O Outubro Vermelho de 1917

Edições Avante

1976


Primeira Edição: ABC do Marxismo-Leninismo Série A, N° 7, Editorial Avante!, Lisboa, 1976

Fonte: Partido Comunista Português — Organização Regional de Lisboa

Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.

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A Grande Revolução Socialista de Outubro na Rússia

O poeta Bertolt Brecht escreveu, em 1937:

«Ó grande Outubro da classe operária!
Erguem-se enfim os que viveram tanto tempo
Vergados ao jugo! Ó soldados, que haveis
Finalmente apontado as armas para o alvo certo!
Os que cultivaram a terra na Primavera
Não o faziam para si próprios. O Verão
Mais os vergou. A colheita ainda
Foi para os celeiros dos senhores. Mas o Outubro
Viu já o pão nas mãos certas!»

Um acontecimento histórico abalou o mundo. As massas populares revolucionárias do império russo derrubaram de um golpe, em Fevereiro de 1917, o domínio do tsar, e no Outubro Vermelho quebraram as cadeias da sociedade capitalista exploradora. Operários, soldados e camponeses, guiados pelos bolcheviques, tomaram o poder nas suas mãos. Os marxistas e socialistas de todos os países viram no triunfo da Revolução a aurora da humanidade. «Quando a humanidade libertada comemorar as datas da sua libertação — escreveu o famoso escritor francês Henri Barbusse —, há-de comemorar com o maior vigor, com o maior entusiasmo, o 25 de Outubro(1) de 1917, o dia em que nasceu o Estado dos Sovietes

Até os inimigos jurados do Outubro Vermelho reconhecem hoje no ano de 1917 o começo de uma nova época. Mas fazem-no deturpando e falsificando este grande acontecimento revolucionário, utilizando-o como espectro de terror. Fabricam um antagonismo fundamental entre as amplas massas populares e os bolcheviques. Apresentam a revolução de Fevereiro como o nascimento da democracia — e a Revolução de Outubro como a sua morte.

O que aconteceu durante e depois da Revolução do Outubro refuta os juízos falsos dos adversários do Outubro Vermelho.

Vejamos o que realmente aconteceu.

A Rússia em vésperas da Revolução

A guerra tinha trazido aos povos do império tsarista russo um sofrimento imenso. No começo de 1917, o país encontrava-se profundamente desorganizado. As dívidas ao estrangeiro cresciam velozmente. A rede de caminhos-de-ferro deixou de funcionar. A terra estava por cultivar e a fome aumentava e espalhava-se. As cidades foram paralisadas por uma onda de greves. A exploração feroz dos operários, a sorte duríssima dos camponeses, a completa ausência de direitos políticos para o povo, a opressão das minorias nacionais — tudo isto fez do império tsarista um campo de agitação revolucionária.

Já em fins de 1916 cresciam os primeiros sinais da tempestade revolucionária. A ofensiva russa do Verão de 1916, depois de alguns êxitos iniciais, parara nos Cárpatos. Fracassara a tentativa para romper uma brecha para a Hungria. Com ela desaparecera a última oportunidade de o tsar Nicolau II e o seu império concluírem a guerra vitoriosamente.

As dificuldades económicas e da política interna multiplicaram-se rapidamente. Só em Outubro de 1916 entraram em greve mais de 200 000 operários. Pelas cidades desfilaram manifestantes, com as palavras de ordem revolucionárias «Abaixo a guerra!» e «Abaixo a autocracia!» Os soldados desertavam da frente. Rebentaram insurreições das minorias oprimidas na Ásia Central, no Uzbequistão, no Kasaquistão, na Tusqueménia e na Quirguísia. A situação tornou-se catastrófica para o tsar e a sua corte. «A oposição entre as amplas massas tem hoje uma dimensão muito maior do que no tempo dos tumultos de 1905 e 1906», dizia um relatório da policia. O descontentamento com as condições vigentes crescia a olhos vistos. Aproximava-se a revolução.

Os grandes príncipes e a alta nobreza, temendo o colapso irremediável do tsarismo, mandaram assassinar o conselheiro do tsar e «milagreiro» Rasputine, a quem imputavam as culpas da tragédia que se abatera sobre a Rússia. Ao mesmo tempo, à volta do tsar tramava-se uma revolução palaciana e uma mudança no trono.

A burguesia liberal, indignada com o colapso calamitoso do abastecimento da indústria, do exército e da população com víveres, matérias-primas e combustíveis, preocupada com as derrotas militares, empenhava-se em conseguir reformas, na esperança de apagar a tempo o fogo revolucionário que rapidamente se ateava.

A greve de 9 (22) de Janeiro de 1917 foi o arauto da revolução, que eclodiu nos centros mais importantes do império. Às centenas de milhares, os manifestantes percorriam as ruas das cidades com bandeiras vermelhas e as palavras de ordem «Abaixo a autocracia!», «Viva a república democrática!». A polícia dispersou as massas. Mas já era tarde de mais para salvar o trono do tsar pelo terror.

O que queria o povo? Queria paz, pão e trabalho, os camponeses queriam a terra que trabalhavam. As nacionalidades oprimidas reclamavam liberdade. Todo o povo exigia direitos cívicos. A revolta das camadas populares contra a exploração desenfreada e a negação de todos os direitos começou em fins de Fevereiro — princípios de Março de 1917 na fábrica Putlov de Petrogrado. O movimento estendeu-se rapidamente a toda a cidade.

Revolução

O operariado de Petrogrado aderiu unanimemente à greve geral política, acendendo assim o rastilho da revolução, que se estendeu imediatamente a extensas áreas do império tsarista.

À frente desta revolução estava a classe operária. Temperado como aço em duras lutas de classes e dirigido pelos bolcheviques — a ala revolucionária da social-democracia russa —, o proletariado russo distinguiu-se na acção pela resistência e pela lucidez, pela coragem e pela bravura. Era o guia incontestado das massas revolucionárias.

«A revolução foi obra do proletariado; o proletariado lutou heroicamente, o proletariado derramou o seu sangue, arrastou consigo as mais amplas massas dos trabalhadores e da população pobre [...].» (V. I. Lenine, Oeuvres, t. 23, p. 338.)

As massas de camponeses pobres estavam ao lado do operariado revolucionário. E o proletariado recebeu também apoio de camadas descontentes da pequena burguesia.

O número de grevistas subiu velozmente. Fizeram greve:

a 18 de Fevereiro 30 000 trabalhadores
a 23 de Fevereiro 90 000 trabalhadores
a 24 de Fevereiro 200 000 trabalhadores
a 25 de Fevereiro 250 000 trabalhadores

O tsar e o seu governo mandaram intervir a polícia e o exército. Mas estes «pilares» do poder tsarista já estavam podres. A vida dos camponeses e operários fardados das forças do tsar já mal se distinguia da vida do povo. Quando a greve geral política em Petrogrado, em 26 de Fevereiro (11 de Março) de 1917, se transformou em insurreição armada, uma parte importante da guarnição de Petrogrado aderiu a ela. O regimento da Guarda Preobajenski, o regimento Litovski e o regimento Volynski recusaram-se a obedecer aos oficiais que mandavam abrir fogo sobre os revolucionários. Os soldados puseram em debandada os oficiais, saíram para as ruas e juntaram-se aos operários revoltados. O número de soldados revoltados crescia de dia para dia:

a 26 de Fevereiro 600
a 27 de Fevereiro 66 700
a 28 de Fevereiro 127 000
a 01 de Março 170 000

A aliança entre os operários e os camponeses fardados fez triunfar a revolução. Os edifícios mais importantes da capital tsarista foram ocupados pelos operários armados e pelos soldados revolucionários. A autocracia do tsar, o poder da alta nobreza, caiu sob o ímpeto do assalto revolucionário no dia 27 de Fevereiro (12 de Março) de 1917.

Esta vitoria rápida e radical da revolução foi possível, como escreveu Lénine, porque

«devido a uma situação histórica extremamente original, se fundiram, com uma "unanimidade" notável, correntes absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogéneos, aspirações políticas e sociais absolutamente opostas. A saber: a conjura dos imperialistas anglo-franceses, que impeliram Miliukov, Gutchkov (2) e Ca a apoderarem-se do poder para continuar a guerra imperialista [...]. E por outro lado, um profundo movimento proletário e das massas do povo (todos os sectores pobres da população da cidade e do campo), movimento de carácter revolucionário, pelo pão, a paz e a verdadeira liberdade» (V. I. Lénine, Obras Escogidas en tres tomos Moscú, t, 2, p. 27.)

A inquietação apoderou-se da burguesia. Temia que a Revolução, no seu ímpeto, passasse de uma insurreição contra o tsarismo a uma revolução popular contra a exploração e a falta de direitos. Por isso, a burguesia procurou febrilmente, nesses dias, uma saída política. Escolheu o Parlamento para pôr em prática os seus planos. Políticos burgueses formaram, de entre representantes dos partidos burgueses da direita e da oposição liberal («outubristas» e «kadetes»), um comité provisório para o «restabelecimento da ordem em Petrogrado». A burguesia pretendia, com tal órgão, conter o desenvolvimento revolucionário e guiá-lo para vias que não a pusessem em perigo.

Mas a Revolução seguiu o seu caminho. Os operários e soldados criaram, seguindo o exemplo de 1905, os seus próprios órgãos do poder, os conselhos — em russo, Sovietes. Ainda nos dias da insurreição armada constituiu-se na capital o Soviete de deputados operários e soldados. A princípio, foram os representantes dos partidos reformistas pequeno-burgueses, os mencheviques e os socialistas-revolucionários, que nele exerceram a influência decisiva. Dispunham da maioria dos mandatos. Lénine, ao mesmo tempo, ainda estava emigrado na Suíça, e outros dirigentes bolcheviques continuavam deportados na Sibéria. Os mencheviques e socialistas-revolucionários queriam manter a revolução dentro de limites burgueses.

A burguesia não perdeu a sua oportunidade. Os seus representantes reuniram-se secretamente com deputados pequeno-burgueses dos Sovietes, em Março de 1917, e combinaram a abdicação do tsar como «Senhor de todas as Rússias», bem como a formação de um governo provisório presidido pelo príncipe Lvov, de reputação liberal, que era um grande latifundiário.

Os problemas reais do país e da Revolução — o fim da guerra devastadora, a revitalização da economia, a melhoria do abastecimento de víveres, a questão da terra dos camponeses, os direitos políticos das minorias nacionais oprimidas — não foram considerados, quanto mais resolvidos. Com o derrubamento do tsarismo, a Revolução alcançara decerto uma primeira vitória, mas a verdade é que não se encontrara ainda uma solução para nada.

A Dualidade de Poderes

Quem detinha o poder? A Revolução dos operários e camponeses tinha levado ao poder a burguesia rica. Mas, ao mesmo tempo, tinha produzido os Sovietes — os conselhos de operários e soldados. Lénine escreveu:

«Uma particularidade extremamente notável da nossa Revolução consiste em que deu origem a uma dualidade de poderes. [...] Em que consiste a dualidade de poderes? Em que ao lado do Governo Provisório, ao lado do governo da burguesia, se formou outro governo, ainda débil, embrionário, mas que existe sem dúvida alguma e se desenvolve: os Sovietes de deputados operários e soldados.» (V. I. Lénine, Obras Escogidas en tres tomos, Moscu, t. 2, p. 40.)

Assim se criou temporariamente, no império russo, um equilíbrio precário entre estes dois pólos do poder. Para realizar a sua política, o governo burguês precisava do apoio, ou pelo menos da tolerância, dos Sovietes. Os Sovietes poderiam ter aproveitado esta fraqueza do Governo Provisório para o avanço da Revolução. Mas não o fizeram. À frente dos Sovietes continuavam os mencheviques e os socialistas-revolucionários, os quais cada vez mais iam deixando passar para o Governo da grande burguesia o poder conquistado pelos operários e soldados — em vez de tirarem partido da situação em proveito do povo. O Governo da grande burguesia ainda tinha de fazer algumas concessões ao povo, de garantir algumas liberdades políticas, dado o impulso revolucionário das massas populares e a situação incerta do país. Mas continuou com a guerra. Prosseguiu, assim, a morte absurda dos soldados. Os camponeses não receberam terra. A escassez de alimentos e a fome continuaram. O Governo Provisório burguês era incapaz de resolver os problemas vitais.

A revolução ganhou assim novas raízes. Operários entravam em greve, camponeses agitavam-se, soldados recusavam-se a obedecer e voltavam para casa. Os bolcheviques encontravam cada vez maior apoio, e puderam alargar a sua influência entre os operários e os soldados. À frente dos bolcheviques estava Lénine, que em Abril de 1917 regressou da Suíça para a Rússia e deu a palavra de ordem «Todo o poder aos Sovietes!».

Nas teses que proclamou no seu regresso, conhecidas por Teses de Abril, Lénine atacou as concessões aos «defensores da pátria» e ao Governo Provisório. Em vez disso, Lénine reclamava a transição da revolução democrática burguesa para a revolução socialista, uma paz democrática, a expropriação do latifúndio, a nacionalização de toda a terra e a sua distribuição pelos camponeses e o controlo da produção e da repartição pelos Sovietes.

A palavra de ordem «Todo o poder aos Sovietes!» levou a um novo ascenso do movimento revolucionário, que agora se estendia a quase toda a Rússia. Em Maio de 1917 já se verificavam, em 236 dos 481 distritos da Rússia europeia, insurreições e agitação entre os camponeses. Este desenvolvimento do processo revolucionário inquietava os mencheviques e os socialistas-revolucionários. Como os seus dirigentes temiam o crescimento da vaga revolucionária, e, com ele, a influência cada vez maior dos bolcheviques, cada vez se encostavam mais às forças da grande burguesia reaccionária no Governo Provisório. Este não tinha, portanto, quaisquer dificuldades com os Sovietes, dominados pelos mencheviques e socialistas-revolucionários. Cada vez lhes deixavam menos espaço de acção. A orientação do Governo oscilava, assim, entre reformas completamente insuficientes e a repressão brutal do povo. Como se disse, a guerra continuava, e o Governo assegurava, numa nota do ministro dos Negócios Estrangeiros, Miliukov, a sua absoluta fidelidade aos acordos com as potenciais ocidentais aliadas e a continuação da sua participação activa na guerra — até à vitória final.

A nota despertou no povo uma viva revolta. Petrogrado deu de novo o sinal para a resistência aberta. Centenas de milhares de operários fizeram gigantescas manifestações, gritando as palavras de ordem «Abaixo a guerra!» e «Todo o poder aos Sovietes!». Perante a revolta do povo, a grande burguesia só conseguiu salvar o seu poder com uma manobra hábil. Demitiu Miliukov e chamou para o Governo sociais-democratas de direita — mencheviques; a entrada destes ministros «socialistas» para o Governo Provisório burguês em nada alterou a situação: a velha política condenada ao fracasso, e odiada pelo povo, foi mantida.

O Fim da Dualidade de Poderes

De dia para dia aumentavam as despesas de guerra, que consumia diariamente 40 milhões de rublos. O valor do dinheiro descia rapidamente, e as mercadorias ficavam cada vez mais caras. A fome aumentava. O número de desempregados subia vertiginosamente. Multiplicavam-se as greves por melhores salários e menos horas de trabalho. As fábricas fechavam as suas portas. Os transportes encontravam-se num caos. Faltavam matérias-primas à indústria. Os camponeses tentavam resolver os seus problemas queimando herdades e trabalhando por conta própria terras dos latifundiários. Os soldados fugiam do exército em grandes grupos.

A grande burguesia dominante e o seu Governo Provisório procuravam uma saída em êxitos alcançados na frente de batalha. O Governo ordenou, assim, uma ofensiva militar. A princípio, os soldados russos, mal equipados e cansados da guerra, ainda conseguiram alguns êxitos na Galícia, mas logo a seguir o seu ataque cedeu, afogado em sangue, face ao contra-ataque das tropas alemãs.

A notícia da derrota desta aventura correu de boca em boca, ateando de novo a revolta do povo. Foi de novo em Petrogrado que a cólera do povo primeiro se descarregou. Soldados e marinheiros revolucionários manifestaram-se, de armas na mão, pelas ruas da cidade, no princípio de Julho de 1917, exigindo que a Rússia saísse da guerra e que o poder passasse para os Sovietes.

Desta vez o Governo tinha-se preparado à sua maneira. A Revolução tinha de ser afogada em sangue. Os bolcheviques aperceberam-se das intenções dos círculos dominantes. Desenvolveram um enorme esforço para proteger a poderosa manifestação dos operários e dos soldados de um inútil derramamento de sangue, e colocaram-se à frente das massas para assegurar uma manifestação pacífica — pois a situação não estava ainda madura para uma insurreição armada.

À volta do meio-dia de 4 (7) de Julho de 1917 tiveram lugar as imponentes manifestações. Fizeram greve os operários de todas as fábricas. Desfilaram pelas ruas 500 000 pessoas, exigindo paz, liberdade, pão e o poder aos Sovietes.

Mas o Governo fez-se surdo. A fome e a miséria do povo não o afligiam. Por fim, tropas fiéis ao Governo dispararam sobre o povo desarmado. Ficaram no chão centenas de mortos e feridos, entre os quais mulheres e crianças.

A burguesia russa e o executor da sua vontade, Kerenski, organizaram, depois deste massacre sangrento, uma onda de perseguições contra as forças revolucionárias. Muitos revolucionários foram detidos e encarcerados. O Governo nem sequer hesitava em mandar assassinar adversários políticos. O Partido Bolchevique viu-se forçado à clandestinidade. O seu jornal, a Pravda, foi proibido. A reacção pretendia provocar, nesta situação cheia de perigos, as forças revolucionárias para acções inconsequentes, a fim de as poder esmagar. Mas os seus planos fracassaram: os bolcheviques avisaram o povo dos intuitos da grande burguesia, e foram escutados.

Lénine teve então de fugir para Rasliv, na fronteira fino-russa, onde permaneceu disfarçado de trabalhador rural, furtando-se assim aos polícias e espiões do Governo. Daí dirigia a actividade do Partido Bolchevique por meio de cartas e correios. Foi aqui que concluiu o seu famoso trabalho O Estado e a Revolução.

As forças reaccionárias do grande capital e da aristocracia triunfavam. Os mencheviques e os socialistas-revolucionários tinham-se passado completamente para o campo da reacção. O Comité Executivo Central dos Sovietes — ainda dominado por aqueles partidos «socialistas» — transferiu todo o poder para o Governo Provisório do grande capital no dia 9 (22) de Julho de 1917. Kerenski presidia ao Governo. Acabava a dualidade de poderes. Sobre a situação nesse momento escreveu Lénine:

«Desapareceram definitivamente todas as esperanças de um desenvolvimento pacífico da revolução russa. A situação objectiva é agora esta: ou a vitória completa da ditadura militar, ou a vitória da insurreição armada dos operários». (V. I. Lénine, Oeuvres, t. 25, p. 190.)

O VI Congresso dos bolcheviques, realizado em Agosto de 1917, inscreveu na sua bandeira este objectivo: a Revolução Socialista. A palavra de ordem «Todo o poder aos Sovietes!» foi provisoriamente abandonada, dado que os Sovietes, dominados por mencheviques e socialistas-revolucionários, se tinham tornado um instrumento do Governo contra-revolucionário.

Também por meio de manobras parlamentares Kerenski procurava quebrar o ímpeto da Revolução. No fim de Agosto de 1917 convocou uma Assembleia Constituinte no Teatro Bolchoi, de Moscovo, para a qual foram convidados representantes de todos os grupos políticos à direita dos bolcheviques.

Mas as forcas mais reaccionárias da burguesia e da nobreza não confiavam na capacidade de Kerenski para pôr fim à Revolução. A única medida para elas viável era desencadear o terror, a contra-revolução sem disfarces. É assim que surge a conspiração do general Kornílov, comandante-chefe das forças russas. No princípio de Setembro abandonara Riga quase sem luta, abrindo o caminho ao avanço das tropas alemãs sobre Petrogrado, na esperança de que estas esmagassem as forças revolucionárias. Agora — nos dias de 7 a 12 de Setembro — procurava alcançar o poder com um golpe de Estado, para acabar com a Revolução num banho de sangue.

Mas os cálculos saíram errados. Os bolcheviques, armando os operários de Petrogrado, formaram apressadamente numerosos novos destacamentos da Guarda Vermelha, os quais se opuseram corajosamente aos golpistas contra-revolucionários. Estas medidas militares foram apoiadas pelo esclarecimento muito concreto de soldados enganados pelo «carrasco da revolução» (Kornílov). Em consequência deste esclarecimento, muitos soldados recusaram-se a obedecer ao general e juntaram-se aos revolucionários. Quando, por fim, todo o sistema de transportes das tropas de Kornílov ruiu — pois ferroviários com forte consciência de classe bloquearam os comboios das unidades contra-revolucionárias em contra-carris e destruíram linhas e sinais —, o golpe ficou condenado ao fracasso. O general Krymov, que avançava sobre Petrogrado a comandar uma «divisão selvagem», composta por montanheses do Cáucaso, suicidou-se. Quanto a Kornílov, foi feito prisioneiro.

Outubro Vermelho

A resistência oposta a Kornílov pelos operários de Petrogrado e pela solidariedade dos operários de toda a Rússia deu um novo ímpeto à Revolução e reforçou a confiança das camadas pobres da população nos bolcheviques. O Soviete de Petrogrado coloca-se agora do lado dos bolcheviques, e, pouco depois, também o de Moscovo e muitos outros Sovietes lhe seguem o exemplo. Os Sovietes voltavam, assim, a ser órgãos genuínos das massas populares revolucionárias. Como John Reed (autor do livro Dez Dias que Abalaram o Mundo) relatou, muitos dos Sovietes locais eram já bolcheviques, e a par deles existiam as organizações dos operários industriais, os comités de fábrica e as organizações revolucionárias do exército e da marinha. Em algumas localidades, as massas populares, impedidas de eleger regularmente os delegados ao Soviete, realizaram assembleias e concentrações nas quais elegeram, do seu seio, aqueles que haviam de ir a Petrogrado. Noutras localidades, destituíram os velhos comités obstrucionistas e formaram novos comités. A crosta que se formara à superfície do vulcão revolucionário desde há meses latente começava a mover-se e a estalar. Aproximava-se o momento de reunir de novo as massas populares em torno da palavra de ordem «Todo o poder aos Sovietes!».

Depois do fracasso do golpe de Kornílov, Kerenski procurou deter a Revolução com uma espécie de pré-parlamento que se reuniu em Petrogrado em fins de Setembro e princípios de Outubro. Mas a tentativa gorou-se — os bolcheviques, que já tinham alcançado a influência de massas decisiva, boicotaram-na.

Uma vez que o Governo não estava disposto a satisfazer as reivindicações populares e — pelo contrário — preparava medidas militares e terroristas contra as forças revolucionárias, contra os Sovietes, a hora da luta armada avizinhava-se. Nas suas famosas cartas ao Comité Central do Partido, Os Bolcheviques têm de tomar o poder e O Marxismo e a Insurreição, Lénine demonstrou ser necessário concentrar todas as forças na preparação da insurreição armada para derrubar o domínio da burguesia. Não havia outro caminho. Só assim se podia salvar o país da guerra e da miséria e levar a Revolução até ao fim.

No dia 7 (20) de Outubro Lénine deixou em segredo a Finlândia e regressou a Petrogrado. Assumiu imediatamente a direcção dos preparativos para a insurreição armada. Presidido por Lénine, o Comité Central do Partido Bolchevique tomou, no dia 10 (23) de Outubro de 1917, a decisão histórica da insurreição, seis dias depois aprovada por uma reunião alargada do Comité Central. Todas as organizações regionais importantes do Partido a aprovaram também — e os comités de Moscovo e de Petrogrado à frente de todos os outros. Desenvolveram-se, com toda a energia, os preparativos políticos e organizativos. O Comité Central criou para o efeito um Bureau Político, presidido por Lénine, no dia 10 (23) de Outubro. Um Comité Militar Revolucionário, formado no Soviete de Petrogrado, chamou a si imediatamente os preparativos militares.

Iniciou-se uma actividade ininterrupta. Petrogrado formou muitos mais guardas vermelhos, deu armas aos operários revolucionários e preparou-se para o golpe decisivo. O espírito revolucionário apoderou-se também dos soldados dos regimentos aquartelados em Petrogrado e dos marinheiros de Kronstadt, Petrogrado, Víborg e Helsingfors. Toda a esquadra do Báltico se dispôs à luta pela Revolução. Agitadores dos bolcheviques persuadiam grupos de soldados ainda hesitantes. O Comité Militar Revolucionário destacou comissários de confiança para as várias unidades e cuidou da rigorosa execução de todas as ordens e instruções. John Reed, no seu livro Dez Dias que Abalaram o Mundo, descreve-nos a tensão extrema em que a cidade vivia; qualquer barulho mais forte a sobressaltava; um carro blindado andava lentamente de um lado para outro, sempre a apitar; em todas as esquinas, em todas as praças e largos, adensavam-se massas humanas compactas e soldados e estudantes que discutiam; a escuridão caia rapidamente, acendiam-se os candeeiros das ruas, com largos intervalos, e as massas humanas continuavam a encher as ruas, como vagas imensas; era sempre assim em Petrogrado, quando alguma coisa andava no ar.

Toda a actividade intensa culminava em Smolny, outrora um internato superior de Petrogrado para raparigas nobres. Era aqui o quartel-general revolucionário. A todo o momento entravam e saíam correios e comissários; em frente da porta uma dúzia de voluntários aguardava, pronta a levar as ordens do Comité a toda a pressa para os bairros mais afastados; um deles, com o uniforme de tenente, disse a John Reed: «Está tudo a postos. Basta carregar num botão e pomo-nos em marcha.»

O Governo Provisório, face a esta situação, mandou vir da frente tropas que lhe eram fiéis e transferiu-as para Petrogrado. Formou destacamentos de choque com oficiais, nos quais introduziu também cadetes da escola de oficiais. Desencadearam uma batida assassina contra Lénine e os bolcheviques. Kerenski e os seus auxiliares não contavam apenas com o apoio da burguesia e dos dirigentes mencheviques e socialistas-revolucionários; contavam também com o apoio dos representantes diplomáticos das potências ocidentais.

Nestes dias de grande tensão alguns membros do Comité Central dos bolcheviques começaram a hesitar. Tratava-se de Kámenev e Zinóviev, os quais se desligaram publicamente da decisão da insurreição no jornal Nóvaia Jinz, dos mencheviques de esquerda, ao passo que Trotski, que em 1917 se juntara aos bolcheviques, propunha o adiamento da insurreição até à realização do II Congresso dos Sovietes da Rússia, convocado pelos bolcheviques numa dura luta com a maioria menchevique e socialista-revolucionário do velho Comité Executivo Central. Mas Lénine dizia:

«Temos de entrar em acção a 25 de Outubro (7 de Novembro), dia em que o Congresso se reúne, para lhe podermos dizer: está aqui o poder. Que pensais fazer com ele?»

O Triunfo da Revolução

Kerenski e os que o secundavam e apoiavam procuraram tirar partido da oportunidade que a traição de Kámenev e Zinóviev lhes oferecia. Na madrugada de 24 de Outubro (6 de Novembro), destacamentos de oficiais ocuparam as oficinas da Pravda e destruíram as instalações. Guardas vermelhos e soldados revolucionários repeliram-nos violentamente.

Começava a insurreição armada. Nas horas que se seguiram, guardas vermelhos e soldados e marinheiros revolucionários ocuparam os pontos mais importantes da cidade: pontes e estacões dos caminhos-de-ferro, o banco, os correios, o telégrafo e a central telefónica, ministérios e outros edifícios públicos. A fortaleza de Pedro e Paulo, que durante dois séculos fora o símbolo da repressão, juntou-se aos bolcheviques, enquanto os cossacos e partes de outros regimentos se mantinham neutrais. Mas a esmagadora maioria dos soldados e marinheiros — tal como os operários — estava com os bolcheviques, e abria caminho, de armas na mão, para um futuro melhor dos povos da Rússia.

Apesar da cólera da população trabalhadora de Petrogrado provocada pelas condições de vida catastróficas (a ração diária de pão era de 20 g, quase não havia gordura, nem carne, nem açúcar, o desemprego aumentava assustadoramente) e pelos sacrifícios absurdos da guerra, a tomada da capital pelos revolucionários processou-se sem muitas vítimas. As unidades de cadetes e oficiais nada podiam contra o ataque poderoso das massas revolucionárias, pelo que se limitaram a defender o Palácio de Inverno — antiga residência do tsar e refúgio do Governo Provisório.

Não havia quaisquer perspectivas para a reacção em Petrogrado. Assim o reconheceu Kerenski, que fugiu disfarçado de mulher, sob a protecção da bandeira dos EUA, num automóvel que seguiu para Pskov, onde se encontravam tropas contra-revolucionárias. Com estas tropas tentou o ataque a Petrogrado. Avançaram penosamente até Tsarkoie Selo, nos arredores de Petrogrado. Mas aí o ataque foi contido, e os guardas vermelhos aniquilaram o adversário.

O ataque das tropas revolucionárias concentrava-se agora na tomada do Palácio de Inverno. Depois de um tiro disparado do cruzador Aurora — o sinal combinado —, iniciou-se o assalto ao palácio. Um dos que dirigiram o assalto, N. I. Podvoiski, relatou mais tarde:

«Foi um momento heróico da Revolução, magnífico e inesquecível. No escuro da noite, no meio de um fumo pálido e nevoento, iluminados apenas pela luz dos candeeiros e pelos relâmpagos de fogo dos disparos, vinham de todas as ruas vizinhas, e de trás das esquinas mais próximas, guardas vermelhos, soldados e marinheiros em torrentes, quais sombras medonhas e fatais. [...] Pairava no ar, sobrepondo-se ao crepitar seco e ininterrupto do fogo das metralhadoras, um "Hurra!" triunfante e contínuo, um "Hurra!" poderoso, arrebatador, que soldava numa massa coesa toda aquela multidão tão diversa. Num momento, as barricadas, os seus defensores e os atacantes fundiram-se numa massa escura e compacta que parecia o turbilhão de fogo de um vulcão, e no momento seguinte o grito da vitória ressoava já do outro lado das barricadas. A torrente humana galgava a escadaria exterior do palácio e invadia as entradas e as escadas interiores.» (G. N. Golikov, História da Grande Revolução Socialista de Outubro, versão alemã, Berlim, 1962, pp. 321-322.)

Lutou-se duramente. Mas em breve os defensores depuseram as armas e içaram bandeiras brancas. Os ministros do Governo Provisório que não tinham fugido foram aprisionados. Petrogrado, a capital da Rússia, estava nas mãos das forças revolucionárias. A Revolução Socialista acabava de triunfar. Às 10 horas da manhã de 25 de Outubro (7 de Novembro) de 1917, o Comité Militar Revolucionário anunciava:

«O Governo Provisório foi deposto. O poder do Estado passou para as mãos do órgão do Soviete de deputados operários e soldados de Petrogrado, o Comité Militar Revolucionário, o qual está à frente do proletariado e da guarnição de Petrogrado. Está assegurada a causa pela qual o povo lutou: a proposta imediata de uma paz democrática, a supressão da propriedade da terra pelos grandes agrários, o controlo operário da produção, a formação de um governo soviético. Viva a revolução dos operários, soldados e camponeses!» (V. I. Lénine, Oeuvres, t. 26, p. 242.)

Nos dias seguintes, os trabalhadores de Moscovo fizeram o que os operários e soldados de Petrogrado haviam feito. Só ao cabo de longas batalhas sangrentas conseguiram conquistar o poder, que custou algumas centenas de mortos. Depois, a Revolução estendeu-se a toda a Rússia imensa. A Revolução Socialista triunfou em poucos meses — até ao fim de Fevereiro de 1918 — tanto nas costas do Árctico como nos desertos e montanhas da Ásia Central e da Transcaucásia, na Bielorússia e na Ucrânia, nas margens do Ob e do Ienissei, do lago Baikal e do Amur. For toda a parte surgiu o Poder dos Sovietes. Insurreições locais dos adversários, como o levantamento dos cossacos do Don sob o comando do atamane Kaledine, não resistiram muito tempo aos golpes vigorosos das unidades revolucionárias.

Ainda sobre a hora da insurreição, quando ainda se combatia no Palácio de Inverno em Petrogrado, reunia-se o II Congresso dos Sovietes de toda a Rússia. Foi com orgulho que os bolcheviques entregaram o poder a este Congresso do povo. Numa proclamação, leu-se:

«Apoiado na vontade da imensa maioria dos operários, soldados e camponeses, apoiado na insurreição vitoriosa dos operários e da guarnição de Petrogrado, o Congresso toma o poder nas suas mãos.» (V. I. Lenine, Oeuvres, t. 26, p. 253.)

Assumido o poder, o Congresso dos Sovietes dirigiu-se a todos os povos e nações em guerra com o famoso Decreto sobre a Paz, baseado numa proposta elaborada por Lénine, e propôs-lhes o fim imediato da guerra e uma paz justa. A primeira palavra do poder soviético foi de paz. Realizava assim o desejo de milhões de soldados russos e de muitos homens simples do mundo inteiro.

Igualmente importante para o destino posterior da Revolução Socialista foi o segundo destes famosos decretos de Lénine, o Decreto sobre a Terra. Nele se dispunha a expropriação sem indemnização de todos os latifúndios e a sua entrega aos camponeses para exploração sem pagamento de rendas. Tornava-se realidade um sonho secular dos camponeses russos — possuírem terra própria. O objectivo por que tinham lutado em tantas insurreições camponesas era alcançado. Os camponeses russos estavam, a partir daqui, firmemente ao lado dos bolcheviques, e defenderam na Revolução, contra todos os ataques dos guardas brancos e dos intervencionistas estrangeiros, a sua propriedade, a sua terra, o seu futuro.

A transformação profunda das relações de poder na Rússia, o derrubamento do domínio do capital e do latifúndio, a edificação do poder da classe operária em aliança com o campesinato, teve o seu ponto culminante na formação do primeiro governo soviético, o Conselho dos Comissários do Povo, presidido por Lénine. Abria-se um novo capítulo na história da Rússia.

O proletariado russo, em aliança com os camponeses pobres e guiado pelos bolcheviques, tomava nas suas próprias mãos os destinos desse país gigantesco. Os operários tornaram-se senhores de todas as fábricas e oficinas, os camponeses obtiveram a terra. Os riquíssimos tesouros naturais pertenciam, a partir daí, ao povo. Iniciava-se a era do socialismo. Começava uma nova época para a humanidade.

(... )


Notas de rodapé:

(1) 7 de Novembro, pelo calendário actual. O antigo calendário russo estava atrasado treze dias em relação ao actual. (retornar ao texto)

(2) Chefes da grande burguesia russa (retornar ao texto)

Inclusão 21/07/2018