, cujos conceitos subjetivos de revolução tinham contribuindo para a dissolução da Primeira Internacional.

Lênin começou a sua atividade marxista com a luta contra os "narodnikis", os populistas russos, conservadores das tradições da conjura e do terrorismo como armas principais de libertação do povo. E terminou a vida debatendo-se com tendências voluntaristas dentro da própria Internacional Comunista, onde facções e partidos inteiros não queriam se conformar com o fato da primeira onda da revolução mundial ter passado. E insistiu na mudança das táticas, adequando-as a uma situação não revolucionária, porque se não se preparar o proletariado durante as fases de relativa estabilidade do capitalismo, não se será capaz também de aproveitar a próxima situação revolucionária.

Um dos aspectos fundamentais da estratégia e tática do marxismo-leninismo é justamente levar em conta a conjuntura revolucionária na elaboração das linhas políticas. E é justamente essa experiência que os quatro primeiros congressos da Internacional Comunista, com a colaboração direta de Lênin, procuraram sistematizar em escala mundial.

A situação do Brasil em 1968 de maneira nenhuma pode ser considerada como revolucionária. Ao contrário, o país saiu da crise econômica cíclica. Tanto em 1968, como em 1969, a expansão foi ao redor de 9% ao ano. A crise política existente, que levou ao segundo golpe militar de dezembro de 1968, deve-se ao fato de as Forças Armadas precisarem convencer parte da classe dominante da necessidade de continuar a ditadura (e isso implicou no seu reforço), apesar do alívio da crise econômica e da retomada da expansão. A oposição burguesa encontrou respaldo na classe média, desiludida com a ditadura. De outro lado, havia um ascenso do movimento da classe operária que, encorajada pela expansão econômica e pela absorção do desemprego industrial dos últimos anos, começou a reagir contra o rebaixamento do nível de vida que sofrera. O campo estava quieto ainda, sem nenhum indício de que o movimento nas cidades já o tivesse atingido. Tudo isso forneceu um terreno propício para a retomada da luta em um nível de consciência mais alto do que antes de 1964. Mas estávamos longe de poder colocar em cheque o sistema social.

Apesar disso, Marighela declarou a guerra revolucionária na cidade e no campo. O resultado foi um confronto direto entre parte da esquerda clandestina e o aparelho de repressão; confronto que se deu absolutamente sem a participação das massas, nem sequer em termos de um apoio protetor — e o resultado dessa luta desigual nas cidades foi o sacrifício da imensa maioria dos quadros que constituía o "movimento armado".

Até aqui, nós citamos Marighela como expoente de toda a corrente da luta armada, apesar do fracionamento existente. Embora ele tenha se preocupado mais do que qualquer outro em fundamentar teoricamente a sua posição — fundamentação que frequentemente não foi aceita pelos demais — a prática de todos os grupos da chamada guerrilha urbana foi a mesma. Mas agora temos o direito de perguntar porque justamente Marighela, com seus trinta anos de responsabilidades de liderança no Partido Comunista Brasileiro — e não Lamarca, que vem de um setor completamente diferente — tomou essa atitude, da qual não podia ignorar que se chocava frontalmente com toda a experiência e ensinamento leninistas. É verdade que, pouco antes do seu assassinato pela polícia paulista, em uma entrevista concedida a Conrad Detrez, na revista "Front", declarou não ser mais marxista- leninista "ortodoxo". Mas até onde existe aqui um marxismo-leninismo "não-ortodoxo"?

Parece ter sido a concepção fundamental e contraditória, que teve da revolução brasileira, o que melhor explica os equívocos de Marighela. Embora não aceitasse os esquemas e modelos dos nossos "chineses" ortodoxos — esse caminho lhe parecia problemático de mais para o Brasil, onde o campesinato tem outras características — acreditou que a revolução poderia se movimentar do campo para a cidade. A solução, acreditou ele ter encontrado no precedente cubano e assim tomou elementos emprestados das duas revoluções para a formação do seu "plano estratégico". O fato é que não aceitou o "foco catalisador" de Che Guevara e se decidiu pelo "Exército de Libertação". Mas não é toda síntese que é dialética.

O exemplo chinês era importante para o plano dele, porque foi justamente na China onde a conjuntura revolucionária, os altos e baixos nas lutas de classes, não tiveram o mesmo peso como nos países industrializados, e nunca chegaram a provocar uma interrupção na luta armada, uma vez desencadeada. Em primeiro lugar, porque na China e principalmente no interior do país, o capitalismo era pouco desenvolvido e rudimentar, de maneira que o ciclo econômico pouco influía. Em segundo lugar, a própria revolução tinha se tornado agrária. E, terceiro, mas nem por isso menos importante, porque os comunistas chineses tinham podido estabelecer "regiões libertadas", com administração e governo próprios e podiam, portanto, aguardar em posições fortificadas o recrudescimento da conjuntura revolucionária no país.

Esta perspectiva não se dá para a revolução brasileira, embora hoje se fale muito também sobre um "Vietnã" no Brasil, Esquece-se, todavia, que os camponeses sul-vietnamitas podiam lutar esse tempo todo, porque tinham um hinterland no norte e, atrás do norte, tinham a China e a Rússia para aguentar a guerra prolongada. Na América Latina, por enquanto, somente a reação poderia contar com semelhante apoio material para uma luta prolongada em termos de regiões geográficas. E Marighela sabia disso, e o disse claramente:

"Em nenhum momento a guerrilha brasileira deve defender áreas, territórios, regiões, ou qualquer base ou posição fixa. Se atuássemos assim, permitiríamos ao inimigo concentrar suas forças em campanhas de cerco e aniquilamento contra posições conhecidas e vulneráveis". ("Sobre problemas e princípios estratégicos").

Esta já é uma experiência da Revolução Cubana. Uma outra conclusão que, todavia, Marighela não quis tirar é que a guerra revolucionária em Cuba, a guerrilha, foi iniciada em um momento de grave crise econômica (e social) em que um entre quatro cubanos estava desempregado e em que Cuba não conseguia vender a maior parte da sua colheita de açúcar, a espinha dorsal da sua economia.

A mesma incongruência se manifesta nas funções que Marighela atribui à guerrilha rural. Para ele, é um núcleo do Exército de Libertação. Na prática, isso significa que, como na China, a revolução vai do campo para a cidade, que e tomada e libertada. Ele deixa isso claro:

"Somente quando as forças armadas da reação já estiverem destruídas e a máquina do Estado militar burguês não puder mais atuar contra as massas, é que deve ser decretada a greve geral na cidade em combinação com a luta guerrilheira, para ser vitoriosa." (Idem).

Aqui temos uma interpretação um pouco unilateral da experiência cubana. Quando a guerrilha desceu da serra, as forças armadas de Batista não estavam destruídas ainda, apesar de todas as derrotas que sofreram. Ainda perfaziam 15 vezes, pelo menos, o número de guerrilheiros em armas. A máquina do Estado Militar burguês, todavia, não pôde agir mais contra as massas porque estas estavam em greve geral insurrecional vitoriosa, o que permitiu à guerrilha entrar em Havana sem dar um tiro. Foi a combinação desses dois fatores, o da guerrilha, que possibilitou a greve nas cidades e vitória dessa greve que permitiu à guerrilha penetrar nas cidades, que representou o traço fundamental da Revolução Cubana. Mas em Cuba não houve "Exército de Libertação Nacional". A guerrilha foi o catalisador de um processo revolucionário, "um pequeno motor que punha em movimento um grande motor", como disse Fidel. E os dois motores se movimentaram na mesma direção.

Como surgirá então o Exército de Libertação Nacional no Brasil? Da mesma maneira como na revolução chinesa? Esse caminho Marighela já tinha eliminado parcialmente, quando negou a possibilidade de regiões libertadas. Ele, porém, é mais claro ainda sobre situação do nosso campo:

"Não é provável que das lutas reivindicatórias (dos camponeses) surjam guerrilhas rurais no sentido estratégico. Os camponeses brasileiros tem consciência política limitada e a tradição das suas lutas não vai além do misticismo ou do banditismo, sendo ainda recente e limitada sua experiência de luta de classes sob a direção do proletariado". (Idem).

Se estes são os fatos que predominam no campo, e nós concordamos que essa é a realidade, como se formará então o Exército de Libertação Nacional, a arma estratégica da revolução? Com os quadros estudantis e de ex-estudantes, vindos das cidades? Isso é uma atitude tão idealista como a de lançar esses quadros em um confronto armado com o aparelho de repressão das cidades. Já que Marighela teve a lucidez de ver que o movimento camponês surgiu sob o impacto do proletariado da cidade, suas conclusões deviam ser diferentes.

A população do campo, trabalhadores assalariados, meeiros, posseiros e pequenos camponeses, só vai se movimentar, organizar e intervir nas lutas de classe em escala nacional, em torno de um movimento proletário nas cidades, em torno de uma classe operária, que defenda os interesses elementares dos seus aliados no campo e os ensine a lutar, dando o exemplo da própria luta. Por isso, no presente momento e por algum tempo, o "problema chave" não é a "questão camponesa" e, sim, a situação do proletariado sem o qual não resolveremos o problema do campo; e a "zona estratégica" é a cidade, onde essa classe operária tem de ser formada e mobilizada.

E por isso, a guerrilha só pode desempenhar no Brasil um papel semelhante ao que desempenhou em Cuba, isto é, de catalisador de um processo revolucionário, cuja principal força motriz é o proletariado industrial. Todavia, preencherá essa função somente dentro da conjuntura revolucionária. No Brasil, no presente momento, não existe situação revolucionária ou mesmo pré-revolucionária, que lhe permitisse desempenhar esse papel. O sacrifício, nos últimos dois anos, dos recursos materiais das esquerdas na chamada guerrilha urbana, reduz atualmente mesmo as chances de sobrevivência de um foco guerrilheiro, independente do seu desempenho político.

"Luta armada" como nova versão da "acão direta"

Estreitamente ligado à concepção de Marighela de "guerra revolucionária" contínua e independente da conjuntura econômica e política da sociedade capitalista, é o seu conceito de "luta armada". Em "O papel da ação revolucionária na organização" ele explica o que vê de novo na sua estratégia e tática:

"Nas atuais condições do Brasil existem entre os revolucionários duas concepções distintas de trabalho de massa e de relações com o povo. Uma dessas concepções é a das organizações que partem das reivindicações imediatas e, através dessa atividade buscam ganhar as massas para a revolução.

A ditadura militar, em troca, não admite a luta reivindicatória e lança contra ela decretos proibitivos, leis de exceção e, sobretudo uma potência de fogo crescente e, portanto não vacila em reprimir com chumbo as manifestações de rua.

As organizações que restringem suas atividades ao trabalho de massas através da luta reivindicatória e com vistas a sua transformação em luta política, terminam reduzidas à impotência frente à superioridade armada do inimigo.

A outra concepção, acerca do trabalho de massas e das relações com o povo, é o das organizações cuja preocupação fundamental consiste em partir para a luta armada e tem como fim enfrentar a ditadura através de um poder de fogo mesmo pequeno, mas manejado pelos revolucionários e pelos movimentos de massas.

Ao redor desse poder de fogo, que surge do nada e que vai crescendo pouco a pouco, a massa se aglutina, constrói a sua unidade e marcha até a tomada do poder."

Se na primeira parte da citação Marighela explica porque nas condições brasileiras acha impossível (?) realizar o trabalho de agitação, propaganda e organização no seio da classe operária, o qual é o "pão de cada dia" do revolucionário marxista, na segunda resume o seu conceito de luta de classes nas novas circunstâncias: é o "poder de fogo" dos revolucionários, o qual "surge do nada", mas que "vai crescendo pouco a pouco" e em torno do qual "a massa se aglutina" até tomar o poder.

Esse conceito de "luta armada" revelou dois pontos capitais fracos. Em primeiro lugar, apesar das reiteradas afirmações de se tratar de uma nova "concepção acerca do trabalho de massas" e que "as massas se aglutinam" em torno desse "potencial de fogo", não há lugar para as "massas" nesta forma de luta, travada por grupos herméticos que pensam substituir a ação das massas, que a ditadura militar "não admite".

Em segundo lugar, e isso a experiência de dois anos mostrou para quem não soube aproveitar as lições da história, a massa longe de se aglutinar em torno do "potencial de fogo", se retraiu, caiu na passividade e a "Vanguarda Político-Militar", apesar da auréola romântica que conseguiu criar em muitas camadas, está hoje mais isolada do que no início da sua ação. É precisamente a falta de ligação com as massas de trabalhadores e sua falta de atividade política que fez, após as primeiras ondas de euforia, com que os grupos armados hoje, em vez de aumentarem o seu "poder de fogo", não pudessem nem substituir as perdas que sofreram nesta luta desigual.

Dissemos que este aspecto da questão era novo para aqueles que não souberam aprender com a história das lutas de classes. Pois aquilo que Marighela e os demais grupos apresentaram como algo de "novo" nas condições brasileiras, a "luta armada", não passa de um rótulo novo para um conteúdo antigo, apresentado como "ação direta" pelos anarquistas ou de "terror estimulante" pelos populistas russos.

Que se trata de uma tática terrorista, Marighela não nega. Na mesma obra, já citada assinala:

"Sendo nosso caminho o da violência, do radicalismo e do terrorismo (as únicas armas que podem ser opostas eficientemente à violência inumerável da ditadura), os que afluem a nossa organização não vem enganados e, sim, atraídos pela violência que nos caracteriza."

Novo, na experiência brasileira, só era o fato de apresentar essa tática como "marxista-leninista", de querer reduzir a concepção de revolução armada e violenta a táticas terroristas. Desta maneira, o "dever de cada revolucionário é fazer a revolução", levado às últimas consequências, nos leva de volta aos tempos de Max Stirner.

Para o marxismo e para o leninismo, luta armada sempre foi e continua sendo luta de classes armada e não a obra de grupos ou indivíduos, por mais heróicos que se possam revelar. Luta armada significa armar uma classe ou uma facção de classe, mas significa, em todo caso, armar massas de oprimidos.

Marx deixou claro isso em todas as revoluções européias que assistiu e especialmente em relação as táticas bakuninistas e blanquistas. Lênin defendeu e fomentou a guerrilha urbana na Revolução Russa de 1905. Mas se tratou de uma situação revolucionária e a guerrilha urbana servia para preparar o levante do proletariado de São Petersburgo e de Moscou. O que ele entendia por guerrilha urbana era a ação de pequenos grupos de operários armados que saíram das fábricas para dizimar e desmoralizar as forças da repressão.

A luta armada, em termos marxistas, sempre foi e continua sendo inseparável da estratégia geral da revolução, que pode ser desenvolvida levando em conta os fatores materiais da luta de classe, as conjunturas, altas e baixas, do desenvolvimento da sociedade. Isso diz respeito igualmente à forma peculiar de luta armada, o foco guerrilheiro. Isolado do contexto geral da luta de classes, tende a substituir o movimento de massas, em vez de catalisá-lo e dez anos de experiências latino-americana assim o demonstram. O fato de nós sabermos que a revolução é um ato violento e que se realiza por intermédio de uma luta armada, não quer dizer que ser revolucionário é ter atividade de violência e viver com a arma na mão. Querer que os quadros "sejam atraídos pela violência que nos caracteriza", é regredir para uma atitude anarquista primária, é não ter aprendido nada do marxismo-leninismo e ter esquecido o pouco que sabia.

Traduzido isto para a situação atual do Brasil, significa que não há luta armada no país e não há situação que a justifique do ponto de vista da luta proletária. O que há é a tentativa de substituir a luta de classes por ações armadas de grupos isolados das massas. E seu isolamento das massas é o preço da sua sobrevivência como grupos armados.

Combater a ficção da "luta armada" e reduzi-la às suas verdadeiras proporções de tática terrorista não significa aderir a uma "linha pacifica", como procuram fazer crer os apologistas da dita tática. No Brasil de hoje o uso da arma na luta diária se impõe e se justifica permanentemente frente a repressão. Mais de uma vez se deram libertações de presos políticos de arma na mão. Expropriações são um recurso legitimo de uma organização clandestina, principalmente depois do Ato 5. Igualmente não se discute a validade de sequestros, quando realizados em termos políticos. Isso tudo, entretanto, não passa de atos defensivos de um movimento clandestino frente à repressão e só tem sentido como ações complementares de uma política militante no seio das massas trabalhadoras e não como substituto dessa.

A expropriação é uma questão de relações de forças e de segurança da organização ilegal. Nenhuma organização com uma linha proletária atuante vai se lançar em atos de expropriação, quando estes impedem e desorganizam o trabalho operário o a forçam a um duelo com a máquina de repressão. O diabo não se cutuca com vara curta. Quando, todavia a expropriação se torna praticamente a única atividade de grupos inteiros e esse é o caso na maioria deles, de fato se torna tática e se torna tática terrorista. Quando centenas de jovens são lançados nessa atividade, como sendo a atividade revolucionária, eles próprios começam a acreditar que estão expropriando a burguesia, como caminho da revolução. Quando essa atividade é divulgada, procura-se dar essa crença ao "povo": "Fizemos dos assaltos a bancos uma modalidade popular da ação revolucionária", diz Marighela em "As perspectivas da revolução brasileira".

O resultado foi que durante dois anos a grande maioria dos grupos "dispersos e isolados entre si" se lançou a torto e a direito em expropriações de bancos, independente de saber se podiam ou não usar esse dinheiro e também dos caminhos incontroláveis que esses recursos tomaram. Resultado também foi que a grande maioria dos pequenos grupos sucumbiu no confronto e os maiores não escaparam à sangria. Grande parte dos reagrupamentos havidos nos últimos dois anos na nova esquerda foi produto da destruição de grupos inteiros, cujos restos se reuniam sob novo rótulo. Foi esse o caso da Colina, cujos militantes sobreviventes em liberdade tiveram de abandonar Belo Horizonte e que, fundindo-se com a antiga VPR, que tinha sofrido perdas semelhantes, fundaram a VAR. Ambas as organizações tinham perdido as suas bases operárias, arrastadas pelas quedas dos seus aparelhos militares. Destino semelhante tinha sofrido uma das organizações mais enraizadas no proletariado de Minas, a "Corrente". Tendo uma posição dúbia — trabalhava com a Política Operária nas fábricas, porque Marighela não tinha orientação para o trabalho operário e colaborava com Marighela no setor militar, porque a Política Operária "subestimava a luta armada" — toda a organização foi arrastada pelas aventuras armadas. Um fim parecido estava reservado ao PCBR na Guanabara, quando a direção e a espinha dorsal da organização caiu, após a formação de um "Comando Político-Militar" por uma oposição interna. E na própria ALN, de Marighela, as bases operárias que o tinham acompanhado na cisão ficaram em pleno abandono porque não cabiam no esquema de "luta armada" e procuraram outras organizações para uma orientação do trabalho no seio da classe operária.

Não é de admirar que as massas não se tenham "aglutinado". A classe média não aderiu. Na pequena-burguesia sempre dividida, a maioria conservadora não tinha muita compreensão para as táticas terroristas que contrariavam seus instintos de propriedade e de segurança. A parte esquerdizante e radicalizada da pequena- burguesia mostrou simpatia e mesmo entusiasmo, no sentido de que, finalmente, alguém estava fazendo alguma coisa, mas as suas atividades se limitaram a computar os casos de expropriações e, frente ao terror policial crescente, essa camada recuou.

Reação semelhante, e com os mesmos resultados, atingiu grande parte da classe operária, a oposição natural mais pronunciada contra o regime. Entretanto a parte mais consciente do proletariado, aquela que se empenha em organizar a classe e tem consciência dos problemas de luta, não pode dar-se por satisfeita. Para ela não há lugar nesse duelo entre "grupos armados" e repressão, a não ser que se separem da classe e se integrem aos grupos militares. Além disso, viram como, nos últimos dois anos, se perderam sistematicamente os seus quadros em virtude da "luta armada" e se perdeu o apoio de organizações inteiras que, bem ou mal, sustentavam as atividades nas fábricas.

Não foi sem motivos que a massa não se "aglutinou". E os quadros dessa "luta armada" já o sentem. Este sentimento se manifestou nas declarações de alguns dos quarenta presos trocados pelo embaixador alemão, quando da sua chegada à Argélia. Carlos Minc Baumfeld declarou ao "Der Spiegel" que a guerra contra a ditadura mais brutal da América Latina será prolongada, de dez a vinte anos. E isso, "não só por causa da superioridade do inimigo", mas antes de tudo porque as massas do povo brasileiro se encontram "num nível muito baixo de consciência política". Responsável por essa situação, segundo o ex-sargento Darci Rodrigues, são em parte as próprias esquerdas, "que se preocuparam demasiadamente pouco com a consciência das massas".

E a luta será mais prolongada ainda, se as vanguardas marxistas não abandonarem sua posição duvidosa frente a "luta armada" e se decidirem consequentemente por uma linha de luta proletária. Os desvios e as aventuras têm de ser desmascarados e combatidos e esse é o único caminho para a alternativa revolucionária se impor no Brasil. Silêncio é conivência hoje, como foi antes de 1964, quando combatemos o oportunismo de direita responsável pelas derrotas da classe operária. Devemos a clareza de nossas posições a respeito desse assunto aos inúmeros quadros operários conscientes dos problemas da sua classe e da revolução brasileira; eles estão esperando orientação em escala nacional. Eles, com um heroísmo anônimo, esses anos todos, ficaram nos seus postos— nas condições mais adversas— e levaram à frente, com os recursos que tinham a disposição, a obra revolucionária e não deixaram que a flama se extinguisse. Eles não nutriram as ilusões imediatistas da esquerda "armada" e não tinham as satisfações duvidosas das ações espetaculares que repercutiram na imprensa burguesa. Mas sabiam e continuam sabendo que não só não se liberta um povo de 90 milhões com "ações espetaculares", como também não se transforma uma sociedade dessa maneira. Estes são os fiadores da futura revolução socialista e proletária do Brasil.

E mais uma vez Lênin

Se nós, para encerrar esse capítulo, evocamos mais uma vez Lênin, não o fazemos para forçar paralelos históricos. Os paralelos se impõem, todavia, através da história das lutas de classes da época moderna, na medida em que sucessivos países são absorvidos pela evolução do capitalismo, criando as várias classes que constituem a sociedade burguesa. E estas classes, em condições de estrutura social semelhante, desenvolvem frequentemente reações ideológicas semelhantes. Isso se dá também em relação a uma classe criada pela sociedade burguesa, a qual, falando francês, português, russo ou espanhol, parece traduzir as mesmas idéias de uma língua para outra, embora insista cada vez mais em estar fazendo uma contribuição nova e original para a solução dos problemas dos seus países. Trata-se da pequena-burguesia da sociedade capitalista, também chamada de classe média pelos anglo-saxões, mais pragmáticos. Trata-se do berço da maioria das ideologias dominantes, desde os preconceitos da vida diária até as "ciências sociais" das universidades burguesas. É da pequena-burguesia que surgem os ideólogos que dizem ao capitalismo nacional o que fazer para proteger seus interesses autóctones e que dizem ao proletariado o que fazer para proteger os seus "interesses" socialistas. Às vezes são os mesmos ideólogos que se encarregam das duas tarefas. E quanto menos desenvolvido o movimento operário, e quanto mais baixo o nível de sua fusão com o marxismo, mais alta é a voz dos ideólogos da classe média.

Por isso parece que nós — e não somente nós — estamos agora na fase das doenças infantis, pelas quais outros povos passaram antes de nós. Em todo caso não se pode negar que nós estamos debatendo alguns dos problemas fundamentais e de princípio do Socialismo proletário que Lênin já enfrentou em 1902.

Lembremo-nos que os nossos terroristas fazem questão de reafirmar em todos os seus documentos que a chamada "luta armada" não está em contradição com o trabalho de massas, que, ao contrário, é hoje a única maneira de "aglomerar" massas, etc. Marighela pretende apresentar uma tática nova, quando diz, em "O papel da ação revolucionária na Organização":

"De acordo com esse ponto de vista, o movimento de massas não terá condições de subsistir se não estiver escudado no próprio poder de fogo dos revolucionários. Nossa organização é seguidora dessa concepção revolucionária e por isso não pode ser acusada de subestimar o movimento de massas".

Fato é que os socialistas-revolucionários russos apresentaram argumentos análogos para defender a mesma posição. Não dispomos dos documentos originais deles, mas Lênin deixa pouca dúvida a respeito quando verifica em "Aventureirismo Revolucionário":

"Os socialistas-revolucionários ao defender o terror, cuja inutilidade tem sido demonstrada pela experiência do movimento revolucionário russo, declaram que admitem o terror unicamente ligado ao trabalho de massas e que, por isso, não os afetam os argumentos com que os social-democratas russos refutavam (e tem refutado extensamente) a conveniência deste método de luta...".

"Não repetiremos os erros dos terroristas, não nos distrairemos do trabalho entre as massas — asseguram os socialistas-revolucionários; porém, ao mesmo tempo, recomendam zelosamente ao Partido atos como o assassinato de Sipiaguin por Balmáshev, ainda que todo o mundo saiba e veja muito bem que este ato não teve— nem poderia ter, pela forma como foi realizado— nenhuma relação com as massas e que aqueles que o cometeram não confiavam nem contavam com nenhum apoio ou ação concreta da multidão. Os socialistas- revolucionários não percebem, ingenuamente, que sua inclinação para o terror está unida por mais estreitas relações causais ao fato de ter-se encontrado desde o primeiro momento, e de seguir encontrando-se, à margem do movimento operário, sem tratar sequer de se converter no partido de uma classe revolucionária que sustente sua luta de classe."

E se Marighela afirma que a ditadura militar "não admite a luta reivindicativa" e lança contra ela "sobretudo uma potência de fogo crescente e, portanto não vacila em reprimir com chumbo as manifestações de rua", que, portanto o seu caminho é de "violência, do radicalismo e do terrorismo, as únicas armas que podem ser opostas eficientemente à violência inumerável da ditadura...", o que distingue ele de um socialista-revolucionário do início do século? Lênin, citando os socialistas- revolucionários:

"Contra a multidão, a autocracia tem os soldados; contra as organizações revolucionárias a polícia secreta e não-secreta; porém o que poderá salvá-la de indivíduos isolados ou de pequenos círculos, que se preparam constantemente para o ataque, inclusive conservando secretas relações entre si e que atacam? Nenhuma força ajudará contra a imunidade à captura. Portanto, nossa tarefa é clara: afastar todo verdugo autoritário da autocracia pelo único meio que a autocracia nos deixou: a morte".

Mesmo a receita da "dispersão das forças" é recomendado também por Marighela que, no apelo "Ao povo brasileiro", aconselha a atacar por todos os lados com muitos grupos armados e de pequenos efetivos "compartimentados uns dos outros e sem elos de ligação". E essa falta de imaginação dos adeptos da "ação direta" através das décadas de luta de classe tem como consequências problemas que se repetem no seio de classes operárias jovens:

"Exortar ao terror, à organização de atentados contra os ministros por pessoas isoladas e círculos desconhecidos entre si, num momento em que os revolucionários carecem de forças e meios suficientes para dirigir as massas, que já se põem de pé, significa implicitamente não só interromper o trabalho entre as massas como desorganizá-lo de maneira direta... os duelos, justamente porque não passam de duelos dos Balmáshev, causam somente uma impressão efêmera de momento e levam afinal inclusive à apatia, à espera passiva do duelo seguinte." (Grifos de Lênin— Idem). fasa

E que não se diga que no Brasil a situação é diferente porque na "nossa" prática terrorista a ênfase é dada a "pequenos grupos" e não a ação isolada de indivíduos. Os pequenos grupos "compartimentados uns dos outros" e cada um travando a sua própria "luta armada", agem da mesma maneira descoordenada, como os indivíduos agiram e são tão isolados do movimento de massas como os indivíduos o eram.

E para não deixar dúvidas sobre a posição de princípio de Lênin a respeito do problema, queremos deixar aqui algumas das suas conclusões:

"A social-democracia estará sempre em guarda contra o aventureirismo e denunciará implacavelmente as ilusões que terminam de maneira inevitável no mais completo desengano. Devemos ter presentes que um partido revolucionário é digno deste nome unicamente quando dirige de verdade o movimento de uma classe revolucionária. Devemos ter presente que todo movimento popular adquire formas infinitamente diversas, elabora sem cessar novas formas e abandona as velhas, criando variações ou novas combinações das formas velhas o novas. E é nosso dever participar de maneira ativa neste processo de elaboração de métodos e meios de luta.

Sem negar em princípio, de maneira alguma, nem a violência nem o terror, exigimos que se trabalhasse na preparação de formas de violência que previssem e assegurassem a participação direta das massas. Não fechamos os olhos ante a dificuldade desta tarefa, porém trabalharemos com firmeza e tenacidade para cumpri-la, sem que nos turvem as objeções de se tratar de "um futuro longínquo e impreciso". Sim senhores, somos partidários também das futuras formas do movimento e não somente das passadas. Preferimos o longo e difícil trabalho que tem futuro e não a "fácil" repetição do que já foi condenado pelo passado.".

E o que fazer?

"Mas, — ouvimos objetar os amigos bem-intencionados — qual é a vossa alternativa de luta armada? Afinal, a luta armada já se tornou um fato consumado no Brasil de hoje".

Não estamos tão convictos que essa forma de "luta armada" já se tenha tornado "fato consumado" no sentido de uma instituição nas lutas de classe do país. Trata-se de um movimento, que tem as suas origens sociais e há condições objetivas que o favorecem — como o declínio do movimento de massas, depois de 1968. Mas por isso mesmo representa também uma "onda" que está sujeita a se esgotar. As reservas dos grupos armados ainda vivem do afluxo de quadros que o movimento de massas anterior a 1968 criou, mas, como já vimos, foram forçados a desistir do trabalho político entre as massas e a condição do seu aperfeiçoamento e de sua segurança dependem do seu isolamento conspirativo. Acontece, todavia, que as perdas são inevitáveis no confronto com o aparelho de repressão e o fato de não haver, da parte deles, o mínimo de trabalho de massas necessário— com uma constante triagem de quadros— para substituir as perdas põe limites físicos a esse modo de "ação direta". Esse fenômeno já está bem sensível nas condições brasileiras.

Em segundo lugar, há os resultados concretos. Quando, após todos os sacrifícios e o heroísmo individual e coletivo dos militantes que se dedicam a esse gênero de combate à ditadura, se descobre que tudo isso não abalou e não abala a máquina repressiva, nem a administrativa, nem o ritmo de expansão econômica, então chega um momento de desilusão política. Quando se descobre que para a ditadura a ação dos grupos armados é uma ocasião propícia de eliminar boa parte do potencial em quadros revolucionários do país e que esse gênero de "luta armada" tem o efeito de alfinetadas contra o elefante, o animal enfurece-se, mas não deixa de ser elefante vivo — então chega a hora desses militantes perguntarem se não se está pagando um preço alto demais para essa experiência. Quando, finalmente, se descobre que, após cada golpe bem sucedido, a massa, depois da euforia inicial, volta a ser o que era antes, mas não se "aglomera", chega a hora de perguntar se os meios atingiram os fins. E a pergunta será colocada. E quanto mais cedo, menos doloroso será o desfecho.
Qual é a nossa alternativa de "luta armada"? É armar massas, é armar classes.

Já salientamos que para nós o auge da luta armada é a insurreição dos trabalhadores como ato físico da revolução. E a nossa "estratégia de luta armada" é prepará-la politicamente e militarmente, como na guerra de guerrilhas, quando as condições o possibilitam. Mas, por isso, não limitamos o uso de armas à insurreição e à guerrilha. Quando necessário, uma reunião armada é um ato de defesa natural contra um inimigo que atira — mas ainda não é "luta armada". Uma demonstração de rua armada igualmente ainda não é "tática de luta armada", embora possa se transformar nisso. Há uma questão de critério na atuação do revolucionário e esse vai guiá-lo para evitar "cutucar o diabo com vara curta". Queremos somente lembrar que tais formas de proteção e de defesa já estavam presentes na vida política no país. Mesmo depois do Ato-5, nossos companheiros realizaram comícios na entrada da "Volkswagem", em São Paulo, com cobertura armada para possibilitar a fuga dos operários e uma retirada, em caso de chegada da polícia. Sabemos também que nesse, como em casos anteriores, se agiu com meios insuficientes mas a experiência indica o caminho do futuro.

Antes de tudo, porém, queremos deixar claro, que "luta armada" não é, para nós, nenhum fetiche para substituir a luta de classes. Para nós a guerra continua sendo "a continuação da política com outros meios". E o problema é criar as condições políticas para poder passar para o estágio da luta armada, para poder armar a classe.

Quando falamos em criar as condições políticas, referimo-nos às condições que uma vanguarda revolucionária pode criar, isto é, formar e organizar a classe operária, e a sua luta armada será a continuação lógica da sua luta política consciente contra o regime. E o próprio regime se encarregará de preparar o terreno para isso.

Dar consciência de classe ao proletariado não se consegue indo às fábricas para convidar os operários a aderir a "luta armada". Isso, na melhor das hipóteses se consegue com um ou outro operário, desligando-o da classe. Organizar o proletariado, tampouco, se consegue querendo transformar toda greve em luta armada. Com isso só se consegue dificultar gratuitamente as greves. Formar e organizar o proletariado só se consegue mediante um trabalho político, de conscientização, de agitação e propaganda, de lutas diárias e de lutas parciais contra o regime.

E por isso insistimos de novo: é a formação dessa classe operária, ou pelo menos dos seus setores decisivos, que repercutem na classe toda, a premissa que cria as condições de luta armada. A mobilização do proletariado repercutirá em toda a sociedade brasileira e modificará as relações de forças na luta de classes. Não só preparará ela mesma como exército de guerra civil e representará o pólo nacional para a organização das massas camponesas, como se fará sentir nas próprias forças armadas, em escala muito maior do que em 1964.

Mas, nesse processo, nós temos um papel ativo a preencher e esse não consiste em travar uma luta armada mirim e querer provocar uma mini-guerra civil, esperando que as massas se "aglomerem". Para ganhar as massas proletárias é preciso trabalhá-las, conscientizá-las e ensiná-las a lutar.

Afinal, como diz a canção que foi cantada justamente porque ia ao encontro das aspirações das massas:

"Esperar não é saber quem sabe faz a hora não espera acontecer".

Parte IV - Proletariado Brasileiro e Revolução Mundial

A herança do passado

Para compreender e julgar a situação criada no Brasil temos de levar em conta o fato de que a sua esquerda e seu movimento operário não venceram ainda a crise, na qual está se debatendo desde o pós-guerra; pelo menos, foi o que se tornou patente com a derrota sofrida em 1964.

Devemos compreender, também, que essa crise não é somente "nossa". Situações semelhantes a do Brasil se encontram em todo o Continente, nos mais diversos níveis; e não só no Continente, pois a crise afeta igualmente, embora de modo diferente, o proletariado dos países altamente industrializados e lá tem causas ainda mais antigas do que entre nós, que surgimos mais tarde no cenário das lutas de classes proletárias.

Trata-se da crise geral do movimento comunista, que foi fundado a fundamentado teoricamente por Lênin e seus companheiros nos tempos da Terceira Internacional, que não chegou a preencher o papel para a qual estava destinada. Para avaliar o alcance desse fato, temos de ter clareza sobre o que o leninismo significou e continua significando no desenvolvimento do marxismo e do movimento operário militante.

Já mencionamos que toda a atividade política de Marx e Engels consistia em fazer penetrar a sua teoria do socialismo científico no movimento operário da época. O grande instrumento do qual podiam se utilizar foi a Associação Internacional dos Trabalhadores, a Primeira Internacional. Esta tinha um papel limitado e de fato não sobreviveu ao choque entre os continuadores das velhas seitas utópicas o os marxistas, mas um dos seus resultados mais importantes (embora demorasse a surgir) foi a fundação de partidos políticos da classe operária na maioria dos países industrializados de então. Já assinalamos também que esses partidos representaram o resultado material da fusão do marxismo com o movimento operário da época, causa e efeito da formação de uma classe operária para si e que cresceram e se fortaleceram de tal maneira que em fins do século passado poderiam pensar em se reunir novamente em uma Internacional. Formaram a Segunda Internacional, que foi a primeira criada à base da doutrina de Marx e Engels.

Esta Segunda Internacional, revolucionária durante a primeira parte da sua existência (como divisor de águas pode-se, grosso modo, tomar o ano de 1905), representava o marxismo, teórico e prático, tal como tinha sido deixado por Marx e Engels. Não demorou, todavia para que a Segunda Internacional degenerasse completamente como instrumento de lutas revolucionárias e se adaptasse à sociedade burguesa-capitalista e se integrasse nela. Como pôde acontecer isso? Principalmente por três razões.

Em primeiro lugar, foi fundada em condições em que a luta proletária ainda se desenvolvia no terreno da sociedade burguesa. Na maioria dos países das seções associadas à Internacional, o problema da revolução burguesa não tinha sido solucionado e as "Repúblicas Democráticas” encabeçavam os programas de ação. E mesmo nos países onde este problema estava superado, como a França, não se podia colocar o problema da revolução socialista, da tomada do poder pela classe operária.

Em segundo lugar, a rápida expansão do marxismo nas últimas décadas do século passado, foi acompanhada pelo rebaixamento do seu nível. Rosa Luxemburgo já tinha chamado a atenção para o fato de que o marxismo representa um edifício teórico imenso e uno, mas que toda a geração de militantes só tirava dele o que necessitava para a luta imediata. Lênin, por sua vez, destacava o perigo da penetração de elementos pequeno-burgueses no movimento operário, os quais em vez de assimilar o socialismo científico, traziam consigo as ideologias da pequena-burguesia para as fileiras proletárias, e ele considerava esse fenômeno responsável pelo revisionismo. A limitação dos objetivos de luta, em parte imposta pelas condições da sociedade burguesa de então, favorecia na maioria dos partidos da Segunda Internacional o desenvolvimento dos fenômenos citados por Lênin e Luxemburgo. O marxismo começou a "limitar-se" aos argumentos necessários à luta pela conquista dos direitos da classe operária dentro da sociedade capitalista e pela democracia política, "enriquecido" frequentemente pelas interpretações dos "aliados" pequeno-burgueses.

Em terceiro lugar, o capitalismo começou a passar por uma mudança qualitativa, conhecida hoje como fase do imperialismo. Essa mudança, lenta e imperceptível no começo, teve para o movimento operário uma serie de consequências práticas e teóricas. De início permitiu às burguesias européias a elevação do nível de vida das massas trabalhadoras. Esse fenômeno em si não interrompeu o crescimento da classe, nem restabeleceu a tutela burguesa sobre ela. A elevação do nível de vida não foi um presente da burguesia, foi conquistada em duras lutas de classes, nas quais o proletariado expandiu e melhorou as suas formas de organização. Mas a burguesia podia satisfazer grande parte das reivindicações operárias e neutralizar a combatividade do proletariado. Os objetivos dessa luta se tornaram um "fim em si", processo que foi facilitado pela crescente fraqueza teórica dos partidos da Internacional e que criou as bases materiais do reformismo.

No campo teórico tornou-se claro, para a minoria de esquerda existente na Segunda Internacional, encabeçada por Lênin e Luxemburgo, que o imperialismo e suas consequências tinham de ser interpretados à luz do método. O marxismo "popularizado", reinante na Segunda Internacional, não dava para isso e uma das razões do seu fracasso foi a sua incapacidade de enfrentar a nova situação. Mas mesmo o "edifício" teórico que Marx e Engels tinham deixado ao proletariado não dava mais para enfrentar as novas tarefas. O socialismo científico tinha de ser desenvolvido e isso só poderia ser feito à base do próprio método materialista e dialético de Marx e Engels. Para poder desenvolvê-lo, antes de tudo, era preciso restabelecer as categorias revolucionárias do marxismo, "esquecidas" nos tempos da Segunda Internacional. Lênin empreendeu essa obra; não foi o único que se dedicou a isso, mas foi quem realizou o trabalho mais completo e mais sistemático. Adaptou o marxismo à fase imperialista do capitalismo.

O que tinha sido inicialmente uma necessidade teórica, logo se tornou uma imposição prática com a Revolução de Outubro na Rússia. Pela primeira vez um proletariado tinha realizado uma revolução vitoriosa e tomado o poder e isso mudou radicalmente as condições e objetivos de luta em toda a Europa e não demoraria para despertar a Ásia. A época da revolução mundial tinha se iniciado.

Estava claro para Lênin e seus companheiros, aos quais se juntaram os revolucionários de todos os países, que o proletariado não estava preparado para enfrentar a conjuntura revolucionária em plena expansão nos países mais industrializados. Estava sob o domínio dos partidos da Segunda Internacional que, de reformistas, tinham se transformado em defensores abertos da sociedade capitalista. O problema fundamental era transmitir ao proletariado europeu as experiências da revolução russa e reviver suas próprias tradições revolucionárias. Novamente, na história das lutas de classe, se impunha a fusão do uma teoria revolucionária, o leninismo, com o movimento operário existente. Não se tratava de simples repetição da história. Tratava-se de uma fusão em nível mais alto e que podia aproveitar o que o marxismo revolucionário tinha criado no passado. O instrumento dessa fusão foi a Terceira Internacional, a Internacional Comunista.

A nova Internacional nasceu em bases precárias. O único partido que liderava de fato uma classe operária era o Partido Comunista Russo. Havia um segundo, o búlgaro, os chamados "corações estreitos", ala revolucionária da social-democracia búlgara, que há muitos anos trabalhava em relações estreitas com os bolcheviques, mas que não pesava muito na escala internacional. Existia a Liga Espartaquista alemã, em torno de Luxemburgo e Liebknecht (que pouco depois foram assassinados), mas que somente em 1921, após a absorção dos socialistas independentes, se tornaria efetivamente um partido dirigindo um setor da classe operária. Os principais partidos, o francês, italiano, etc. se formaram depois da criação da Internacional em Moscou. Lênin, apesar de ciente dessas fraquezas, tinha tido pouca escolha. Fundou a Internacional assim mesmo para criar uma liderança revolucionaria, que pudesse enfrentar as tarefas que a situação revolucionária colocava na ordem do dia. Ele tinha pouco tempo, a tentativa tinha de ser feita, antes que a onda revolucionaria se esgotasse.

A tentativa falhou. Em 1921/22, Lênin e a liderança da Internacional tinham chegado à conclusão que a primeira onda da revolução mundial tinha passado, sem que a Ditadura do Proletariado se estabelecesse além das fronteiras russas. A tarefa da Internacional era adaptar a sua estratégia e tática à nova situação criada e preparar o proletariado para que pudesse enfrentar a próxima onda revolucionária em melhores condições.

O ponto vulnerável da nova Internacional foi a fraqueza dos partidos que a compuseram. Não tanto a fraqueza numérica em termos de militantes; essa foi superada em muitos países em relativamente pouco tempo, mas a sua fraqueza teórica, agravada pela falta de experiência e tradições próprias. Os partidos comunistas tinham de amadurecer para poder cumprir a sua missão e essa foi uma das preocupações maiores de Lênin, principalmente depois de 1921, quando era evidente que eles tinham tempo para isso. Significava, todavia, na realidade, que a Terceira Internacional ainda não era produto da fusão do leninismo com o movimento operário existente. Na melhor das hipóteses era um produto incompleto; mas tinha a sua razão de ser como instrumento desse processo em andamento.

O processo de fusão e de amadurecimento dos partidos nacionais não chegou a se consumar. A fraqueza ideológica e material dos partidos tinha criado uma extrema dependência de parte deles em relação ao Partido Comunista da União Soviética, o "partido dirigente", o único que tinha feito uma revolução vitoriosa, e esse fenômeno se acentuou depois da morte de Lênin, em 1924. Não é que antes não tenha existido, mas o próprio Lênin procurou superar essa deficiência do órgão internacional. Em uma das suas últimas intervenções, no 4° Congresso, Lênin lançou uma advertência que era ao mesmo tempo uma autocrítica. Disse que a Internacional tinha adotado demasiadas resoluções "russas", isto é, redigidas em uma linguagem que o proletariado do Ocidente não entendia. A classe operária do Ocidente não podia fazer a revolução, imitando a russa, mas criando as suas próprias formas de luta, adaptadas à sua realidade.

Os sucessores de Lênin não tinham essa preocupação. Empenhados em agudas lutas internas, as facções hostis do PCUS se preocupavam antes de tudo em obter dos demais partidos da Internacional apoio contra os seus adversários. Tanto Stalin como Trotsky subordinavam os problemas e o futuro do comunismo mundial aos seus interesses faccionistas. E a fraqueza e dependência da Internacional, por sua vez, fizeram com que ela forçosamente apoiasse a facção mais forte, a que se identificava com a liderança da União Soviética, para em seguida tornar-se um simples instrumento dela.

O resto de voz e de autodeterminação que a Internacional tinha tido ainda nos tempos de Lênin, foi perdida na fase das lutas de facções no partido russo. A espinha dorsal da Internacional foi quebrada na Alemanha, com o afastamento de mais de 5.000 quadros, na maioria velhos espartaquistas e que mais tarde formaram a Oposição Comunista Alemã. O exemplo alemão foi repetido nos principais partidos, onde Stalin se apressava em ocupar os cargos com elementos de confiança dele.
Apesar disso, mutilada e expurgada, a Internacional ainda era revolucionária. Seu ultra-esquerdismo simplório e sua tática do "social-fascismo" causou a derrota do proletariado alemão, mas seu objetivo de luta ainda era a revolução mundial e na atuação diária, não tinha ainda abandonado os princípios da luta de classes proletária.

A grande reviravolta veio com o 7° Congresso da Internacional, com a política da "Frente Popular", quando Stalin, através da volta de Dimitroff, descobrira a existência de uma "burguesia progressista" nos países imperialistas do Ocidente, a qual merecia o apoio.

A nova linha foi posta a prova, quase imediatamente depois, na Espanha, onde um proletariado combativo tinha respondido ao golpe militar com uma insurreição, isto é, com um início de revolução. Foi, de fato, a primeira vez, desde os tempos de Lênin, que se tinha criado uma situação revolucionária num país europeu. O Comintern e o Partido Comunista Espanhol enfrentaram essa nova situação criada com a palavra de ordem inédita: Primeiro ganhar a guerra civil, depois a revolução.

Havia se formado na Espanha um segundo partido comunista, o Partido Operário de Unidade Marxista (POUM). Era um partido ainda novo, com a existência de um ano, aproximadamente. Sua maior fraqueza era ser um partido regional da Catalunha, mas tinha uma visão nítida dos problemas globais da Espanha. Reivindicava, para ganhar a guerra contra Franco:

  1. a imediata independência do Marrocos espanhol, onde Franco tinha a sua base;
  2. a imediata expropriação das grandes propriedades de terras, para ganhar os camponeses, soldados do exército de Franco e
  3. o estabelecimento de um governo operário, pois somente tal governo poderia travar uma guerra revolucionária e essa era a única perspectiva para derrotar o fascismo.

O Partido Comunista Espanhol não pôde acompanhar esse programa. Era parte do Comintern e este já tinha se colocado definitivamente a serviço da política externa soviética — o que é a explicação para a reviravolta do 7° Congresso. E a política externa soviética visava a aliança com as chamadas "burguesias democráticas" para melhorar a situação internacional da URSS. E nessas condições o PCE tinha de formar governos de coalizão com os aliados burgueses espanhóis, os liberais, que nunca teriam aceito a perda das colônias, ou a simples expropriação das terras e, muito menos, uma guerra revolucionária. Portanto, o objetivo da guerra foi limitado ao restabelecimento da República Democrática, a única solução que a estrutura social da Espanha naquele momento não permitia. O desfecho da revolução espanhola é conhecido.

A Internacional morreu de fato na Espanha. A sua dissolução posterior por Stalin, durante a guerra, quando a sua mera existência se tornou um ônus para a política externa soviética, só confirmou um fato consumado. Mas a Espanha não testemunhou somente a degenerescência do stalinismo, que tinha dado inicio ao "revisionismo moderno", dominante até hoje nos partidos sob influencia soviética. O trotskismo passou pela mesma prova de fogo ao enfrentar uma situação revolucionária no Ocidente e falhou do mesmo modo. Se os stalinistas afogaram a energia revolucionária do proletariado espanhol em "Frentes Populares", os trotskistas atacaram sua vanguarda revolucionária, porque esta não repetia o "esquema" da revolução de outubro na Rússia. A esterilidade do trotskismo se tornou evidente na incapacidade de admitir outras situações revolucionárias do que aquelas que lhe deram origem. O que não impediu ao próprio Trotsky de atacar a vanguarda revolucionária com toda fúria do profeta desprezado.

As consequências do novo revisionismo — desta vez sob rótulo comunista — estavam, porém para se revelar ainda em toda a sua amplitude. A guerra civil espanhola foi seguida pela guerra mundial e o desfecho desta criou novamente uma profunda crise no capitalismo europeu e uma situação revolucionária de proporções muito mais vastas do que ocorreu no pós-primeira guerra e dessa vez estendia-se sobre largas regiões do mundo. Foi essa a segunda onda da revolução mundial, anunciada e esperada por Lênin, mas cuja irrupção não mais assistiu. O desfecho desta segunda onda revolucionária nos países altamente industrializados do continente europeu é igualmente conhecido. A onda da revolução se expandiu na Europa ocidental, na França, na Itália, mas o problema da revolução socialista nem sequer foi colocado. Na Alemanha ocidental, a revolução foi sacrificada de antemão à política externa soviética, que pretendia salvar a aliança com as "Democracias Ocidentais" para os tempos de pós-guerra. O mesmo destino sofreu a revolução grega.

Onde mais claramente se pôde ver o novo papel dos partidos comunistas, foi exatamente na Itália e na França. Repetindo a prática dos partidos da Segunda Internacional no pós-primeira guerra, líderes comunistas entraram em governos burgueses, geralmente como ministros de trabalho, neutralizando assim o antagonismo da classe operária. E os operários italianos e franceses, julgando que a presença de ministros comunistas era um passo em direção ao socialismo tiveram de descobrir posteriormente que a participação dos seus partidos nos governos de coalizão não tinha servido para outra coisa senão para restabelecer o antigo regime e evitar a revolução. Uma vez consolidado o sistema burguês e a ameaça revolucionária superada, a burguesia deu aos seus ministros os ponta-pés históricos e governou com a democracia-cristã. Os ministros comunistas não tinham ao menos sabido preencher a função que Stalin lhes havia atribuído: não souberam evitar a guerra fria. E o proletariado europeu tinha perdido pela segunda vez a chance de se desfazer do domínio capitalista na Europa. Com uma diferença, aliás. Em 1945, o proletariado europeu era revolucionário. Tinha se libertado das ilusões reformistas sobre o caminho democrático-parlamentar, e pensou que seus partidos o estavam levando para a revolução.

Ouço perguntar os companheiros: — Mas por que levantar agora esse peso de um passado, que para nós é história? É tão importante isso frente à situação e aos problemas que estamos enfrentando?

É importante sim. E é decisivo para nós compreender e digerir este passado, para poder superar as suas consequências. Trata-se de certo modo, do nosso passado, pois somos parte do movimento comunista internacional. Sentimos as suas consequências no cenário nacional e internacional, que hoje não podem mais ser separados. A crise do movimento revolucionário mundial, que nos envolve em todos os passos de nossas atividades, é consequência direta do fato de não ter sido aproveitada a situação revolucionária do pós-guerra. "Erros" históricos desse gênero não se cometem impunemente e o preço que pagamos é a presente desarticulação do comunismo mundial, é o fato das vanguardas revolucionárias nos diversos países, isoladamente, ainda terem de "remar contra a corrente".

Em segundo lugar, temos aí as consequências diretas sobre o jovem movimento operário brasileiro. Não sofremos, no Brasil, uma influência visível nem da Primeira nem da Segunda Internacional. Somos filhos legítimos da Internacional Comunista, que ajudou a formar o PCB com quadros em sua maioria vindos do anarquismo. As tradições ainda se fizeram sentir por muito tempo, mas dentro da disciplina da Internacional que foi acatada. Se tomarmos a história do PCB, vemos o reflexo da história da Comintern projetada sobre um país subdesenvolvido. O PCB, fundado em 1922, já durante a situação pós-revolucionária, precisou de alguns anos para se firmar e tomar corpo. Logo em seguida veio o curso ultra-esquerdista da Comintern, que encontrou a sua versão nacional sob a forma do "obreirismo" (para a satisfação dos velhos anarquistas). O agravamento do ultra-esquerdismo, o "social-fascismo", etc., teve como consequência uma maior acentuação do sectarismo nacional, que ia da dissolução do "bloco operário-camponês" até o abstencionismo na Revolução de 1930, sob o pretexto de se tratar de um conflito "interimperialista". A mudança da Internacional para a Linha da "Frente Popular" e do apoio às burguesias progressistas, virou no Brasil "Aliança Nacional Libertadora", que na prática abriu as portas do partido aos aliados pequeno-burgueses sob a égide de Prestes. Durante a guerra, setores do partido começaram a apoiar as forças "progressistas o anti-fascistas" no seio do governo Vargas. As tentativas de Stalin de conservar a aliança com os anglo- saxões no pós-guerra foram apoiadas eficientemente por Luiz Carlos Prestes, quando apertou a mão do embaixador norte-americano em praça pública, mas o partido descobriu a existência do inimigo principal com o início da guerra fria. O "Manifesto de Agosto" coincide com os temores do governo soviético de uma próxima Terceira Guerra Mundial e a volta de Prestes, em 1958, se dá novamente sob o signo da "coexistência pacífica", a ponto do Partido se recusar a participar de manifestações contra a visita de Eisenhower ao Brasil. E todas essas fases, voltas e reviravoltas, ajudaram a forjar e deformar o proletariado brasileiro e seus expoentes políticos.

Não podemos, certamente, afirmar que a política mundial não nos afeta "em casa". E não podemos igualmente querer solucionar os nossos problemas ignorando os problemas globais da revolução mundial. O passado pesa, enquanto não for superado, mas só será superado na medida em que aprendemos a experiência.

Para aprender a experiência, é preciso compreender, por exemplo, porque a Internacional Comunista, fundada justamente para combater e superar o reformismo da Segunda Internacional, vinte anos depois acabou do maneira inglória como neo-reformista e que partidos inteiros tomaram o mesmo rumo. Claro que há os fatos da subordinação da Internacional à política externa soviética, que foi um dos traços essenciais do stalinismo. Mas as afamadas palavras de Stalin: — "já que essa gente não faz revolução nem em mil anos, que faça alguma coisa para nós pelo dinheiro que recebem" — são expressão de uma situação extrema, de plena degenerescência de um movimento revolucionário. O problema é: como chegaram ao ponto de degenerar assim? Como é que, de um estado-maior da revolução mundial se transformaram em simples instrumento da política externa da União Soviética?

Há um fenômeno novo nas lutas de classes internacionais. Um fenômeno que Lênin já tinha visto, mas que com todo seu impacto é produto da época pós-leninista. Trata-se das relações entre os países, onde o proletariado já tomou o poder e o proletariado dos países capitalistas, onde o proletariado ainda luta pelo poder. Seus interesses e pontos de vista não coincidem sempre, mesmo quando se trata de dois fatores revolucionários — e aí abstraímos o caos extremo da política soviética durante e depois de Stalin.

Em primeiro lugar, há a tendência de toda revolução vitoriosa de ver a revolução mundial como continuação da própria. Isso é compreensível, pois os revolucionários vitoriosos se inclinam a generalizar sua experiência e as condições de luta que as formou. O fenômeno tem a sua complementação natural na atitude das novas gerações de revolucionários nos países capitalistas as quais começam a querer copiar o processo revolucionário vitorioso, que "deu certo". Quando, depois de algum tempo, sacrifícios e desgastes, se descobre que as meras cópias e imitações "não deram certo”, vemos facilmente a tendência oposta de jogar fora "a experiência revolucionária", que é identificada com o "marxismo-leninismo", começar experiências pragmáticas, ou se adaptar ao ambiente dominante, que geralmente é reformista. Não há dúvida que esse fenômeno facilitou a decadência da Comintern.

Em segundo lugar, há a tendência inerente aos governos revolucionários de identificar suas necessidades e perspectivas com as existentes nos processos revolucionários dos países capitalistas. Esta existiu claramente nos primeiros anos da Rússia revolucionária quando o problema principal consistia em romper o isolamento da República Soviética e quando "revolução mundial" significava ajuda do proletariado ocidental ao Estado Operário. Tal atitude foi responsável pela análise errada da situação na Polônia, a qual tinha provocado a marcha à Varsóvia, em 1921, e foi igualmente responsável pelas experiências com o "Outubro Alemão", em 1923, quando todas as facções do Partido russo insistiram em que a situação na Alemanha estaria "madura".

Esse fenômeno não pertence ao passado. Não há dúvidas que experiências que os dirigentes cubanos fazem há uma década com o movimento revolucionário no Continente, deve-se à sua ânsia de romper o isolamento do socialismo cubano no Continente, diminuir a sua dependência da ajuda material da União Soviética e vencer os pontos de estrangulamento econômicos e sociais. Os seus constantes apelos à "luta armada", em todas as circunstâncias, refletem de um lado a tendência da generalização da própria experiência e, de outro, a procura de soluções "mais rápidas".

A defesa dessas necessidades nacionais da revolução vitoriosa pode ser tentada com métodos aparentemente revolucionários, mas que estes não são os únicos recursos válidos, mostram as recentes declarações de Fidel sobre as possibilidades de vitória "pacífica" do socialismo no Chile e as interpretações cubanas duvidosas sobro o caráter do regime militar peruano. Já antes, a imprensa cubana tinha revelado uma estranha incompreensão da greve de Maio na França, país com que manteve relações relativamente boas, pelo menos com o governo de De Gaulle. Em todos esses casos se revelam tendências de subordinação dos interesses da revolução mundial e do proletariado internacional aos nacionais do país socialista.

No caso da China, o mesmo fato se manifesta em um nível diferente. O seu problema não é tanto o rompimento imediato do seu isolamento, para o qual a liderança chinesa encontrou meios de suportá-lo. O problema cardinal da China é o conflito com a União Soviética, que contém muitos elementos de contradição nacionais, de potências, cuja não solução é outra herança do stalinismo. A China está empenhada em projetar esse problema sobre o proletariado mundial, sob a forma da "luta contra o revisionismo". As meias-verdades da luta chinesa contra o revisionismo (para ela Stalin era um revolucionário e o revisionismo começou com Kruchev), mostram que se trata de uma luta ideológica, que é manejada com fins limitados— as da política externa. Não se trata de um balanço e de uma crítica do revisionismo, que seria de fato no interesse da revolução mundial, mas da criação de um mito (a da política stalinista revolucionária), que é um obstáculo para o proletariado revolucionário vencer a sua crise.

Colocando nesta luta "contra o revisionismo" os Estados Unidos e a União Soviética praticamente no mesmo pé (eles estão unidos para dividir o mundo), essa atitude é fundamentada "teoricamente" na "volta ao capitalismo" do regime soviético e o "social-imperialismo" de Moscou, que lembra perigosamente a "teoria do social-fascismo" da Comintern da década dos 30 e, de fato, trata-se de fundamentar uma linha ultra-esquerdista em escala mundial e nas atuais relações internacionais. Na prática, a liderança chinesa nega hoje a contradição fundamental entre o capitalismo e o socialismo, que determina em última instância as relações internacionais e a política mundial, desde o fim da guerra e continua determinando.

Também no caso chinês, temos um outro precedente da subordinação de interesses do proletariado de um país capitalista aos da potência socialista. Temos a experiência da Indonésia, onde um partido comunista de orientação chinesa praticou uma política de colaboração de classes, em função das relações externas da China com a Indonésia. Também nesse caso os resultados são conhecidos.

É evidente que as contradições de interesses, que surgem entre potências socialistas e o proletariado de países capitalistas, não podem ser antagônicas, nem fundamentais. A prazo, os interesses são comuns. Trata-se da derrota do capitalismo mundial, uma velha aspiração do proletariado de todos os países e cuja sobrevivência estrangula, em diversos graus, o desenvolvimento da economia e da sociedade em todos os países do mundo socialista. "Solidariedade Internacional", porém, não pode mais significar o sacrifício dos interesses do proletariado e da revolução mundial a interesses imediatos de potências socialistas. Solidariedade Internacional significa encontrar em todos os momentos de luta um denominador comum entre interesses divergentes, o qual não sacrifique problemas vitais de ambas as partes e que não comprometa os objetivos finais da revolução mundial.

Somos parte da revolução mundial

Hoje enfrentamos novamente a tarefa da fusão da teoria revolucionária com o movimento operário em escala mundial. Novamente não se trata de simples repetição da história. A penetração da teoria revolucionária na massa só é possível quando é constantemente desenvolvida, enriquecida e confrontada com a realidade em mudança. Desde os tempos de Lênin, a sociedade capitalista continuou a se desenvolver e as lutas de classes não pararam. O campo socialista se expandiu, o movimento revolucionário atingiu os quatro cantos do globo. Vivemos na época da revolução mundial. Se o "Manifesto Comunista" ainda falava do "espectro do comunismo" que rondava a Europa, nos tempos de Lênin a teoria já se tinha tornado força material na Europa e na Ásia e hoje se tornou realidade na América.

Há uma série de problemas novos surgidos na época pós-leniniana, os quais tem de ser assimilados dentro do marxismo-leninismo. As relações entre as potências socialistas e o proletariado dos países capitalistas só representa um entre muitos. Outro, fundamental, representa as mudanças qualitativas que o imperialismo sofreu após a Segunda Guerra. Há a tendência de integração dos países imperialistas mais fracos pelos mais fortes. Hoje, as metrópoles não precisam mais de tropas coloniais para dominar o mundo subdesenvolvido. Desapareceram as perspectivas de guerras inter-imperialistas pela repartição do mundo, frente às ameaças da existência de um campo socialista o da revolução mundial. Todos esses fenômenos caracterizados como "cooperação antagônica" e que determinam as relações das potências imperialistas entre si e entre as potências imperialistas, de um lado, e as burguesias nacionais dos países subdesenvolvidos, de outro, ainda estão a espera de analises mais profundas.

Uma contribuição completamente nova na época pós-leniniana foi a Revolução Chinesa. Não se trata só do fato da Revolução Chinesa ter mudado radicalmente as relações de forças entre capitalismo e socialismo em escala mundial. Pela primeira vez, uma revolução agrária pôde tomar rumos socialistas e esse fenômeno criou um impacto inédito entre os povos da Ásia e da África, especialmente.

Outros problemas novos surgiram com a industrialização de vastas regiões da América Latina, onde se criou um tipo de pais capitalista-industrial subdesenvolvido, com suas formas de dependência específica com a metrópole imperialista. O mesmo fenômeno colocou na ordem do dia a questão da revolução proletária em países de estrutura subdesenvolvida e das formas concretas sob as quais o jovem proletariado conquistará seu papel hegemônico no processo revolucionário.

Um dos problemas fundamentais é o dos rumos que a próxima onda da revolução mundial pode tomar. Criou-se nas últimas décadas a noção da "estratégia periférica" da revolução mundial que, deslocando-se para a periferia do mundo capitalista, estava travando uma batalha de cerco das metrópoles. A revolução ia do campo à cidade, sendo que as regiões subdesenvolvidas representavam o "campo" e as metrópoles, "as cidades" em escala mundial. Essa concepção, definida pela primeira vez por Bukharin no Congresso dos Povos Orientais em 1920, hoje não está mais tão bem fundamentada, como parecia há uns anos atrás. Em primeiro lugar, não há essa "imunidade" do proletariado dos países imperialistas à revolução, como às vezes se pretende fazer crer. Se a classe operária da Europa Ocidental em 1918 ainda teve ilusões democrático-burguesas, em 1945 ela as tinha perdido e se tornou vítima do uma armadilha histórica, pensando que suas lideranças comunistas a estavam levando para a revolução, e o seu posterior reformismo foi una reação ao fracasso das esperanças revolucionárias e à reconstrução do capitalismo europeu. O Maio francês revelou a existência de um potencial revolucionário e indica igualmente— tanto como as lutas na Itália— uma retomada do processo revolucionário em países imperialistas. Em segundo lugar, a onda revolucionária, depois de ter mudado de rumos para o Oriente, atingindo a China, Coréia e o Vietnã do Norte, declinou da mesma maneira como no Ocidente. Ela estagnou nas Filipinas, Índia e Indonésia, do mesmo modo como na Europa. O último impulso desta segunda onda da Revolução Mundial alcançou Cuba, mas não chegou mais a atingir o continente americano.

E, finalmente, está no interesse do proletariado mundial que o próximo ciclo da revolução mundial atinja os países industrializados do Ocidente. A vitória da revolução num país da Europa Ocidental colocaria toda a luta de classes em escala mundial em nível mais alto. Teria repercussão inevitável em todo o campo socialista no sentido de uma superação dos fenômenos de degenerescência da Ditadura do Proletariado, que a União Soviética projetou, de uma ou de outra maneira, sobre essa parte do mundo. Conferiria à Revolução Mundial um novo centro impulsionador, representado pelo proletariado de um país capitalista desenvolvido, com um potencial industrial correspondente ao seu dispor. Seria o caminho mais curto para o comunismo mundial vencer e superar a sua crise. Pois não esqueçamos que em última instância a crise foi provocada pelo fato da revolução ter parado nas portas do Ocidente e todas as revoluções terem se realizado em países com um proletariado fraco em diversos graus. Não esqueçamos também que o socialismo é resultado e negação da sociedade capitalista. E, se o imperialismo soube causar uma inversão dos rumos da revolução mundial, no sentido de se ter iniciado nos países mais atrasados, a historia mostra que pagamos um preço por isso. As revoluções em países subdesenvolvidos produzem um "socialismo subdesenvolvido", já disse Paul Baran e nós seremos maus revolucionários se procurarmos encobrir esse fato. Evidentemente, não podemos esperar que as revoluções se produzem nas condições históricas mais favoráveis, mas as tentativas de transformar os males em virtudes não nos ajudam a vencer a crise.

É nesta situação que se dá a nova fusão do marxismo-leninismo com o movimento operário. Ela está se dando num momento de curva baixa da conjuntura revolucionária no mundo, mas o ponto mais baixo da curva parece superado. A relativa estabilidade do mundo capitalista está chegando novamente a um fim e suas crises estão se anunciando de maneira inconfundível. Seus primeiros sintomas foram a crise do dólar e do ouro que, nos Estados Unidos, o baluarte do capitalismo mundial, se transformou em queda de produção e crescimento de desemprego. A radicalização do proletariado europeu mostrou que ele não se integrou no "neo" capitalismo o se sua combatividade ainda não se traduziu em ações reais consequentes, isso se deve ainda a velha liderança reformista da qual tem de se descartar. A sociedade capitalista, entretanto, produz sempre de novo os seus coveiros.

A nossa fraqueza, na presente situação, é de não dispormos de um órgão internacional para uma tarefa que tem de ser vencida em escala internacional. E essa situação de fato não pode ser vencida artificialmente. Uma nova Internacional, um novo Estado-Maior da Revolução Mundial, só pode surgir como resultado da existência de partidos revolucionários, que liderem realmente a classe operária. O problema consiste hoje na criação desses partidos revolucionários do proletariado em cada pais. Soluções artificiais como a fundação da "Quarta Internacional" por Trotsky, não mudaram as relações de forças e se tornaram uma caricatura de qualquer associação internacional do proletariado. A chamada "Quarta" que não chegou a se tornar uma Internacional, criou durante seus 30 anos de existência uma miniatura do Comintern, sustentada por seitas, que se dividiram e subdividiram a às vezes se fundiram de novo em lutas internas, que refletiram a sua impotência de intervir nas lutas de classes.

Não menos artificiais, todavia, são as tentativas de criar novos centros da revolução mundial, nos moldes e em substituição da velha Moscou perdida. É artificial, porque a luta do proletariado mundial não pode ser mais dirigida por um centro geográfico. O centro, que faz falta, deve ser criado pelas vanguardas revolucionárias do proletariado mundial. A tentativa de substituir a caída imagem de Stalin pela de Mao Tse-Tung como chefe mundial do comunismo, a prática dos partidos "pró-chineses" é motivada, em grande parte, pelo desejo de que o prestígio da revolução chinesa resolva para eles as dificuldades que encontram de se tornar vanguarda real de um movimento revolucionário. É um velho sonho querer colher sem precisar plantar, mas que esse caminho não é, na realidade, uma solução para nossos problemas, mostra-o a esterilidade dos "partidos chineses", tanto entre nós como na Europa — e isso um quarto de século depois da vitória da revolução chinesa e mais de uma década depois de o maoísmo ter declarado a sua independência.

O papel da Rússia Soviética como centro coordenador da revolução mundial já tinha sido limitado pelas particularidades em que se desenrolaram as suas lutas de classes e sob as quais se deu a sua revolução. O proletariado russo mal conhecia a vida sindical e os poucos sindicatos existentes não tiveram papel na insurreição operária nem precisavam ser levados em conta como possíveis adversários da revolução. A falta de experiência democrática o de auto-gestão do proletariado russo, que durante a maior parte da sua existência teve de enfrentar o absolutismo mais primitivo da Europa, dificultou o aproveitamento da experiência da sua vitória pela classe operária do Ocidente. As mesmas causas dificultaram igualmente a compreensão das condições de luta do proletariado ocidental pelos lideres revolucionarias russos — fato que se fez sentir com maior peso depois do afastamento de Lênin, mas que já tinha sido responsável pela adoção de resoluções "russas" por parte da Internacional. Mais limitadas ainda são as possibilidades da revolução chinesa para figurar como centro "orientador" do proletariado mundial. A experiência de luta operária da revolução agrária chinesa está muito menos desenvolvida do que era a dos bolcheviques para enfrentar os problemas da luta proletária em países mais industrializados. E, ao contrário da liderança revolucionária russa, a qual em grande parte conhecia o Ocidente, tinha convivido com sua classe operária e participado ativamente da luta contra o revisionismo e o reformismo da Segunda Internacional, a liderança revolucionária chinesa, pelas condições em que travou sua luta, foi forçada a um isolamento nacional, que implicava numa ignorância de fato dos problemas de luta de classes nos centros do mundo capitalista a do neo-revisionismo stalinista. Basta comparar as obras de Lênin e as de Mao-Tse-Tung para ver a diferença da problemática de luta e de experiências. Experiência viva.

Há mais de vinte anos, ainda em pleno pós-guerra, quando surgiu em diversos países o clamor para a fundação de uma nova Internacional, August Thalheimer, pouco antes do seu falecimento em Cuba, previu que o proletariado internacional ia carecer desse instrumento de luta durante um intervalo de tempo bastante grande. Salientou ele a necessidade de continuar a obra interrompida da fase leninista da Terceira Internacional e isso só poderia ser feito adaptando os seus princípios gerais à realidade nacional de cada pais. O caminho da criação de uma nova Internacional começa pela formação de partidos nacionais.

Há um outro aspecto do problema, sobre o qual Thalheimer chamou a atenção. Num mundo em que a terça parte da sua população já fez a revolução socialista, é difícil querer formar uma Internacional sem a participação de pelo menos uma parte dos partidos no poder. E a experiência mostra ser conveniente que participem mais de um partido de países socialistas para neutralizar o efeito de dependência dos partidos dos países capitalistas e para evitar que os problemas específicos do uma potência socialista pesem demasiadamente sobre a Internacional.

Essa perspectiva, que temos de enfrentar, não significa que temos de nos encerrar em nossa realidade nacional e esperar condições favoráveis no resto do mundo para a formação de uma nova Internacional. Não é essa a concepção leninista de luta de classes em escala mundial. Temos de estabelecer e estreitar os vínculos com todas aquelas organizações semelhantes à Política Operária, que estejam dispostas e em condições para uma cooperação regional ou internacional e para uma permuta das experiências de luta. Isso diz respeito, especialmente, às vanguardas revolucionárias que lutam em condições semelhantes às nossas na América Latina, mas não relega a um segundo plano as ligações com grupos e correntes revolucionárias nos países capitalistas desenvolvidos. Podemos e devemos, inclusive, formalizar essas ligações e criar órgãos de cooperação e de intercâmbio internacional, quando for possível. Isso é um caminho para a criação de uma nova Internacional, mas devemos estar cientes que ainda não é a Internacional, nem pode substituí-la.

E a colaboração mais efetiva que podemos dar ao movimento comunista internacional é prosseguir a avançar na luta pela formação do partido revolucionário do proletariado brasileiro. Temos consciência do fato de que a luta que travamos no Brasil é parte de uma luta que se desenrola hoje em quase todos os países do mundo capitalista. Fazemos parte dessa vanguarda comunista-internacional que continua a obra de Marx e Lênin, que mudou a face do globo e continua a mudá-la.

E por isso continuamos marchando, "a certeza na frente e a história na mão", como diz a já citada canção.


Notas:

(1) “Raúl Villa” foi o codinome utilizado durante a ditadura militar por Eder Sader, dirigente da organização Política Operária. O autor está se referindo ao texto “Os Ensinamentos de Mao-Tse-Tung e a Guerra Revolucionária no Brasil”, de Raúl Villa, que circulou em edição mimeografada em outubro de 1968. (retornar ao texto)

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Inclusão 09/02/2013