História da Filosofia

Escrito por Historiadores do Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da URSS


Capítulo IX - História da Filosofia na Rússia


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A história da filosofia russa e dos povos que formavam parte Rússia antes da revolução representa, como em todos os demais países do mundo, a história da luta entre o materialismo e o idealismo. Como no ocidente, os termos filosóficos materialistas e idealistas, também Rússia, trocaram de conteúdo e caráter em consonância com as etapas históricas da luta e com o nível do desenvolvimento das ciências naturais e sociais. A luta filosófica na Rússia, refletia, como nos demais países, a luta de classes e foi a expressão da luta política que teve lugar no país.

A linha materialista de desenvolvimento da filosofia russa chocava-se, contudo, com dificuldades de ordem particular. O regime feudal-autocrático, primeiro (até as chamadas reformas dos meados do século XIX), e depois o regime feudal-autocrático burguês, estava estreitamente vinculado com a igreja ortodoxa imperante. A autocracia, tanto em sua luta contra a população oprimida não russa, como na luta contra as tendências revolucionárias e radicais, apoiava-se na igreja, seu instrumento político espiritual. Qualquer manifestação filosófica abertamente materialista ou ateia era suprimida pela censura clerical e secular e não chegava à luz da publicidade. A autocracia expulsava também da escola secundária e superior toda a manifestação do pensamento materialista. A autocracia via na filosofia materialista a decomposição da religião e dos alicerces sociais do regime burguês.

Devido a isto a filosofia materialista, na Rússia, não teve possibilidades de manifestar-se abertamente. Em consequência, os pensadores russos de tendência revolucionária radical viam-se forçados a expressar suas opiniões filosóficas em terrenos ideológicos limítrofes, politicamente menos perigosos: na ciência histórica e particularmente na literatura e na crítica literária. Grande parte dos destacados

filósofos russos eram ao mesmo tempo críticos literários (Belinski, Tchernichevski, Dobroliubov, Pisarev). Por isso, ao estudar a história da filosofia russa deve ter-se em conta, não só as obras nitidamente filosóficas, mas também as obras político-sociais, históricas e os trabalhos de crítica literária.

O traço característico da filosofia russa, traço que corre ao longo de toda sua história, é um vínculo estreito com o pensamento e a luta social política. Os homens de vanguarda russos sempre se preocupavam com o problema da relação entre a consciência social e o ser social, com as formas e os meios de transformar o regime social. Durante toda a história da filosofia russa pode achar-se o problema do porvir do país, do futuro do povo russo, da ordem político-social na Rússia, como um dos seus problemas fundamentais.

Os pensadores russos de vanguarda, assimilando criticamente as tendências mais progressistas e revolucionárias da filosofia da Europa Ocidental, emitiam sempre seus conceitos filosóficos adaptando-os a seu país e seu modo de desenvolvimento. Por isso, seus conceitos estão incluídos na história geral do movimento de libertação na Rússia. Assim procedeu, no século XVIII, A. N. Radichtchev; no princípio do século XIX, os dekabristas; após estes, os grandes democratas russos das décadas de 40 a 60; assim procederam também, nos fins do século XIX os primeiros marxistas russos com Lenin à frente. A filosofia avançada, predominantemente materialista, formou-se na Rússia no processo da luta contra a autocracia e a servidão e desenvolveu-se ulteriormente na luta contra o regime feudal-burguês. Por isso, os períodos de desenvolvimento da filosofia russa coincidem, no fundamental, com os do desenvolvimento de libertação na Rússia. Lenin enumera três períodos principais:

  1. Quando o papel dirigente na luta revolucionária era desempenhado pelos revolucionários da nobreza (Radichtchev e os dekabristas);
  2. Quando apareceram os democratas revolucionários populares (Belinski, Tchernichevski, Dobroliubov), e
  3. quando a hegemonia do movimento revolucionário passa ao proletariado e se forma o marxismo na Rússia.

A Filosofia Russa do Século XVIII e os Dekabristas

Os primeiros focos de ensino e de estudo da filosofia na Rússia foram o Colégio de Kiev-Moguilian, organizado em 1631 em Kiev e a Academia Eslavo-Grego-Latina, fundada pouco depois em Moscou. Essas escolas eram, antes de tudo, teológicas; especialmente o Colégio de Kiev foi criado como contrapeso às escolas católicas dos jesuítas nas cidades do oeste da Rússia. Ensinava-se filosofia nessas escolas como uma disciplina secundária, necessária aos representantes do clero ortodoxo. A Academia de Moscou era uma típica escola escolástica do tipo bizantino e às vezes europeu-ocidental (dependendo dos professores).

Em 1755 fundou-se a Universidade de Moscou, fazendo parte de uma faculdade de filosofia, na qual imperou durante muito tempo filosofia metafísica idealista de Wolff (discípulo de Leibnitz que lhe vulgarizou a doutrina), que se ensinava no século XVIII nas universidades alemães. O curso de filosofia dividia-se em filosofia teórica, que compreendia a chamada teologia racional, psicologia, cosmologia e filosofia prática, a ética. Um dos primeiros professores de filosofia na Universidade de Moscou, A. A. Barsov, definiu desta maneira a missão da filosofia: a filosofia "examina a substância divina inexperimentada, estuda as forças e as propriedades de nossas almas e determina assim nossa função como julgadores de nosso criador, dos homens que juntamente conosco povoam a terra, superiores, inferiores, iguais, próprios, estranhos, consanguíneos, conhecidos, amigos, inimigos".

Contudo, mesmo esta filosofia idealista que tentava cimentar racionalmente a existência de Deus, era objeto da perseguição das autoridades eclesiásticas. Assim, por exemplo, o professor Dimitri Anichkov mereceu a ira do clero ortodoxo por publicar "Raciocínio Sobre a Teoria Naturalista". Esses raciocínios, de conteúdo deísta moderado, e considerados pelo clero verdadeira sublevação "contra todo o cristianismo", refutação de "as sagradas escrituras, bem como da revelação divina e do milagre, do paraíso, do inferno e dos diabos", e chegou a ver neles um ateísmo do "discípulo ateu epicurista de Lucrécio e do infame Petrônio". Nessas condições iniciou a filosofia seus prime passos na Rússia.

M. V. Lomonosov

Sobre este fundo da filosofia professoral oficial aparece a figura clara e luminosa de Miguel Vasilevich Lomonosov (1711-1765). Este grande filho do povo russo seu sábio de formação mais enciclopédica e filósofo proeminente. Aos 20 anos de idade começou a estudar na Academia Eslavo-Grego-Latina de Moscou. Descontente com os métodos escolásticos do ensino, mudou-se para Kiev, ingressando na Academia de Moguilan, onde também encontrou apenas "erudição eclesiástica". Terminados seus estudos na Academia de Ciências de Petersburgo, partiu para o estrangeiro, para a Alemanha, onde estudou filosofia com Wolff. Ao regressar à Rússia em 1741, ingressou na Academia de Ciências, onde realizou o seu trabalho científico posterior.

Apesar de encontrar-se sob certa influência da filosofia wolffiana, Lomonosov era materialista nas ciências naturais e em sua metodologia científica.

Proclamava a unidade da matéria, que considerava composta de moléculas, corpúsculos. Em consonância com a ciência avançada de sua época, desenvolveu a teoria mecânica do calor, considerando que o calor procedia do movimento interno invisível das partículas do corpo, e pronunciou-se terminantemente contra as doutrinas sobre o "calórico", o "gerador do calor", espécie de líquido imponderável que penetra nos corpos e deles saem.

"O calor, ensinava Lomonosov, resulta do movimento de rotação das partículas insensíveis que compõem o corpo".

Contra a teoria newtoniana do "derramamento" da luz (a luz é uma torrente de partículas imateriais), Lomonosov defende a "teoria das ondas" (a luz é uma oscilação do éter), teoria que até meados do século XIX ainda não começara a vigorar na ciência.

Lomonosov defendia a lei da conservação da matéria e a da transformação da energia.

"Todas as modificações que sucedem na natureza, escrevia, são de tal índole que, quando se retira algum corpo, acrescenta-se a outro corpo. Assim, se em algum lugar diminui a quantidade de matéria, ela aumenta neutro lugar... Esta lei natural universal se estende ao próprio movimento; pois um corpo que, por meio de sua força move outro, perde tanta força quanto a que comunica ao que dele recebe o movimento".

Na metodologia científica, Lomonosov apresentou um problema muito audaz para aquela época a cujo valor total só foi possível apreciar no século XIX: a unidade da física, da química e da matemática. Assim, em "Palavras Sobre a Utilidade da Química" (1751), escrevia:

"Precisa-se um químico que não só compreenda esta ciência através da leitura dos livros, mas que saiba exercer assiduamente sua própria habilidade na mesma; e também um que, ao fazer numerosas experiências... leve em conta os fenômenos e modificações que ocorram em seus trabalhos as quais servem para interpretar os segredos naturais".

Noutras palavras, Lomonosov exige do químico que não seja teórico mas um experimentador e, além disso, não o empirista abstrato, mas um sábio com amplo horizonte capaz de sintetizar teoricamente os fatos descobertos.

Segundo Lomonosov, também,

"nada adianta o matemático que só é hábil em cálculos difíceis, mas o que... por meio de uma regra exata e sem se deixar desviar, saiba deduzir a verdade oculta na natureza".

Por conseguinte, no matemático, Lomonosov quer ver, não um técnico em cálculo, mas um experimentador da natureza profundamente instruído, matematicamente armado.

A física é para Lomonosov a ciência natural básica:

"com justiça, poderia chamar-se à química as mãos da matemática, os olhos da física".

Lomonosov compreendia que o regime político-religioso imperante era um obstáculo ao desenvolvimento da ciência, e exigia (no projeto de Regulamento da Universidade) que

"o clero não incomodasse aos sábios que ensinam a verdade física para proveito e instrução, e sobre tudo que não caluniassem a ciência nos sermões".

E quando Lomonosov se inteirou de que os curas se opunham ao batizado das crianças com água quente, alegando que a água quente não era água pura visto conter "calórico", declarou diretamente em seus "Raciocínios Sobre a Multiplicação e Conservação do Povo Russo":

"Os curas não precisam discutir física; eles já impõem suficientemente sua autoridade."

Em seus conceitos políticos, Lomonosov colocava-se à altura de sua época, apoiando a teoria do absolutismo ilustrado, facilitando por todos os meios o desenvolvimento da indústria e da ciência russas, a elevação dos sábios russos. Lutava contra o sistema de encher as instituições governamentais e científicas nacionais de estrangeiros entre os quais predominavam aventureiros ignorantes. Ao mesmo tempo insistia em atrair à Academia de Ciências os destacados sábios estrangeiros e apelava apaixonadamente à juventude russa para demonstrar que:

"A terra russa pode gerar
seus próprios Platões
e Newtons, de inteligência aguda".

A filosofia não se desenvolveu na Rússia só por meio das instituições e cátedras universitárias e academias oficiais. Sua forma de desenvolvimento foi muito diversa na segunda metade do século XVII A luta entre o materialismo e o idealismo tomou então formas agudíssimas. Essas tendências ideológicas e a luta filosófica estavam, e geral, concentradas na "elite" da sociedade, nos meios da nobreza. Assim se explica também que, nas condições do regime da autocracia feudal, quase toda a cultura espiritual estivesse nas mãos da nobreza. A nobreza era, em geral, uma classe reacionária e conservadora, porém como é sabido, foi ela quem deu vida aos primeiros revolucionários que lutaram contra a autocracia e a servidão, os dekabristas cujo momento teve como predecessores ideológicos (antes de tudo a pessoa de N. A. Radichtchev), já nos fins do século XVIII.

Alguns germes do pensamento filosófico radical podem achar-se também desde os meados do século XVIII entre a classe comercial e, particularmente, nos círculos que, por contingências comerciais residissem na Inglaterra e na França. Assim, desde a sexta década do século XVIII, chegou uma "denúncia", quer dizer, uma delação contra dois comerciantes, os irmãos Karyavin, acusados de ateísmo. O denunciante põe na boca dum dos irmãos um discurso ateu que demonstra a influência da filosofia dos "ilustrados" franceses e, ao mesmo tempo, dos conceitos políticos radicais:

"Se Deus, é claro, fosse, como diziam os teólogos, todo misericordioso, todo poderoso, onipotente, que tudo vê... como faria tal desordem no mundo? Falsidades, ofensas, violências, derramamento de sangue inocente... coisas que o homem contempla tremendo e chorando, e deus não lhes dá remédio. Se deus fosse preguiçoso, podia pelo menos mandar anjos em defesa dos inocentes ... se deus existisse e dirigisse, como havia de colocar ou elevar os indignos aos mais altos cargos do governo dos povos, como estamos vendo?..."

No século XVII ainda não existia a classe operária; quanto ao campesinato, respondendo à opressão com levantes esporádicos e revoluções camponesas (o movimento de Pugatchev) não criou nem podia criar sua própria filosofia. Deste modo, durante o século XVIII, as correntes filosóficas tinham se concentrado principalmente nos círculos da nobreza.

A Maçonaria

A franco-maçonaria (em francês franco-maçom significa pedreiro livre), entre todas as correntes idealistas conseguiu se estender de maneira bastante considerável na nobreza na segunda metade do século XVIII e no primeiro quartel do século XIX.

A mordaça que o governo punha na filosofia e em geral em todo o pensamento, a completa subordinação ao dogma eclesiástico-ortodoxo, conduziu, entre outras coisas, a que alguns círculos da nobreza, sem romperem com a religião, ingressassem na oposição à igreja oficial e, às vezes, ao Governo. Esta oposição no terreno religioso-filosófico assumia a forma defeituosa dum original sectarismo nobre-intelectual. Entre essas seitas estava a maçonaria russa, ligada à mística, como nos países da Europa ocidental, e revestida de uma roupagem de doutrina esotérica (accessível apenas a alguns "consagrados"). Os maçons estavam unidos em organizações secretas, "lojas"; tinham uma complexa hierarquia militante e efetuavam cerimônias de culto secretas.

As doutrinas dos maçons têm maior interesse como fenômeno social, e deram muito pouco ao pensamento propriamente filosófico. Os conceitos éticos dos maçons imitavam a doutrina do "amor ao próximo" (nas condições do regime feudal e com a nobreza como classe dominante) e da "auto-perfeição moral". Na solução do problema filosófico fundamental, os maçons mantinham um ponto de vista místico, afirmando que o princípio primário de tudo o que existe era a divindade. No entanto, de sua posição idealista, os maçons desenvolviam uma grande atividade cultural, principalmente escolar e editorial. Nesta atividade se distinguiu particularmente N. I. Novikov (1744-1818), fundador da primeira editora na Rússia.

Quando o espírito de oposição e a atividade cultural dos maçons ultrapassou muito os limites da linha autocrático-feudal e se verificou na França a revolução burguesa que assustou Catarina II (1789), o Governo começou a destruir as lojas maçônicas e Novikov foi encarcerado na fortaleza de Schlüselburg.

G. S. Skovoroda

Nessa mesma direção oposicionista religioso-espiritual (embora completamente distinta da maçonaria) desenvolveu-se também a filosofia de G. S. Skovoroda (1722-1794), pensador democrata ucraniano, filósofo ambulante, mestre e poeta.

Provindo das fileiras dos cossacas da classe média e educado no espírito da doutrina filosófico-religiosa, Skovoroda rebelou-se contra a escolástica morta e contra a opressão espiritual exercida pela ortodoxia oficial, impugnando as formas tradicionais da religião. Nem por isso sua filosofia deixava de apoiar-se na Bíblia. Outra fonte de suas concepções foram vários filósofos idealistas, particularmente Platão. Ao mesmo tempo, Skovoroda estava influenciado por Spinoza ao qual, contudo, interpretava com espírito panteísta: distinguindo-se de Spinoza, que não tem outro deus senão a natureza, Skovoroda afirmava que a natureza era a manifestação de deus.

Skovoroda reconhecia duas vidas: a vida evidente e a vida oculta, a realidade visível e o espírito invisível, o mal e o bem. Procurou conciliar essas duas vidas numa unidade metafísica, sob o princípio da divindade. Skovoroda ensinava que "o reino de deus está em nós" é que "nossa felicidade é o mundo espiritual". Daí derivava a exigência fundamental de sua filosofia prática: "conhece-te a ti mesmo", posto que no alto conhecimento o homem conhece a verdade.

Resultava daí que, sem ser revolucionária, a filosofia de Skovoroda defendia o autovalor e o direito da personalidade humana e, nesse sentido, era humanista. Traduzindo isto em linguagem política concreta daquela época, revelava uma forte tendência democrática e respirava simpatia para com as massas camponesas subjugadas e ódio às classes governantes.

A. N. Radichtchev

Distinguindo-se das correntes idealistas e em luta com elas, desenvolveu-se na sociedade russa, na segunda metade do século XVIII um pensamento filosófico materialista e antirreligioso, sobre o qual exerceu grande influência a filosofia "ilustrada" francesa, antes de tudo a de Voltaire e o materialismo francês do século XVIII.

Devido as condições de censura acima mencionadas, a filosofia materialista era divulgada principalmente por meio da literatura periodística e artística. Podem se achar suas ricas pegadas na literatura de memórias daquela época e na correspondência privada. Foram também muito numerosas as traduções para o russo dos filósofos revolucionários franceses. Nessas edições, porém, foi necessário suavizar as ideias materialistas e ateias até o nível do deísmo, e reduzir as expressões revolucionárias a liberal-democráticas. Apesar disso, por este meio, a filosofia materialista francesa exerceu na Rússia uma influência revolucionária.

Essa influência não se limitava à capital, estendia-se também às províncias. Assim, em Tambov, foi traduzido e editado um extrato do livro de Helvécio "Sobre a Inteligência"; em Voronezh, as obras de Robineau; em Smolensk, a de Bonne. Nos cinquenta números da revista "Espelho Mundial", publicaram-se durante os anos 1786-1887 treze capítulos das obras de Holbach, embora em forma suavizada e sem indicar autor nem tradutor.

A filosofia materialista converteu-se assim, cada vez mais, na bandeira dos homens de vanguarda russos do século XVIII, atingindo seu ponto mais alto na pessoa do maior pensador russo dos fins do século XVIII, N. A. Radichtchev.

Alexandre Nicolaievich Radichtchev nasceu em 1749 numa família de latifundiário médio. Recebeu uma instrução elementar na Rússia, e aos 17 anos de idade foi enviado para estudar em Leipzig, Alemanha, onde permaneceu cinco anos.

Nas universidades da Alemanha imperava, naquela época, a metafísica escolar da tendência leibnitz-wolffiana. Essa filosofia não agradava a Radichtchev, cujo pensamento era atraído pela filosofia "ilustrada" francesa, especialmente pelo materialismo francês; estudou atentamente o livro de Helvécio "Sobre a Inteligência" e "nele aprendeu a pensar".

Ao regressar à Rússia em 1772, Radichtchev trabalhou em diversas instituições econômicas (Colégio Comercial, Alfândega de Petersburgo).

Já então via, antes de tudo no desenvolvimento econômico, a senda da evolução da Rússia. Compreendia claramente que o sistema autocrático-feudal da economia era um obstáculo ao desenvolvimento do país; enxergava a horrorosa exploração de que era objeto as massas dos milhões de camponeses servos. Radichtchev sublevou-se então, em sua obra principal, "Viagem de Petersburgo a Moscou" (1790), contra o regime autocrático.

Em suas "Viagens", Radichtchev refletiu o quadro vil da realidade russa de então e desenvolveu seu programa político-social. Mostrou a horrorosa vida miserável do camponês servo (capítulo "Liuban"), a reação desalmada das autoridades contra esses homens que se achavam em perigo mortal ("Chudovo"); desmascarou a justiça tzarista e a autocracia em geral ("Spasskaia polest"), pôs a nu a pseudo-consciência da mística ("Podberesche") e a religiosidade oficial ("Brormitzy"); mostrou um quadro terrível das canalhices que faziam os latifundiários com os camponeses, a venda de servos ("Mednoe"), o recrutamento forçado ("Gorodnia"). Exigia a abolição do direito feudal ("Khotilovo"), a realização de reformas democráticas no sistema literário editorial ("Torshok") e no sistema educativo ("Krestzy").

O maior entusiasmo revolucionário de Radichtchev revela-se no capitulo "Tver", no qual inseriu a ode "Liberdade". Nesta ode nos oferece, sob forma poética, uma interpretação revolucionária da teoria do direito natural. A igualdade dos homens é impedida pelo que os tzares chamam "a lei de deus", e que não é, na realidade, segundo Radichtchev, mais que um "santo engano" inventado para "oprimir o povo". Para este fim, o tzarismo une-se à igreja:

"O Poder tzarista protege a fé.
A fé sustenta o Poder tzarista.
Em aliança ambos oprimem a sociedade.
Um encarcerando o pensamento,
Outro assassinando a vontade".

A autocracia lançou-se cruelmente sobre Radichtchev; ele foi detido e condenado à morte; seu livro foi destruído. Um mês depois, sua pena foi comutada para a de desterro na Sibéria oriental, onde escreveu seu tratado filosófico "Sobre o Homem, Sua Mortalidade e Imortalidade".

Depois da morte de Catarina, Radichtchev pôde abandonar a Sibéria e, nos primeiros anos do reino de Alexandre I, voltou a suas funções. Radichtchev não renunciou às ideias revolucionárias e, em 1802, começou a escrever um projeto de Constituição Cívica, esta vez também com sentido claramente antifeudal. Foi avisado que por isso poderia repetir-se a história de 1790. Extenuado e desesperado Radichtchev suicidou-se.

Na primeira metade do tratado "Sobre o Homem, Sua Mortalidade e Imortalidade", Radichtchev segue fielmente a seus mestres filosóficos, os materialistas franceses. As vezes seguindo-os, as vezes independentemente, Radichtchev mostra-se à altura da filosofia do século XVIII. Sua teoria do conhecimento, é completamente materialista: as fontes do conhecimento, para ele, estão na sensibilidade, na experiência sensível. "Tua inteligência, escreve Radichtchev, tem seu começo em teus dedos", o entendimento é o "complemento" da experiência, sua continuação; a existência das coisas pode evidenciar se só através da experiencia.

A única substancia é a matéria ou, como diz Radichtchev, a "corporiedade".

"Despe teu raciocínio das palavras e dos sons e a corporiedade aparecerá ante ti inteiramente; pois és a corporiedade; tudo o mais é presunção".

Radichtchev define a matéria completamente no espírito do materialismo do século XVIII; a matéria é o que é ou pode ser percebido por nossos sentidos.

Radichtchev detêm-se minuciosamente na explicação das propriedades fundamentais da matéria. Acha que o espaço e o tempo são condições objetivas e básicas da existência da matéria.

"Qualquer coisa que imagines, qualquer substância que representes, verás que sua primeira exigência é existir, pois que não existindo tampouco pode haver pensamento dela; em segundo lugar, necessita tempo, uma vez que todas as coisas em sua relação ou aliança são concebidas simultânea ou sucessivamente; terceiro, necessita espaço, posto que o caráter essencial de todas as substâncias consiste no fato de, ao atuarem sobre nós, suscitarem os conceitos de espaço e impenetrabilidade".

A matéria, segundo Radichtchev, está indissoluvelmente ligada ao movimento:

"a materialidade move-se e vive; deduzimos que o movimento lhe é próprio, e a inação não é mais que a substância do teu cérebro inflamado, não é mais que trevas e sombra".

O problema da sensibilidade como propriedade da matéria, é resolvido por Radichtchev também plenamente no espírito da ciência materialista do século XVIII. A vida está espalhada em toda a parte, porém sob diversas formas.

A vida "torna-se mais evidente onde as diversas forças se concentram mais num todo simultaneamente"; donde "essas forças são maiores onde a organização é superior". Por fim, "onde há melhor organização começa também a sensação que, superando-se e aperfeiçoando-se, chega gradualmente ao pensamento, ao raciocínio, ao entendimento".

Radichtchev formula, de modo breve e preciso, os resultados do exame de suas doutrinas sobre a matéria:

"o pensamento, a sensibilidade e a vida são propriedades da matéria, impenetrável, extensível, formada (quer dizer, organizada), sólida".

A alma imaterial, como substância à parte da matéria, não existe. Radichtchev escreve:

"O que habitualmente se chama de alma, quer dizer, a vida, a sensibilidade e o pensamento, são criações da matéria única, cujas partes primordiais e integrantes são heterogêneas e têm qualidades diversas das quais nem todas estão comprovadas".

Partindo disto, Radichtchev resolve assim o problema fundamental que ele mesmo levanta em seu tratado: a matéria é eterna, porém o homem é mortal. Como consequência desta solução, Radichtchev teve de negar a doutrina da vida de além-túmulo e "a recompensa no outro mundo".

É precisamente neste problema que Radichtchev, isolado de seus familiares e íntimos, desesperado, começa a contradizer-se. É-lhe difícil tolerar o pensamento de que nunca voltará a ver seus íntimos. Afasta-se pois da tese materialista, e, no afã de encontrar consolo para sua triste sorte, começa a buscar na história da filosofia argumentos que lhe deem, ainda que apenas na aparência, a ideia da existência do indivíduo após a morte. Partindo da doutrina de Leibnitz de que a natureza não dá saltos, Radichtchev deseja pensar que tampouco a vida do homem se interrompe com a morte, mas continua depois. Ele próprio percebe que estes são apenas "argumentos de coração", aspirações em choque com os sentidos e a razão.

Radichtchev termina assim seu trabalho de forma desconcertante, com certo dualismo filosófico: sua inteligência, seu pensamento, conduzem- no ao materialismo; sua experiência sentimental afasta-o do materialismo. É um materialista não totalmente consequente, não acabado quebrado pelo regime autocrático feudal.

Contudo as ideias de Radichtchev não caíram no vazio. Foi precursor dos revolucionários da nobreza no primeiro quarto do século XIX: os dekabristas. De Radichtchev aos dekabristas estende-se um caminho reto no qual encontram-se alguns de seus discípulos e continuadores. Deles o mais notável foi I. P. Pnin (1773-1805).

Pnin, filho ilegítimo do príncipe Repnin, era poeta e jornalista de talento. Durante a surda reação do reinado de Paulo II, publicou no curso de um ano (1797) a "Revista de São Petersburgo". Nos dois cadernos dessa revista, Pnin esforçou-se por publicar em tradução livre e com a inevitável suavização dos fragmentos evidentemente ateus, três capítulos do "Sistema da Natureza", de Holbach, e oito capítulos de sua "Moral Universal".

Em sua ode "Homem", escrita em resposta à ode "Deus", de Dieryavin, Pnin impugna, sob forma poética, a doutrina religiosa da criação do homem por deus. Afirma que o homem, "por seu trabalho e experiência", melhorou sua sorte e criou a riqueza.

As Ideias Filosóficas dos Dekabristas

Entre os dekabristas havia várias corrente ideológico-políticas: desde a nobreza liberal da Sociedade do Norte (Trubetzkoi, Rylev) até as ideias jacobinas da Sociedade do Sul (Pestel) e da Sociedade dos Eslavos Unidos. Por isso os pontos de vista dos dekabristas sobre os problemas fundamentais da filosofia eram completamente heterogêneos. Havia também entre eles elementos influenciados pelo idealismo clássico alemão, por sobrevivências maçônicas e por conceitos próprios ao materialismo francês do século XVIII.

No problema da filosofia social, em compensação, havia muito mais unidade entre eles. Nesse terreno era predominante e decisiva a i fluência da filosofia dos "ilustrados" franceses do século XVIII (Montesquieu, Mabli, Rousseau, Holbach, Helvécio) e particularmente a de Radichtchev. No fundamental, os conceitos filosóficos sociais dos dekabristas reduziam-se ao seguinte: O regime de tirania (a autocracia) existente, o fanatismo (o domínio da igreja) e a escravidão (o direito feudal) deve ser destruídos. Em seu lugar é preciso construir uma sociedade baseada nos princípios da natureza e da razão; estes princípios estão traduzidos nas leis naturais, iguais para todos, e regem-se pelo direito natural, lei básica da natureza. Essas ideias refletem as principais concepções da burguesia revolucionária francesa e seus princípios de liberdade e igualdade formais com que foi à revolução de 1789.

Ideias análogas desenvolveu também de forma poética o grande Poeta russo, amigo dos dekabristas, A. S. Pushkin, particularmente em sua ode "Liberdade" (1817), com o mesmo título que a de Radichtchev. Nesta ode, Pushkin demonstrou o caráter antinatural do poder tzarista. Dirigindo-se ao Tzar, Pushkin escreve:

"Senhor; a vós, a coroa e o trono
Dá-lhe a Lei, e não a Natureza.
Viveis em cima do Povo,
Mas em cima de vós vive a Lei".

Na organização mais revolucionária dos dekabristas: a Sociedade dos Eslavos Unidos, havia uma influência particularmente forte das ideias do materialismo francês. As pessoas filiadas a esta Sociedade, P. I. Borisov e A. P. Bariatinski chegaram até o ateísmo.

Entre os membros do círculo dos jovens dekabristas da pequena cidade de Tulchin, desempenhava um papel proeminente M. Kriukov. Seus cadernos, que ainda se conservam, atestam suas concepções materialistas. Com efeito, demonstram como, da negação das cerimônias religiosas, passou gradualmente à negação de Deus e, mediante a "reanimação da matéria" chegou ao ateísmo. Sua obra começada "Guia de Educação", também consequente no espírito do materialismo francês, apresenta como fatores principais da formação do homem, "a educação, o bom exemplo e a boa legislação".

Depois do extermínio dos dekabristas pelo governo tzarista, alguns deles, quebrados pelos tribunais e pelos trabalhos forçados, afastaram-se pouco a pouco do materialismo; mas a maioria conservou seus pontos de vista filosóficos revolucionários; entre estes últimos se contam Borisov e Bariatinski.

A Filosofia Russa durante os Anos da Reação Nicolasiana

A Filosofia Universitária na Rússia Durante as Primeiras Décadas do Século XIX

Desde o começo do século XIX, principiaram a infiltrar-se na Rússia as ideias da Europa ocidental, progressistas para aquela época, do idealismo clássico alemão Kant, Fichte, Schelling. Uma série de jovens professores universitários adotou essas ideias e passou a expô-las nos cursos. D. M. Vellanski (1774-1847) expunha na academia medico-cirúrgica de Petersburgo a filosofia naturalista do jovem Schelling e de seu sucessor Ocken, sob a forma de lições, bem como em suas obras "Prognósticos Sobre a Medicina, Como Ciência Cimentadora" (1805) e "Investigações Biológicas da Natureza Como Criadora e Criação" (1812).

A. I. Galich (1783-1848) dava no Instituto Pedagógico e na Universidade de São Petersburgo lições de história da filosofia impregnada de idealismo schellingiano ("História dos Sistemas Filosóficos") (1818) e expunha a filosofia de Schelling em sua obra "Traços da Filosofia Especulativa". Também o professor I. I. Davidov (1794-1863), de Moscou, passou pouco a pouco da influência da filosofia empírica francesa do século XVIII ao idealismo de Fichte. Particularmente popular entre a juventude estudantil de Moscou foi o professor L. G. Pavlov (morto em 1840), que seguiu os conceitos schellingianos em suas lições e em sua obra "Fundamentos da Física".

Embora todos estes filósofos fossem idealistas, os círculos governamentais e eclesiásticos que viam na filosofia alemã do princípio do século XIX ideias emancipadoras, hostis à autocracia e à ortodoxia, proibiram seus trabalhos e submetiam-nos à perseguição. Assim, foi proibida em Moscou que Pavlov ensinasse filosofia; apesar disso se fazia grande esforço para expor seus conceitos filosóficos nas lições de física e de economia rural. Galich foi expulso, em 1821, da Universidade de Petersburgo, por ter dito em suas lições de história da filosofia que

"preferia claramente o paganismo ao cristianismo, a filosofia libertina à santa virgem e à igreja cristã, o ateu Kant à Cristo, Schelling ao Espírito Santo".

A luta do governo de Alexandre I contra as correntes oposicionistas e radicais do pensamento expressou-se também, entre outras coisas, na dissolução das universidades de Petersburgo e de Kazan. Depois da sublevação dos dekabristas em 1825, sob Nicolau I, foi ainda mais restrito o ensino filosófico e, em 1850, posto nas mãos do clero ortodoxo.

A política reacionária do Governo fez com que o pensamento filosófico existente, expulso das aulas universitárias, se refugiasse nos círculos literários e filosóficos. Dessa forma formou-se em Moscou, por influência das lições de Pavlov, um círculo schellingiano de "amantes da sabedoria", no qual desempenhou o papel principal D. V. Venevitinov; a tal círculo pertenceram também vários dekabristas. Mais tarde se formou igualmente em Moscou o círculo de N. V. Stankevich, de onde saiu V. G. Belinski.

P. J. Chadaev

Durante a reação negra nicolasiana, Pedro Jakovevich Chadaev (por volta de 1796-1856) ocupou uma posição filosófica original. Chadaev estava relacionado com os dekabristas, embora sem ter participação ativa na sublevação, por achar-se então no estrangeiro, donde regressou à Rússia em 1826. Chadaev escreveu suas "Cartas Filosóficas" (ao todo oito), a primeira das quais foi publicada em 1836. O redator da revista que publicou a carta foi desterrado, a revista fechada e o próprio Chadaev declarado louco.

Chadaev pronunciou-se com acrimônia contra a autocracia e a servidão, e, particularmente contra a igreja ortodoxa. Seu ceticismo e seu pessimismo foram motivados pelo fracasso do movimento dekabrista e pela falta de fé na possibilidade de triunfar sobre a reação nicolasiana.

Em seu ódio à autocracia e à servidão, Chadaev dirigia seu olhar para a sociedade burguesa, então avançada, da Europa Ocidental, opondo-lhe a atrasada Rússia feudal. Chadaev chegou mesmo a negar o papel e o significado histórico cultural da Rússia. Estes erros básicos tinham nele certos aspectos de misticismo. Vendo na igreja ortodoxa o princípio diretor na Rússia, Chadaev preconizava, como ideal cultural político, o catolicismo e a igreja católica. Contudo negou apenas o papel histórico da Rússia feudal autocrática. Amava ardentemente sua pátria e sonhava com sua evolução progressista. Em 1837 reconheceu em sua "Apologia de um demente" o imenso papel histórico da atividade de Pedro I para a Rússia, e declarou que os russos

"estão destinados a resolver a maior parte dos problemas de ordem social, a realizar a maior parte das ideias nascidas nas velhas sociedades, a resolver os problemas mais importantes que preocupam a humanidade".

Este pensamento posteriormente foi desenvolvido por Hertzen.

A Filosofia da Democracia Revolucionária Durante as Décadas de 40 a 60

Depois da sublevação dekabrista de 1825 foram aniquilados pelo tzarismo os principais quadros dos revolucionários da nobreza. Seu destino foi o desterro, os trabalhos forçados, a deportação. Começou no país a negra reação do reino de Nicolau I, uma tempestade imensa de arbitrariedades da gendarmeria e da polícia. Juntamente com a polícia, os cárceres e os tribunais, também a igreja e a censura esmagavam as massas populares, arrancavam pela raiz qualquer indício de pensamento libertador. Tudo foi posto a serviço da autocracia, da ortodoxia e da "nacionalidade", no sentido tzarista da palavra, segundo a qual os proprietários territoriais feudais eram considerados "pais" e "guias" do povo e das massas camponesas, e os camponeses, filhos irracionais incapazes de compreender seus próprios interesses.

Todavia não é menos certo que, também naqueles anos, começaram a manifestar-se os indícios da crise do sistema econômico feudal, a baixa da renda das economias territoriais baseadas no trabalho dos servos, a impossibilidade de desenvolver a indústria por falta de braços de operários livres; as sublevações e os levantes camponeses tornaram-se um fenômeno frequente.

A peculiaridade desta situação político-social liquidou o movimento revolucionário dos nobres, motivando o esgotamento bastante rápido das forças revolucionárias da intelectualidade da nobreza. No cenário social surgem novas forças: os intelectuais populares que eram, segundo definição de Lenin, os representantes cultos da burguesia liberal e democrática, pertencentes, não à nobreza, mas aos círculos dos funcionários, da pequena burguesia, dos comerciantes, dos camponeses.

"O precursor da completa substituição dos nobres pelos plebeus em nosso movimento de libertação, foi, ainda durante o regime de servidão, V. G. Belinski"(124).

Este processo se refletiu também no terreno ideológico e particularmente no filosófico. Para o pensador revolucionário russo, o adversário principal continuava sendo a autocracia, apoiada na igreja ortodoxa e na servidão. Por isso, as tendências progressistas da filosofia na Europa Ocidental exerciam sobre a Rússia vasta influência. A ideia de Kant, Fichte, Schelling e Hegel, e depois toda a luta dos hegelianos contra os schellingianos, a luta dentro do próprio campo dos hegelianos, e, por fim, as ideias de Feuerbach, tiveram sucessivamente uma base extraordinariamente fértil na Rússia. Nas condições russas, porém, essas ideias mudaram essencialmente de forma, sendo reelaboradas, concretizadas e adaptadas à situação russa sob a forma de disputas sobre os futuros caminhos do desenvolvimento da nação.

Assim, o hegelianismo de direita e o Schellingianismo juntaram-se com as concepções dos velhos eslavófilos (A. S. Jomiakov, os irmãos I. e P. Kirevski, os irmãos K. e I. Aksakov) e se puseram a serviço do chamado filoeslavismo. Segundo as ideias dos eslavófilos, a Rússia tinha um caminho próprio de desenvolvimento que, no fundo, diferia do seguido pelos países da Europa Ocidental. A Rússia devia conservar as comunidades agrícolas camponesas e o espírito de ortodoxia. No fundo isto era a defesa do regime de servidão. O hegelianismo de esquerda e o feuerbachismo alimentavam filosoficamente as ideias do ocidentais que demonstravam que a Rússia necessitava seguir o mesmo caminho dos países adiantados da Europa (N. V. Stankevich e, durante certo período, também V. G. Belinski). A ala esquerda dos ocidentais representava a ideia de adotar caminho americano no desenvolvimento do capitalismo na Rússia e chegou a preconizar a reconstrução revolucionária da Rússia e o socialismo utópico (A. I. Hertzen, N. G. Tchernichevski). Contudo a filosofia russa, embora submetida à influência do Ocidente, converte-se ao mesmo tempo numa tendência independente, elevando-se, em muitos aspectos, muitíssimo mais que todas as suas próprias fontes da Europa Ocidental (Belinski, Hertzen, Tchernichevski).

V. G. Belinski

Vissarion Gregorievich Belinski foi quem mais clara e profundamente expressou as inquietudes ideológicas da Rússia nas décadas de 30 e 40 do século XIX. Nasceu em 1811 numa família de um médico. Tendo sido expulso da Universidade de Moscou por ter escrito a tragédia "Dimitri Kalinin", na que exprimia sua indignação ante o direito feudal e as cerimônias da igreja. Dimitri dedicou-se à literatura e ao jornalismo e chegou a ser um proeminente crítico literário. Ainda universitário, ingressou no círculo de Stankevich, e conseguiu rapidamente grande autoridade sobre seus amigos que o chamavam, em vista do seu fogoso temperamento revolucionário, o impetuoso Vissarion". Belinski aproximou-se de Hertzen e com ele colaborou nas "Memórias Pátrias" (1839-1846) e no "Contemporâneo de Nekrasov (1846-1848). A eterna necessidade material e o extenuante labor jornalístico minaram-lhe rapidamente a débil saúde, morrendo em 1848, aos 36 anos de idade.

Em sua tragédia "Dimitri Kalinin" (1829), Belinski rendia tributos às ideias revolucionárias abstratas do século XVIII, invocando "os direitos naturais e humanos, os direitos da razão", contra a "escravidão", quer dizer, contra o direito de servidão. Seu primeiro trabalho, "Sonhos Literários" (1834), revela forte influência do idealismo clássico alemão representado por Schelling. No entanto, o schellingianismo de Belinski não era uma teoria filosófico-naturalista apolítica ou estética. Na filosofia de Schelling, o que atraia Belinski era a teoria da evolução, da gravitação do sujeito para o objeto, do espírito para a natureza, como expressão de sua fusão finita no absoluto. Belinski resolve o problema filosófico fundamental no espírito da filosofia de Schelling:

"Todo o mundo divino, ilimitado e belo, escrevia, não é mais que o alento da ideia eterna que se manifesta num sem fim de formas, como um grande espetáculo da unidade absoluta na infinita diversidade das formas". "Essa ideia não tem repouso: vive continuamente, quer dizer, cria continuamente para destruir e destrói para criar";

esse caráter ativo da filosofia de Schelling (embora seja uma atividade abstrata somente cabível no idealismo) era o que mais atraia Belinski.

Partindo do Schellingianismo, Belinski resolve também então o problema do destino do homem: o homem deve conceber a ideia do que se faz na luta pela sua auto-perfeição moral. Mais tarde, o próprio Belinski qualificou esses pontos de vista de "heroísmo abstrato" e de luta "magnânima" contra a realidade.

O sentido objetivo desse período de inquietação de Belinski não se radica ainda na luta, mas na impugnação da "abominável realidade russa" da época de Nicolau I, por meio da fuga dessa realidade para o mundo ideal.

Pouco tempo pertenceu Belinski ao idealismo subjetivo de Fichte, tendo expressado esse ponto de vista em sua crítica ao livro de A. Drosov "Experiência do Sistema da Filosofia Moral" (1836-1837). Mas também no Belinski fichtiano se insinua um momento revolucionário ativo inerente a sua filosofia: "Agir, agir, eis para que estamos aqui , escrevia. Numa carta a Bakunin, Belinski reconhecia que compreendera o Fichteismo como um robespierrismo e, nesta nova teoria, sentira cheiro de sangue".

Belinski, contudo, não pôde deixar de sentir rapidamente que esta "atuação" baseada no idealismo subjetivo era uma ação estéril. "O espírito cansou-se do abstrato, escrevia em 1838, e ansiava pela aproximação com a realidade". Belinski passou então do idealismo subjetivo de Fichte para o idealismo objetivo de Hegel. Durante os primeiros tempos aceitou o aspecto conservador da filosofia hegeliana, especialmente sua teoria do Estado, como uma noção sujeita à necessidade e a leis. "Tudo que é real é racional", afirmava Hegel. Belinski tirou daí a conclusão de que também a monarquia e a servidão eram "racionais", porquanto tinham existência real. Isto levou Belinski à conciliação temporária com a "realidade racional", quer dizer, com o regime reacionário de Nicolau, tendência que refletiu em seus artigos: "Aniversário de Borodin" (1839) e "Mentzel, crítico de Goethe" (1840).

Todavia, este ponto de vista levou Belinski a conclusões políticas com as quais não podia conformar-se.

"O que existe, é racional, escrevia em dezembro de 1840, nem por isso o verdugo que existe, cuja existência é racional e real, deixa de ser abominável e repugnante... Em seguida, para mim, o absolutista e o espancador são uma e mesma coisa".

Belinski passa então à posição filosófica hegeliana de esquerda e, no terreno político, ao democraticismo revolucionário. Só o racional pode ser real. A monarquia de Nicolau contradiz a razão e por isso não tem direito de existir.

O fim natural de todo o caminho do desenvolvimento filosófico de Belinski era a sua conversão ao materialismo de Feuerbach (com cuja teoria foi pela primeira vez posto em contacto por Hertzen) e ao humanismo a ele ligado. Identificando o idealismo hegeliano com o "geral", Belinski assumiu a defesa do "singular", quer dizer, a defesa do direito e da dignidade da personalidade humana. A felicidade do homem passou a ser o centro da doutrina de Belinski, fato que o levou a ideia do socialismo utópico, e a suas conclusões democrático-revolucionárias.

"O anseio desesperado do amor, escrevia em 1841, devore-me cada vez mais o íntimo. Isto é meu e só meu. Contudo, preocupa-me também muitíssimo o que não é meu. A personalidade humana converteu-se a um ponto tal que receio fazer-me perder o juízo. Começo a amar a humanidade como Marat; para tornar feliz um parte dela, exterminaria a sangue e fogo as demais".

Aqui transparece também o pensamento ateu de Belinski:

"Descobri uma verdade, escrevia em 1845, e nas palavras deus e religião vejo trevas, obscuridade, cadeia e látego, e agora prezo as duas primeiras palavras com mesma estima que as quatro seguintes".

Em 1847, Belinski permaneceu no estrangeiro, na Alemanha e na França. Essa viagem lhe revelou toda a fealdade do regime capitalista. Embora reconhecendo o papel progressista do capitalismo em relação ao feudalismo, Belinski descobre a cruel exploração de que são objeto os trabalhadores nos países burgueses. Escreve que, embora o proletário francês seja perante a lei igual ao capitalista mais rico, na prática continua sendo eterno escravo do capitalista, que lhe dá trabalho e salário.

Belinski chegou a conhecer o artigo de Marx "Sobre o Problema Judeu" publicado nos "Anais Franco-Alemães". Este artigo lhe produziu a maior impressão e entusiasticamente o repetiu. A prematura morte de Belinski impediu-lhe de conhecer as obras fundamentais de Marx e Engels.

Belinski atingiu seu apogeu revolucionário na carta à N. V. Gogol, escrita em julho de 1847, pouco antes de sua morte. Nessa carta, externando-se sobre os pontos de vista místico-reacionários de Gogol, Belinski revela seu programa político: abolição do direito de servidão, dos castigos corporais, promulgação de leis que fomentem o desenvolvimento nacional. Lenin dizia em 1914 que essa carta era

"uma das melhores produções da imprensa democrática não censurada, que conserva seu imenso e vivo valor até hoje".

Belinski era o grande patriota da Rússia. Amava apaixonadamente a pátria, lutava intransigentemente contra o regime autocrático que peava o desenvolvimento do país, e predizia um grande futuro à Rússia emancipada. Lenin qualificou Belinski de precursor da social-democracia russa.

Assim, na pessoa de Belinski, os melhores russos da quinta década do século passado, quer dizer, antes da etapa marxista do movimento revolucionário, no processo das indagações dolorosas e da luta ideológica, saíram através do idealismo clássico alemão a caminho do materialismo e do democraticismo revolucionário, abrindo, segundo definição de Lenin, o período plebeu do movimento de emancipação russa.

A. I. Hertzen

Lenin considerava Hertzen o mais destacado militante, com o qual culminou o período "nobre" do movimento libertador da Rússia.

"Assim como os dekabristas despertaram Hertzen, escrevia Lenin, assim Hertzen e sua campanha ajudaram os plebeus a acordar”.

Mas Hertzen foi incomparavelmente muito além dos dekabristas e demais revolucionários nobres Foi um democrata revolucionário e socialista utópico.

Hertzen, ocupa, pois, um lugar destacado na historia do Pensamento social. Também sua importância é grande na historia da filosofia russa.

"Hertzen esteve muito próximo do materialismo dialético e se deteve ante o materialismo histórico"; assim o caracteriza Lenin.

Hertzen atingiu o nível filosófico mais elevado possível a um pensador da época anterior a Marx.

Hertzen nasceu em 1812, filho ilegítimo do latifundiário Iakovlev. Ainda estudante, juntamente com seu amigo o poeta N. P. Ogarev, formou um círculo de socialistas utópicos russos que comungava com o saint-simonismo. Pouco depois foi desterrado para Perm e em seguida para Viatka. Depois de sofrer uma nova deportação para Novogorod, Hertzen dedicou-se ao trabalho literário. Com o pseudônimo de "Iskander", escreveu novelas e contos ("Quem é Culpado ?", 1845; "Urraca Ladra", 1848). No princípio da década de 40, Hertzen encabeçava a ala esquerda da intelectualidade avançada, a qual pertencia também Belinski. Por iniciativa de Hertzen, a ala esquerda, ao passar para o materialismo e socialismo utópico, rompeu com a ala direita — eslavófilos e ocidentais liberais —, ideólogos do desenvolvimento burguês da Rússia.

Em 1847, Hertzen mudou-se para o estrangeiro onde presenciou as revoluções europeias do ano de 1848, sob cuja influência renunciou às ilusões do democraticismo burguês e tentou ir mais longe, para o socialismo. Estigmatizou o regime capitalista e a cultura burguesa com o apodo de "antropofagia (canibalismo) social". Mas o caráter peculiar daquela época se cifrava, como indica Lenin, no fato de "ainda não ter amadurecido o revolucionarismo do proletariado socialista"(125). Hertzen continuou sendo socialista utópico. Entendia por socialismo a emancipação dos camponeses e a propriedade comunal da terra; considerava que a Rússia podia evitar o capitalismo e, sobre a base das comunas camponesas, passar diretamente ao socialismo. Hertzen passou os últimos anos de sua vida na Inglaterra, onde publicou em 1857-1867 sua famosa revista revolucionária "A Campanha". Morreu em 1870.

Politicamente, Hertzen retrocedia às vezes ao liberalismo; durante a década de 60, porém, quando fixou o olhar nas ações revolucionárias do povo,

"pôs-se intrepidamente ao lado da democracia revolucionária contra o liberalismo. Combateu pela vitória do povo sobre o tzarismo e não por um compromisso da burguesia liberal com o tzarismo feudal. Levantou a bandeira da revolução"(126),

isto é, chegou de novo até o limite que era possível atingir no período pré-marxista, antes do período proletário da revolução russa.

A concepção do mundo de Hertzen formou-se sob a influência de Feuerbach, como posteriormente acentuou o próprio Hertzen.

"Ogarev trouxe-me a "Essência do Cristianismo" de Feuerbach. Depois de ler as primeiras páginas, saltei de alegria. Abaixo os disfarces, fora as vacilações e a metáfora! Somos homens livres e não escravos... não precisamos envolver a verdade em mitos".

Estas palavras de Hertzen trazem-nos à memória a mesma característica que deu Engels ao valor emancipador do livro de Feuerbach.

As obras principais de Hertzen referem-se ao primeiro período de sua atuação: "Diletantismo na Ciência", escrito em 1843, "Cartas Sobre o Estudo da Natureza", em 1845.

Nem o velho materialismo metafísico nem o idealismo satisfizeram Hertzen.

"Um, escrevia, é uma pedra pesada; o outro, um vácuo horrível, cheio de fantasmas".

Hertzen percebia que o materialismo metafísico era incapaz de achar uma passagem da natureza para o pensamento e de compreender o papel ativo do pensar no conhecimento e na transformação da natureza. Para Hertzen, a consciência não é "uma atividade externa ao objeto, mas, ao contrário, sua interioridade mais interna". "O pensar sem ação, diz, é um sonho". Hertzen alcançou também claramente o outro defeito do velho materialismo, seu caráter metafísico, mecanicista. Entre os velhos materialistas, a seu ver, "a teoria do pensamento sensível era uma espécie de psicologia mecânica". Não conseguiram interpretar historicamente as fases e formas anteriores do pensamento.

Hertzen atacava duramente o materialismo metafísico pelo fato de negar a evolução da natureza.

"Não se pode deter a natureza; a natureza é um processo, uma corrente, uma transfusão, um movimento. Se parásseis um instante a natureza, como algo morto, não só não alcançareis a possibilidade de pensar, como nem sequer o estado dos animais, dos musgos ou dos liquens".

Neste ponto, Hertzen eleva-se até a concepção histórica da natureza. O pensar, a consciência, a vida em geral, é produto do desenvolvimento da matéria. A consciência não é de modo algum um fenômeno estranho à natureza, diz, mas a fase suprema do seu desenvolvimento.

Hertzen teve em grande apreço a filosofia de Hegel, em cuja dialética havia a "álgebra da revolução", mas compreendia também o caráter unilateral, o erro, da filosofia idealista; qualificava o "pensar puro" de "escolástica da nova ciência".

"O dualismo escolástico não morreu, escrevia Hertzen; apenas abandonou seus caducos enfeites místico-cabalistas e se apresenta como pensamento puro, como idealismo, como abstração lógica".

A ciência experimental empírica é um claro protesto contra a estéril escolástica idealista.

Hertzen compreendia que, sem uma solução correta do problema filosófico fundamental: a relação entre o pensar e o ser, não seria possível construir uma concepção efetiva do mundo.

"A primeira tarefa indispensável, escrevia, problema a que o pensador não pode voltar as costas, consistia em determinar por meio do pensamento a relação do pensar com o ser, com o objeto e com a verdade em geral".

Acompanhando Feuerbach, Hertzen resolveu de forma materialista o problema fundamental da filosofia. Falando da sorte da filosofia dos tempos modernos, escrevia:

"Aqui há de desenvolver-se inevitavelmente a unidade entre o ser e o pensar; o pensar converte-se numa prova apodítica do ser; a consciência é reconhecida indissoluvelmente ligada ao ser; a consciência é impossível sem o ser".

Daqui se deduziam as conclusões teóricas mais importantes: a filosofia deve-se orientar, não para a religião, mas para as ciências naturais. Do outro lado, é necessário encaminhar as ciências naturais empíricas, carentes de princípios, para a filosofia materialista. O idealismo, demonstrou Hertzen, nada fez em favor das ciências naturais; a filosofia sem as ciências naturais é tão impossível como as ciências naturais sem a filosofia.

Lenin teve grande consideração por estes conceitos de Hertzen. Já em 1912 Lenin escrevia:

"A primeira das "Cartas Sobre o Estudo da Natureza", "Empirismo e Idealismo", escrita em 1844, mostra-nos o pensador, que agora está com a cabeça mais alta diante do abismo dos naturalistas experimentadores empíricos contemporâneos e das trevas dos mesmos filósofos atuais, idealistas e semi-idealistas".

Hertzen aceitou assim o mais valioso da filosofia anterior a Marx; pensando pela escola de Hegel, segundo palavras de Lenin,

"foi além de Hegel, para o materialismo, seguindo Feuerbach", e "esteve muito próximo do materialismo dialético"(127).

N. G. Tchernichevski

A atividade literária e revolucionária de N. G. Tchernichevski, N. A. Dobroliubov e D. I. Pisarev coincide, no fundamental, com o período da sétima década do século XIX. Em todos os terrenos da vida econômico-social da Rússia imperavam então as normas feudais democráticas; a putrefação dos alicerces dessas normas, porém, era cada vez mais visível, cada dia mais insuportável.

"Toda a marcha do desenvolvimento econômico tendia para a abolição do regime de servidão. O governo tzarista, alquebrado pela derrota sofrida na guerra da Crimeia e assustado pelas "revoltas" camponesas contra os latifundiários, viu-se obrigado em 1861 a abolir o regime de servidão"(128).

O governo tzarista tomou a iniciativa de realizar as reformas camponesas, a fim de orientá-las num sentido vantajoso para a classe dos senhores feudais. As reformas eram para o tzarismo o meio de conservar também no futuro o papel governante dos latifundiários por meio da adaptação gradual das formai feudais da economia às novas condições do capitalismo.

Esta forma de desenvolvimento do capitalismo foi caracterizado por Lenin como a forma prussiana, distinguindo-se da marcha revolucionário americana, que destruiu por completo a propriedade feudal. Em favor da forma prussiana do desenvolvimento capitalista na Rússia, estavam, não só os feudais como também os liberais russos.

Tchernichevski e seus companheiros de armas (Dobroliubov e outros) criticavam implacavelmente a essência anti-popular das reformas realizadas pelo tzarismo.

Tchernichevski era democrata revolucionário. Era partidário da emancipação efetiva e imediata dos camponeses da servidão feudal e da opressão, por meio de uma revolução camponesa contra a autocracia. Tchernichevski incitou os camponeses a realizarem a revolução emancipadora. Sonhava com a marcha da Rússia para o socialismo, porém, nas condições da Rússia semi-feudal, não pôde elevar-se até o socialismo proletário científico. Era um socialista utópico; achava que a Rússia podia evitar o capitalismo e chegar ao socialismo pela comunidade camponesa.

Nicolau Gavrilovich Tchernichevski nasceu em 1828 em Saratov, na família dum sacerdote. Em 1846 chegou a Petersburgo e ingressou na Universidade. Durante seus estudos universitários conheceu a literatura avançada da época, particularmente as obras de Feuerbach. Tchernichevski estudou com grande atenção Hegel, Feuerbach, e os socialistas utópicos. A revolução de 1848 exerceu sobre ele influência decisiva. Os pensadores russos que maior impressão deixaram em Tchernichevski foram Belinski e Hertzen. Ao sair da Universidade em 1850 era já materialista feuerbachiano convicto e democrata revolucionário. Em 1855 defendeu sua tese de doutorando, "As Relações Estéticas Entre a Arte e a Realidade". Neste trabalho, Tchernichevski procurava aplicar o materialismo de Feuerbach ao campo da estética. Desde 1854 começou a colaborar na revista mais avançada de então, "O Contemporâneo", e chegou rapidamente a ser um de seus redatores, junto com Nekrasov. Na primavera de 1860 apareceu sua obra filosófica fundamental, "O Princípio Antropológico na Filosofia". Escrita completamente no espírito do materialismo de Feuerbach, esta obra foi um manifesto filosófico militante da democracia revolucionária russa. Todos os partidários do idealismo e do clericalismo na Rússia se manifestaram em frente única contra esses artigos. Em 1860-1861, Tchernichevski traduziu para o russo o livro "Fundamentos da Economia Política" do economista inglês Mill e escreveu para ele extensas observações. Em seus trabalhos econômicos, submeteu à dura critica os economistas vulgares. Ao mesmo tempo teve em grande apreço o valor da economia política clássica inglesa de Adam Smith e de Ricardo. Compreendia que estes eram os representantes da economia política burguesa e quis, em contraposição criar uma economia política dos trabalhadores. Marx teve grande consideração por Tchernichevski como economista, qualificando-o de profundo crítico do capitalismo. Lendo as observações de Tchernichevski dirigidas a Mill, Marx escrevia:

"É a declaração de falência da economia política "burguesa" que expõe de forma magistral, em sua obra "Apontamentos de Economia Política Segundo Mill", o grande erudito e crítico russo Tchernichevski"(129).

Lenin também qualificou Tchernichevski de formidável crítico do capitalismo.

Em seus artigos, escritos devido às reformas camponesas, Tchernichevski pôs a nu as maquinações dos latifundiários e defendeu ardentemente a ideia da emancipação imediata dos camponeses e da entrega da terra feudal a eles, sem indenização alguma.

"Só a genialidade de Tchernichevski permitia, já então na própria época da realização das reformas camponesas (quando estas ainda não estavam suficientemente esclarecidas nem sequer no Ocidente), compreender com tanta clareza,o caráter burguês fundamental destas reformas; para compreender que já naquela época reinavam e governavam na "sociedade" russa e no "Estado" russo classes sociais diretamente inimigas dos trabalhadores e que inevitavelmente sentenciavam a ruína e expropriação dos camponeses"(130).

Tchernichevski converteu-se em destacado chefe do movimento revolucionário daquela época. Em julho de 1862, o governo tzarista deteve e recolheu à fortaleza de Pedro e Paulo seu perigoso inimigo Tchernichevski. No cárcere escreveu sua conhecida novela "Que fazer?", na qual anuncia a ideia do socialismo utópico. Os protagonistas desta novela, homens da vanguarda daquela época, serviram de modelo de conduta para as gerações posteriores de revolucionários russos. Esta novela desempenhou um enorme papel educativo. Tchernichevski esteve em trabalhos forçados e no desterro de 1864 a 1883. Morreu em 1889, em Saratov, permanecendo até o fim da vida um revolucionário firme, um pensador materialista.

O rápido desenvolvimento das concepções de Tchernichevski durante os anos de estudante se explica pela influência que sobre ele exerceu o poderoso movimento libertador daquela época. O jovem Tchernichevski cresceu espiritualmente, fortaleceu-se e fez-se homem durante os anos da grande ascensão da revolução de 1848 no Ocidente e da aguda crise do regime de servidão na Rússia. Durante seus anos de estudante, Tchernichevski lia atentamente as obras de Hegel, Feuerbach, Fourier, Owen e dos representantes da economia política clássica inglesa.

Tchernichevski era uma personalidade de múltiplos aspectos. Em grande economista, grande filósofo materialista. Era um teórico da arte; propôs-se à tarefa de criar, sobre a base da filosofia de Feuerbach uma corrente realista no terreno da estética. Era um brilhante crítico literário, um escritor de talento. Foi o maior educador da Rússia. Por todo o seu gênio, todos os seus conhecimentos, a serviço da revolução democrática camponesa.

A base da concepção filosófica de Tchernichevski é o materialismo feuerbachiano. Tchernichevski chegou a Feuerbach aos poucos, através da filosofia hegeliana, que conheceu pela primeira vez em fontes russas, nas obras de Belinski e Hertzen. Belinski, em seus últimos artigos, e Hertzen em suas "Cartas Sobre o Estudo da Natureza", defendiam posições materialistas. Tchernichevski continuou esta linha de desenvolvimento da filosofia russa; superou rapidamente o hegelianismo e, sob a influencia de Feuerbach, chegou a elevar-se "ao nível do materialismo puro" (Lenin).

Tchernichevski passou pela escola hegeliana, porém Hegel não o deixou satisfeito e, devido a diferença das posições de classe, não podia satisfazê-lo.

Tchernichevski, ainda estudante, falando das concepções políticas de Hegel fez notar que este é

"um escravo do atual estado de coisas, do atual regime social"(131).

Nem também como filósofo, continua Tchernichevski, Hegel é consequente. Adotando seu princípio, o método dialético, outro pensador mais consequente que Hegel, chegou a conclusões completamente diferentes das de Hegel. Segundo Tchernichevski, o método filosófico de Hegel é "amplo", "majestoso" e "fértil"; em troca suas conclusões, ou seja, seu sistema, é "estreito", "mísero" e "trivial". Tchernichevski soube, pois, distinguir o lado revolucionário da filosofia de Hegel de seu lado reacionário; soube ver a contradição que há entre o método revolucionário e o sistema conservador de Hegel. Por oposição a Feuerbach, Tchernichevski não deseja a filosofia de Hegel. Soube dar valor a Hegel como criador do método dialético. O próprio Tchernichevski aplicou alguns aspectos da dialética para fundamentar suas convicções democrático-revolucionárias. Lenin dizia que Tchernichevski era um materialista que havia passado pela escola de Hegel.

Tchernichevski faz notar que Hegel resolve de uma maneira incorreta, idealista, o problema da relação entre a matéria e o espírito, entre a vida e o dever. Como idealista, Hegel converte o conhecimento teórico num fim em si próprio. O revolucionário Tchernichevski, porém, procurava a teoria autêntica que nasce da vida e que se converte num poderoso instrumento da luta do homem. A vida não é para a teoria, a teoria que é para a vida, para transformá-la revolucionariamente.

Tchernichevski considerava Feuerbach representante da concepção autenticamente científica da vida. Só Feuerbach, apoiando-se firmemente nas ciências naturais, tinha criado uma nova filosofia. A filosofia científica deve partir dos fatos e dados das ciências naturais. Só uma filosofia assim pode ser a filosofia materialista. Tchernichevski procurava emancipar as ciências naturais da influencia de Hume e de Kant e, em geral, dos sistemas idealistas, e defendia ardentemente a necessidade da concepção filosófica universal materialista do mundo para os experimentadores naturalistas.

Ridicularizava aos naturalistas que, no campo filosófico, continuavam sendo discípulos do subjetivismo e do agnosticismo. Acentuava que os experimentadores naturalistas que renunciam ao materialismo, que ignoram a filosofia materialista, convertem-se inevitavelmente em prisioneiros das escolas idealistas reacionárias.

Em seu artigo, "Princípio Antropológico na Filosofia" escreve que, por filosofia, se deve entender a teoria da solução do problema geral "da relação entre o espírito e a matéria". Como Feuerbach, Tchernichevski aborda a solução desse problema filosófico fundamental por meio da antropologia, a ciência do homem. O princípio da antropologia, escreve Tchernichevski acompanhando Feuerbach, é o princípio da unidade do organismo humano. No homem manifestam-se fenômenos de dois tipos. Dum lado, o homem come, anda; esses fenômenos são de ordem material. Do outro lado o homem pensa, sente; estes são fenômenos de ordem espiritual. O idealismo toma como base o lado espiritual da vida, ao qual atribui uma existência independente. Os idealistas declaram que o mundo material e o organismo humano real constituem algo derivado, secundário, em relação com o princípio espiritual. O princípio antropológico na filosofia, opondo-se ao idealismo, parte do critério da unidade do espiritual com o material no homem. As manifestações morais e racionais do homem não podem existir independentemente de seu organismo. O organismo humano pensa, sente, deseja; quer dizer, de certa forma é uma matéria organizada. O homem, portanto, é uma parte peculiar da natureza, e a consciência é sua propriedade particular.

Tchernichevski desejava universalizar o princípio antropológico, introduzi-lo no domínio da estética, da ética, da economia política, tomá-lo como base da interpretação dos fenômenos sociais. Ao adotar como ponto de partida na sociologia, não o homem historicamente concreto, mas a espécie humana, o homem "em geral", Tchernichevski continuou sendo idealista no terreno da história, não obstante os consideráveis elementos de materialismo das suas concepções históricas.

Lenin falava da estreiteza da locução "princípio antropológico" de Feuerbach e de Tchernichevski. Entretanto, em sua posição revolucionária ativa diante dos fenômenos sociais, Tchernichevski afastava-se seguidamente da linha consequente do princípio antropológico. Em sua crítica da democracia burguesa formal, demonstrou que o homem não e uma categoria jurídica abstrata, mas um ser real em cuja vida e felicidade "a parte material (a existência econômica) tem uma grande importância"(132). Também na luta contra a teoria racial demonstrou que não existem qualidades metafísicas imutáveis de tribo, de espécie, ou de raça. Todas as propriedades mentais e mesmo as fisiológicas dos homens, afirmava Tchernichevski, foram adquiridas por via nitidamente histórica. Em seguida tampouco o satisfaz a teoria dos meios geográficos, que considera o progresso do homem e de sua cultura resultante de condições inteiramente estranhas à sociedade . A interpretação científica da existência do homem, sustenta Tchernichevski, não deve partir só da relação do homem com a natureza, mas de sua relação com a sociedade civil. A sociedade compõe-se de classes que, por seus interesses econômicos antagônicos, se mantêm em luta irreconciliável. Assim, devido à atitude ativa, revolucionária, Tchernichevski aproxima-se da interpretação mais concreta, histórica, do homem, dos fenômenos sociais, que por vezes o leva além dos limites do princípio antropológico abstrato.

Na influência dos objetos exteriores sobre os órgãos dos sentidos do homem, via Tchernichevski a fonte do conhecimento. O próprio fato da sensação, escrevia, supõe já a existência de dois elementos:

"primeiro, há um objeto exterior que produz a sensação; segundo, um ser que sente que nele se efetua uma sensação".

O mundo é incontrovertivelmente cognoscível. O critério da verdade e do conhecimento é para Tchernichevski a experiência, a prática. Criticou severamente o agnosticismo de Kant. Em sua crítica de Kant, diz Lenin, Tchernichevski é inferior a Engels,

"porquanto confunde a oposição do materialismo ao idealismo com a oposição do pensar metafísico ao pensar dialético; contudo está à altura de Engels ao não reprovar Kant por falta de realismo, mas sim por agnosticismo e subjetivismo, não por admitir "a coisa em si", mas por não saber deduzir nosso conhecimento dessa "fonte objetiva".

Lenin considerava que Tchernichevski era o único pensador russo

"que tinha sabido, desde os anos 50 até próximo ao ano 88, por-se à altura do materialismo filosófico puro e desfazer os maus embustes dos neo-kantianos, positivistas, machistas e demais confusionistas"(133).

O democrata revolucionário Tchernichevski não admitiu compromissos na luta política; o materialista Tchernichevski foi intransigente com toda a espécie de tendência filosófica anticientífica, idealista. Considerava o positivismo de Comte como produto "duma cabeça limitada". Compreendia a dependência existente entre os sistemas filosóficos, e em geral entre os sistemas científicos, e os interesses políticos das classes e dos partidos. Nesse sentido, oferece-nos uma formidável característica das diversas doutrinas filosóficas dos representantes da filosofia inglesa, francesa e alemã. Considera que essas doutrinas estão impregnadas dos pés à cabeça com o espirito dos partidos políticos a que pertenciam seus autores. Conforme os caracteriza Tchernichevski, foram: Hobbes, um absolutista; Locke, um "whig" (liberal); Milton, republicano; Rousseau, democrata revolucionário; Kant pertencia ao partido que quis implantar na Alemanha a liberdade por via revolucionária , embora detestando os métodos terroristas; Hegel é um liberal moderado, extraordinariamente conservador em suas conclusões, porém que aceita, para a luta contra a extrema reação, os princípios revolucionários, com a esperança de impedir o desenvolvimento do espírito revolucionário que serve de instrumento para destronar a antiguidade demasiadamente caduca. Noutro lugar escreve Tchernichevski, que Adam Smith e os enciclopedistas franceses eram representantes da burguesia da época

"em que as reivindicações da camada média emanavam dos princípios democráticos e estavam animadas por pensamentos sobre o homem em geral e não sobre o comerciante, sobre o fabricante, sobre o banqueiro".

Lenin chamou Tchernichevski "o grande hegeliano russo". Com efeito, Tchernichevski não era apenas um materialista feuerbachiano, mas também um dialético. Todavia, distinguia-se de seu mestre Feuerbach, por ser militante. Apoiado no movimento revolucionário dos camponeses chegou, na filosofia, mais longe que Feuerbach. As obras de Tchernichevski contêm uma compreensão profunda de numerosos aspectos do método dialético. Em seu artigo, "Princípio Antropológico da Filosofia", por exemplo, atravessa como um fio vermelho o pensamento de que

"a união das qualidades completamente distintas num só objeto é a lei geral das coisas".

Também ali assinala como a união do hidrogênio e do oxigênio, em certas proporções, forma a água que tem muitas qualidades que não se notam quer no oxigênio quer no hidrogênio. Apoiado neste exemplo, Tchernichevski indica como

"as diferenças quantitativas transformam-se em qualitativas".

Em suas observações sobre o livro do naturalista inglês Carpentier "Energia na Natureza", Tchernichevski fala da transformação do calor em movimento mecânico e vice-versa, como de uma lei natural.

Tchernichevski não se interessava pela dialética de forma abstrata nem apenas teoricamente. A dialética atraia-o, antes de tudo, como meio de ação justa baseada no conhecimento justo.

Para Tchernichevski a dialética era um instrumento que devi ajudar a esclarecer sem equívocos o caminho e o modo de resolver as tarefas da revolução camponesa.

Em nenhum aspecto importante da história há êxitos que se tenham obtido sem luta, ensinava Tchernichevski. Para o homem deixar de ser um espectador passivo dos acontecimentos que se avizinham se converter em ator, não deverá construir sua atividade prática sob a base da realidade.

"Só têm valor os desejos que se apoiam na realidade; só se pode esperar êxito das esperanças provocadas pela realidade e naquilo que se realiza com a ajuda das forças e circunstâncias que a representam"(134), escrevia Tchernichevski.

Por isso, tem uma primordial importância levar em conta todas as condições de que direta e indiretamente depende um determinado assunto revolucionário, pois que nos facilita conhecer para onde nos conduzem os acontecimentos e a linha de conduta que devemos adotar. A condição mais indispensável de uma conduta e duma tática justas, consiste, segunda Tchernichevski, no tratamento concreto dos fenômenos, no pensamento concreto, que, a seu ver, caracteriza em primeira mão o método dialético.

Tchernichevski opunha o método dialético ao pensamento abstrato. Este não pode ser instrumento de tática revolucionária, pois parte das formas e dos meios de luta absolutos, supostos convenientes em todos os tempos. O pensamento abstrato guia-se por princípios eternos, absolutos; em troca "tudo depende das circunstâncias, das condições locais e do tempo"(135). Uma guerra, por exemplo, é perniciosa ou benéfica? De maneira abstrata não se pode responder a tal pergunta. Há guerras, como as de conquista, de rapina, que são perniciosas para o povo, são guerras injustas. Há também outra classe de guerras nobres, justas, como a guerra de 1812, por exemplo, que "foi salvadora para o povo russo"(136).

Ao aplicar o método dialético à observação dos fenômenos e da realidade em todos os aspectos, convencemo-nos de que na natureza e na sociedade humana nada existe cristalizado, constante, imutável.

"Toda a vida, escrevia Tchernichevski, é uma polarização, um magnetismo, uma eletricidade, em toda a parte vemos a divisão das forças em duas que tendem para direções opostas"(137).

Um revolucionário não deve ignorar estes aspectos antagônicos, as tendências que mutuamente se excluem. Deve ser mestre de um conhecimento exato que utilize corretamente todos os lados positivos e negativos da vida e que, partindo das circunstâncias e do tempo, determine a própria conduta. Deve achar os meios de luta em consonância com a situação, elaborar novas formas de luta ao criarem-se novas condições, saber avançar calculando exatamente as forças, manobrar e, se as circunstâncias exigem, estar pronto para retirar, conservando suas forças.

Tchernichevski criticou duramente os homens que só vêm a evolução na história e que confiam nas reformas. Ridicularizava os que sonhavam com o movimento de avanço harmônico, "sem dores". O processo evolutivo não é uma luta de duas forças sinônimas. No processo evolutivo, um lado tem sempre preponderância sobre o outro. "

A unidade básica decompõe-se numa multidão de correntes, das quais a mais favorecida pelas circunstâncias históricas consegue dominar todas as outras, relegando-as a segundo plano"(138).

A luta das contradições irreconciliáveis conduz à destruição revolucionaria, as explosões, à destruição do velho e à geração do novo.

"O movimento da salto após salto"(139).

Mais ainda, os grandes problemas históricos, segundo o ponto de vista de Tchernichevski, não podem ser resolvidos a não ser por uma revolução. A revolução é a obra mais construtiva da historia. Deste modo, o método dialético serviu a Tchernichevski de meio para fundamentar a revolução camponesa, sua tática e sua estratégia.

Contudo, conseguiu Tchernichevski basear sua atividade democrático-revolucionária no conhecimento científico, dialético, da evolução social? Descobriu com seu método as leis que regem a sociedade humana? Percebeu as forças sociais capazes de realizar a revolução, triunfante e construir o socialismo? É preciso não esquecer que todo o seu programa se baseava no movimento democrático camponês. O socialismo de Tchernichevski, baseado na revolução camponesa era um socialismo utópico, seu método dialético, que lhe servia para fundamentar teoricamente a revolução camponesa e o socialismo utópico, era, entretanto, limitado, abstrato.

Tchernichevski não criou uma teoria sistemática e harmônica da dialética.

Contudo a essência da dialética consiste na lei da unidade dos contrários. Tchernichevski fez reluzir preferentemente os aspectos derivados dessa unidade: o historicismo o caráter concreto da verdade, a transformação da quantidade em qualidade, etc. Tchernichevski não soube superar completamente o caráter limitado e contemplativo do materialismo feuerbachiano. Falava da aplicação prática da teoria na luta revolucionária. Porém com isto, entendia preferentemente as tarefas da ilustração. O materialismo de Tchernichevski foi, em última instância, um materialismo abstrato, antropológico. Tchernichevski como Hertzen, é o ponto fronteiriço do movimento revolucionário, anterior ao proletariado, e do materialismo, anterior à Marx, na Rússia. Tchernichevski estava plenamente à altura do pensamento de vanguarda de seu tempo; contudo, devido ao atraso da vida russa, não soube, ou melhor dito, não pôde elevar-se ao materialismo dialético de Marx e Engels. O materialismo dialético só encontrou na Rússia seu mais vasto campo de desenvolvimento graças à atividade dos ideólogos da classe operária: Lenin e Stalin.

N. A. Dobroliubov

Nicolau Alexandrovich Dobroliubov foi o mais destacado companheiro de Tchernichevski na luta revolucionária. Uniu-os a amizade e a idêntica concepção do mundo. Dobroliubov, como Tchernichevski, considerava que só a filosofia materialista pode ser um instrumento espiritual da democracia revolucionária. Concentrou sua atividade de preferência na crítica literária, que sempre foi na Rússia o campo de batalha mais importante por sua influência na sociedade.

Dobroliubov nasceu em Nijni Novgorod em janeiro de 1836, na família dum sacerdote. Em 1853, mudou-se para Petersburgo e ingressou na Faculdade Histórico-Filológica do Instituto Pedagógico Principal, onde logo travou conhecimento e amizade com um dos estudantes de tendência revolucionária. Em 1854, organizou-se no Instituto um círculo revolucionário clandestino, no qual Dobroliubov desempenhava o papel dirigente. Era a alma do periódico estudantil ilegal. Estudava cuidadosamente as obras dos pensadores ocidentais, entre eles Hegel, Feuerbach, os nacionais Belinski, Hertzen, Tchernichevski e em 1856 tornou-se democrata revolucionário, socialista utópico e materialista feuerbachiano. Em 1857 concluiu seus estudos no Instituto e começou a colaborar no "Contemporâneo", no qual Tchernichevski encarregou-o da secção de crítica literária que até então ele próprio dirigira. Pouco tempo depois, Dobroliubov passou a ser um dos redatores do "Contemporâneo", começando sua atividade literária, que ao todo durou cinco anos. Durante esse curto período, Dobroliubov, ainda jovem, revelou um extraordinário talento literário pela riqueza de seus pensamentos e por sua orientação social, colocando-se no mesmo nível de Belinski e de Tchernichevski. As principais obras de crítica literária de Dobroliubov são: "Que é ó Oblomovismo?" (1859), "O Reino das Trevas" (1859), "Quando Chegue o Verdadeiro Dia" (1860), etc. Escreveu também uma série de artigos filosóficos "O Desenvolvimento Orgânico do Homem em Relação com Sua Atividade Racional e Moral" (1858), "Fundamentos da Psicologia Experimental", etc. Quando o jovem revolucionário e crítico começou a tomar parte na redação do "Contemporâneo" se fortaleceu extraordinariamente a posição da ala radical dessa revista. Seus colaboradores liberais, entre eles Turgeniev, não podendo suportar o convincente Dobroliubov, separaram-se da revista. A cisão dos membros da redação do "Contemporâneo" era o resultado da delimitação definitiva de dois campos irreconciliáveis: o campo dos liberais e o dos democratas revolucionários. Dobroliubov era um dos chefes do movimento democrático-revolucionário. Consagrou-se inteiramente ao movimento e, literalmente, liquidou-se em seu posto. Contraiu tuberculose e morreu em novembro de 1861 aos 25 anos de idade, nos braços de seu amigo Tchernichevski.

Dobroliubov compreendeu muito bem o enorme valor da teoria. Já num dos seus primeiros trabalhos, atacou rijamente os críticos literários dedicados tão somente a colecionar fatos referentes à vida deste ou daquele escritor, ou circunstâncias em que foi escrita sua obra. A seu ver, a crítica literária, como em geral a ciência, não pode prescindir de conclusões e sínteses teóricas. Está claro que a síntese científica, a ciência em geral, toma para ponto de partida os fatos, a realidade; não se limita porém à observação e à notação dos fatos. Partindo da multidão dos fatos, é preciso saber criar conceitos gerais que deem possibilidade de conhecer os fenômenos em sua evolução rígida por leis determinadas. Neste caso, a ciência pode prever o futuro, conduzir à novas descobertas e invenções, encaminhar a ação humana segundo um plano determinado. Tais conhecimentos representam, na realidade, uma força enorme na luta do homem por sua felicidade.

No entanto, Dobroliubov, como Tchernichevski, não acreditava que só a divulgação da cultura pudesse transformar as condições sociais da vida. Os ilustrados russos a maneira de Dobroliubov e Tchernichevski destacavam constantemente o importante papel da ciência, da literatura e da arte, mas viam na luta revolucionária a forma decisiva da transformação da sociedade. Sob este aspecto, a atuação de Dobroliubov e de Tchernichevski distinguiu-se fortemente da dos social-utópicos do Ocidente, Saint Simon, Fourier e Owen. Dobroliubov e Tchernichevski não eram apenas grandes socialistas utópicos, mas também combatentes apaixonados, democratas revolucionários.

Na solução do problema fundamental da filosofia, Dobroliubov destacou os pontos de vista igualmente unilaterais e inadmissíveis. De um lado, o "materialismo grosseiro" (quer dizer, o materialismo vulgar) que considera a alma um cúmulo de partículas sutis da matéria, ponto de vista com que Dobroliubov estava resolutamente em desacordo. Do outro lado, o idealismo com sua afirmação, mais absurda ainda, de que a alma não depende da matéria. Acompanhando Feuerbach e Tchernichevski, Dobroliubov fala da unidade do espiritual e do material no homem. Tomando como ponto de partida o princípio antropológico, demonstra o condicionamento de todos os fenômenos psicológicos por processos fisiológicos no organismo. Assim como não é possível falar sem língua e ouvir sem ouvidos, tampouco é possível pensar sem cérebro. O cérebro é o órgão natural do pensamento. O pensamento, a consciência é, portanto, uma propriedade particular da matéria.

Ao resolver de uma maneira estritamente materialista o problema fundamental da filosofia: a relação entre o espírito e a matéria, Dobroliubov não duvidava de que o homem estivesse em condições de alcançar um conhecimento exato da realidade apoiado na experiência e na observação. Partia do princípio da cognoscibilidade do mundo e refutava todos os argumentos dos agnósticos e dos subjetivistas.

"O homem, escreve Dobroliubov, não extrai os conceitos do seu íntimo mas os recebe do mundo exterior; isto, sem dúvida, está demonstrado por inúmeras observações."

Para Dobroliubov, a ciência, a literatura, a arte, que refletem exatamente o mundo, são elementos importantes da vida humana. Achava que sua importância seria imensa se elas se impregnassem do espírito do povo e seus interesses. A literatura e a arte, segundo a convicção do jovem crítico, deviam conduzir ao ponto de vista universal, popular, o único justo. A equidade significava emancipar o homem de toda a opressão e assegurar-lhe a felicidade. Por natureza, é inerente ao homem a aspiração de satisfazer suas necessidades; neste sentido o homem é egoísta. Ser egoísta, do ponto de vista de Dobroliubov e de Tchernichevski, supunha ser independente, livre em suas ações das autoridades despóticas exteriores. Esta interpretação da moral dirigia-se contra a velha ética idealista então vigente. A ética anterior, que pregava o ascetismo e a obediência escravista, servia às classes remediadas. Os democratas revolucionários, em compensação, partiam da consciência da dignidade pessoal, do direito, da liberdade e da independência do homem, e, negando qualquer espécie de mandatos alheios ao homem, fizeram da luta pelos interesses do povo uma causa própria, a base da sua existência. A juízo de Tchernichevski e de Dobroliubov, o egoismo da personalidade, não abandona e mesmo supõe a atividade e, se for preciso, o sacrifício pela felicidade geral dos trabalhadores.

Em suas obras, Dobroliubov oferece-nos modelos claros e revolucionários. Não devem ser demagogos ocos, mas práticos reais; não sonhadores, mas ativistas. Nesses homens, a ciência penetra-lhes a carne e o sangue e se expressa em ações, as quais estão sempre dirigidas por um entendimento razoável. Vão à luta de acordo com um plano seriamente meditado de antemão.

Dobroliubov e Tchernichevski procuravam organizar a luta contra a autocracia feudal, baseando-se num conhecimento exato das leis objetivas que regem a evolução da sociedade, mas não souberam descobrir essas leis da evolução social. Não chegaram à interpretação materialista da história, permaneceram idealistas no terreno da história, embora partissem da iniciativa das massas e do povo. Estavam também separados da concepção populista, segundo a qual só fazem a história os homens que pensam criticamente.

Adotando a posição do liberalismo burguês, os populistas retrocederam em comparação com Dobroliubov e Tchernichevski. Lenin, em sua luta contra os piores inimigos do marxismo, os populistas, demonstrou que os herdeiros legítimos das tradições revolucionárias avançadas da década de 60 são a classe operária da Rússia e a social-democracia russa. Lenin qualificou Tchernichevski e Dobroliubov, como Hertzen e Belinski, de precursores da social-democracia russa.

D. I. Pisarev

Pisarev aderiu imediatamente à ala revolucionária da década de 60 encabeçada por Tchernichevski e Dobroliubov. Estava ao lado deles na luta contra a autocracia tzarista contra a religião e o idealismo, pela liberdade, pela cultura, pela ciência. Nessa luta, Pisarev era uma das figuras centrais da ala esquerda, antifeudal, radical. No entanto, entre Tchernichevski, Dobroliubov e Pisarev também existiam divergências. Pisarev surgiu quando já havia começado o refluxo do movimento revolucionário, quando a revolução camponesa tinha fracassado e a reação feudal começara a tomar a ofensiva. Pisarev não rompeu com as tradições de Dobroliubov e Tchernichevski, porém, afastou-se tanto delas, no que se refere às aspirações de classe, como em suas convicções teóricas.

Dimitri Ivanovich Pisarev nasceu em 1840 numa família de latifundiários da província de Orlov. Em 1858 ingressou na Faculdade Histórico-Filológica da Universidade de Petersburgo. Começou sua atividade literária em 1858. Em 1861, começou a trabalhar no "Russkoe Slovo" (Palavra Russa), da qual fez uma das revistas mais avançadas e influentes. Em 1861 publicou uma série de artigos filosóficos: "O idealismo de Platão", "Esboços Fisiológicos de Moleschott", "O processo da vida" (devido às "Cartas Fisiológicas" de K. Vogt), "Os quadros fisiológicos segundo Büchner" (1862). Nesses artigos, Pisarev solidariza-se com as teses fundamentais dos representantes do materialismo vulgar. Em 1862 escreveu para uma imprensa ilegal um artigo em que incitava à revolução e à derrubada do poder tzarista, motivo pelo qual foi detido e mantido durante quatro anos e meio na fortaleza de Pedro e Paulo. Tendo pedido permissão para continuar sua atividade jornalística no cárcere, escreveu ali seus mais destacados artigos: "Os realistas" (1864), "O proletário pensante" (1865), etc. Depois de posto em liberdade, em 1866, colaborou nas "Memórias Pátrias" cujo diretor era então Nekrasov. Pisarev morreu afogado em 1868, em Dubeln, balneário do litoral báltico.

Pisarev estava profundamente convencido de que o idealismo era o maior obstáculo no caminho da verdadeira ciência. O idealismo entrava o pensamento humano avançado que o materialismo desenvolve; por isso Pisarev se mostra firme defensor de uma orientação materialista na filosofia e critica os idealistas. Ataca, com particular dureza, o idealismo de Platão. Contudo, sua crítica do idealismo realiza-se do ponte de vista do materialismo vulgar, sem nada enxergar de positivo no idealismo.

Diferencia-se de Tchernichevski e Dobroliubov, por manter-se severamente negativo ante Hegel, sem saber apreciá-lo como criador do método dialético. A dialética, do ponto de vista de Pisarev, é "um charlatanismo vazio" e alheia no fundo ao pensamento científico.

Pisarev compreendia também que o idealismo obedece a certas causas. Indicou como raízes teóricas do conhecimento idealista a inclinação do homem para o sonho, para a fantasia. Pisarev não nega que a fantasia possa desempenhar um papel positivo; ainda mais, a seu ver, a fantasia é condição da criação poética. Mas o sonho e a fantasia conduzem à consequências prejudiciais quando separadas dos fatos, da vida, e levam ao idealismo. Pisarev não soube descobrir as origens classistas do idealismo. Considerava que o homem normal, são, só pode ter uma concepção materialista do mundo.

"Parece-me, escrevia, que não há nenhuma filosofia no mundo que se ajuste tão firme e facilmente à mentalidade russa como o atual materialismo".(140)

Pisarev apresenta a dependência do espírito e da matéria de uma maneira muito simples. Segundo ele, os pensamentos e os sentimentos não dependem apenas da matéria, mas surgem como resultado direto da nutrição, como, por exemplo, o processo da digestão. A diferença no caráter dos povos depende da diferença de sua nutrição. Seguindo as pegadas dos materialistas vulgares, Pisarev compara o pensamento com os processos materiais que se efetuam no organismo. Do ponto de vista do materialismo dialético, este conceito da relação entre o espírito e a matéria é falso. Também não podiam aceitá-lo Feuerbach e seus discípulos russos, Tchernichevski e Dobroliubov, que consideravam justamente o espírito como uma propriedade particular da matéria.

Segundo Pisarev, o instrumento mais fiel contra o idealismo, a religião e a ignorância, é o desenvolvimento das ciências naturais as quais considerava o fundamento da verdadeira ciência. Ao ajudar os homens a dominar as forças da natureza, as ciências naturais constituem a condição prévia para o progresso da técnica e da indústria. Pisarev via nas ciências naturais a grande força emancipadora na luta contra a inércia espiritual e social. Fez muito pela causa da propagação das ciências naturais, particularmente da teoria de Darwin; na Rússia atrasada e despótica daquela época, refletiam-se objetivamente nesta propaganda as aspirações avançadas do desenvolvimento capitalista do país. Por isso, o materialismo científico naturalista de Pisarev tinha para a Rússia daquela época, um valor progressista.

Pisarev pensava que as ciências naturais podem prescindir da síntese teórica e da concepção filosófica. Segundo ele, qualquer filosofia é idêntica ao idealismo. Vimos como Tchernichevski, ao manifestar-se contra a filosofia idealista, defendia a necessidade da teoria filosófica geral materialista. Em troca, Pisarev refuta por princípio a filosofia, a teoria e a concepção filosófica, confundindo-as em geral com o idealismo e a escolástica.

Na teoria do conhecimento, Pisarev baseia-se nos fatos concretos percebidos por meio dos órgãos e dos sentidos. Segundo ele, a ciência não descobre os conceitos gerais e as leis, mas se contenta com a descrição do que nos oferece a experiência. Às vezes, chega à conclusão de que não podemos conhecer a existência das coisas que nos oferecem as sensações. Apesar destes elementos do agnosticismo, Pisarev, em geral, é materialista, e na teoria do conhecimento reconhece a possibilidade de conhecer a essência das coisas.

Sob a influência do positivismo, Pisarev chegou a conclusões subjetivas sobre as ciências históricas e a estética. Acredita que a história é uma ciência subjetiva e que não existem normas estéticas e morais objetivas. Neste ponto Pisarev fica atrás de Tchernichevski e Dobroliubov que, apesar de não terem superado o idealismo histórico, reconheciam a necessidade da ciência histórica objetiva. Pisarev afirmava que a força motriz da história é a intelectualidade, que o curso da história está determinado pelo nível do desenvolvimento teórico da intelectualidade. Esta característica da intelectualidade foi tomada e mais exagerada ainda pelo povo.

Depois de Pisarev começa a linha descendente, a linha da ideologia populista, que desce ao subjetivismo e ao agnosticismo de Lavrov e de Mikhailovski. O movimento trabalhista revolucionário e o triunfo do marxismo abrem nova e superior etapa no desenvolvimento do pensamento filosófico na Rússia.

A Filosofia Russa Durante o Período da Hegemonia do Proletariado no Movimento Revolucionário

Os Populistas e sua Luta Contra o Marxismo

Os grandes democratas revolucionários e socialistas utópicos russos Belinski, Hertzen, Tchernichevski, Dobroliubov, foram, segundo os caracteriza Lenin, os precursores da social-democracia russa. Por causa do atraso da Rússia nos meados do século XIX, não souberam elevar-se à altura do marxismo. Naquela época ainda não existiam as condições para o nascimento de um movimento operário de massas e para a criação de um partido do proletariado na Rússia. Por isso se estendeu durante a década de 60 a 70 a corrente revolucionária pequeno-burguesa, a pior inimiga do marxismo: o populismo.

"A emancipação dos camponeses" em 1861 foi uma reforma semi-burguesa, incompleta, realizada de cima pelos proprietários territoriais feudais. Os camponeses, e em geral a pequena burguesia, encontravam-se sob um duplo jugo: de um lado, as sobrevivências feudais e, do outro lado, o capitalismo que se desenvolvia e conduzia as massas populares à ruína e à miséria. O populismo expressava também o protesto das massas camponesas contra esta opressão e ruína, protesto que, devido a falta de uma direção proletária, seguiu um caminho utópico e falso, e adotou as formas monstruosas das doutrinas idealistas e dos populistas.

Os maiores teóricos do populismo foram M. Bakunin, P. Lavrov. P. Tkachev, N. Mikhailovski. Nos problemas de tática havia divergências entre eles. Assim, Bakunin sustentava que o camponês é um rebelde inato, e defendia o levante camponês espontâneo. Por outro lado, Lavrov era de opinião que faltava uma grande preparação dos camponeses para a revolução, por meio de uma propaganda pacífica, por meio da ida da juventude revolucionária "ao povo". Tkachev proclamou a teoria da tomada do poder político por meio de um "complot" da organização conspiradora. Mikhailovski foi um epígono do populismo: renunciou a toda luta revolucionária contra o tzarismo; foi um burguês liberal, ideólogo dos camponeses ricos (kulaks).

Quanto às teses teóricas gerais, porém, em sua concepção filosófica geral, as diversas correntes do populismo estavam de acordo no fundamental. Os populistas se apropriaram dos aspectos mais débeis e utópicos das doutrinas de Hertzen e Tchernichevski, desfigurando-as e piorando-as. Reciclaram a teoria reacionária da independência do desenvolvimento da Rússia. A seu ver, a Rússia podia evitar a fase do capitalismo e chegar ao socialismo sobre a base da conservação das comunas camponesas. Negavam a diferença de classes existente no campo russo, e de uma maneira completamente falsa proclamaram a comuna como "célula do socialismo" e o camponês como um "socialista inato". Apoiando-se nisto, declararam que os camponeses podem realizar a revolução socialista prescindindo da direção do proletariado, e que a experiência do movimento trabalhista da Europa Ocidental e as doutrinas de Marx eram inaplicáveis na Rússia.

Contra os materialistas e dialéticos Hertzen e Tchernichevski, os populistas colocaram-se no campo do idealismo subjetivo. Uniram, de uma maneira eclética, os diversos sistemas idealistas, os de Comte, Spencer, dos kantianos, etc. Nos problemas filosóficos se manifestaram como positivistas e agnósticos. Lavrov escrevia que o mundo permanece desconhecido em sua essência e representa para o homem um conglomerado de fenômenos cognoscíveis com um fundo incognoscível. Mikhailovski, discípulo de Lavrov, acentuou ainda mais o agnosticismo e o idealismo, atacando duramente a dialética de Hegel e de Marx.

Quanto à sociedade, à marcha da história humana, os populistas sustentavam concepções anticientíficas. Negavam a existência das leis que regem a evolução social, consideravam a história como o resultado de uma cadeia de casualidades, de ações espontâneas de diversos homens.

"O único criador real do progresso, dizia Lavrov, é a personalidade".

Os populistas puseram em evidência a teoria perniciosa dos "heróis" ativos e da "multidão" passiva. Segundo esta "teoria", a história é feita apenas pelos diversos heróis destacados, as "personalidades que pensam criticamente", segundo sua aspiração e desejo, sem a participação das massas populares. A massa, a "multidão", como pejorativamente a chamavam os populistas, e incapaz de realizar ações conscientes e organizadas; a massa espera dos "heróis" a libertação, e só faz segui-los cegamente. Negavam o papel das massas e chegavam a negar o papel das classes, e em geral da luta de classes. Segundo os populistas, o progresso social suaviza cada vez mais as contradições de classe, enfraquece o poder dos exploradores sobre as massas, conduz ao crescimento da solidariedade e da colaboração entre os homens; por isso renunciavam às tentativas de desenvolver um trabalho revolucionário de massas entre os camponeses e os trabalhistas, tomando o caminho do terror individual.

As ideias dos populistas causaram muitos prejuízos à causa do movimento revolucionário; impediram que o proletariado compreendesse seu papel dirigente; puseram obstáculos ao estabelecimento da aliança da classe operária com os camponeses. A tática do terror individual freava a criação de um partido de massas da classe trabalhadora baseado nas doutrinas de Marx; o aniquilamento da teoria e da tática do populismo, o pior inimigo do marxismo, era portanto indispensável para o triunfo do marxismo na Rússia.

Se os populistas da década de 60 a 70 sustentavam, contudo, embora de pontos de vista errados, certa luta revolucionária contra o tzarismo, os populistas da década de 80 a 90 (Mikhailovski e outros) converteram-se nos ideólogos dos camponeses ricos (kulaks) e em nada se diferenciavam dos liberais burgueses. Chegaram a declarar que o governo tzarista era o "libertador" dos camponeses, o que os "salvava" da ruína e miséria.

Compreende-se então por quê o populismo foi o pior inimigo do marxismo e por quê os marxistas revolucionários sustentaram uma luta intransigente contra o populismo, até acabar por completo com ele.

A Filosofia Idealista Reacionária

Com o nascimento e a expansão do marxismo na Rússia, a filosofia burguesa russa fez-se definitivamente reacionária, passando-se quase integralmente para o lado do idealismo. Durante a última década do século XIX e no princípio do XX, apareceu a escola arquirreacionária místico-religiosa de Vladimir Soloviev. Os "filósofos" desta "escola", vertendo torrentes de lodo sobre o materialismo, pondo de lado toda ciência em geral, tentaram restabelecer a mística e a escolástica medievais, e tornar a converter a filosofia em serva da teologia. Pregavam a formação de uma monarquia universal cristã baseada na escravidão. Todos os temas das obras desta escola giravam em tomo dos problemas bíblio-evangélicos. Por exemplo, os discípulos de Soloviev declaravam que a revolução de 1905 era obra do anticristo; apresentavam a revolução como um dos males trazidos aos homens pelos cavaleiros do Apocalipse. Durante a guerra, todos os filósofos dos "séculos negros" intervieram na furiosa propaganda chauvinista e antissemita.

A esta "escola" se uniram os chamados "construtores de deus" (Merezhjovski, o ex-marxista legal Berdiaev, Bulgakov, e outros) pondo-se à mesma altura ideológica. Os "construtores de deus" tomaram parte na publicação cadete "Veji" (Estacas) editada em 1903. Nesta publicação se exaltava o Estado autocrático da polícia, se incitava os intelectuais a deixar a ciência e o materialismo e passar ao serviço da burguesia. Depois da Revolução de Outubro, toda turma dos "construtores de deus" fez parte da emigração branca.

Ao mesmo tempo que esta "filosofia" dos "séculos negros", divulgaram-se bastante entre a burguesia russa e a intelectualidade burguesa as diversas tendências idealistas mais encobertas de fraseologia "científica": o neo-kantismo, o neo-hegelianismo, o positivismo, o machismo, etc. Estas tendências não se diferenciavam em nada das dos solovievanos e "construtores de deus", e lutavam juntas contra o marxismo, colaborando nas mesmas publicações.

Também aderiu à filosofia idealista burguesa a maioria dos "socialistas" do campo oportunista. Os marxistas legais (Struve) e os economistas (Prokopovich) pleitearam a necessidade de uma revisão neo-kantiana do marxismo. O dirigente dos social-revolucionários, Chernov, foi um neo-kantiano a princípio; depois fez-se machista. Entre os mencheviques, apenas um pequeno grupo, com Plekhanov à frente, defendia, embora com erros, o materialismo; em troca, a maioria dos mencheviques ocupava uma posição machista ou kantiana. Também os "liquidadores ao revés", os otzovistas (Bogdanov, Lunacharski e outros) pregavam o machismo. Os "socialistas" machistas e kantianos sustentavam, contra a filosofia marxista leninista, uma luta que não era menor que a de seus companheiros do campo da contrarrevolução burguesa.

A luta filosófica adquiriu uma importância e um azedume particulares durante a época da reação que seguiu a derrota da revolução de 1905. Esta derrota criou uma base favorável à divulgação das tendências ideológicas reacionárias. A reação política ia acompanhada da reação espiritual. Lenin desmascarou o papel reacionário que desempenharam estas "escolas" e tendências idealistas.

"Só a pau, só a chicote, é pouco, escrevia Lenin; com tudo isto, o pau se quebra. Os "vejovistas" ajudam a burguesia de vanguarda a munir-se de um novo pau ideológico. O machismo, como variante do idealismo, é objetivamente um instrumento da reação, um guia da reação. A luta contra o machismo... não é, pois, casual, mas inevitável, num período histórico (1908-1910), em que vemos "acima", não somente a "Devota Duma" dos outubristas e dos Purishkevichs, mas também a dos devotos cadetes, a devota burguesia liberal"(141).

Sobre a luta de Lenin e Stalin contra o machismo e as demais formas do revisionismo político e filosófico fala-se detalhadamente no capítulo "O Desenvolvimento da Filosofia do Marxismo por Lenin a Stalin".

O Materialismo na Ciência Russa

Os únicos defensores consequentes do materialismo foram os bolcheviques com Lenin e Stalin à frente. Fora das fileiras da social democracia, o campo materialista era bastante débil. O governo tzarista proibia o acesso às cátedras universitárias aos materialistas, como em geral aos livres-pensadores, por mais moderados que fossem. As revistas populares propagaram de preferência o materialismo vulgar mecanicista que foi criticado a fundo e ridicularizado por Engels.

Contudo, apesar de todas as perseguições, o tzarismo não conseguiu esmagar as tradições materialistas da ciência russa.

Os maiores representantes das ciências naturais na Rússia eram materialistas científico-naturalistas. O grande fisiologista I. M. Sechenov (1829-1905) fundador da fisiologia russa, e seu discípulo e continuador I. P. Pavlov (1849-1936), um dos maiores sábios do mundo, clássico autêntico das ciências naturais, lançaram as bases para a interpretação materialista verdadeiramente científica da psiquê humana. A fisiologia da suprema atividade nervosa, elaborada por eles, a teoria de Pavlov dos reflexos condicionados, estabeleceram o fundamento materialista para o estudo da conduta do homem, convertendo a psicologia numa ciência objetiva. Estabeleceu-se o laço exato que existe entre o cérebro e a atividade psíquica dos homens e dos animais; com isso se reafirmou cientificamente a tese básica do materialismo que afirma que o pensar é de certa maneira a matéria orgânica. Os trabalhos de Pavlov demonstraram que o reflexo condicionado constitui o fenômeno psíquico elementar, cujo fundamento fisiológico, graças a esses trabalhos, foi estabelecido com bastante exatidão. A teoria dos reflexos condicionados demonstra claramente como se desenvolve o pensamento; como, sob a influência do meio que o rodeia e sobre a base da sua atividade produtora social, sob cuja influência se elaboram também os reflexos condicionados, forma-se a complexa atividade racional dos homens.

Pavlov demonstrou, ao mesmo tempo, que entre os animais superiores têm também lugar os reflexos condicionados. Por meio de experiências, conseguiu provocar nos cães neuroses análogas às dos homens. Assim foi definitivamente destruído o abismo intransponível que os teólogos e idealistas de todo calão tentam estabelecer entre os animais e o homem. Confirmou-se uma vez mais a unidade de todo o mundo orgânico, baseada na evolução histórica da natureza.

Sechenov e Pavlov contam com numerosos discípulos que continuam suas tradições materialistas. A escola de Pavlov, que trabalha formidavelmente na União Soviética, país no qual se criaram para o trabalho condições com que os sábios inclui dezenas de sábios famosos trabalho condições com que os sábios nos países capitalistas só podem sonhar, inclui dezenas de sábios famosos que ocupam um lugar destacado na ciência mundial.

De não menor valor foram para a ciência mundial os trabalhos dos grandes químicos e físicos russos. O químico genial D. I. Mendeleev (1834-1907) efetuou com a sua lei periódica dos elementos químicos uma revolução na química. Esta lei diz:

"As propriedades dos elementos (e por conseguinte dos corpos simples e compostos por eles formados) acham-se em dependência periódica em relação a seu peso atômico".

Antes da descoberta desta lei periódica de Mendeleev, os elementos químicos eram considerados completamente independentes, separados uns dos outros e a química limitava-se a calcular desordenadamente tais elementos e suas propriedades. Mendeleev pôs termo a esta concepção metafísica da química. Criou um sistema harmônico sobre os elementos químicos que permitem predizer a existência de elementos ainda desconhecidos. A lei periódica descobriu as leis objetivas a que se sujeita a evolução do mundo inorgânico, o vínculo mútuo entre os elementos químicos; fundamentou a ideia de seu caráter transformativo; demonstrou que a evolução se realiza não só na natureza orgânica, mas também na inorgânica. Os trabalhos de Mendeleev têm assim importância enorme para a confirmação dos princípios fundamentais do materialismo dialético e da ligação universal dos fenômenos da natureza e da evolução universal das formas inferiores para as superiores.

"Mendeleev, escreve Engels, aplicando inconscientemente a lei hegeliana da transformação da quantidade em qualidade, realizou uma façanha científica que pode colocar-se ao lado da descoberta de Leverrier, que chegou a calcular a órbita dum planeta ainda, desconhecido: Netuno"(142).

Em sua concepção filosófica, Mendeleev sustentava a posição do materialismo histórico-naturalista, embora nem sempre de maneira consequente. Não obstante essas oscilações e concessões verbais à religião e ao agnosticismo, Mendeleev manifesta-se materialista em todos os problemas de princípio. Na prática, declarou não poder haver limite algum entre o conhecimento e o domínio da substância. Manifestou-se resolutamente contrário ao espiritismo, ao machismo e, em parte, à "teoria energética" idealista de Ostwald, que separava a energia da matéria e definia a matéria interpretando-a de forma idealista, como substância do mundo. O espiritual, afirmava Mendeleev, está ligado ao material e também é conhecido somente através deste; a matéria, pois, existe independentemente do espírito. Mendeleev lutou tenazmente durante toda a vida para unir a teoria à prática, para aplicar as descobertas científicas à produção.

A física russa conta também com materialistas eminentes. O grande físico Stoletov, foi o primeiro dos sábios russos a manifestar-se em 1896, abertamente contrário ao machismo, que naquela época começava a infiltrar-se na física. M. A. Umov (1846-1915), professor da Universidade de Moscou, realizou uma série de preciosos trabalhos nos quais demonstrou o caráter material da energia, criticando duramente o energeticismo idealista de Ostwald. O famoso físico N. Lebedev (1866-1912) descobriu a pressão luminosa e demonstrou o caráter material da luz.

Um dos experimentadores naturalistas mais notáveis, o famoso sábio botânico K. A. Timiriasev (1843-1921), durante os tempos de maior obscurantismo e de reação mais violenta, manifestou-se audazmente contra o clericalismo, defendendo e desenvolvendo o darwinismo. Timiriasev dedicou seus principais trabalhos científicos ao problema da fotossíntese, ou seja, da absorção da energia solar pelos vegetais e sua transformação em substância viva, em matéria orgânica.

Compreende-se o valor gigantesco que esses trabalhos de Timiriasev tiveram para a concepção filosófica materialista: ao demonstrar a constante transformação recíproca, o trânsito da matéria inorgânica à orgânica, destruindo definitivamente a muralha chinesa que os curas e os metafísicos erigiram entre a natureza viva e a morta. Nos últimos anos de sua vida, K. A. Timiriasev acolheu ardentemente o Poder Soviético e ingressou no Partido Comunista.

Enquanto a filosofia oficial e a filosofia idealista na Rússia revelavam claramente sua podridão e sua indigência, o materialismo filosófico de Lenin e Stalin, as brilhantes investigações científicas de Pavlov e Timiriasev, representam o verdadeiro cume da ciência e da filosofia mundiais.

G. V. Plekhanov

O marxismo e sua filosofia, o materialismo dialético, começou a penetrar e a desenvolver-se na Rússia, na década de 80. Após uma longa e tenaz luta contra todos os inimigos da teoria revolucionária de Marx, os marxistas russos defenderam o marxismo, adaptaram-no às condições da Rússia e, na pessoa de seus maiores representantes, Lenin e Stalin, desenvolveram-no, enriqueceram-no e elevaram-no a uma altura superior. O primeiro marxista eminente e destacado propagandista do marxismo na Rússia foi George Valentinovich Plekhanov (1856-1908). Com seus trabalhos assestou o primeiro e mais violento golpe ao populismo. Foi fundador da social democracia russa e o melhor teórico da II Internacional. Mais tarde traiu a classe operária, convertendo-se no chefe e ideólogo do menchevismo, em social-chauvinista.

Em 1875, Plekhanov, jovem estudante do Instituto de Minas de Petersburgo, pôs-se em contacto com os círculos populistas, tornando-se, pouco depois, notável propagandista e publicista dos populistas. No Congresso da mais poderosa organização populista, "Terra e Liberdade", celebrada em 1879 em Voronezh, Plekhanov pronunciou-se resolutamente contra a tendência dos populistas à aplicação do terror individual, abandonou o Congresso e organizou um grupo populista "A Raia Negra", colocando-se na posição da propaganda pacífica.

Em 1880, fugindo das perseguições policiais, Plekhanov foi obrigado a emigrar para o estrangeiro onde conheceu a atividade da social-democracia da Europa Ocidental e travou relações com Engels. Começou rapidamente a afastar-se dos conceitos populistas e, em 1883, era já um marxista formado. Em Genebra organizou com os filiados do seu grupo anterior, "A Raia Negra", a primeira organização marxista russa: o grupo "Emancipação do Trabalho", lançando as bases da social democracia russa e desempenhando um papel considerável na divulgação do marxismo na Rússia.

Em 1883 e 1884 publicou seus livros "O Socialismo e a Luta Política" e "Nossas Discrepâncias". Sobre esses trabalhos de Plekhanov, escreveu Lenin dizendo que neles o autor submetia uma crítica implacável à teoria populista e marcava a tarefa dos revolucionários russos: a formação de um partido operário revolucionário.

No curso da nona década do século passado, Plekhanov escreveu uma série de trabalhos formidáveis, em que continuou sua luta intransigente contra o populismo e demonstrou a inconsistência de suas teorias sobre a independência do desenvolvimento da Rússia, sobre a passagem ao socialismo por meio da comunidade camponesa, evitando o capitalismo, sobre o papel decisivo do camponês na revolução. Pôs também em relevo a insolvência da sociologia subjetiva e da teoria populista sobre os "heróis" e a "multidão". Durante este período, era Plekhanov quem sustentava todo o peso da luta do marxismo contra o populismo, da defesa e da fundamentação do marxismo na Rússia.

Em 1889, no Congresso constituinte da II Internacional, pronunciou seu famoso discurso sobre o hegemonia do proletariado na revolução russa. Terminou seu discurso com as seguintes palavras:

"O movimento revolucionário só pode triunfar, na Rússia, como movimento revolucionário dos operários. Não há nem pode haver outra saída"(143).

Na última década do século XIX e no princípio do século XX, Plekhanov tomou parte na atividade da social-democracia nacional, lutando contra o oportunismo. Em 1895 publicou na Rússia, legalmente, seu formidável trabalho "Contribuição ao Problema do Desenvolvimento da Concepção Monista da História", obra que, segundo palavras de Lenin, educou uma geração completa de marxistas russos. Em 1896, publicou em língua alemã seu livro "Esboços da História do Materialismo". Nessas obras, diz Lenin, faz uma exposição completa e valiosa do materialismo dialético.

Em 1898 principia Plekhanov a luta contra o revisionismo filosófico; escreve uma série de brilhantes artigos contra E. Bernstein, K. Smidt, P. Struve e outros. Lenin teve em alta conta esta luta de Plekhanov:

"... o único marxista dentro da social-democracia nacional que fez, do ponto de vista do materialismo dialético consequente, a crítica àquelas incríveis cretinices acumuladas pelos revisionistas, foi Plekhanov"(144).

Em oposição à prática da social-democracia na Europa Ocidental, Plekhanov preconizava conclusões organizativas e políticas de luta ideológica; exigia a expulsão de Bernstein do partido. Lenin considerava essa exigência de Plekhanov como da melhor tradição revolucionária.

Junto com Lenin, Plekhanov lutou contra o economismo. Desde 1900 dirigiu, com Lenin, a "Iskra" (A Centelha e a "Zaria" (A Aurora). Durante esse período exerceu Lenin uma enorme influência revolucionária sobre Plekhanov.

No II Congresso do Partido Social-Democrata Russo, Plekhanov atuou ainda ao lado de Lenin contra os oportunistas, pronunciando formidáveis discursos em defesa do marxismo revolucionário; todavia, no outono de 1903, quando se propôs a cisão do partido, Plekhanov, atemorizado em romper com os oportunistas, acompanhou os chefes da II Internacional, realizando uma grande virada para a direita e se adaptando ao compromisso com os oportunistas, capitulando ante eles. Então começa sua luta contra Lenin e os bolcheviques.

Aqui termina o melhor período da atividade de Plekhanov como marxista revolucionário. Durante 20 anos, desde 1883 até 1903, escreve Lenin, Plekhanov deu

"as massas obras proeminentes, particularmente contra os oportunistas machistas, populistas.” "Seus méritos passados pessoais são enormes".

Os germes do oportunismo de Plekhanov começaram a manifestar-se muito antes de 1903. Já na luta contra o populismo cometeu erros, enunciando o pensamento da inevitabilidade do choque entre a classe operária e os camponeses. Plekhanov considerava a burguesia liberal como uma força capaz de ajudar a revolução; em compensação em alguns de seus trabalhos, punha de lado aos camponeses.

"Fora da burguesia e do proletariado, escrevia Plekhanov, não vemos outras forças sociais em que possam apoiar-se, em nosso país, as combinações oposicionistas ou revolucionárias".

Plekhanov manteve no começo uma posição um tanto conciliadora frente ao marxismo legal. Durante o período de seu trabalho na "Iskra", Lenin criticava as vacilações oportunistas de Plekhanov em relação aos liberais, aos camponeses, ao problema do programa do Partido (sobretudo porque Plekhanov se tinha "esquecido" de mencionar no segundo projeto o problema da ditadura do proletariado). Estes erros de Plekhanov, foram o começo de seus conceitos mencheviques.

Na revolução de 1905, Plekhanov manteve a posição mais direitista entre os mencheviques. Condenou o levante de dezembro dos operários de Moscou, lançando a frase vergonhosa:

"não devia ter-se empunhado as armas".

Mais adiante, sendo já menchevique, Plekhanov interveio várias vezes ao lado dos bolcheviques contra os liquidacionistas, os machistas e os "construtores de deus". No entanto, mesmo seus melhores trabalhos desse período são consideravelmente inferiores às suas primeiras obras.

Durante a guerra de 1914, Plekhanov foi um social-chauvinista furioso e, como assinalou Lenin, se divorciou por completo do marxismo. Depois da revolução de fevereiro de 1917, regressou à Rússia e adotou a posição de ajuda ao Governo Provisório e de continuação da guerra. Considerou um erro a revolução Socialista de Outubro, porém renunciou a intervir numa conspiração contra o Poder Soviético. Morreu em 30 de maio de 1918.

Plekhanov, escreve Stalin, foi durante algum tempo o homem mais popular no Partido. Ainda mais, foi o fundador do Partido... e apesar disso o Partido voltou-lhe as costas mal Plekhanov começou a afastar-se do marxismo para o oportunismo.

Plekhanov ocupa um grande lugar na história do marxismo em geral na história do marxismo russo em particular. Sendo um sábio eminente, com ampla instrução, vasta cultura, talento literário e polemista, Plekhanov foi um brilhante publicista e popularizador do marxismo.

Foi sucessor e continuador das melhores tradições do pensamento social-revolucionário da Rússia do século XIX, personificado por Belinski, Hertzen, Tchernichevski e Dobroliubov; foi o representante da cultura de vanguarda do grande povo russo. Lenin escrevia em 1913:

"Há duas culturas nacionais em cada cultura nacional. Há a cultura gran-russa dos Purishkevich, Gutchkov e Struve; há porém igualmente a cultura gran-russa caracterizada pelos nomes de Tchernichevski e Plekhanov"(145).

Em larga escala, Plekhanov entregou seu talento e sua extraordinária capacidade à instrução da classe trabalhadora, à fundamentação e defesa do marxismo, especialmente do marxismo dialético e histórico. Plekhanov oferece um maravilhoso modelo de popularização da teoria marxista. Sabe expor de forma viva e atraente os problemas filosóficos mais difíceis. Em seus trabalhos há abundantes, ricos e variados materiais concretos extraídos dos diversos domínios da ciência e da vida social. Quase todos os seus trabalhos filosóficos são escritos em tom polêmico e impregnados do espírito de luta decidida contra todos os críticos e revisionistas burgueses.

Em 1921, quando Plekhanov já não se contava entre os vivos, Lenin fez uma apreciação íntegra e extraordinariamente elevada da herança filosófica de Plekhanov. Lenin escrevia:

"Não é possível ser consciente, verdadeiro comunista, sem ter estudado, concretamente estudado, tudo o que escreveu Plekhanov sobre filosofia, pois conta-se entre o que há de melhor na literatura internacional do marxismo"(146).

Ainda mais: Lenin considerava que as obras de Plekhanov

"devem entrar na série dos manuais obrigatórios do comunismo".

Plekhanov, porém, não soube desenvolver mais o marxismo, elevá-lo a um grau novo, superior, como fez Lenin. Não soube superar os defeitos principais da II Internacional e particularmente seu vício principal: a separação entre a teoria e a prática. Plekhanov atuou sempre mais radicalmente no domínio da teoria que na atividade política prática.

Stalin inclui Plekhanov entre os chefes de tempo pacífico, fortes em teoria e débeis em assuntos de organização e de trabalho prático. Com o aparecimento da nova época revolucionária, Plekhanov não soube passar à realização a teoria revolucionária do marxismo. Não soube compreender a nova época, a época do imperialismo que impunha novas tarefas ao movimento operário. Quando era necessária a criação de um partido de tipo novo, o partido do bolchevismo, Plekhanov não soube, depois de Marx e Engels, sintetizar a experiência do movimento operário e os novos dados do desenvolvimento científico; isso só foi realizado por Lenin e Stalin. O papel de Plekhanov limita-se a uma brilhante exposição, popularização e defesa do marxismo, particularmente da filosofia marxista. Ao utilizar e estudar as obras filosóficas de Plekhanov é necessário retificar-lhe os erros e defeitos de acordo com a posição do leninismo.

Em suas obras Plekhanov dedicou grande atenção à preparação histórica do marxismo. Demonstrou que o marxismo tomou o melhor do desenvolvimento anterior da ciência e criou, sobre essa base, nova doutrina, um grau superior do conhecimento. Expôs e defendeu o marxismo como única concepção filosófica do proletariado, cujo fundamento filosófico é o materialismo dialético.

Plekhanov popularizou o materialismo militante francês do século XVIII, sua luta contra o idealismo e a religião. Dedicou muito espaço à filosofia de Hegel, demonstrando que a dialética hegeliana desempenhou o papel mais notável na história do conhecimento e na preparação do marxismo. Plekhanov expõe com simpatia especial o materialismo de Feuerbach, sua luta contra o idealismo de Hegel, sua influência sobre Marx e Engels e sobre os precursores da social-democracia na Rússia: Belinski, Hertzen, Tchernichevski.

Contudo, Plekhanov não mostra suficientemente as diferenças básicas entre o materialismo dialético e o materialismo anterior a Marx, particularmente o materialismo de Feuerbach.

Plekhanov expõe e defende o materialismo dialético contra os revisionistas. A dialética constitui a alma revolucionária do marxismo; fundamenta a inevitabilidade da luta de classes, da revolução social e da ditadura do proletariado.

"Se o senhor Bernstein, escrevia Plekhanov, renunciou ao materialismo para não "ameaçar" um dos "interesses ideológicos" da burguesia que se chama religião, sua renúncia à dialética obedece seu desejo de não espantar esta mesma burguesia com os horrores da revolução violenta"(147).

Plekhanov demonstra que a dialética de Marx explica todo o movimento e evolução sobre a base das contradições internas das coisas.

"Todo o movimento é um processo dialético, uma contradição viva", "todo fenômeno é contraditório no sentido em que ele próprio desenvolve os elementos que tarde ou cedo porão fim à sua existência, transformando-o em seu próprio contraste".

Em seus artigos contra Struve, Plekhanov refuta brilhantemente a "teoria" do embotamento das contradições na evolução. Plekhanov considera que as contradições entre a forma e o conteúdo, entre o novo e o velho, são a lei geral da evolução da natureza orgânica e da sociedade. Demonstra também que a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção é a lei da revolução social.

Contudo Plekhanov não faz uma exposição sistemática da dialética materialista e de suas leis básicas. Deixa na sombra a essência, a medula da dialética: a lei da unidade e da luta dos contrários. Ao expor a dialética, limita-se a ajuda de exemplos isolados, à sua caracterização geral.

Esta circunstância se explica porque Plekhanov não compreendia a unidade da dialética, a lógica e a teoria do conhecimento. A dialética não é, em Plekhanov, uma ciência filosófica integral que descobre as leis gerais da natureza, da sociedade e de nosso pensamento. Para ele, a dialética abarca apenas a maioria dos fenômenos do mundo; juntamente com a dialética, Plekhanov conserva a lógica formal como ciência independente que complementa a dialética. A juízo de Plekhanov, a dialética só restringe o campo de aplicação da lógica formal.

Em sua crítica do idealismo, Plekhanov não descobre plenamente suas raízes social-históricas e gnoseológicas. Limita-se a uma crítica lógica do idealismo, explicando-lhe a inconsistência lógica demonstrando os absurdos a que o mesmo conduz. Em sua crítica dos machistas deixou completamente de lado o problema da relação do machismo com a crise das ciências naturais.

Plekhanov cometeu um erro de caráter kantiano, ao enunciar o pensarnento de que nossas noções são hieróglifos, indícios relativos, e não cópias ou reflexos da realidade objetiva. Em sua luta política contra Lenin e os bolcheviques, em defesa do oportunismo, Plekhanov desfigurou não poucas vezes a dialética, convertendo-a em sofistica.

Plekhanov escreveu também uma série de maravilhosos trabalhos em defesa do materialismo histórico: "Contribuição ao Problema do Desenvolvimento da Concepção Monista da História", "Sobre a Interpretação Materialista da História", "Contribuição ao Problema do Papel da Personalidade na História", etc. Também na luta contra as diversas teorias burguesas e revisionistas sobre a sociedade, Plekhanov expõe os problemas do materialismo histórico. Desmascara o idealismo dos neo-kantianos que negam as leis da evolução social e o materialismo econômico vulgar que tenta deduzir a ideologia diretamente da economia, a teoria dos fatores, etc. Faz uma crítica acabada da sociologia subjetiva dos populistas, que viam a força motriz da história na atividade dos diversos heróis, das "personalidades que pensam criticamente", e que negavam a luta de classes e as leis objetivas. Plekhanov expõe brilhantemente a teoria marxista do papel da personalidade na história e demonstra que a história é criada, não pelos indivíduos isolados, mas pelas massas, pelo povo; os heróis, os chefes, desempenham um enorme papel na história só quando se apoiam nas massas, representam seus interesses e aspirações e interpretam as leis objetivas da história.

O compêndio de "História do P. C. (b) da URSS" caracteriza da seguinte maneira os méritos de Plekhanov em sua crítica da sociologia populista.

"Plekhanov destruiu... a ideia falsa fundamental dos populistas: a do papel primordial que eles atribuíam, no desenvolvimento social, aos "heróis", às personalidades ilustres e suas ideias, à qual correspondia o papel insignificante que atribuíam à massa, à "multidão", ao povo, às classes. Plekhanov acusava os populistas de serem idealistas, demonstrando que a verdade não estava no idealismo, mas no materialismo de Marx e Engels.

"Plekhanov desenvolveu e fundamentou o ponto de vista do materialismo marxista. Demonstrou, a respeito desta doutrina, que o desenvolvimento da sociedade se determina, em última instância, não pelos desejos e ideias dos grandes homens, mas pelo desenvolvimento das condições materiais de existência da sociedade, pelas transformações operadas nos métodos de produção dos bens materiais necessários à existência da sociedade, pelas transformações operadas nas relações de classe dentro do campo da produção de bens materiais e pela luta de classes em tomo do papel e do posto que estas desempenham no terreno da produção e distribuição desses bens materiais. Não são as ideias que determinam a situação econômico-social dos homens, mas a situação econômico-social dos homens que determina as ideias. As personalidades mais eminentes podem reduzir-se a nada, se suas ideias e seus desejos se opuserem ao desenvolvimento econômico da sociedade, se se opuserem às exigências da classe avançada. Pelo contrário, os grandes homens podem chegar a tornar-se realmente grandes, quando suas ideias e seus desejos traduzem acertadamente as necessidades do desenvolvimento econômico da sociedade, as necessidades da classe avançada.

"A afirmação dos populistas de que a massa não é mais do que uma grei e de que são os heróis os únicos que fazem a história e convertem a grei em povo, os marxistas respondiam: não são os heróis que fazem a história, mas esta é que faz os heróis; portanto, longe de serem os heróis que criam o povo, é o povo que cria os heróis e impulsiona o progresso da história. Os heróis, os grandes homens, só podem desempenhar um papel importante na vida da sociedade, na medida em que saibam compreender acertadamente as condições do desenvolvimento da sociedade e o modo de modificá-las para melhorá-las. No entanto, os heróis, os grandes homens, podem cair no ridículo e converter-se em pessoas inúteis e fracassadas, se não souberem compreender acertadamente as condições de desenvolvimento da sociedade e pretenderem rebelar-se contra as exigências históricas da mesma, considerando-se factualmente como "criadores" da história"(148).

Plekhanov, porém, não deu uma explicação completa e sistemática do materialismo histórico, particularmente da teoria sobre as formações social-econômicas. Explica e defende, com preferência, o problema fundamental do materialismo histórico, seus princípios fundamentais, opondo-os às teorias sobre a sociedade hostis ao marxismo. Distinguindo-se dos clássicos do marxismo, Plekhanov não dá uma característica completa das formações social-econômicas limitando-se a exemplos isolados, embora claros, da história.

Mesmo que, em geral, resolva de maneira correta os problemas das relações mútuas entre a natureza e a sociedade, Plekhanov exagera o papel dos meios geográficos no desenvolvimento da sociedade. Em muitos trabalhos comete desvios para o geografismo, interpretando o desenvolvimento das forcas produtivas baseando-se nas condições do meio geográfico.

O defeito mais importante de Plekhanov consiste em que, como todos os chefes da II Internacional, não correspondeu a teoria marxista do Estado, das relações da revolução proletária com o Estado, da ditadura do proletariado.

A luta de Plekhanov contra o populismo abalou profundamente a influência dos populistas nos intelectuais revolucionários, porém o populismo não estava ainda destruído. O grupo "Emancipação do Trabalho", encabeçado por Plekhanov,

"apenas lançou as bases teóricas da social-democracia e deu o primeiro passo ao encontro do movimento operário"(149).

Para a destruição ideológica definitiva do populismo havia necessidade de fundar o marxismo com o movimento operário, armar as massas da classe operária com as doutrinas de Marx. Estas tarefas foram realizadas por Lenin. Na década de 90, Lenin assestou o golpe mortal ao populismo como pior inimigo do marxismo, aniquilou os grupos oportunistas e revisionistas da Rússia (marxistas legais, economistas) e com os grupos e organizações social-democratas revolucionárias criou o partido de novo tipo, o partido dos bolcheviques.


Notas de rodapé:

(124) Lenin. Do passado da imprensa operária. Obras, tomo XVII, página 341, edição russa. (retornar ao texto)

(125) Lenin. Em memória de Hertzen. Obras, tomo IV, página 465, edição russa. (retornar ao texto)

(126) Idem, página 468. (retornar ao texto)

(127) Idem, páginas 464-465. (retornar ao texto)

(128) "História do P. C. (b) da URSS", página 5, tradução espanhola, Moscou 1939. (retornar ao texto)

(129) Marx. O Capital, tomo I. Prólogo da segunda edição. "Cenit", Madrid. (retornar ao texto)

(130) Lenin. "Quem São os Amigos do Povo?" Obras, tomo I, página 184, ediçS russa. (retornar ao texto)

(131) Tchernichevski. Obras, tomo I, página 231, edição russa. (retornar ao texto)

(132) Idem, tomo III, página 183. (retornar ao texto)

(133) Lenin. Materialismo e Empirio-Criticismo. Obras, tomo XIII, página 295, edição russa. (retornar ao texto)

(134) Chernischevsky. Obras Escolhidas, página 397, edição russa. (retornar ao texto)

(135) Idem, página 382. (retornar ao texto)

(136) Idem. Obras Filosóficas, página 454, edição russa. (retornar ao texto)

(137) Idem. Obras não publicadas, página 60, Saratov, 1939. (retornar ao texto)

(138) Idem. Obras, tomo III, página 742, edição russa. (retornar ao texto)

(139) Idem, tomo V, página 491. (retornar ao texto)

(140) Pisarev. Obras, tomo I, página 356, edição russa. (retornar ao texto)

(141) Lenin. Obras, tomo XV, página 89, edição russa. (retornar ao texto)

(142) Engels. Dialética da Natureza. Obras de Marx e Engels, tomo XIV, página 630, edição russa. (retornar ao texto)

(143) Plekhanov. Obras, tomo XI, página 54, edição russa. (retornar ao texto)

(144) Lenin. Marxismo e Revisionismo. Obras Escolhidas, tomo I, tradução espanhola, Moscou 1941, página 63. (retornar ao texto)

(145) Lenin. Observações Críticas Sobre o Problema Nacional. Obras, tomo XVII, página 143. (retornar ao texto)

(146) Lenin. Uma Vez Mais Sobre os Sindicatos. Obras, tomo XXVI, página 135, edição russa. (retornar ao texto)

(147) Plekhanov. Obras, tomo XI, página 54, edição russa. (retornar ao texto)

(148) "História do P. C. (b) da URSS", páginas 17-18, tradução espanhola, Moscou 1939. (retornar ao texto)

(149) Lenin. A Luta ideológica no Movimento Operário, Obras, tomo XVII, página 353, edição russa. (retornar ao texto)

Inclusão 07/01/2016