Memórias de um Aprendiz de Russos

Jacob Gorender

20 de Fevereiro de 2006


Fonte: Marxismo21. Entrevista concedida ao O Estado de São Paulo
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo..
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

Ele fazia formação política em Moscou. E Kruchev demolia Stalin em congresso
Laura Greenhalgh e Ivan Carvalho Finotti

Em 14 de fevereiro de 1956, portanto há 50 anos, a opinião pública internacional voltava os olhos para Moscou. Num salão do Kremlin, cerca de 1.600 pessoas, organizadas em delegações de dezenas de países, tomavam assento para a cerimônia de abertura do 20° Congresso do Partido Comunista da União Soviética, o PCUS. O clima era de expectativa. Joseph Stalin, o "grande condutor", morrera três anos antes, mas pairava no congresso o espectro de um dirigente tirânico, mais aferrado ao culto à personalidade do que ao aperfeiçoamento do comunismo. Pressentia-se, por indícios e evidências, que a História poderia dar uma guinada ali, naquele palácio soviético.

Os dez dias seguintes foram decisivos: em uma das sessões, Nikita Kruchev, secretário-geral do Comitê Central do PCUS, leu ao longo de seis horas um aguardado relatório que não só fez emergir as novas diretrizes do mundo comunista — como a coexistência pacífica, por exemplo — como também destampou o baú de atrocidades e crimes de Stalin, líder soviético até então cultuado como o grande herói da 2ª Guerra Mundial. Kruchev foi devastador e convincente. Diante das manifestações efusivas que provocava na platéia, chegou a dizer:

"Peço-vos para não aplaudir. Estamos aqui entre líderes comunistas. Comportai-vos como tal".

Há 30 quilômetros de Moscou, naqueles mesmos dias, um brasileiro seguia os acontecimentos e calculava seus efeitos.

"Nem Kruchev pressentiu a liquidação mundial do comunismo que teria início a partir do 20° Congresso",.

afirma o historiador marxista Jacob Gorender, hoje com 83 anos, filho de judeu ucraniano e baiano de nascença. Gorender testemunhou a História porque estudava em Moscou. Foi ele quem leu, traduzindo do russo para o português, o relatório de Kruchev para os ouvidos incrédulos do líder comunista brasileiro Giocondo Dias — presente como delegado ao encontro. De volta ao País em 1957, Gorender, codinome Gorema em Moscou, acabaria vivendo os efeitos sísmicos que a demolição stalinista teria sobre os comunistas brasileiros.

Nesta entrevista ao Aliás, este marxista crítico do marxismo retorna ao passado com impressionante memória. Ou com a clarividência de quem jamais parou de estudar.

"Hoje não tenho partido. Nem quero ter. Meu compromisso é com as pilhas de livros desta casa",

confessa, apontando a biblioteca. Um bom compromisso: autor de vários títulos, como A Escravidão Reabilitada e Marxismo sem Utopia (ambos da Ática), Gorender prepara-se para voltar a escrever. Anda muito interessado em confrontar o anti-semitismo de Hitler e Stalin.

O que o senhor fazia em Moscou no momento do 20° Congresso?

Eu estava lá porque era aluno da Escola Superior do Partido Comunista da União Soviética. Cheguei em meados de 1955 e fiquei até 1957. Éramos 50 brasileiros, a segunda turma que fazia formação política com os soviéticos. O curso abrangia matérias como Teoria do Estado, História da URSS, História do Movimento Comunista Internacional, etc. Aulas eram dadas em russo e havia tradutores para o espanhol. Apenas eu e mais dois ou três colegas tínhamos familiaridade com o espanhol, a maioria não entendia o que se falava. Como o curso durou dois anos, o pessoal foi se habituando.

Quem eram seus colegas de turma?

Minha mulher, Idealina Fernandes Gorender, que eu conheci lá na escola. Outro era Jover Telles, que depois teve uma participação deplorável naquele caso da Lapa, em 1976, quando a polícia invadiu a casa onde se reunia a direção do PCdoB. Outro colega de curso em Moscou era Geraldo Campos, que foi deputado constituinte em 1988. Não sei por onde anda... Enfim, éramos 50.

Como era seu dia-a-dia?

A escola funcionava em uma mansão com muitos compartimentos — certamente pertencera a algum membro da nobreza do passado. Era enorme. Deu para alojar os 50 brasileiros, homens num pavilhão e as mulheres, 10 ou 12 companheiras, em outro. Essa mansão ficava a 30 quilômetros de Moscou. Assim, só nos relacionávamos com funcionários da escola, com o pessoal que cuidava da cozinha, da limpeza, com a enfermeira que nos atendia, os motoristas. Às vezes a gente ia até Moscou assistir a concertos ou fazer alguma consulta médica. Nossa vida era assim: quatro horas de aula pela manhã e a tarde era dedicada ao estudo individual. À noite, exibiam filmes russos, não necessariamente políticos. Como a maioria de nós não entendia o que os atores falavam, então os tradutores acompanhavam a exibição. Aos sábados e domingos, íamos a museus em Moscou ou ficávamos lendo. No inverno, podíamos aprender a esquiar e, no verão, jogávamos futebol ou voleibol.

Vocês eram felizes?

A felicidade é um sentimento tão subjetivo... Todos que estavam ali, inclusive eu, imaginavam cumprir um dever. Estávamos nos preparando para fazer a revolução no Brasil. Esse era o objetivo, e nos dava uma sensação íntima de satisfação, sim.

Naquele momento, o senhor identificava fissuras no modelo soviético?

Era difícil. Primeiro, porque ao chegarmos lá ninguém falava russo. Fizemos algumas aulas, mas o aprendizado levou tempo. Entretanto, eu cheguei em junho e em dezembro já lia o russo do jornal Pravda. Não o russo literário de Tolstoi ou Dostoievski, que é mais complicado. Quando se deu o 20° Congresso, já estava familiarizado com o idioma. Falava com fluência e lia o jornal sem problema. Não tínhamos muita noção do que se passava. A gente vivia isolada na escola.

A orientação do curso era stalinista?

Stalinista. Havia quatro grandes retratos nas salas de aula: Marx, Engels, Lenin e Stalin. Também em outros locais públicos. Aliás, cheguei a ver o cadáver de Stalin no mausoléu da Praça Vermelha em 1955, dois anos depois da morte dele. Lá já repousava o corpo de Lenin. Este tinha um aspecto cadavérico, mas o de Stalin parecia um homem dormindo. Depois que revelaram os crimes dele, o cadáver foi retirado do mausoléu e enterrado no entorno, ao lado de outros dirigentes soviéticos.

Mas o senhor ia dizendo alguma coisa sobre a foto na sala de aula.

Um belo dia ela sumiu. Até o 20° Congresso, Stalin estava no nível de Marx, Engels e Lenin. Era considerado um clássico, apesar de sua obra ser extremamente medíocre. Depois do congresso, ele perdeu definitivamente esse status.

Para o comunismo, o 20° Congresso foi um divisor de águas?

Ah, sim. Fazia quatro anos que o PC da URSS não se reunia. O último congresso havia sido em 1952, com Stalin vivo. Em fevereiro de 1956, o PCB mandou delegados do Brasil para o encontro, entre eles Maurício Grabois, Mário Alves e Diógenes Arruda Câmara. Eu não era delegado, portanto, fiquei na escola. Sabíamos só o que o Pravda divulgava em seu noticiário burocrático. Mas, pelo jornal, tomamos conhecimento de que na abertura do congresso o primeiro-secretário do partido, Nikita Kruchev, fizera um relatório confidencial. E o Pravda dizia que, nesse relatório, Kruchev denunciava Stalin como criminoso. Foi uma bomba.

Deu no Pravda?

O jornal não reproduziu o relatório, mas tratou das denúncias contra Stalin. Acontece que vazou para o Ocidente. Dizem que foi obra de um delegado polonês, mas há quem acredite que o próprio Kruchev providenciou o vazamento. O fato é que foi traduzido para o inglês e publicado pelo The New York Times. No Brasil, o jornal que conseguiu fazer isso foi O Estado de S. Paulo. Por muitos anos guardei essa edição histórica.

Então o senhor tomou conhecimento do dossiê Kruchev na escola, certo?

Sim. Naqueles dias, circulou um libreto de 30, 40 páginas com o relatório confidencial. Como tomei conhecimento dele? Vi que a enfermeira da escola tinha um exemplar e pedi que me emprestasse, pois já lia russo. Foi um choque tremendo. Tínhamos Stalin no panteão dos clássicos como chefe político venerado e grande condutor. É preciso lembrar que a URSS pairava, naquele momento, como a grande vencedora da 2ª Guerra Mundial. E as vitórias eram atribuídas principalmente a Stalin. O marechal Zukov, o chefe militar russo mais importante da época, foi colocado em segundo plano porque Stalin não admitia concorrência. Terminada a guerra, ele mandou Zukov para uma região sem importância. Stalin morreu em 1953. Kruchev, quando chegou à liderança, mandou buscar Zukov e fez dele ministro da Defesa. Eu me lembro do 1° de maio de 1956, quando fui à Praça Vermelha ver o desfile e ouvir o discurso do Zukov já como ministro.

Como reagiu ao ler o relatório?

Fiquei chocado. Mostrava Stalin como o homem que liquidou toda a velha guarda comunista, que fez condenar à morte, por fuzilamento e à forca, centenas de milhares de pessoas, eliminando-as por suspeitas infundadas. Outras foram confinadas na Sibéria. Tudo isso estava fermentando na sociedade soviética e explica por que Kruchev tomou a iniciativa de revelar. Não era possível conter a pressão. A população, embora se orgulhasse de sua pátria — a grande vencedora da guerra ao custo de 20 milhões de mortos —, sentia falta de liberdade e justiça. Kruchev não podia mais deixar em segredo quem era Stalin. Diógenes, que era um monoglota completo, veio até a escola e pediu que eu traduzisse o relatório para ele. Pressentimos que as resoluções do congresso abririam uma crise entre os comunistas no Brasil. Foi o que ocorreu.

Hoje, como o senhor define Stalin?

Um criminoso. E o que ele escreveu pode-se colocar no lixo.

Ao destampar essa realidade, que efeito produziu Kruchev?

No curto prazo, provocou um abalo sísmico na própria URSS e nos países do Leste Europeu. Dou exemplos: na Polônia, o governo local foi destituído e ali nasceria, naquele momento, a semente do Solidariedade, o futuro partido de Lech Walesa. Na Hungria, o governo fiel a Moscou também caiu, sendo substituído por outra facção, liderada por Imre Nagy. Esse novo dirigente começou a fazer gestões no sentido de tirar a Hungria do bloco soviético e transferi-la para a Otan. Se a Hungria saísse, o bloco racharia ali, naquele momento. Por isso o Exército soviético entrou tão pesado naquele país, sufocando o movimento e fazendo milhares de mortos. Os chineses, por sua vez, criticaram a maneira como os soviéticos trataram do assunto Stalin. Acharam imprudente a leitura do relatório e uma precipitação carimbar como criminoso aquele que fora visto como herói.

E qual foi o efeito a longo prazo?

O informe de Kruchev deu início ao processo de liquidação completo, irreversível e mundial do comunismo.

Kruchev previu o alcance daquelas denúncias?

De modo algum. Ele queria fortalecer o movimento comunista. Não era mais possível esconder os crimes de Stalin. Gente que havia sido confinada na Sibéria estava voltando. Atrocidades não eram ignoradas pela população. A morte de milhares de pessoas não é algo que se possa relevar. Kruchev achava que, divulgando tudo isso, fortaleceria o movimento comunista internacional. Mas se enganou.

Como foi a reação dos partidos comunistas pelo mundo?

Quando saiu o informe, alguns partidos mais fortes tentaram se adaptar. O PC francês, de Maurice Thorez, era muito stalinista e não mudou nada. Mas o italiano, de dirigentes como Palmiro Togliatti, acabou se dividindo. Um bloco maior foi para a socialdemocracia, portanto deixou de ser comunista. E uma ala menor criou a Refundação, ou seja, comunistas juntaram-se em torno da idéia de refundar o velho partido. Não conseguiram.

E no Brasil?

A direção do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, era uma das mais stalinistas do mundo. Tinha o Arruda, o Pomar, o Grabois, o Amazonas. Não conheci sujeito mais sectário que o Amazonas. Então, quando o jornal O Estado publicou partes do relatório, a primeira reação dos comunistas do Brasil foi dizer que era um documento apócrifo, inventado. Aí a delegação voltou de Moscou confirmando que era tudo verdade. A direção brasileira era tão stalinista que até macaqueava os soviéticos. Na URSS, num dado momento, o núcleo executivo do bureau político passou a ser chamado de Praesidium. Pois aqui também passamos a ter um Praesidium. Era pura macaquice.

O que mudou a partir do 20° Congresso?

O impacto foi tão grande que provocou um inesperado debate público sobre diretrizes, em jornais do partido — o Imprensa Popular, que vendia bem no Rio de Janeiro, e um jornal mais teórico, chamado Novos Rumos. O jornalista João Batista de Lima e Silva, um sergipano muito culto, abriu o debate nas páginas dos Novos Rumos. Seguiram-se inúmeros artigos. Até Jorge Amado, que antes defendera o stalinismo, começou a falar em "mar de lama". Esse momento marca a guinada de Jorge Amado: ele se afasta do PCB para se aproximar da ABL, a Academia Brasileira de Letras. Mas, veja como a vida é, dizem que ele jamais ganhou o Nobel de Literatura por ter sido, lá atrás, condecorado com o Prêmio Stalin.

Que linha acabou prevalecendo?

Até então, tínhamos de seguir a linha política do Manifesto de Agosto, divulgado em 1950, pregando a luta armada. Mas como luta armada, se já estávamos vivendo o período JK? Juscelino não fez um só preso político em seu governo! Para que luta armada? Todo esse debate deu origem à Declaração de Março, em 1958, com uma nova orientação política chancelada pelo Prestes. Abolimos o Manifesto de Agosto e pregamos a inserção do partido na vida política nacional.

Em seu livro Marxismo sem Utopia, o senhor analisa pontos frágeis do marxismo.

Como ainda me considero marxista, fico à vontade para criticar. O marxismo refluiu, é inegável. O prestígio que teve até os anos 80 terminou. Nesses 50 anos de relatório Kruchev, pode-se dizer que acabou o movimento comunista internacional. Tanto é que, nos últimos tempos, não apareceu nenhuma grande obra teórica marxista. E o mundo sofreu modificações tremendas. Quando Marx e Engels viviam, não havia televisão, computador, comunicação via satélite, instantaneidade de imagens, globalização.

Mas por que as revelações de Kruchev não fortaleceram o comunismo?

Porque o movimento como um todo se tornou obsoleto. O comunismo foi impulsionado pela força da Revolução Russa de 1917. Tinha-se ali um grande país, com área equivalente a um sexto do globo terrestre, que se declarava comunista, com Lenin à frente. Quatro décadas mais tarde, o que se via? Partidos espalhados pelo mundo que obedeciam de maneira servil às determinações de Moscou. Não poderia ter dado certo. Os mais intelectualizados dirigentes soviéticos nada conheciam de América Latina. Mas seguiam aquela regra do marxismo: primeiro vem o feudalismo, depois o capitalismo e, finalmente, o socialismo. Esses soviéticos diziam que o Brasil era feudal. Não adiantava argumentar que não tivemos feudalismo, que o sistema colonial nos trouxe a escravidão, que é outra coisa. Muitos dos nossos acabavam aceitando teses assim. Esse servilismo foi dissociando os partidos da vida real e da História.

Há quem diga que existe uma certa nostalgia de Stalin hoje em dia...

Stalin nada tem a nos dizer.

Mas há um movimento na Rússia para que a cidade de Volgogrado volte a se chamar Stalingrado.

Pode até ser... Esse mundo em que vivemos permite saudade de todo tipo.

O senhor já disse que o problema de O Capital, de Karl Marx, é ser uma obra feita só de certezas. Uma obra sem direito a dúvidas...

Marx era um determinista utópico. Queria algo que a realidade não confirmou. Previu que, com o avanço das forças produtivas, a humanidade gozaria de fartura plena. A produtividade não teria limites. Não é verdade. Apesar dos avanços tecnológicos, há o limite ecológico para a produtividade. Não se pode crescer a ponto de deteriorar o ambiente em que o homem vive. Isso Marx não pensou. Outra previsão equivocada foi a do desaparecimento do Estado. Como não haveria mais classes sociais na evolução marxista, então o Estado seria desnecessário. Haveria uma espécie de autogoverno das comunidades. Impossível. As sociedades necessitam do Estado, até porque há prioridades a definir. Que meios de transportes usar? Qual a produção industrial? Serviços de saúde, educação, quem vai decidir sobre isso? Só pode ser o Estado, democrático e de direito.

Marx apostou todas as fichas da inevitabilidade do processo?

Sim, era um fatalista. Não levou em conta que a história humana é cheia de incertezas, de viradas, não pode ser totalmente previsível. O sistema só funciona de maneira previsível enquanto sistema. Quando as coisas começam a falhar, há desobediência, sublevações, corrupção, e o sistema não funciona. E tudo é tão imprevisível. Elementos da teoria da relatividade de Einstein, a psicanálise de Freud e a Teoria do Caos deveriam ter sido incorporados pelo pensamento marxista.

O senhor lutou por ilusões?

Em parte. Porque a luta que travei, com tantas outras pessoas que sofreram até mais do que eu, permitiu ao capitalismo se tornar mais flexível, mais democrático, menos opressivo. Obrigou-o a concessões. Fez com que ele deixasse de ser tão selvagem para se humanizar. Antes não havia legislação trabalhista, o operário ganhava uma miséria, não havia férias remuneradas e todos esses direitos conquistados ao longo do tempo. A nossa luta também contribuiu para que um número maior de pessoas estudasse. Cometemos erros, experimentamos sacrifícios, mas não foi em vão. O mundo de hoje é cheio de defeitos. Mas, sem os marxistas, seria pior.


Fonte
Inclusão 17/04/2015