Entrevista ao Programa Roda Viva

Jacob Gorender

16 de Janeiro de 2006


Fonte: Memória Roda Viva - http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/526/entrevistados/

HTML: Fernando A. S. Araújo.


Paulo Markun: Boa noite. Ele é um militante histórico do comunismo no Brasil. Dirigente político, intelectual estudioso do marxismo e da nossa realidade. Tornou-se referência ao escrever duas obras básicas da historiografia brasileira: uma sobre o escravismo, que ajuda a decifrar o passado do Brasil, e a outra sobre a ação da esquerda guerrilheira, uma detalhada análise crítica sobre a luta armada no período militar. O Roda Viva entrevista, esta noite, o jornalista e historiador Jacob Gorender, um dos principais personagens da história do comunismo no Brasil.

[Comentarista]: Jacob Gorender, 82 anos, é historiador e é história. Filho de um imigrante judeu ucraniano e socialista, nasceu num bairro pobre de Salvador, onde cresceu e estudou até entrar na Faculdade de Direito e no PCB, o então Partido Comunista do Brasil. Como todos os jovens estudantes comunistas, defendia a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Foi além do verbo e alistou-se, com outros companheiros. Na Itália, participou da tomada do Monte Castelo, a mais importante batalha enfrentada pelos pracinhas da FEB, a Força Expedicionária Brasileira. De volta à Bahia, Jacob Gorender retomou o curso de direito que deixou logo adiante para militar profissionalmente no PCB. Chegou a ser membro do Comitê Central do partido que rachou em 1967, quando Jacob Gorender e outros saíram para fundar o PCBR, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário [em 1962, dissidentes do PCB fundaram também o PC do B]. Como jornalista, escreveu e dirigiu as principais publicações comunistas: Classe Operária, Imprensa Popular e Voz Operária. Foi preso e torturado depois do golpe de 1964. Quase quarenta anos de participação e influência no movimento comunista, quase uma dezena de livros publicados. Jacob Gorender, intelectual reconhecido e historiador polêmico, que atuou como professor visitante no Instituto de Estudos Avançados da USP [Universidade de São Paulo], abriu com sua obra novos capítulos na história do Brasil. De um lado, ampliando a análise do passado escravista do Brasil e, de outro, reavaliando a atuação da esquerda e da luta armada no período da ditadura militar.

Paulo Markun: Para entrevistar o filósofo e professor Jacob Gorender, nós convidamos Beatriz Kushnir, historiadora e diretora do Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro; Alfredo Bosi, vice-diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, professor titular de literatura brasileira e membro da Academia Brasileira de Letras; o escritor Jorge Caldeira; Lúcia Hipólito, cientista política, jornalista e colunista da rádio CBN; Marco Antônio Villa, professor de história da Universidade Federal de São Carlos e Ricardo Maranhão, historiador e cientista político da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Participa também do programa Lincoln Secco, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. [...] Professor Gorender, boa noite.

Jacob Gorender: Boa noite.

Paulo Markun: Eu queria começar do "começo". Que o senhor contasse onde o senhor nasceu e como foi o começo de sua vida.

Jacob Gorender: Bom, eu nasci na cidade de Salvador, sou soteropolitano. Por que meus pais foram para lá, sendo imigrantes ,e não para o Rio de Janeiro ou São Paulo, eles nunca me explicaram. Porque Salvador era uma cidade bastante atrasada naquela época. Mas, enfim, passei a minha infância em Salvador e também parte da minha juventude. E tenho um grande afeto por essa cidade, pelo seu povo...

Paulo Markun: Mas o senhor se considera baiano, ou a marca da família de imigrantes pesa mais do que a "baianidade"?

Jacob Gorender: Eu creio que o que pesa mais é a "baianidade". Eu sou filho de imigrantes judeus, mas me considero completamente integrado no espírito brasileiro, na "brasileiridade" e, de certo modo também, na "baianidade", embora viva há muito mais tempo aqui no sul.

Lúcia Hipólito: Professor, havia uma comunidade judaica importante na Bahia nessa época?

Jacob Gorender: Não era muito importante. Em todo caso, havia ali uma comunidade, digamos, com cerca de mil pessoas de várias categorias. Havia uma sociedade israelita, uma sinagoga onde se cumpriam os rituais religiosos e uma escola primária. Foi onde eu me alfabetizei. Nessa escola ensinavam as disciplinas obrigatórias das escolas primárias: português, história, geografia etc, mas também a língua iídiche. Eram os anos de 1930, e a língua iídiche era ainda muito viva. Havia uma grande comunidade judaica na Polônia e na Rússia que era muito produtiva do ponto de vista literário, enviava revistas e inclusive havia diários em língua iídiche...

Lúcia Hipólito: O senhor aprendeu iídiche?

Jacob Gorender: Com o [...], que chegavam em minha casa e eu aprendi a ler essa língua. Hoje tudo isso está extinto. Sobretudo depois da catástrofe que atingiu a comunidade judaica da Polônia.

Beatriz Kushnir: Professor Gorender, o senhor foi como soldado voluntário para Segunda Guerra Mundial. Eu queria que o senhor contasse um pouco dessa experiência e o mote que o levou a se alistar na FEB.

Jacob Gorender: Isso está vinculado àquela época, às circunstâncias daquela época. Nos anos de 1930 vivíamos na expectativa da guerra que estava por vir e que começou em 1939. Vivíamos isso e, como se sabe, em 1942 o Brasil rompeu relações com o chamado Eixo: a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão. Em conseqüência disso tivemos o torpedeamento de navios brasileiros, 1500 mil brasileiros em navios civis, que não tinham nada de militar, morreram afogados no oceano. Isso provocou grandes manifestações nas principais capitais brasileiras e em Salvador, porque muitos dos atingidos pelos torpedeamentos, os seus cadáveres vinham dar nas praias ali. Então, houve manifestações muito grandes. E eu me manifestei nessas manifestações, nessas expressões, nesses movimentos populares. Então aconteceu o seguinte de interessante. Em 1942, diante dos torpedeamentos, o governo de Getúlio Vargas declarou guerra, em agosto de 1942, ao eixo nazi-fascista. E ,depois disso, abriu-se o voluntariado em várias partes do Brasil, para quem quisesse. Passou-se a tratar praticamente da constituição de uma unidade do exército brasileiro que iria combater na Europa. E o general que comandava a região militar na Bahia, general Demerval Peixoto, lançou um desafio pela imprensa. Ele disse: “Os estudantes que andaram aí pela rua clamando pela guerra agora têm a oportunidade de se apresentar como voluntários”. Eu considerei esse desafio como uma questão pessoal. Eu, o Mário Alves, o Ariston Andrade [Zilteman, na época, estudante de direito] e mais alguns estudantes.

Paulo Markun: Todos comunistas?

Jacob Gorender: Éramos todos nós comunistas. Mas isso não foi ordem do Partido Comunista não. Seria um equívoco, porque o Partido Comunista estava esfacelado nessa época, estava envolvido, tinha sofrido grandes baques da repressão, dirigentes presos, de maneira que não havia uma direção realmente eficiente e nacional.

Paulo Markun: Sim, mas a ideologia do senhor é que o motivou a aceitar o desafio do general.

Jacob Gorender: É. Eu já, naquela época, tinha convicções comunistas. Tinha alguma idéia do marxismo, embora muito superficial. Ainda era muito jovem e a literatura marxista só circulava clandestinamente, era a época do Estado Novo. Mas, enfim, aberto o voluntariado eu me apresentei. E me recordo que, no posto de apresentação, eu fiquei aguardando lá as formalidades, então um sargento apareceu lá e disse: “O que é que o senhor tem com o general? O general ficou possesso quando viu o seu nome”. Quer dizer, o general não esperava que eu me apresentasse como voluntário. E eu me apresentei.

Beatriz Kushnir: Mas ser filho de imigrantes judeus não lhe causava nenhuma questão? O senhor o Salomão Malina, o Carlos Scliar são judeus que são voluntários na Segunda Guerra. Como era esse dilema: você estar num front quando, para a Alemanha nazista, você era um alvo privilegiado?

Jacob Gorender: Como era esse problema?

Beatriz Kushnir: Isso se apresentava como um problema para vocês ou essa questão judaica não se apresentava?

Jacob Gorender: Não, não era um problema. Nunca me disseram que eu tinha tais ou quais qualidades ou defeitos por ser judeu.

[...]: E se eu apresentar um outro dilema?

Jacob Gorender: Eu nunca tive isso, não passei por esse problema em qualquer parte da minha vida e em qualquer setor profissional por ser judeu. Eu considero que, na prática, não existe anti-semitismo no Brasil. Há anti-semitas, isso há, sobretudo quando houve o integralismo, o Gustavo Barroso. Mas uma militância anti-semita não existe. Pelo menos, nunca me atingiu. E, no caso da guerra, sem dúvida alguma, eu tinha plena consciência que se fosse feito prisioneiro, eu estava liquidado. Meu nome é inconfundível. Todos nós tínhamos uma chapa com o nome e número de inscrição para a eventualidade de ferimento ou de morte, aquilo orientava. Então eu não tinha dúvidas a esse respeito. Mas considerei que devia me apresentar voluntário. O Mário Alves não foi aceito porque não tinha condições físicas, ele era muito fraquinho. Mas não sei por quê, me consideravam com condições físicas [risos] de encarar essa tarefa.

Ricardo Maranhão: Jacob, o Leôncio Basbaum, aquele historiador, diz no livro dele que o partido teria dado a ordem. Não, ordem não, uma orientação, uma sugestão para os militantes todos se alistarem. Isso é um pouco contraditório com o que você está dizendo.

Jacob Gorender: Todos se apresentarem?

Ricardo Maranhão: Para todo pessoal do Partido Comunista se alistar na guerra, na FEB. É uma informação que ele dá, eu não sei até que ponto isso chegou a ser uma diretriz do Partido mesmo ou se foi apenas ele que teve essa... Uma pequena célula lá, um pessoal que teve... Porque, na verdade, grande parte das pessoas que se alistaram ou eram democratas, socialistas, gente que de alguma forma tinha alguma simpatia um pouco mais à esquerda. Porque, inclusive, como você sabe muito bem, o staff getulista de primeiro escalão estava cheio de nazistas; eles mesmos não queriam a guerra. O Dutra, o Góis resistiram muito até concordar que o Brasil fosse à guerra. Então, na verdade, a maior parte do pessoal que queria assim, voluntário, não por necessidade, mas por voluntarismo mesmo, tenho a impressão que tinha uma porção de gente que era democrata, socialista, comunista. Então, eu queria só que você comentasse isso.

Jacob Gorender: Não, eu devo dizer que não houve nenhuma ordem que eu soubesse do Partido Comunista. Porque naquele momento, 1942 para 1943, o Partido Comunista, como eu disse, estava esfacelado, tinha sofrido uma repressão muito grande nos anos de 1940 pela polícia de Filinto Müller, de Getúlio Vargas, e não havia uma direção nacional. Tinha se constituído no Rio de Janeiro a chamada CNOP, Comissão Nacional de Organização Provisória. Mas ela não era aceita por todos os militantes no Brasil, havia discordâncias muito grandes quanto à orientação. Então, o que acontece é que nós mesmos, um pequeno grupo que eu já citei, Mário Alves, Ariston Andrade e mais alguns, que éramos já comunistas, resolvemos nos alistar, consideramos que era o nosso dever. E não havia nisso ordem do Rio de Janeiro. Mais tarde viemos a conhecer os militantes do Rio de Janeiro. O Maurício Grabois editava uma revista chamada Continental que circulava no Brasil e que, dentro das condições do Estado Novo, era pró-americana, pró-aliados, antifascista, sem avançar muito porque não era possível.

Lúcia Hipólito: O senhor era muito menino. A sua família não se preocupou de o senhor ir pra guerra, essa coisa toda, ou não?

Jacob Gorender: Muito, se preocupou muito, mas muitíssimo mesmo. Até hoje, eu já avançado na idade, não deixo de sentir um mal-estar que causei aos meus pais com a minha vida. [risos] Não só por eu ter ido à guerra, eu imagino o quanto eles se preocuparam. E depois de ter abandonado o curso superior de direito e me tornado um militante profissional do Partido Comunista. Mas enfim, na vida, para realizar alguma coisa de útil, do ponto de vista político e social, a gente sofre e faz outros sofrerem. E no caso, me atinge muito porque se tratava de meus pais.

Alfredo Bosi: Gorender, essa frase última é de uma das cartas que Gramsci escreve para sua mãe...

Jacob Gorender: Quem?

Alfredo Bosi: Gramsci.

Jacob Gorender: Ah, o Gramsci.

Alfredo Bosi: Quando escreve cartas para a sua mãe, ele diz: “Eu sei que eu estou causando tristezas”. Mas quando a gente quer praticar o dever, muitas vezes vai desagradar às mães e aos pais. Mas o que eu gostaria de saber é o seguinte. Os seus contatos, o senhor está falando muito do Partido Comunista nessa situação ainda muito precária em que ele vivia, mas como é que foi a sua iniciação à esquerda, vivendo num lar, pelo que eu saiba, não era um lar de militantes. Ou houve qualquer relação da sua formação familiar com a primeira inclinação para a esquerda? Lembra-se disso?

Jacob Gorender: Sim. Meu pai, particularmente, era um homem com idéias, digamos assim, esquerdistas. Não tinha formação cultural elevada, não freqüentou academias, era um homem muito simples. Mas gostava de ler e, de certo modo, a sua posição influiu muito nas minhas atitudes. Mas a minha trajetória é curiosa. Eu me tornei materialista não com Marx, mas com Darwin. Aos 13 ou 14 anos, eu encontrei num sebo da Praça da Sé, em Salvador, no Centro Histórico, A origem das espécies. Eu não me lembro em que língua, mas deu para ler, eu já conhecia a importância desse livro. E, a partir desse livro, eu deixei de freqüentar a sinagoga e me tornei materialista. Só vim a conhecer livros marxistas cinco ou seis anos depois. E isso, é claro, acentuou ainda mais essa minha posição que se mantém até hoje. Apesar de tanta coisa que tem ocorrido.

Paulo Markun: E como é que o senhor entra no Partido Comunista?

Jacob Gorender: Eu entrei no Partido Comunista em 1942. Eu fui recrutado, como se dizia [rindo], pelo meu grande amigo, já falecido, o Mário Alves. Um grande herói do povo brasileiro, que morreu torturado num quartel da polícia do exército no Rio de Janeiro. Mário Alves já tinha contatos com comunistas, inclusive ele vinha aos congressos da UNE [União Nacional dos Estudantes] que, naquela época, tinha muita influência e que hoje não tem. No Rio de Janeiro ele conheceu comunistas, alguns que tinham vindo da Bahia e outros que residiam lá: o Maurício Grabois, Pedro Pomar, João Amazonas, Diógenes Arruda. E ele tinha então informações sobre os comunistas. E era comunista já. Em 1942 ele me convidou pra ser membro do Partido Comunista e eu aceitei. E formamos uma célula em Salvador

Lincoln Secco: Professor, na Itália o senhor conheceu certamente a figura do Palmiro Togliatti, eu me lembro que o senhor já disse também que, pela primeira vez, travou contato com algumas idéias ainda incipientes do Gramsci que depois teriam grande influência no Brasil e até no Partido Comunista. Como se deu isso? O senhor chegou a ver o Palmiro Togliatti, discursos dele? Teve contatos com o Partido Comunista Italiano?

Jacob Gorender: Sim. Isso já depois da guerra, depois que a guerra terminou. A nossa unidade da FEB... Terminou a guerra na cidade de Piacenza que fica a cinqüenta quilômetros de Milão. E, ali, eu pude assistir a um pequeno discurso de Palmiro Togliatti que já era reconhecidamente o líder comunista da Itália. O Partido Comunista circulava abertamente, não havia mais a repressão, Mussolini, já estava morto e tal. Então eu conheci, pude ver o Palmiro Togliatti, na sede do Partido Comunista de Piacenza, fazendo um pequeno discurso. Ele estava a caminho de Milão, então ele se deteve ali por um pequeno momento para dizer algumas palavras aos comunistas de Piacenza. Eu posso dizer que, nessa minha estada na Itália, conheci duas grandes personalidades da vida italiana daquela época. Uma foi justamente o comunista Palmiro Togliatti e a outra foi o papa Pio XII [risos]. Eu estive numa audiência que ele concedia em Roma – eu estava em Roma naquele momento – e num salão suntuoso do Vaticano junto com centenas de soldados, a maioria deles poloneses, mas também americanos etc. E, ali, o papa Pio XII, em certo momento, apareceu na parte do recinto a ele reservado e, pelo que eu me lembro, falou em quatro ou cinco línguas diferentes, inclusive em português. Havia muitos soldados brasileiros e ele sabia disso, e ele fez essa saudação ao Brasil, país católico, cristão. O mais curioso é que nós estávamos separados do recinto dele por uma espécie de gradeado e ele, quando terminou de falar, se aproximou do gradeado e todo mundo, todos os outros soldados, apresentavam a ele crucifixos e rosários para que ele abençoasse. E eu estava na primeira fila, consegui ficar. Então de trás vinham os rosários e os crucifixos, e eu apresentei ao Papa quando ele ficou perto de mim. [risos]

Paulo Markun: Quer dizer, o senhor foi a Roma, viu o Papa e foi abençoado! [risos]

Jacob Gorender: É, fui também. Pio XII, o Papa Pio XII.

[Comentarista]: Jacob Gorender é autor de um dos mais completos livros sobre a luta armada no período do regime militar. Combate nas trevas trata das motivações teóricas das esquerdas e de suas razões para pegarem em armas e enfrentar a ditadura militar no Brasil pós-golpe de 1964. Ilustrado com várias fotografias, o livro fala de personagens e dos enfrentamentos desse período. Analisa partidos e organizações em que a ação esquerdista se apoiou. Mostra a mudança de concepções que marcaram a busca do socialismo e como, em momentos diferentes, se justificava ou não a luta armada.

Paulo Markun: Jacob Gorender, eu queria dar um salto no tempo e pular para 1964: o golpe militar, quando começa o livro do senhor Combate nas trevas, que cobre esse período da resistência armada que alguns chamam de guerrilha ou terrorismo. Cada um dá um nome para esse processo que o senhor analisou em profundidade. E eu queria que o senhor contasse, que já está no livro, o que é que o senhor estava fazendo no momento do golpe de 1964 e como é que o senhor imaginou que ia ser a reação da sociedade, para a gente começar essa conversa.

Jacob Gorender: Bom, antes do golpe, as nossas esperanças de comunistas eram grandes. O presidente da República, João Goulart, o Jango, tinha encontros freqüentes com Luís Carlos Prestes, o secretário geral do Partido Comunista Brasileiro. E tudo indicava que as chamadas reformas de base iriam pra frente. O comício que ele fez no dia 13 de março na Central do Brasil, diante de trezentas mil pessoas, foi de causar entusiasmo e de aumentar a confiança na realização desse programa das reformas de base: reforma agrária, limitação das remessas de lucro, industrialização do Brasil e assim por diante. Então tínhamos essa confiança. E pouco antes do 31 de março, fui para Goiânia porque naquela fase eu estava fazendo uma série de conferências: em São Paulo, no Rio, em Porto Alegre, sobre o marxismo. Era uma série, eram nove conferências, três por semana, eu ficava um mês quase em cada uma dessas cidades. Então eu fui para Goiânia e lá eu comecei a fazer essa série de conferências. E, a certa altura, isso já era justamente 31 de março, as notícias que vinham do Rio eram já inquietantes. Mas no dia 31 de março eu ouvi pelo rádio o discurso de Jango, que ele fez no Automóvel Clube. E esse discurso me inquietou muito. Embora eu não estivesse no Rio, eu tive um pressentimento de que algo estava para acontecer de muito grave. E, de fato, foi o que ocorreu. Pouco depois, veio a notícia de que o Jango tinha sido deposto. E eu caí na clandestinidade, a partir daí, já em Goiânia.

Paulo Markun: Agora, o senhor achava que era possível — isso está no fim do seu livro, pelo menos foi o que eu entendi — o senhor achava que era possível resistir pelas armas naquele momento?

Jacob Gorender: Não, não tinha essa noção. Antes sim, antes do golpe. Uma vez dado o golpe, eu não tinha muita confiança em que isso reverteria rapidamente.

Paulo Markun: Mas, antes do golpe, o senhor imaginava que era possível chegar ao socialismo, ao comunismo pelas armas?

Jacob Gorender: Não propriamente chegar ao comunismo e ao socialismo, não era esse o problema. Era a realização das reformas de base. Era essa a nossa perspectiva. Isso me parecia viável. E avançar. Porque até então estávamos avançando, tínhamos conseguido ir para frente. O suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, permitiu que durante um decênio o Brasil vivesse um dos melhores momentos da sua história. Esse decênio foi o decênio do Cinema Novo, da bossa nova, de realizações artísticas de primeira ordem, do Grande sertão: veredas, do Guimarães Rosa, de florescimento literário, artístico de toda ordem. E isso nos entusiasmava. Depois havia ainda a circunstância internacional. A revolução tinha sido vitoriosa na China, o país mais populoso do mundo. Mao Tse Tung dirigia um país que tinha um grande poderio. E tinha sido vitoriosa em Cuba, aqui na América Latina. Cuba, que naquele momento, contava com o apoio da União Soviética. Então, esses fatores nós julgávamos muito positivos, de modo que o golpe, quando veio, nos deixou desorientados com relação ao que poderia acontecer no Brasil.

Marco Antônio Villa: Só uma questão, professor. O golpe de 1964 vai fazer com que o senhor, e grande parte da esquerda brasileira, passe a repensar o seu papel político. O próprio Partido Comunista vai se fracionar em vários grupos. E não só. Há uma grande divisão no interior da esquerda. Quer dizer, como o senhor avalia, e a trajetória do senhor, o golpe de 1964 e depois o senhor partindo para a fundação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário?

Jacob Gorender: Eu creio que uma das debilidades mais graves da esquerda nesse período, que se inicia com o golpe que durou vinte anos, uma ditadura militar, foi essa fragmentação da esquerda. Eu mesmo no Combate nas trevas cito, no glossário, uma série de indicações de organizações que se criaram. Uma parte delas veio do próprio Partido Comunista. Já antes do golpe, havia no comitê central um grupo que se opunha à orientação seguidista da direção de Prestes e de Giocondo Dias, que estavam indo atrás do Jango sem qualquer espírito crítico. Éramos o Marighella, o Mário Alves, o Apolônio de Carvalho, eu próprio, o João Batista Drummond e mais alguns, Câmara Ferreira. Fazíamos oposição. E, depois do golpe, nós procuramos nos entender. Acontece que chegamos a fazer uma reunião em Niterói de vários agrupamentos, de várias tendências, para unificar a esquerda que saía do PC. Mas isso já não foi possível. Marighella tomou o seu rumo próprio, criou a ALN [Aliança Libertadora Nacional] e iniciou o caminho dos assaltos, depois esteve em Cuba e assim por diante. Câmara Ferreira o acompanhou. Outros fundaram outras organizações. E havia ainda o POC, Partido Operário Comunista que foi matriz também de várias organizações e havia os militares que tinham sido excluídos das Forças Armadas, sobretudo sargentos. Daí surge a VPR [Vanguarda Popular Revolucionária], depois a VAR-Palmares. Foi uma tal fragmentação que não pode ser superada. E foi nociva à esquerda.

Jorge Caldeira: Nesse partido pequeno, no PCBR, o senhor logo foi preso. Foi a primeira vez que o senhor foi preso e torturado, não é? Como é que foi essa experiência? [Como foi] Sair dela e o julgamento?

Jacob Gorender: O PCBR foi fundado por Mário Alves, era o dirigente principal, o Apolônio de Carvalho, eu próprio e mais alguns outros companheiros. Por quê? Nós não queríamos acompanhar o Marighella porque ele era contra a existência de partidos. Ele dizia que partido é “reunismo”, “blá blá blá” e, na opinião dele, a direção da luta guerrilheira, da luta anti-ditatorial surgiria na própria ação. A ação iria indicar o caminho e fazer surgir uma direção. Não adiantava pré-figurar isso. Mas nós achávamos que devia haver um partido. E por isso nos reunimos, criamos e adotamos o mesmo nome, PCB, só acrescentando um erre: PCBR, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. E a nossa idéia era que fosse um partido que tivesse contato com as massas, que pudesse realizar as suas ações com apoio popular, o que não aconteceu.

Jorge Caldeira: Em vez das massas, o senhor foi para a cadeia muito rapidamente?

Jacob Gorender: Eu fui preso em janeiro de 1970 pelo Esquadrão da Morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury e fui levado ao Dops, Departamento de Ordem Política e Social, que hoje não existe mais no Brasil, mas naquela época existia. O Dops de São Paulo era o único no Brasil que tinha uma atividade efetiva. Porque, no resto do país eram os DOI–Codi, os departamentos propriamente militares que atuavam. Aqui em São Paulo o Dops tinha força porque o Fleury era ligado ao Cenimar, ao Centro de Informações da Marinha. Com isso, ele tinha grande força, tinha trazido para dentro da polícia todos os assassinos e malfeitores que o acompanhavam. Ele próprio era ligado a traficantes de drogas que combatiam os competidores. Era um delinqüente dos piores. Então eu caí nas mãos deles e, é claro, fui torturado.

Jorge Caldeira: Como é que o senhor se defendeu das acusações no tribunal militar?

Jacob Gorender: Das acusações?

Jorge Caldeira: É. Diz que o senhor mesmo fez a sua defesa, é isso?

Paulo Markun: [interrompendo] Se acusando.

Jacob Gorender: Eu não posso me recordar exatamente do teor da minha defesa. Eu tive o meu advogado aqui em São Paulo, foi o Raimundo Pascoal Barbosa, já falecido; e no Rio de Janeiro, no Superior Tribunal Militar, o meu advogado era Jorge Tavares, não sei se ainda vive. Mas eu o aprecio muito pela maneira como ele conduziu a minha defesa. Mas eu sempre me apresentei, quando tive que fazer depoimentos na auditoria, como um patriota, como alguém que estava lutando pelo progresso do Brasil.

Paulo Markun: Mas o senhor assumiu a responsabilidade de ser o fundador do PCBR? Essa culpa?

Jacob Gorender: Assumi, isso eu assumi.

Paulo Markun: E isso criou um problema para o tribunal porque não sabia como fazer com um sujeito que assumia a culpa de um crime que era menor do que outros crimes relacionados. Mas eu queria voltar à questão da tortura. Porque no seu livro, o senhor resume numa frase esse episódio. O senhor conta que um dos policiais disse que o senhor iria sofrer como Jesus Cristo. E aí o senhor diz assim: “Sofri menos, não fui crucificado”. Eu queria saber o que é que o senhor passou.

Jacob Gorender: Contar os detalhes da tortura?

Paulo Markun: Não, não precisa ser detalhes, mas eu acho, até por experiência, que é importante que as novas gerações tenham uma vaga idéia do que é isso.

Jacob Gorender: Bom, tortura continua a existir hoje. Relatos de tortura não são, infelizmente, coisas do passado. É claro que militantes políticos não são mais torturados. Mas os acusados de crimes comuns, acusados verdadeiros ou falsos, continuam a sofrer. Nesse meu último livro, Direitos Humanos, tem um capítulo que é intitulado “Violência policial, um câncer social”. É realmente um câncer social no Brasil. O que a polícia militar, sobretudo, mas também a civil, fazem em nosso país é algo que não acontece em países civilizados. Agora mesmo, a matança de trinta pessoas no Rio de Janeiro a esmo, só como represália aos comandos da Polícia Militar é algo inimaginável. É algo horroroso!

Lincoln Secco: Professor, o senhor considera que essa eliminação física de comunistas durante a ditadura ou a tortura era uma política consciente de Estado ou era uma prática de setores do Estado que saíam do controle do governo central?

Jacob Gorender: Não. Eu creio que era uma política da qual as autoridades superiores tinham plena consciência, tinham conhecimento. Quando começaram os assaltos a bancos e a carros que transportavam valores aqui em São Paulo, o primeiro ocorreu em Santo Amaro, perto daquele monumento dos bandeirantes, de péssimo gosto.

Lincoln Secco: O Borba Gato.

Jacob Gorender: É. Não havia aqui em São Paulo, no Brasil mesmo, uma organização adequada para enfrentar esse novo problema. As polícias, os Dops e a polícia civil não estavam preparados para enfrentar esse problema. Era uma coisa nova para eles. Então o Estado, o governo precisou improvisar. E aí se criou a Operação Bandeirante aqui em são Paulo. Como não havia no orçamento uma previsão de verbas para essa entidade nova, que se instalou numa delegacia de polícia na rua Tutóia, como é sabido, então essa verba foi requisitada de empresários. Isso é sabido. O Elio Gaspari confirma isso. Esses empresários, é claro, não deixaram os nomes. Eles são suficientemente perspicazes para saber que nessas coisas não se deve deixar rastro. Mas sem esse dinheiro como é que se instalaria essa entidade, Operação Bandeirante, com tiras, oficiais, torturadores, carcereiros, administradores, analistas de interrogatório e tudo mais? Era preciso de dinheiro. E esse dinheiro veio dos empresários. Aí houve um episódio interessante. Um dos empresários que deram dinheiro era o chamado Henning Boilesen, de origem dinamarquesa, que era o diretor da Ultragás. E esse Henning Boilesen, por temperamento, devia ser um sádico. Ele ia à Operação Bandeirante para ver a tortura, para ver os presos. Passeava por ali, ia com freqüência. Isso acabou chegando ao conhecimento das organizações clandestinas, dos dirigentes. O nome dele se tornou conhecido, foi identificado; passaram a pesquisar o trajeto que ele costumava fazer e acabaram cometendo um atentado. Ele foi morto num atentado numa rua de São Paulo.

Ricardo Maranhão: Jacob, olhando pelo outro lado, não do lado da repressão, mas pelo lado da resistência, o caso é o seguinte. Essa resistência armada... Voltando à questão da... Bom, o Marighella, diz você, não queria saber muito de fazer política, criar partido e tal. Agora, é a tal história, naquele momento que tivemos oportunidade de vivenciar, muitos dos militantes desconfiavam um pouco de que não adiantava quase fazer política com a classe operária. Isso acaba levando a uma questão mais geral, inclusive, das discussões sobre o processo revolucionário na contemporaneidade que, inclusive no seu livro Marxismo e utopia, existe essa questão. Mas o operariado dificilmente é revolucionário, o operariado freqüentemente é reformista, sindicalista. Claro, embora nós tenhamos exemplos históricos importantes de movimentos proletários revolucionários, hoje em dia isso é muito mais claro, é muito mais fácil a gente levar em conta hoje, nos últimos vinte ou trinta anos essa sua assertiva. Agora, naquele momento do enfrentamento com a ditadura, com a sociedade amortecida pela teia da repressão, realmente como é que você acha que se colocava essa questão política de fazer mesmo um movimento em direção à classe operária, como alguns setores propunham ,ou era melhor mesmo fazer como o PC do B: “Vamos lá para a guerrilha rural”, ou fazer o foquismo, como se dizia na época, o foco guerrilheiro primeiro para depois ter o movimento de massas. Quer dizer, isso é um problema daquela época, mas é um problema geral da própria questão de como o revolucionário se relaciona com as massas. O que você poderia comentar sobre isso, por favor?

Jacob Gorender: Naquele momento isso era motivo de grandes discussões. A ditadura militar, quando se instalou, fez uma varredura completa nos sindicatos. Toda a liderança sindical de esquerda foi presa ou teve que sair do país, enfim, o movimento sindical foi aniquilado e imobilizado. As greves foram proibidas. Eram toleradas no máximo greves quando as empresas não pagavam o salário. Mas fora daí eram consideradas crime contra a segurança nacional. Essa situação deixou de fato a classe operária por muito tempo inerte ou em movimentos muito localizados e pouco efetivos. Esperava-se que isso revertesse rapidamente, mas não aconteceu. Então, qual era a perspectiva em geral das organizações de esquerda? Era de um movimento guerrilheiro na área rural. O Brasil naquela época tinha uma proporção de população rural bem maior do que agora. E nós tínhamos um exemplo da China e de Cuba, sonhávamos com uma nova Sierra Maestra, tínhamos essa esperança. E daí nasceu Caparaó. Um grupo de quinze ou vinte ex-militares e também civis que se fixou no alto do monte de Caparaó, lugar muito frio, esperando a hora de começar uma guerrilha. E acabaram sendo presos. Eram ligados ao Brizola. Depois disso, novas tentativas dessa ordem é claro que não ocorreram. Mas sempre havia essa expectativa de que um dia começaríamos a guerrilha na área rural. Para isso foram compradas fazendas onde se estabeleciam pequenos núcleos que não chegaram a atuar em coisa nenhuma.

[Comentarista]: Mesmo tendo vivido na clandestinidade por longo período, Jacob Gorender tornou-se um estudioso da formação social brasileira. Com três livros dedicados à análise da estrutura escravista colonial, o historiador trouxe novas visões sobre a escravidão e o abolicionismo no Brasil. O escravismo colonial virou obra clássica nessa área. Mas A escravidão reabilitada criou polêmica entre acadêmicos ao questionar algumas teses da historiografia recente que, segundo Gorender, não correspondem à realidade histórica. Uma realidade que fez do país, um Brasil em preto & branco e que se baseia num passado escravista que não passou.

Paulo Markun: Jacob, eu queria entender como é que, no meio dessa ação política toda, dessa militância, da prisão, o senhor consegue escrever um livro que modifica todo o conceito de como era a escravidão no Brasil e contesta inclusive Gilberto Freire?

Jacob Gorender: Qual livro?

Paulo Markun: O escravismo colonial.

Jacob Gorender: Ah, sim. O projeto de escrever O escravismo colonial eu já o tinha antes de ser preso e procurava me enfronhar na literatura disponível, embora isso fosse muito difícil na clandestinidade. Tinha um amigo que conseguia retirar livros da biblioteca da USP, em nome dele. Porém a coisa avançava muito precariamente. Mas o projeto estava na minha cabeça, e com as poucas leituras que eu ia fazendo, a convicção aumentava. E qual era a questão que se colocava para mim? É que a tese do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, ao qual eu pertenci durante 25 anos, de 1942 a 1967, era de que o Brasil tinha um passado feudal e que ainda existiam sobrevivências feudais no Brasil. E isso não me parecia correto. Quer dizer, O escravismo colonial foi escrito para contestar essa tese. Eu quis provar, e acredito que o fiz, que o passado do Brasil foi escravocrata. Nós tivemos um regime escravista até o final do século XIX, durante quase trezentos anos. E isso marcou profundamente a sociedade brasileira. E eu cunhei a expressão “escravismo colonial”, que não existia antes. Escravismo colonial é um regime todo especial que fez do Brasil um país marcado pela necessidade de produzir gêneros e artigos para o exterior com uma população de escravos e, depois, de ex-escravos, muito grande, que constitui um problema social até hoje. Então, o livro foi escrito, essa foi a minha idéia, para refutar essa tese. E quando eu consegui a liberdade, depois da prisão, ainda nos anos de 1970, com grande dificuldade, então eu já podia freqüentar bibliotecas e consultar arquivos etc, aí o livro avançou. E tive a sorte de encontrar numa grande editora, a Ática, um grande amigo, o Granville, de ter o beneplácito, a aprovação do professor Alfredo Bosi, que está aqui presente, que foi importantíssima. E, com isso, eu, com mais de cinquenta anos, que nunca tinha publicado um livro, de repente apareço com um livro de quase seiscentas páginas e com grandes pretensões.

Jorge Caldeira: Professor Jacob, nesse período do livro nós trabalhávamos na mesma redação, o livro foi escrito quando o senhor trabalhava de dia, como redator da Abril.

Jacob Gorender: [interrompendo] Trabalhava?

Jorge Caldeira: Na Editora Abril, como redator, trabalhávamos na mesma sala, naquela época e, à noite, com ajuda de amigos. Eu queria um pouco entender como foi possível essa passagem, essa produção de alguém que escreveu em condições tão precárias e sem passado. Quer dizer, o senhor tinha já uma disciplina intelectual interna muito grande, acho que vinda do partido, mas eu queria que o senhor contasse um pouco para quem está nos vendo, como foi internamente, depois de 25 anos como militante profissional em partido, se transformar em intelectual?

Jacob Gorender: É uma história, de fato, bem pessoal. Uma vez que eu não tinha graduação, abandonei o curso de direito no terceiro ano; profissionalmente fui jornalista, trabalhei em jornais. Então, como poderia me dedicar a fazer um livro dessa espécie? Durante um certo tempo, eu trabalhei na Abril Cultural, e fui seu colega, tínhamos uma convivência muito amistosa naquela época. Mas naquela época, trabalhando na Abril, eu não podia avançar na feitura do livro, era trabalho em tempo integral, me ocupava muito tempo, não era um trabalho tão fácil assim, era cansativo. O que me possibilitou escrever o meu livro, quando eu tomei a decisão, foi justamente quando eu saí da Abril e aí eu me dirigi a alguns companheiros...

Jorge Caldeira: [interrompendo] Que fizeram uma vaquinha.

Jacob Gorender: ... que eram abonados, expus a eles o plano do livro e pedi um subsídio a eles. Não vou citar um ou outro porque faria uma omissão injusta. Mas agradeço de coração a confiança que eles tiveram em mim e que me forneceu recursos para ficar três anos sem obrigações de emprego e podendo me dedicar totalmente à feitura do livro. A terminar a pesquisa e depois a redigir o livro. Redigi em máquina Olivetti, não tinha computador. [risos]

Jorge Caldeira: Sua vida mudou em função do livro?

Jacob Gorender: Depois que o livro foi publicado? Eu não sei dizer até que ponto ela mudou. Depois disso, o fato é que eu não voltei mais a trabalhar em nenhuma empresa. Eu me dediquei a fazer traduções...

Jorge Caldeira: [interrompendo] E em partidos? O senhor voltou a militar em partidos depois do livro?

Jacob Gorender: Eu estive durante certo tempo na militância do PT. Mas, já há alguns anos atrás, houve um recadastramento e eu não me recadastrei. De modo que não sou mais militante do PT.

Marco Antônio Villa: Professor, o senhor encontrou muita resistência no Escravismo colonial. O senhor teve resistência a uma historiografia conservadora, que o senhor critica no livro, mas encontrou resistência também de uma historiografia acadêmica, que o senhor responde no Escravidão reabilitada, e faz duras críticas. Como o senhor encara essa questão da recepção, tanto do Escravismo colonial, por parte da universidade, por muitos estudantes que ficaram impressionados? Eu, na época, estava entrando no curso de história, fiquei impressionado pelo rigor da pesquisa, pelo cuidado com que o senhor trabalhou conceitualmente, o que não era prática entre os historiadores, vale lembrar, esse rigor. E e a resposta depois, de alguns departamentos, de algumas universidades que criticam violentamente o livro do senhor. E o senhor responde no Escravidão reabilitada. Como o senhor analisa hoje, à distância – afinal já passaram mais de vinte, 25 anos – a recepção que o livro do senhor teve, tanto O escravismo colonial como A escravidão reabilitada?

Jacob Gorender: O que sucede é que O escravismo colonial saiu a público pela Ática, a primeira edição, em 1978, e o marxismo ainda estava em alta, nesse período, pelo menos no Brasil. De certo modo também na Europa. Então o fato de ele ser um livro marxista não causou nenhuma repulsa, e eu passei a ser convidado para conferências, estive inclusive na USP, não houve nenhum problema negativo com relação ao livro, ao contrário, ele me posicionou e me tornou conhecido. A própria Veja publicou uma página sobre a publicação do livro. Mas, pouco depois disso, o marxismo entra em refluxo. Nos anos 1980, isso foi mundial, e no Brasil em particular. No campo da história, da historiografia, surge a chamada “escola da história do cotidiano”, um grupo de historiadores, muitos deles talentosos, passa a dar privilégio à vida cotidiana das pessoas, aos acontecimentos corriqueiros aos quais, em geral, a historiografia não dá grande atenção. E, sob esse aspecto, o meu livro passa a receber uma crítica muito séria. Foi em resposta à posição desses historiadores do cotidiano, dos fatos menores colocados em relevo, que eu escrevi A escravidão reabilitada, como uma resposta a esse posicionamento.

Alfredo Bosi: Professor Gorender, eu queria dar um testemunho que realmente, por volta de 1977, fazíamos parte, vários professores da USP, o saudoso Rui Coelho, o professor Aziz, e o professor Duglas, quero deixar bem claro, eram professores muito ligados à área de ciências sociais. Eles formavam, junto com outros, um conselho, o conselho da coleção Ensaios, da Editora Ática. Então, normalmente, nós analisávamos teses, porque a coleção tinha essa finalidade de editar teses. E aí, chegaram às nossas mãos uns originais curiosos, porque não era tese universitária, era um livro, que foi encaminhado pelo Maurício Tragtenberg, que logo nos pareceu revolucionário, mas ao mesmo tempo, tinha uma cara auto-didática, não era um livro de universidade. É claro que lemos aquilo e logo nos apaixonamos, de fato o livro foi editado. Então continuando um pouco aquilo que o professor Villa disse, eu acho que nesta  sessão aqui o senhor deu uma certa ênfase à idéia de que O escravismo colonial procurava responder a uma tese do Partido Comunista, a uma tese que chega também à idéia da dualidade do Brasil, que é um desdobramento, o Brasil feudal, o Brasil burguês. E essa tese foi de alguma maneira respondida ou criticada no seu texto. Depois a outra tese, que eu gostaria que o senhor falasse alguma coisa, que causou mal-estar na universidade, porque o senhor também nega que o Brasil precocemente, desde o início, tenha sido uma formação capitalista. Essa era outra tese que tinha maior prestígio dentro da USP, com Caio Prado, e ainda tem, podemos dizer. Eu acho que a sua tese hoje briga mais com essa, que foi hegemônica durante tantos anos, e ainda é em grande parte, do que com a tese feudal. O Brasil como modo de formação capitalista. Então, o que o levou a negar tanto um lado como o outro? Porque o outro lado da Universidade de São Paulo era a resposta à primeira tese, já havia essa resposta de alguma maneira, desde Caio Prado. Mas também essa resposta lhe pareceu inadequada. O senhor sustenta essa posição agora, de nem uma nem a outra? Nem a feudal, nem a capitalista?

Jacob Gorender: A minha ênfase foi que o quê prevaleceu até o fim do século XIX foi o escravismo colonial. E cessado esse regime, o Brasil entrou penosamente num caminho de formação de uma sociedade capitalista. Mas entrou penosamente, com dificuldade. Eu creio que Caio Prado, grande historiador brasileiro, deu uma ênfase muito grande às relações comerciais que havia já desde o tempo colonial e posteriormente. Eu procurei mostrar que essas relações comerciais, por si mesmas, não iriam caracterizar um regime capitalista. E que esse regime capitalista se fixaria, se formaria de maneira penosa, vagarosa em nosso país na primeira metade do século XX.

[Comentarista]: Os direitos humanos, no alerta de Jacob Gorender, são notícia todo dia. E a defesa que se faz deles vem exatamente do fato de serem violados a todo instante e de todas as formas. Direitos humanos: o que são — ou devem ser — mostra a evolução do conceito, da Revolução Francesa aos dias de hoje. Analisa guerras, formas de governo e as situações de violência, abuso e desrespeito que ainda ferem direitos fundamentais das pessoas em todo o mundo.

Paulo Markun: Até pelo fato de o último livro do senhor ser sobre direitos humanos, eu queria comentar uma curiosidade que é a seguinte. Qualquer pessoa que pesquise na internet "Jacob Gorender” vai encontrar o nome do senhor em diversos sites de extrema direita. Sites que mencionam as descrições que o senhor fez de justiçamentos e assassinatos – também é um outro caso em que a palavra se encaixa de acordo com a vontade de cada um – de militantes de esquerda, pela esquerda e até de presos que tinham sido detidos, militares detidos pelas organizações de esquerda no período do combate, da luta armada. Como é que o senhor, que escreve um livro sobre direitos humanos, encara esse tipo de atitude dos chamados grupos revolucionários?

Jacob Gorender: No meu livro Combate nas trevas, eu procurei ser fiel aos fatos, mostrar por que a esquerda foi derrotada, porque ela não conseguiu os resultados que esperava e alguns de seus líderes perderam a vida, como foi Marighella, Câmara Ferreira e vários outros. Procurei mostrar isso. E mostrar também os pecados, os crimes da própria esquerda. Mas eu só identifiquei, no caso de militantes da própria esquerda, quatro justiçamentos, não mais do que isso. No caso de militantes da esquerda. Não posso dizer os nomes porque eles estão no livro, não tenho de memória. De adversários é outra coisa. Como o Chandler [capitão do Exército dos EUA, que estava no Brasil com esposa e filhos para estudar na Escola de Sociologia e Política da Fundação Álvares Penteado. Em outubro de 1968, ele foi morto a tiros por militantes da esquerda, que suspeitavam ser ele um agente da CIA], o Boilesen, eu falei aí que também sofreu um atentado, aí são inimigos.

Paulo Markun: O senhor acha que é justificável matar um inimigo?

Jacob Gorender: Acho. Numa luta daquele tipo, sim. Porque os nossos também eram assassinados. Havia a Operação Bandeirante [(Oban) Centro de informações, investigações e de torturas montado pelo exército brasileiro em 1969, e financiado por alguns empresários] transformada depois em DOI-Codi. Então, era uma luta sem trégua. Não direi o mesmo nos dias de hoje, que não teria nenhuma justificativa.

Paulo Markun: Mas esse argumento que o senhor usa não é o mesmo que os militares defendem para dizer que a violência da ditadura contra a esquerda foi uma resposta aos atentados?

Jacob Gorender: É o que eles afirmam. E ainda recentemente em nota oficial do Exército. Mas isso não justifica de maneira nenhuma a tortura de prisioneiros. O DOI-Codi, primeiro a Operação Bandeirante, depois DOI-Codi, não justifica a tortura de prisioneiros e o assassinato de prisioneiros indefesos. Ainda agora nós estamos vendo que militares que combateram os guerrilheiros do Araguaia estão requerendo benefícios dizendo que a luta que eles travaram se equipara a da Força Expedicionária Brasileira. Isso é uma infâmia, porque a Força Expedicionária Brasileira da qual eu fiz parte – estive durante oito meses na linha de frente, na Itália – combateu o exército nazista e fez prisioneiros e nunca torturou prisioneiros. Não há registro dessa espécie. Os prisioneiros alemães e de outras nacionalidades eram interrogados conforme as normas da Convenção de Genebra [Reunião de líderes mundiais em Genebra, na Suíça, onde foi definida uma série de tratados, definindo as normas para as leis internacionais relativas ao direito humanitário internacional. Esses tratados definem os direitos e os deveres de pessoas, combatentes ou não, em tempo de guerra]. Mas tortura jamais. E o que fizeram esses militares no Araguaia? Eles decapitaram guerrilheiros que estavam vivos. Eles fuzilaram guerrilheiros que capturaram vivos. Lançaram no oceano, incineraram, carbonizaram corpos de prisioneiro. Quer dizer, praticaram toda espécie de crueldades e hoje estão reivindicando benefícios comparando-se aos expedicionários da Força Expedicionária. Isso é uma infâmia, que eu repilo aqui neste programa.

Beatriz Kushnir: Professor, em 1998 quando o senhor relança o Combate nas trevas, o senhor diz que a historiografia do pós-1964 só vai avançar quando os arquivos do exército forem abertos. A gente vive neste momento um dilema bastante difícil. Depois das fotos falsas do Vladimir Herzog publicadas o ano passado, o governo fez uma medida provisória que passou no Senado recentemente e se tornou uma lei de que tudo que se vai consultar nos arquivos hoje, da história do contemporâneo, passa por uma comissão interministerial, o que leva muito tempo. Coisas que pesquisadores podiam ver até o ano 2000, 2001 nós não podemos mais ver hoje em dia. A sociedade civil está se mobilizando contra essa medida provisória, e a família dos mortos e desaparecidos fez essa semana, em São Paulo, um movimento chamado Desarquiva Brasil. Eu queria que o senhor comentasse um pouco sobre essa questão dos arquivos do Estado, que este governo também não libera nem a pesquisadores, nem ao cidadão.

Jacob Gorender: É, esse é o grande problema brasileiro. Basta dizer o seguinte: os arquivos, os documentos referentes à Guerra do Paraguai, que estão em poder do Exército, até hoje não foram postos à disposição de pesquisadores. Os pesquisadores brasileiros não têm condições de saber o que está ali, o que foi dito, que registros foram feitos. Isso da Guerra do Paraguai. Eu penso que o governo do presidente Lula marcaria um grande ponto se determinasse, como presidente da República, a abertura desses arquivos. Isso é imprescindível. E se constituísse uma comissão não muito grande, mas idônea, de historiadores e autoridades, enfim, que examinasse o conteúdo desses arquivos, desde a guerra do Paraguai até os mais recentes. Porque o que nós ouvimos sempre do Exército é que não tem arquivo. Em primeiro lugar, o Exército jamais reconheceu oficialmente que houve guerrilha no Araguaia. Isso não foi reconhecido. Com relação, por exemplo, à Aeronáutica, quando apareceram aqueles papéis na base aérea de Salvador, a Aeronáutica declarou que também não tinha arquivo porque tudo queimou no incêndio do aeroporto Santos Dumont onde eles estavam depositados. Quer dizer, é um jogo de esquiva que precisa acabar. E o presidente Lula marcaria um grande ponto se conseguisse determinar a abertura desses arquivos. É claro que há documentos que não podem ser colocados em público. Mas, em grande parte, o que está se fazendo é esconder tudo. E já se estabeleceu que tem documentos que, pela eternidade, ficarão desconhecidos do povo brasileiro. Isso eu acho que deve terminar.

Jorge Caldeira: O senhor, depois de 25 anos, de militância no Partido Comunista Brasileiro, em cargos de direção, pensando o tempo todo em um partido que ia fazer uma revolução. Depois de tentar a luta armada como caminho para a revolução e depois de se fixar como nome de intelectual revolucionário, aos 81 anos o senhor publica um livro chamado Marxismo sem utopia, que é um livro de quem conhece profundamente o marxismo, isso é bom dizer, mas onde tem algumas afirmações que, para muita gente, têm parecido difíceis de digerir. Entre elas, que: "democracia é um valor universal e não uma farsa", uma democracia burguesa, farsa, como já dizia a propaganda durante o século XX. Segundo, que "os direitos humanos são valores universais e fundamentais e não invenção burguesa", como a tradição revolucionária marxista leu essa coisa. Por fim, tem a famosa frase, que acho que vai virar um clássico, de que “o proletariado é uma classe ontologicamente reformista”, que tem dado pano pra manga e muita discussão por aí. Bom, aí são duas coisas. Em primeiro lugar, é preciso muita coragem, para quem fixou o nome como revolucionário, entrar tão fundo nessas questões. A minha pergunta é: isso não abre para trás uma brecha para ler o século XX, ou reler o século XX ,a partir do marxismo da social-democracia – [Eduard] Bernstein, [(1850-1932)], [Karl] Kautsky [(1954-1938)] [teóricos políticos alemães e os dois principais representantes do revisionismo ou social-democracia, que previa uma evolução do capitalismo o qual, gradualmente, através de reformas sociais, daria lugar ao socialismo. O revisionismo também buscava alterar alguns pontos teóricos básicos do marxismo, com base no evolucionismo darwiniano e nas idéias do filósofo Kant], que foram os que propuseram isso na Alemanha, no final do século XIX, e isso gerou a social-democracia? Enfim, onde que vai ficar o limite entre social-democracia e socialismo, se essas afirmações do senhor forem verdadeiras?

Jacob Gorender: São questões que eu precisaria fazer uma conferência para poder responder a elas [risos]. São muito complicadas. Mas eu devo dizer o seguinte: eu não tenho receio de mudar as minhas idéias se eu me convenço de que o que eu pensava anteriormente não estava certo. E, depois, os tempos mudam. Para novos tempos são necessárias novas idéias. Então eu não fico com receio de apresentar essas novas idéias. Eu cheguei a essa conclusão: que o proletariado, ontologicamente, é reformista, não revolucionário. E isso é muita coisa. Se não fosse o reformismo do proletariado, nós estaríamos hoje ainda na época da revolução industrial inglesa. Quer dizer, esse reformismo, essa luta pelos seus direitos, embora não revolucionários, foram muito importantes para nossa sociedade e para as sociedades onde o proletariado pôde atuar. Isso não é pouca coisa, embora não seja revolucionário. Eu me considero marxista hoje, mas como o título desse meu penúltimo livro diz, o marxismo ainda era utópico. Marx e Engels pensaram em se desfazer da utopia, mas não conseguiram isso. Eles continuaram sendo utópicos. E aqui eu quero citar três aspectos da utopia marxista. Em primeiro lugar, o produtivismo infinito. Marx tinha a convicção de que, em condições sociais favoráveis, em que as relações de produção sejam um incentivo ao aumento das forças produtivas, a sociedade atingiria uma produtividade de tal ordem que as coisas perderiam valor. Quer dizer, elas se tornariam extremamente abundantes. E as pessoas poderiam gozar quase de uma situação paradisíaca. Isso é falso. A história mostrou que a produção tem limites que Marx não conheceu. Marx não conheceu a ecologia. Tem limites ecológicos, os recursos naturais são limitados e o abuso deles provoca o efeito-estufa, a poluição e outros problemas graves para a própria sociedade humana. Então, não se pode pensar numa produtividade infinita. Há limites que precisam ser observados, e Marx não conheceu esses limites ecológicos. E daí essa idéia. A segunda questão é o desaparecimento do Estado. Eu considero que o Estado não vai desaparecer. A sociedade moderna é de tal maneira complexa, constituída de segmentos, não só de classes sociais, mas são os idosos, os homens, as mulheres, os profissionais de várias áreas, a diferença entre países. Quer dizer, tudo isso exige uma escala de prioridades. E quem é que vai tomar a iniciativa disso? É necessário um órgão superior que é o Estado. E que seja um Estado democrático, obviamente. Por isso eu falo em democracia. Eu considero que qualquer idéia de socialismo tem que ser democrática. Porque o socialismo autoritário e ditatorial deu no que deu na antiga União Soviética, na criminalidade de um tirano como Stalin. Então, é por isso que eu falo nessa questão. E a existência do Estado pode levar ao estabelecimento dessa escala de prioridades, em benefício de uns, às vezes deixando de beneficiar outros, mas de tal maneira que isso seja feito em prol do bem comum da sociedade, das várias etnias, dos vários países do mundo. Então, esse aspecto, o desaparecimento do Estado e o produtivismo são erros, são utopias dentro do corpus marxista, dentro da obra de Marx e de Engels. E depois, a confiança ilimitada no proletariado, que não se confirmou. Por isso é que eu digo que o proletariado é ontologicamente reformista. Isso é claro que, para um marxista, soa como uma heresia tremenda. Mas eu não tive receio dessa heresia, porque eu considero que é isso o que acontece. O que é o socialismo e como ele virá? Eu penso que o socialismo é um projeto. Não está inscrito na história que o socialismo é inevitável. Eu não considero as coisas assim. Isso seria uma questão de fé. Fé religiosa, transformar o marxismo em religião. Em vez da Bíblia, dos Evangelhos, O Capital. Não pode ser assim. Então, como é que pode vir esse projeto? Nós não temos certeza como ele virá. Mas é um projeto. Eu inseri também nesse livro, isso está feito, a teoria da incerteza e da indeterminação de Heisenberg. Quer dizer, dentro de um sistema, as coisas funcionam de maneira determinista. De outra maneira, o sistema se desagrega, não funciona, seja ele qual for: uma máquina, uma entidade humana e assim por diante. Tudo tem que funcionar, uma peça provocando o movimento da outra e assim por diante. Mas a passagem no plano social, no plano civilizacional, de um sistema para outro tem incertezas, tem indeterminações. Nós não podemos ter certeza de que agora, deste capitalismo, que é planetário hoje, nós passaremos para o socialismo. Esse é um projeto, mas não é uma certeza. Quer dizer, assim como na física, há a incerteza, conforme mostrou Heisenberg, assim também, muito mais, nas questões históricas e sociais.

Paulo Markun: Professor Gorender, o nosso tempo acabou e eu fico pensando que o Papa Pio XII abençoou um herege marxista [risos]. Eu quero agradecer muito a sua entrevista. Lamentar, porque esse é o mais longo espaço que a televisão dá para o debate de idéias, uma hora e meia, e ainda foi insuficiente. Agradeço a sua participação e a dos nossos entrevistadores.


Inclusão 03/10/2019