História da Revolução Russa

Léon Trotsky


O congresso da ditadura soviética


No 25 de Outubro devia iniciar-se em Smolny o parlamento mais democrático de todos os que existiram na história mundial. Quem sabe? Talvez o mais importante.

Livres da influência da intelectualidade conciliadora, os sovietes da província enviaram principalmente operários e soldados. Eles eram na maior parte sem grande notoriedade, mas, em contrapartida, eram homens experientes e que tinham conquistado uma confiança sólida nas suas localidades. Do exército e da frente, através dos blocos dos comités do exército e dos estados-maiores, eram quase unicamente soldados das fileiras que abriam caminho como delegados. Na sua maioria, eles tinham acedido à vida política só depois da revolução. Eles tinham sido formados pela experiência de oito meses. O que sabiam era pouca coisa, mas o que sabiam era sólido. A aparência exterior do congresso demonstrava a composição. Os galões de oficial, os óculos e as gravatas dos intelectuais do primeiro congresso quase que tinham desaparecido. O que dominava sem partilha, era a cor cinzenta, vestuários e caras. Todos se tinham gasto durante a guerra. Numerosos operários das cidades tinham vestido os capotes de soldado. Os delegados das trincheiras não tinham ar muito apresentável: barba por fazer há muito tempo, cobertos de velhos capotes rasgados, barretos de pêlo cujo algodão atravessava por orifícios, sobre cabeleiras desgregadas. Rostos rudes mordidos pelas intempéries, pesadas mãos cobertas de frieiras, dedos amarelados pelo tabaco, botões meios arrancados, suspensórios pendurados, botas rugosas, gastas, que não tinham recebido pomada há muito tempo. A nação plebeia não tinha enviado pela primeira vez uma representação honesta, não fardada, feita à sua imagem.

A estatística do congresso que se reuniu nas horas da insurreição é extremamente incompleta. No momento de abertura, contavam-se seiscentos e cinquenta participantes tendo voto deliberativo. Cabia aos bolcheviques trezentos e noventa delegados; longe de serem todos membros do partido, eles eram em contrapartida a própria substância das massas; ora, não restava a estas outras vias senão a do bolchevismo. Numerosos eram os delegados que, tendo chegados com dúvidas, acabavam rapidamente por amadurecer na atmosfera sobreaquecida de Petrogrado.

Com qual sucesso os mencheviques e os socialistas-revolucionários tinham conseguido delapidar o capital político da Revolução de Fevereiro? No congresso dos sovietes de Junho, os conciliadores dispunham de uma maioria de 600 votos sobre uma totalidade de 832 delegados. Agora, a oposição conciliadora de todas as nuanças constituía menos do quarto do congresso. Os mencheviques com os grupos nacionais que aí se ligavam não contavam mais de 80 delegados cuja metade era «de esquerda». Sobre 159 socialistas-revolucionários – segundo outros dados, 190 – as esquerdas constituíam cerca de três quintos e, além disso, as direitas continuavam a se disolver rapidamente no processo do próprio congresso. Cerca do fim dos trabalhos, o número de delegados aumentou, segundo certos relatórios, até 900 pessoas; mas esse número, compreendendo um certo número de votos consultativos, não englobava, por outro lado, todos os votos deliberativos. O controlo dos mandatos sofria interrupções, papéis perdidos, as informações sobre a pertença a tal ou tal partido não são completas. De qualquer modo, a situação dominante dos bolcheviques no congresso era incontestável.

Um inquérito feito entre os delegados demonstrou que 505 sovietes queriam a passagem de todo o poder para a mão dos sovietes; 86 – para o poder da «democracia»; 55 – pela coligação; 21 - para a coligação sem cadetes. Esses números eloquentes, mesmo sob este aspecto, dão todavia, uma ideia exagerada do que era a influência dos conciliadores: para a democracia e a coligação se declaravam os sovietes das regiões mais atrasadas e as localidades menos importantes.

No 25, cedo, teve lugar em Smolny sessões de frações. Quanto aos bolcheviques, só estavam presentes os que estavam exemptos das missões de combate. A abertura do congreso estava atrasada: a direcção bolchevique queria primeiro resolver a situação no Palácio. Mas as fracções hostis, elas também não estavam apressadas: elas próprias tinham necessidade de decidir o que iam fazer, e não era fácil. As horas passavam. Nas fracções, as sub-fracções entravam em conflito. A cisão dos socialistas-revolucionários se produziu depois da resolução deixar o congresso foi afastada por 92 votos contra 60. Foi mais tarde na noite que os socialistas-revolucionários de direita e de esquerda tiveram sessão em salas diferentes. Os mencheviques, às oito horas, reclamaram um novo prazo: entre eles, as opiniões eram demasiado diferentes. A noite caiu. A operação em curso diante do Palácio arrastava-se. Tornava-se impossível esperar mais: era preciso falar claramente diante do país que acordava.

A revolução ensinava a arte da compressão. Os delegados, os visitantes, os guardas apertavam-se na sala das festas das raparigas da nobreza para deixar entrar sem interrupção os que chegavam. Os avisos dados sobre um possível afundamento do soalho não tinha qualquer efeito tal como o aviso de não fumar. Todos se empurravam e fartavam-se de fumar. Foi com dificuldade que John Reed fez caminho através da multidão que levantava a voz diante da porta. A sala não era aquecida, mas o ar estava pesado e ardente.

Apertados nos tambores das portas, nas passagens laterais, ou sentados sobre os rebordos das janelas, os delegados esperavam pacientemente a campainha do presidente. Na tribuna não se encontravam nem Tseretelli, nem Tchkheidzé, nem Tchernov. Só os líderes de segunda ordem se tinham mostrado para assistir aos seus próprios funerais. Um pequeno homem, em uniforme de médico-major, abriu, em nome do Comité executivo, a sessão às 10 horas e 40. O congresso reuniu-se nas «circonstancias tão excepcionais» que ele, Dan, cumprindo a missão que lhe foi confiada pelo Comité executivo central, absteve-se de um discurso político: porque, enfim, os seus amigos do partido se encontram actualmente no palácio de Inverno, expostos ao tiroteio, «preenchendo com abnegação o seu dever de ministros». Os delegados não esperavam menos do que a bênção do comité executivo central. Eles olhavam com aversão a tribuna: se essa gente ainda têm uma existência política, que relação têm eles connosco e com a nossa causa?

Em nome dos bolcheviques, Avanessov, delegado de Moscovo, propôs um secretariado sobre a base proporcional: quatro bolcheviques, sete socialistas-revolucionários, três mencheviques, um internacionalista. Os homens de direita recusaram imediatamente em fazer parte do secretariado. O grupo de Martov absteve-se pelo momento: ele ainda não se tinha decidido. Sete votos passam para os socialistas-revolucionários de esquerda. O congresso, rabugento, observa essas contestações prévias.

Avanessov lê a lista dos candidatos bolcheviques para o secretariado: Lénine, Trotsky, Zinoviev, Rykov, Noguine, Skliansky, Krylenko, Antonov-Ovssenko, Riazanov, Moranov, Lunatcharsky, Kollontai, e Stotchka. «O secretariado compõe-se – escreve Sokhanov – dos principais líderes bolcheviques e de um grupo de seis (na realidade de sete) socialistas-revolucionários de esquerda.» Como nomes fazendo autoridade no partido, Zinoviev e Kamenev são incluídos no secretariado, mesmo se eles se opuseram à insurreição; Rykov e Noguine estão lá como representantes do Soviete de Moscovo; Lunatcharsky e Kollontai como agitadores populares nesse período; Riazanov como representante dos sindicatos; Moranov como velho operário bolchevique que se conduziu corajosamente durante o processo dos deputados da Duma do Império; Stotchka como líder da organização letã; Krilenko e Skliansky como representantes do exército; Antonov-Ovssenko como dirigente nos combates em Petrogrado. A ausência do nome de Sverdlov explica-se aparentemente pelo facto que ele próprio tinha estabelecido a lista e que na confusão, ninguém a tinha rectificado. É característico para os costumes do partido que o secretariado incluisse todo o estado-maior dos adversários da insurreição: Zinoviev, Kamenev, Rykov, Lunatcharsky, Riazanov. Entre os socialistas-revolucionários de esquerda o único a gozar de celebridade extensa em toda a Rússia era a pequena e influente Spiridonova, que tinha passado longos anos nas masmorras por ter morto um dos torcionários dos camponeses de Tambov. Não havia outros «nomes» entre os socialistas-revolucionários de esquerda. Em contrapartida, entre os da direita, à parte dos nomes, quase que não restava nada.

O Congresso acolheu com entusiasmo o seu secretariado. Lénine não se encontrava na tribuna. Enquanto que se reuniam e conferenciavam as fracções, Lénine, ainda maquilhado, de cabeleira postiça e de grandes óculos, encontrava-se na companhia de dois ou três bolcheviques numa sala lateral. A caminho da sala da sua fracção, Dan e Skobelev pararam diante da sala dos conspiradores olharam atentamente Lénine e reconheceram-no. Isso significava que era tempo de deixar cair a máscara!

Lénine não se apressava, todavia, de aparecer em público. Ele preferia observar as coisas de perto e juntar nas suas mãos os fios ao mesmo tempo que ficava nos bastidores. Nas suas lembranças publicadas em 1924, Trotsky escreveu: «Em Smolny teve lugar a primeira sessão do segundo Congresso dos Sovietes. Lénine não apareceu lá. Ele continuava numa das salas de Smolny, onde, como me lembro, não havia quase por assim dizer móveis. Logo alguém veio colocar sobre o soalho coberturas e travesseiros. Vladimir Illitch e eu descansávamos, deitados lado a lado. Alguns minutos depois, chamaram-me: «Dan tomou a palavra, é preciso responder.» Regressado depois da minha réplica, deitava-me novamente ao lado de Vladimir Illitch que, bem entendido, nem pensava dormir. Tratava-se disso? Todos os cinco minutos ou dez minutos, vinha alguém da sala das sessões para comunicar o que aí se passava.»

A campainha presidencial passa para as mãos de Kamenev, um desses seres fleumáticos que são designados pela própria natureza para presidir. A ordem do dia – anuncia – tem três questões: a organização do poder; a guerra e a paz; a convocação da Assembleia constituinte. Um estrondo insólito, surdo e alarmante, salienta do exterior o ruído da assembleia: é a fortaleza Pedro e Paulo que sublinha a ordem do dia com um tiro de artilharia. Uma corrente de alta tensão passou através do congresso que, logo, sentiu ser o que ele era na realidade: a Convenção da guerra civil.

Losovsky, adversário da insurreição, reclama um relatório do Soviete de Petrogrado. Mas o Comité militar revolucionário está atrasado: as réplicas do tiro de canhão testemunham que o relatório ainda não está pronto. A insurreição está em pleno movimento. Os líderes dos bolcheviques ausentam-se a qualquer momento, ganhando o local ocupado pelo Comité militar revolucionário, para receber comunicações ou para dar ordens. Os ecos dos combates mergulham na sala de sessões como línguas de fogo. Quando se vota, os braços levantam-se no meio do eriçar de baionetas. O fumo azulado picante, da makharka (tabaco grosseiro) dissimula as belas colunas brancas e os lustres.

As escaramuças oratórias dos dois campos tomam, sobre o fundo dos tiros de canhão, um significado nunca visto. Martov pede a palavra. O momento onde os pratos da balança oscilam ainda é um momento dele, esse muito inventivo homem político das perpétuas hesitações. Com a sua voz rouca de tuberculoso, Martov respondeu imediatamente à voz metálica dos canhões: «É indispensável parar as hostilidades dos dois lados … Todos partidos revolucionários são colocados diante do facto consumado … A guerra civil ameaça fazer explodir a contra-revolução. Uma solução pacífica da crise pode ser obtida pela criação de um poder que seria reconhecido de toda a democracia.» Uma parte importante do congresso aplaudiu. Sokhanov nota ironicamente: «Visivelmente muitos bolchevique que não assimilaram o espírito da doutrina de Lénine e de Trotsky seriam felizes de se comprometerem precisamente nesta via.»

A proposição de iniciar conversações pacíficas liga os socialistas-revolucionários de esquerda e um grupo de internacionalistas unificados. A ala direita e talvez também os mais próximos companheiros de pensamento de Martov, são certos que os bolcheviques vão rejeitar a proposição. Eles enganam-se. Os bolcheviques enviam à tribuna Lunatcharsky, o mais pacífico, o mais aveludado dos seus oradores. «A fracção dos bolcheviques nada têm a objectar à proposição de Martov.» Os adversários estão estupefactos. Lénine e Trotsky, indo diante das massas que lhes pertencem – comenta Sokhanov – fazem deslizar o chão sob os pés da gente de direita. A proposição de Martov é adoptada unanimemente.» Se os mencheviques e os socialistas-revolucionários partem imediatamente, eles condenam-se eles próprios. «— assim se raciocina no grupo de Martov. Pode-se, em consequência, esperar que o congresso «se comprometa na justa via da criação de uma frente única democrática.» Vã esperança! A revolução nunca toma o caminho mais fácil.

A ala direita passa imediatamente além da iniciativa de conversações de paz que acabou de ser aprovada. O menchevique Kharach, delegado do 12º exército, tendo sobre os ombros as estrelas de capitão, faz uma declaração: «Políticos hipócritas propõe resolver a questão do poder. Ora esta questão decide-se nas nossas costas … Os golpes dados sobre o palácio de Inverno enfiam os pregos no caixão do partido que se comprometeu em tal aventura …» Ao apelo do capitão, o congresso responde por murmúrios indignados.

O tenente Kotchine, que tinha falado na Conferência de Estado de Moscovo em nome da frente tenta ainda aqui agir pela autoridade das organizações do exército: «Este congresso é importante e mesmo irregularmente constituido». Em nome de quem você fala?» — gritam os capotes rasgados sobre os quais o mandato é marcado com a lama das trincheiras. Kotchine numera cuidadosamente onze exércitos. Mas aqui, isso não engana ninguém. Na frente como na retaguarda, os generais da conciliação não tinham mais soldados. O grupo da frente, persegue o tenente menchevique, «rejeita toda a responsabilidade pelas consequências desta aventura»; isso significa: união com a contra-revolução contra os sovietes. E, em conclusão: «O grupo da frente … abandona esse congresso».

Um após outro, os representantes da direita sobem à tribuna. Eles perderam suas paróquias e sua igrejas, mas guardaram os sinos; eles apressam-se pela última vez em tocar os sinos rachados. Os socialistas e os democratas que, por todos os meios honestos ou desonestos, concordaram com a burguesia imperialista, recusam hoje nitidamente em se entenderem com o povo insurgido. Seus cálculos políticos são revelados: os bolcheviques serão derrubados dentro de alguns dias; é preciso, o mais cedo possível separar-se deles, mesmo ajudar a derrubá-los e, por aí, resguardar tanto que possível um futuro para si próprio.

Em nome da fracção dos mencheviques de direita, uma declaração é avançada por Khintchuk, antigo presidente do soviete de Moscovo e futuro embaixador em Berlin. «A conspiração militar dos bolcheviques … , lança o país na guerra intestina, mina a Assembleia constituinte, ameaça com uma catástrofe na frente e leva ao triunfo da contra revolução.» A única saída «está nas conversações com o governo provisório sobre a formação dum poder apoiando-se sobre todas as camadas da democracia». Não tendo aprendido nada, essa gente propunha ao congresso de acabar com a insurreição e o regresso de Kerensky. A travers da barafunda, os mugidos, mesmo os assobios, distingue-se com dificuldades as palavras do representante dos socialistas-revolucionários de direita. A declaração do seu partido proclama «a impossibilidade de um trabalho comum» com os bolcheviques, e afirma que o próprio congresso dos sovietes, convocado e aberto pelo Comité executivo central conciliador, não está regularmente constituído.

A manifestação das direitas não intimida, mas inquieta e agaça. A maioria dos delegados foram demasiado excedidos pelos líderes pretenciosos e limitados que primeiro lhes encheram de frases e logo os reprimiram. É possível que os Dan, os Khintchuk e os Kotchine se disponham ainda em dar lições e a comandar? Um soldado letão, Peterson, que tem as maças do rosto vermelhas dum tuberculoso e os olhos vermelhos de paixão, acusa Kharach e Kotchine de serem impostores. «Basta de resoluções e de conversa vazia. Queremos actos! O Poder deve estar entre nossas mãos. Os impostores que deixem o congresso – o exército não está com eles!» A voz veemente da paixão alivia os espíritos nesse congresso que até então só recolhia injúrias. Outros homens da frente logo apoiaram Peterson. «Os Kotchine representam opiniões de pequenos grupos que se instalaram em Abril nos comités.» «Os habitantes das trincheiras esperam com impaciência que o poder seja remetido nas mãos dos sovietes.»

Mas a gente de direita ocupam ainda certos redutos. O representante do Bund declara que «tudo o que se passa em Petrogrado é uma desgraça» e convida os delegados a se juntarem aos conselheiros da Duma municipal que se dispunha a se render sem armas ao palácio de Inverno para aí morrer com o governo. «Nessa barafunda – escreve Sokhanov – distingue-se as troças, umas grosseiras outras venenosas.». O patético orador visivelmente enganou-se de auditório. «Basta! Desertores!» gritam, por detrás dos que saem, os delegados, os convidados, os guardas vermelhos, os soldados que estão de guarda. «Vão para o Kornilov! Inimigos do povo!»

A saída dos homens de direita não cria o vazio. Os delegados da fila recusam evidentemente de se juntar aos oficiais e aos junkeres pela luta contra os operários e os soldados. As diversas fracções da ala direita desertaram, aparentemente, cerca de setenta delegados, isto é um pouco mais que metade. As hesitações tomavam lugar aos lados dos grupos intermediários que tinham resolvido abandonar o congresso. Se, antes da abertura da sessão , os socialistas-revolucionários de todas as tendências não eram mais de cento e noventa – o número dos únicos socialistas- revolucionários de esquerda, nas primeiras horas que seguiram, subiu até a cento e oitenta: a eles juntaram-se todos os que ainda não se tinham decidido a aderir aos bolcheviques, mesmo se eles já estivessem prontos a apoiá-los.

No governo provisório ou em qualquer outro pré-parlamento, os mencheviques e os socialistas-revolucionários continuavam em causa. Pode-se, na realidade, romper com a sociedade cultivada? Mas, os sovietes, são sobretudo o povo. Os sovietes são bons para qualquer coisa mesmo para se apoiarem sobre eles para se entenderem com a burguesia. Mas concebe-se que se tolera os sovietes que têm a pretensão de se tornarem mestres do país? «Os bolcheviques continuaram sós – escrevia no seguimento o socialista-revolucionário Zenzinov – e, a partir desse momento, eles começaram a apoiar-se unicamente sobre a força física brutal.» Sem dúvida, o princípio moral partiu batendo a porta, ao mesmo tempo que Dan e Gotz. O princípio moral se irá, em procissão de trezentas pessoas, tendo duas lanternas, ao palácio de Inverno, para cair ainda sobre a força física brutal dos bolcheviques – e bater em retirada.

A proposição de conversações de paz aprovada pelo congresso continuava suspensa. Se as direitas tinham admitido a ideia de um acordo com o proletariado vitorioso, elas nas estariam apressadas em romper com o congresso. Martov não pode dispensar-se de os compreender. Mas agarra-se à ideia de um compromisso sobre a qual se baseia e cai toda a sua política. «É indispensável parar a efusão de sangue …», retoma ele. «São somente rumores!» gritam-lhe. «Aqui não se ouve somente os ruídos, responde; se você se aproxima da janela, ouvireis também tiros de canhão?» Argumento irrefutável: quando o congresso silenciou, os tiros ouviram-se, e não somente junto das janelas.

A declaração lida por Martov, inteiramente hostil aos bolcheviques e estéril nas suas deduções, condena a insurreição como «sendo realizada somente pelo partido bolchevique por meio de uma conspiração puramente militar, e exige a suspensão dos trabalhos do congresso até um acordo com «todos os partidos socialistas». Correr numa revolução atrás do resultado, é pior que procurar apanhar a sua sombra!

Nesse momento aparece na sessão Ioffe, futuro primeiro embaixador dos Sovietes em Berlim, à cabeça da fracção bolchevista da Duma municipal, que recusou procurar uma morte problemática debaixo dos murros do palácio de Inverno. O congresso ainda se apertou, acolhendo os amigos com as felicitações cheias de alegria.

Mas é preciso responder qualquer coisa a Martov. Esta tarefa é confiada a Trotsky. «Imediatamente após a saída das direitas, a sua posição – reconhece Sokhanov – é tão sólida como a de Martov é fraca.» Os adversários metem-se de cada lado da tribuna, empurrados por todos os lados por um círculo estreito de delegados sobre-excitados. «O que aconteceu, diz Trotsky, foi uma insurreição, e não de forma nenhuma uma conspiração. O levantamento das massas populares não necessita de justificação. Nós guiámos a energia revolucionária das massas operárias e dos soldados de Petrogrado. Nós abertamente forjámos a vontade das massas pela insurreição e não por uma conspiração … A nossa insurreição venceu e agora fazem-nos uma proposição: renunciai à vossa vitória, façam um acordo. Com quem? Peço: com quem deveríamos concluir um acordo? Com os miseráveis pequenos grupos que saíram daqui? … Mas nós os vimos inteiros. Não há mais ninguém atrás deles na Rússia. Com eles deveriam concluir um acordo, de igual a igual, milhões de operários e camponeses, representados nesse congresso, esses, sempre dispostos a entregar à burguesia? Não, aqui o congresso não vale nada! Aos que saíram daqui como os que apresentam tais proposições, devemos dizer: vocês estão lamentavelmente isolados, vocês estão de bancarrota, vosso papel está jogado, o vosso lugar é na lixeira da história! …

«Então, nós saímos!» grita Martov, sem esperar o voto do congresso.» Martov, furioso e agitado – escreve Sokhanov – começou a abrir caminho da tribuna até à saída. Comecei a convocar com urgência uma reunião extraordinária da minha fracção...» De maneira nenhuma se tratava de um acesso. O Hamlet do socialismo democrático, Martov, tinha avançado um passo quando a revolução emergia, como em Julho; agora que a revolução se prestava a saltar como uma fera, Martov recuava. A saída das direitas tinham-lhe retirado a possibilidade de uma manobra parlamentar. Logo, ele não se sentia à vontade. Ele apressava-se a abandonar o congresso para se destacar da insurreição. Sokhanov respondeu como pôde. A fracção dividiu-se em metades quase iguais: por catorze votos contra doze, Martov ganhou.

Trotsky propôs ao congresso uma resolução – um acto de acusação contra os conciliadores: foram eles que prepararam a ofensiva desastrosa do 18 de Junho; foram eles que apoiaram o governo que traía o povo; foram eles que esconderam aos camponeses a vigarice na questão agrária; foram eles que asseguraram o desarmamento dos operários; foram eles que permitiram à burguesia agravar a situação económica; foram eles que, tendo perdido a confiança das massas, opuseram-se à convocação do congresso dos sovietes; enfim, tendo-se encontrado em minoria, romperam com os sovietes.

Novamente, uma moção de ordem: na verdade, a paciência do secretariado bolchevique não tem limites. Um representante do Comité executivo dos sovietes camponeses chegou, encarregado de convidar os rurais a abandonar o congresso «inoportuno» e a se apresentarem no palácio de Inverno, «para morrer com os que foram enviados para lá com o fim de realizar as nossas vontades». Os convites a morrer sob as ruínas do palácio de Inverno tornaram-se bastantes maçadoras pela sua monotonia. Um marinheiro do Aurora que se apresentou ao congresso declarou ironicamente que não há ruínas, visto que o cruzador dispara em branco. «Continuai tranquilamente as vossas ocupações.» O congresso retoma o fôlego diante desse magnifico marinheiro de barba negra que incarna a simples e imperiosa vontade da insurreição. Martov, com as suas ideias e sentimentos em mosaico, pertence a outro mundo: é por isso que ele rompe também com o congresso.

Ainda uma moção de ordem, desta vez meio amigável. «Os socialistas-revolucionários de direita – dita Kamkov – partiram, mas nós, de esquerda, ficámos.» O congresso saúda os que ficaram. Todavia, esses últimos tambem consideram indispensável realizar uma frente única revolucionária e pronunciam-se contra a violenta resolução de Trotsky que fecha as portas a um acordo com a democracia moderada.

Os bolcheviques, ainda aí, tomam a dianteira. Parece que nunca ninguém os viu assim dispostos a fazer concessões. Não é de admirar: eles são mestres da situação e não necessitam de insistir sobre os termos. Na tribuna se levanta de novo Lunatcharsky. «O peso da tarefa que nos ocupa não faz qualquer dúvida.» A unificação de todos os elementos efectivamente revolucionários da democracia é indispensável. Mas será que nós, bolcheviques, demos um só passo que afastaria os outros grupos? Será que nós não adaptámos unanimemente a proposição de Martov? A isso responderam-nos por acusações e ameaças. Não é evidente que os que abandonaram o congresso «suspendem sua actividade conciliadora e passam abertamente para o campo dos kornilovianos»?

Os bolcheviques não insistem sobre a necessidade de votar imediatamente a resolução de Trotsky: eles não querem perturbar as tentativas feitas para obter um acordo sobra a base soviética. O método das lições de coisas é aplicada com sucesso, mesmo acompanhada de tiros de canhão! Mesmo como antes, a adopção da proposição de Martov, agora a concessão feita a Kamkov, revela somente a impotência dos esforços de conciliação. Todavia, distinguindo-se dos mencheviques de esquerda, os socialistas-revolucionários de esquerda não abandonam o congresso: eles sentem sobre eles demasiado directamente a pressão da aldeia insurrecta.

Sondaram-se reciprocamente. As posições à partida são ocupadas. No desenvolvimento do congresso dá-se uma pausa. Adoptar os decretos fundamentais e criar um governo soviético? Impossível: o velho governo ainda ocupa o palácio de Inverno, numa sala meio escura, onde a única lâmpada, sobre a mesa, é coberta por um jornal. Após duas horas da manhã, o secretariado declara a sessão suspensa por meia hora.

Os marechais vermelhos utilizaram com grande sucesso o curto prazo que lhes tinha sido acordado. Houve qualquer coisa de novo no ambiente do congresso quando a sessão foi retomada. Kamenev leu na tribuna um telegrama que acabou de receber de Antonov: o palácio de Inverno tinha sido tomado pelas tropas do Comité militar revolucionário; com a excepção de Kerensky, todo o governo provisório foi preso, o ditador Kichkine à cabeça. Mesmo se a notícia voou de boca em boca, o comunicado oficial caiu mais estrondosamente que uma salva de artilharia. O salto por cima do abismo separando do poder da classe revolucionária foi feito. Os bolcheviques que tinham sido expulsos em Julho do hotel particular de Kczesinska tinham agora entrado como mestres no palácio de Inverno. Na Rússia, não há outro poder senão o desse congresso. Uma embrulhada confusa de sentimentos surge nos aplausos e gritos: triunfo, esperança, mas também alarmes. Novas rajadas, cada vez mais fogosas, de aplausos. O caso está resolvido? A relação de forças mesmo a mais propícia está cheia de improvistos. A vitória torna-se incontestável quando o estado-maior do inimigo foi preso.

Kamenev descreve com uma voz imponente as personagens presas. Os nomes mais conhecidos arrancam ao congresso exclamações hostis ou irónicas. É com uma exasperação particular que se escuta o nome de Terechtchenko, que presidia ao destino exterior da Rússia. Mas Kerensky? Kerensky? Sabe-se que às dez horas da manhã exercia-se na arte oratória, sem grande sucesso, diante da guarnição de Gatchina. «Onde teria ele ido a seguir? Não se sabe exactamente: segundo os rumores, ele teria partido para a frente.»

Os companheiros de estrada da insurreição não se sentem à vontade. Pressentem que, doravante, o comportamento dos bolcheviques era mais firme. Alguém dos socialistas-revolucionários de esquerda protesta contra a prisão dos ministros socialistas. O representante dos internacionalistas unificados lança este aviso: é preciso evitar que o ministro da Agricultura, Maslov se encontrasse na mesma célula que ele esteve durante o regime monárquico. «Uma prisão política – responde Trotsky, que foi detido do tempo do ministro Maslov na prisão de Kresty, tal como no tempo de Nicolau – não é um caso de vingança: ela é ditada … por considerações racionais. O governo..., deve ser julgado por um tribunal, antes de mais pela sua ligação incontestável com Kornilov … Os ministros socialistas serão somente mantidos à vista nos seus domicilios.» Teria sido mais simples e mais exacto dizer que a captura do velho governo era simplesmente ditada pelas necessidades de uma luta inacabada. Tratava-se de decapitar politicamente o campo inimigo e não de punir as más acções precedentes.

Mas a interpelação parlamentar sobre as prisões é imediatamente eliminada por outro episódio de importância infinitamente mais considerável: o 3º batalhão de motociclistas, que Kerensky fez encaminhar sobre Petrogrado, se colocou ao lado do povo revolucionário! Esta notícia demasiado favorável parece faltar de veracidade; portanto é assim: um contingente seleccionado, o primeiro que foi destacado da frente, antes mesmo de chegar à capital, juntou-se à insurreição. Se o congresso, na sua alegria de saber os ministros presos, tinha colocado uma nuança de moderação, agora é colhido por um entusiasmo sem mistura e sem limites.

Na tribuna, o comissário bolchevique de Tsarkoie-Selo junto do delegado do batalhão de motociclistas: todos dois acabados de chegar para fazer seus relatórios ao congresso. «A guarnição de Tsarkoie-Selo guarda os arredores de Petrogrado.» Os partidários da defesa nacional deixaram o soviete. «Todo o trabalho tinha caído sobre nós somente.» Tendo sabido da próxima chegada dos motociclistas, o soviete de Tsarkoie-Selo preparava-se par resistir. Mas o alarme dado mostrou ser, felizmente, vã: «Entre os motociclistas, não há inimigos do congresso dos soviets.» Logo chegará a Tsarkoie-Selo outro batalhão: preparamo-nos já a recebê-lo amigavelmente. O congresso bebe esse relatório como leite.

O representante dos motociclistas é acolhido por uma tempestade, um turbilhão , um ciclone de aplausos. Da frente Sudeste, a 3º batalhão foi subitamente expedido para o Norte por ordem telegráfica: «Defender Petrogrado.» Os motociclistas seguiram, «os olhos vedados», não adivinhando vagamente do que se tratava. Em Paredolskaia, eles caíram sobre um escalão do 5º batalhão de motociclistas que tinha sido igualmente enviado contra a capital. Num comício comum que teve lugar na gare, demonstrou-se que «todos os seus motociclistas, não se encontrou um só pronto a consentir ir contra os seus irmãos.» Decisão tomada em comum: não se submeter ao governo. «Declaro-vos concretamente – diz o motociclista – nós não daremos o poder a um governo à cabeça do qual se encontram burgueses e proprietários nobres!» A palavra «concretamente» introduzida no uso popular pela revolução, soava bem nesse momento.

Havia já bastante tempo que, na mesma tribuna, o congresso era ameaçado de sofrer os castigos da frente? Agora, a própria frente tinha dito «concretamente» a sua palavra. Que os comités sabotem o congresso; que a massa de soldados tenha conseguido sobretudo excepcionalmente enviar os seus delegados; que numerosos regimentos e divisões, ainda não se tivesse aprendido a distinguir um bolchevique de um socialista-revolucionário, pouco importa! A voz que vem de Peredolskaia é uma voz autêntica, infalível, irrefutável, do exército. Contra esse veredicto, não há apelo. Os bolcheviques, e só eles, tinham compreendido no momento oportuno que o cozinheiro do batalhão dos motociclistas representava infinitamente melhor a frente do que todos os Kharach e os Kutchine com seus mandatos super utilizados. No estado de espírito dos delegados se produziu uma brusca modificação, muito significativa. «Começa-se a sentir – escreve Sokhanov – que o assunto marcha sózinho e de forma favorável, que os perigos anunciados pela direita não parecem tão terríveis que isso, e que os líderes podem ter razão no resto.»

É o momento que escolheram os lamentáveis mencheviques de esquerda para lembrar sua existência. Acontece que eles ainda não tinham saído. Discutiam na sua fracção a questão de saber como se comportar. Esforçando-se de arrastar o grupo de hesitantes, Kapelinsky, que se encarregou de anunciar ao congresso a decisão tomada, indica enfim o motivo o mais franco de uma ruptura com os bolcheviques: «Lembrem-se que tropas avançam para Petrogrado. Estamos sob ameaça de uma catástrofe. — Como? E vocês ainda estão aqui?» Esses gritos partem de diferentes pontos da sala. «Mas vocês já saíram uma vez!» Os mencheviques, em pequenos grupos, se dirigem para a porta, acompanhados por exclamações desprezíveis. «Nós saímos declara Sokhanov com um tom aflito – tendo completamente libertado as mãos dos bolcheviques, tendo-lhes cedido todo o terreno da revolução.» Pouco teria ficado se os que fala Sokhanov não tivessem abalado. De qualquer modo, eles foram derrotados. O curso dos acontecimentos se fechou implacavelmente sobre suas cabeças.

Era tempo para o congresso de dirigir um apelo ao povo. Mas a sessão continua a desenrolar-se em simples moções de ordem. Os acontecimentos não entram de forma nenhuma na ordem do dia. As 5h 17 da manhã, Krylenko, titubiando de cansaço, subiu à tribuna, com um telegrama na mão: o 12º exército saúda o congresso e informa sobre a criação de um comité militar revolucionário que se encarregou de vigiar a frente Norte. As tentativas feita pelo governo para obter uma ajuda armada se tinham quebrado na resistência das tropas. O general Tcheremissov, comandante chefe da frente Norte, tinha-se submetido ao comité. O comissário do governo provisório Voitinsky, tinha-se demitido e esperava um substituto. Delegações dos escalões que tinham sido enviados sobre Petrogrado declararam, uma após outra, ao Comité militar revolucionário, que elas se juntavam à guarnição de Petrogrado. «Aconteceu qualquer coisa inimaginável, escreveu John Reed: as pessoas choravam e abraçavam-se.»

Lunatcharsky encontrou enfim a possibilidade de ler em voz alta um apelo aos operários, aos soldados, aos camponeses. Mas não é simplesmente um apelo: pela simples exposição do que se passou e do que se previa, o documento, redigido à pressa, pressupõe o início de um novo regime de Estado. «Os plenos poderes do Comité executivo central conciliador expiraram. O governo provisório foi deposto. O congresso toma o poder.» O governo soviético proporá uma paz imediata, entregará aos camponeses a terra, dará o estatuto democrático ao exército, estabelecerá um controle sobre a produção, convocará no momento oportuno a assembleia constituinte, assegurará o direito das nações da Rússia a disporem de elas próprias.» O congresso decide que todo o poder, em todas as localidades, é entregue aos sovietes. Cada frase lida levanta uma salva de aplausos. «Soldados mantenham-se vigilantes! Ferroviários, parai todos os trens dirigidos por Kerensky sobre Petrogrado! … Entre as vossas mãos se encontra a sorte da revolução e da paz democrática!»

Ouvindo falar da terra, os camponeses agitaram-se. O congreso representa, segundo o regulamento, somente os operários e soldados; mas há também como participantes delegados de diferentes sovietes camponeses: agora, estes exigem que sejam mencionados também nos documentos. Acordam-lhe imediatamente o direito de voto deliberativo. O representante do soviete camponês de Petrogrado assina o apelo «com os pés e as mãos». Um membro do comité executivo de Avksentiev, Berezine, que esteve calado até então, comunica que, sobre sessenta e oito sovietes camponeses que responderam ao inquérito telegráfico, a metade pronunciou-se pelo poder dos sovietes, a outra metade pela transmissão do poder à Assembleia constituinte. Se tal é o estado de espírito dos sovietes da província, meio composto de funcionários, pode-se duvidar que o futuro congresso camponês apoie o poder soviético?

Agrupando mais estreitamente os delegados da fila, o apelo assusta e mesmo afasta certos companheiros de estrada pelo seu carácter inelutável. De novo desfilam na tribuna as pequenas fracções, a limalha. Pela terceira vez produz-se a ruptura com o congresso, a de um pequeno grupo de mencheviques, provavelmente os que estão mais à esquerda. Eles saem, mas somente para guardar a possibilidade de salvar os bolcheviques: «De outra forma vós vos perdeis também, vós perdereis a revolução.» O representante do partido socialista polaco, Lapinsky, ainda que tenha ficado no congresso para «defender o seu ponto de vista atá ao fim» junta-se em suma à declaração de Martov:» Os bolcheviques não poderão tirar partido do poder que eles toma sobre eles.» O partido judeu unificado abstém-se de votar. Os internacionalistas unificados fazem o mesmo. Quantos votos, todavia, todos esses «unificados» representam no conjunto? O apelo é adoptado por todos os votos contra dois, com duas abstenções! Os delegados quase que já não têm força para aplaudir.

A sessão é enfim levantada perto das 6 horas. Na cidade se descobre uma manhã de outono cinzenta e fria. Nas ruas que amanhecem pouco a pouco brilhas as manchas ardentes das brasas dos vigilantes. As caras ternes dos soldados e operários armados de fuzis estão fechadas e como não era hábito. Se houvessem astrólogos em Petrogrado, eles deviam observar importantes presságio no mapa mundo celeste.

A capital acordou sob um novo poder. O cidadão comum, os funcionários, os intelectuais, vivendo afastados da cena dos acontecimentos, lançaram-se logo pela manhã sobre os jornais para saber qual margem a maré da noite os tinham lançado. Mas não é fácil elucidar o que se passou. Na verdade, os jornais falam da tomada do palácio de Inverno pelos conspiradores e a prisão dos ministros, mas somente como um episódio passageiro. Kerensky partiu para o Grande Quartel General, a sorte do poder será decidida pela frente. Os relatórios do congresso reproduzem somente as declarações das direitas, enumeram os que saíram e denunciam a impotência dos que ficaram. Os artigos políticos escritos antes da tomada do palácio de Inverno transpiram um optimismo sem nuvens.

Os rumores da rua não correspondem ao tom dos jornais. No fim de contas, os ministros mesmo assim estão presos na fortaleza. Do lado de Kerensky, não se vê reforços pelo momento. Os funcionários e os oficiais comovem-se e têm conciliábulos. Os jornalistas e os advogados trocam telefonemas. As redacções tratam de juntar suas ideias. Os oráculos dos salões dizem: é preciso cercar os usurpadores por um bloco de desprezo público. Os comerciantes não sabem se devem continuar a comercializar ou se privarem. Os poderes novos ordenam que se comercialize. Os restaurantes abrem. Os tróleis funcionam, os banco aborrecem-se nos maus pressentimentos. Os sismógrafos da Bolsa descrevem uma curva compulsiva. Bem entendido, os bolcheviques não se manterão por muito tempo, mas antes de caírem, eles podem causar infelicidade.

O jornalista reaccionário français Claude Anet escrevia nesse dia: «Os vencedores cantam o hino da vitória. E têm perfeitamente razão. No meio de todos esses faladores, eles agiram … Hoje, colhem o que semearam. Bravo! Foi um belo trabalho!» A situação foi apreciada de outro modo pelos mencheviques. «Vinte e quatro horas decorreram desde da «vitória» dos bolcheviques – escrevia o jornal de Dan – e a fatalidade histórica começa já a tirar deles uma cruel vingança … à volta deles, é o vazio que eles próprios criaram … eles todos se isolaram... todo o aparelho dos funcionários e técnicos recusa meter-se ao serviço deles... eles...afundam-se no mesmo momento do seu triunfo num abismo...»

Encorajados pela sabotagem dos funcionários e pela sua própria ligeireza, os círculos liberais e conciliadores acreditam estranhamente na sua impunidade. Sobre os bolcheviques, eles falavam e escreviam na linguagem das Jornadas de Julho: «mercenários de Guilherme», «os bolsos dos homens da guarda vermelha estão cheios de marks alemãs», «são os oficiais alemãs que comandam a insurreição» … O novo poder devia mostrar a essa gente um forte punho antes mesmo que eles comecem a acreditar nisso. Os jornais mais enfurecidos foram proibidos logo na noite do 25 a 26. um certo número de outros foram confiscados no decorrer do dia. A imprensa socialista foi poupada pelo momento: era preciso dar aos socialistas-revolucionários de esquerda, e também a certos elementos do partido bolchevique, a possibilidade de se convencer da inconsistência das esperanças de uma coligação com a democracia oficial.

No meio da sabotagem e do caos, os bolcheviques desenvolviam sua vitória. Organizado na noite, um Estado-maior provisório ocupou-se da defesa de Petrogrado em caso de ofensiva de Kerensky. Na central telefónica, onde a greve começou, foram enviados telefonistas militares. Os exércitos foram convidados a criarem os seus comités revolucionários. Na frente e na província grupos de agitadores e de organizadores foram enviados após a vitória. O orgão central do partido escrevia: «O Soviete de Petrogrado pronunciou-se – é a vez dos outros sovietes.»

No decorrer do dia chegou a notícia que lançou o sarilho entre os soldados: Kornilov fugiu. Na realidade, esse distinto prisioneiro, que residia em Bykhov sob a guarda dos homens fiéis de Tek e que era tido pelo Grande Quartel General de Kerensky ao corrente de todos os acontecimentos, tinha decidido, no 25, que o assunto tomava um aspecto sério e, sem a mais pequena dificuldade, tinha abandonado a sua prisão imaginária. A ligação entre Kerensky e Kornilov confirmou-se de novo com toda evidência ao olhos das massas. O comité militar revolucionário apelava por telegrama aos soldados e oficiais revolucionários a prender e entregar a Petrogrado os dois antigos generalíssimos.

Como em Fevereiro, o palácio de Tauride, agora Smolny tinha-se tornado o centro de todas as funções da capital e do Estado. Aí era a sede de todas as instituições dirigentes. Daí partiam as decisões, ou era aí que as vinham procurar. Era aí que se reclamavam as armas, e que se entregavam os fuzis e os revólveres confiscados ao inimigo. De diferentes pontos da cidade traziam as personagens sob prisão. Já se juntavam os que tinham sido ofendidos, procurando justiça. O público burguês e os cocheiros de carruagens assustados cercavam Smolny formando um largo círculo.

O automóvel é um símbolo do poder muito mais eficaz que o espectro e o globo. Sob o regime da dualidade de poderes, os automóveis eram partilhados entre o governo, o comité executivo central e os particulares. Pelo momento, todas as máquinas confiscadas eram entregues ao campo da insurreição. O parque de Smolny parecia um gigantesca garagem de campanha. Os melhores automobilistas exalavam mau cheiro de um carburante detestável. Os motociclistas trepidavam impacientes e ameaçantes na penumbra. Os carros blindados faziam tocar os suas buzinas. Smolny parecia uma fábrica, uma gare e uma estação de energia da insurreição.

Nos passeios das ruas adjacentes se prolongava uma torrente apertada de gente. Diante das portas interiors e exteriores queimavam os cavacos. À luz vacilante, os operários armados e soldados vigiavam atentamente os salvo-condutos. Alguns carros blindados eram sacudidos no pátio pelo funcionamento dos seus motores. Ninguém queria parar, nem as máquinas, nem as pessoas. A cada entrada encontravam-se metralhadoras fornecidas em abundância por fitas de cartuchos. Os intermináveis e ternos corredores, fracamente iluminados, zumbido os ruídos de passos, exclamações, apelos. Os que chegavam e saíam tomavam a larga escadaria, uns para cima, os outros para baixo. Esta massa de lava humana era cortada por individuos impacientes e autoritários, militantes de Smolny, estafetas, levando o fuzil às costas, amarrado por um cordel, ou então por uma toalha debaixo do braço.

O comité militar revolucionário não se interrompeu nem por um minuto o trabalho, recebia delegados, estafetas, informadores voluntários, amigos cheios de abnegação e malandros, enviou para todos os cantos da capital comissários, colocou numerosos carimbos nas ordens e certificados de poderes – tudo isso através de pedidos de informação que se entrecruzavam, comunicados urgentes, chamadas telefónicas e os ruídos de armas. Extenuados, os homens, que não tinham nem dormido nem comido desde muito tempo, barba por fazer, vestidos ,... de roupa suja, com os olhos inflamados, gritavam com voz rouca, gesticulando de forma exagerada e, se na caíam inanimados no soalho, era, parece, somente graças ao caos do ambiente que os fazia viravoltar e os levava sobre as suas asas irresistíveis.

Aventureiros, devassos, os piores detritos dos velhos regimes procuravam introduzir-se em Smolny. Alguns deles encontravam. Eles conheciam alguns pequenos segredos da direcção: que possui as chaves da correspondência diplomática, como se redige os cheques para obter fundos, onde se obtêm a gasolina ou uma máquina de escrever, e, particularmente, onde se conservam os melhores vinhos do palácio. Não é à primeira que eles se encontravam na prisão ou sob a bala de um revólver.

Desde da criação do mundo, nunca tantas ordens tinham sido lançadas, oralmente, em lápis, à máquina, por telefone, um procurando apanhar o outro, — grande numero de ordens – nem sempre enviadas por aqueles que tinham o direito de comandar e raramente recebidos por aqueles que estavam em situação de executar, que as pessoas se arranjavam para se compreender entre elas, que o mais importante e o mais indispensável era mesmo assim executado, que, para substituir o velho aparelho de direcção, os primeiros fios de uma direcção nova estavam estendidos: a revolução se reforçava.

Durante o dia trabalhou em Smolny o Comité central dos bolcheviques: tratava-se de decidir sobre o novo governo da Rússia. Nenhum processo verbal não foi estabelecido, ou então não foi conservado. Ninguém se preocupava com os historiadores do futuro, mesmo se estivesse em vias de lhes preparar bastantes preocupações. Na sessão da noite do congresso, a assembleia deve criar um gabinete ministerial. Ministros? Eis uma palavra bastante comprometida! Isso cheira a carreirismo burocrático ou então ao coroar de uma ambição parlamentar. Decide-se que se chamará o governo: «Conselho dos Comissários do Povo»; Isso mesmo assim tem um ar novo. Dado que as conversações sobre a coligação de «toda a democracia» dado nada até então, o problema da composição do governo, tanto em relação ao partido como às personalidades, era simplificado. Os socialistas-revolucionários de esquerda fazem denguices e se fecham: acabado de romper com o partido de Kerensky, eles ainda não sabem bem eles próprios o que têm a fazer. O Comité central adopta a proposição de Lénine como a única admissível: formar um governo composto unicamente de bolcheviques.

No decurso desta sessão, Martov veio apresentar a causa dos ministros socialistas que tinham sido presos. Pouco tempo antes, ele tinha tido ocasião de intervir junto dos ministros socialistas para a libertação dos bolcheviques. A roda tinha feito uma volta famosa. Por intermediário de um dos seus membros, destacado para se encontrar com Martov, de Kamenev sem dúvida, o Comité centra confirmou que os ministros socialistas seriam presos em domicílio: aparentemente, tinham esquecido de pensar neles, entre outros assuntos, ou então eles próprios tinham renunciado aos seus previlégios, respeitando, mesmo no bastião Trobetskoi, o príncipio da solidariedade ministerial.

A sessão do congresso abriu-se às 9 horas da noite. «O quadro diferia muito pouco do da véspera. Menos armas, menos ajuntamentos.» Sokhanov, já não na qualidade de delegado, mas misturado ao público, encontrou lugar. Nesta sessão, devia-se decidir da questão da paz, da terra e do governo. Pelo menos três questões: acabar com a guerra, dar a terra ao povo, estabelecer a ditadura socialista. Kamenev começa por um relatório sobre os trabalhos aos quais se dedicou o secretariado durante o dia: aboliu-se a pena de morte que Kerensky tinha restabelecido na frente; restitui-se toda a liberdade de agitação; a ordem tinha sido dada de libertar os soldados presos por delitos de opinião e os membros dos comités agrários; são evocados todos os comissários do governo provisório; ordem é dada para prender e entregar Kerensky e Kornilov. O congreso aprova e confirma.

Novamente dão prova de existência, diante de uma sala impaciente e desconfiada, toda especie de restos: uns dão a saber que abandonam — «no momento da vitória da insurreição e não no momento da derrota» — outros, em contra partida, se vangloriam por ficar. O representante dos mineiros de Donetz pede que se tome medidas urgentes para que Kalenie não corte o envio de carvão para o Norte. Passará bastante tempo antes que a revolução tenha aprendido a tomar medidas desta envergadura. Enfim, pode-se passar ao primeiro parágrafo da ordem do dia.

Lenine, que o congresso ainda não viu, recebe e palavra para tratar da paz. A sua aparição na tribuna levanta aplausos intermináveis. Os delegados das trincheiras abrem grande olhos par ver o homem misterioso que lhes ensinaram a detestar e que eles aprenderam, sem o conhecer, a amar. Agarrando-se solidamente, sem se interessar visivelmente, às ovações incessantes que duraram vários minutos. Quando a manifestação terminou, ele disse simplesmente: «Agora, vamos nos ocupar da edificação da ordem socialista.»

Não ficou do processo-verbal do congres. As estenógrafas parlamentares, convidadas a tomar nota dos debates tinham abandonado Smolny com os menchevique e os socialistas-revolucionários; é um dos primeiros episódios da sabotagem. As notas tomadas pelas secretárias perderam-se irremediavelmente no abismo dos acontecimentos. Só ficaram os relatórios apressados e tendenciosos dos jornais que tinham sido redigidos sob o ruído dos tiros de canhão ou então através do ranger de dentes da luta política. Os relatórios de Lénine sofreram particularmente da situação: pela rapidez do seu débito e da complexa construção dos períodos, os relatórios, mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, não se prestavam facilmente a tomar notas. A frase de introdução que John Reed mete nos lábios de Lénine não se encontra em qualquer relato dos jornais. Mas ela é completamente no espírito do orador. Reed não podia inventar. É precisamente assim que Lénine devia começar a sua intervenção no congresso dos sovietes, simplesmente, sem pathos, com uma segurança irresistível: «Agora, vamos nos ocupar da construção da ordem socialista.»

Mas, para isso, é preciso antes de tudo acabar com a guerra. No tempo de sua vida de emigrado na Suíça, Lénine tinha lançado a palavra de ordem: «transformar a guerra imperialista em guerra civil». Agora, era preciso transformar a guerra civil vitoriosa em paz. O relator começa directamente por ler um projecto de declaração que o governo eleito terá que publicar. O texto não é distribuído: a técnica é ainda fraca. O congresso dá toda a sua atenção à leitura da cada palavra do documento.

«O governo operário e camponês, criado pela resolução dos 24-25 de Outubro e apoiando-se sobre os sovietes de deputados operários, soldados e camponeses, propõe a todos os povos beligerantes e a seus governos o início imediato de conversações por uma paz justa e democrática.» Clásulas rejeitam toda as anexações e contribuições. Sob o termo de «anexação», convém entender a associação forçada de populações estrangeiras ou então a sua manutenção na servidão contra sua vontade, na Europa ou além dos oceanos. «Ao mesmo tempo, o governo declara que ele não considera as condições de paz acima indicadas como ultimatos, isto é que está de acordo para examinar todas outras condições», exigindo somente que se venha o mais cedo possível às conversações e que todo o segredo seja eliminado no decurso dessas conversações.

Pelo seu lado, o governo soviético aboliu a diplomacia secreta e iniciou a publicação dos tratados secretos assinados até ao 25 de Outubro 1917. Tudo que nesses tratados tem por objecto atribuir vantagens e privilégios aos proprietários e aos capitalistas russos, de assegurar a opressão pelos Grã-Russos das outras populações — «o governo declara tudo isso sem valor e imediatamente». Para a abertura das conversações, propõe-se imediatamente uma trégua que seria tanto quanto possível de pelo menos três meses. O governo operário e camponês dirige essas proposições simultaneamente «aos governos e aos povos de todos os países beligerantes, em particular aos operários conscientes das três nações mais avançadas», a Inglaterra, a França e a Alemanha, na certeza que serão precisamente elas que «nos ajudarão a levar a termo a obra da paz e, ao mesmo tempo, libertar as massas trabalhadoras e exploradas de qualquer servidão e exploração.»

Lénine limita-se a breves comentários sobre o texto da declaração. «Não podemos ignorar os governos, porque isso atrasaria a possibilidade de concluir a paz … , mas não temos o direito, ao mesmo tempo, de nos dispensar de nos dirigirmos aos povos. Em todo o lado, os governos e os povos estão em desacordo entre eles, nós devemos ajudar os povos a intervir nas questões de guerra e da paz.» «Certamente, nós defenderemos por todos os meios nosso programa de paz sem anexações nem contribuições», mas nós não devemos colocar nossas condições como ultimatos, tomando cuidado em dar aos governos um pretexto cómodo de afastar as conversações. Nós examinaremos todas outras proposições. «Nós examinaremos todas outras proposições – isso ainda não quer dizer que nós as aceitaremos.»

O manifesto publicado pelos conciliadores, 14 de Março, convidava os operários dos outros países a derrubar os banqueiros em nome da paz; todavia, os próprios conciliadores, longe de apelar ao derrube dos seus próprios banqueiros, aliavam-se a eles. «Agora, nós derrubámos o governo dos banqueiros.» Isso nos dá o direito de apelar aos outros povos a fazer o mesmo. Nós temos esperança na vitória: «É preciso lembrar-mo-nos que nós vivemos não nas profundidades de África, mas na Europa, onde tudo pode se tornar rapidamente de notoriedade pública.» Lénine vê como sempre, a aposta da vitória na transformação da revolução nacional numa vitória internacional. «O movimento operário tomará a iniciativa e abrirá a via para a paz e o socialismo.»

Os socialistas-revolucionários de esquerda enviaram seus representantes para aderirem à declaração que acabava de ser lida: «No espírito e sentido , ela lhes era próxima e compreensiva.» Os internacionalista unificados pronunciam-se pela declaração, mas na condição que ela seja feita em nome do governo de toda a democracia. Lapinsky, em nome dos mencheviques polacos de esquerda, aprova fortemente «o realismo são proletário» do documento. Dzerjinsky em nome da social-democracia da Polónia e da Lituânia, Stotchka em nome da social-democracia da Letónia, Kapsukas, em nome da social-democracia da Lituânia, aderem à declaração sem reserva. Só houve objecções do lado do bolchevique Emereiev, que reclamou que as condições de paz tomassem um carácter de ultimato: de outra forma «poder-se-ia pensar que nós somos fracos, que temos medo».

Lénine argumenta resolutamente, e mesmo com veemência, contra a proposição de apresentar as cláusulas da paz em forma de ultimato: para aí, nós «daremos somente a possibilidade aos nossos adversários de dissimular toda a verdade ao povo, de esconder atrás da nossa intransigência.» Diz-se que «a nossa renúncia a colocar um ultimato demonstra nossa impotência». É tempo de renunciar à falsidade das concepções burguesas em política.» Nós não temos nada a temer dizendo a verdade sobre a nossa lassitude...» Os futuros desentendimentos sobre Brest-Litovsk surgem, através deste episódio.

Kamenev convida todos os que são partidários do manifesto a mostrarem suas cartas de delegados. «Um dos delegados – escreve Reed – tinha levantado o braço em sinal de oposição, mas à volta dele a indignação foi tal que ele teve que baixar a mão.» O manifesto aos povos e aos governos foi adaptado unanimemente. A coisa está feita! E esse acto engloba todos os participantes pela sua grandeza imediata e muito próxima.

Sokhanov, observador atento mesmo se prevenido, tinha notado mais de uma vez, na primeira sessão, a lassitude do congresso. Sem qualquer dúvida, os delegados, tal como todo o povo, estavam cansados de reuniões, congressos, discursos, resoluções, e em geral de tudo esse marcar passo. Eles não tinham a certeza que esse congresso saberia e poderia levar até ao fim essa obra. Eles não tinham a certeza que esse congresso saberia e poderia levar o trabalho até ao fim. A grandeza das tarefas e a força insuperável das resistências não os forçaria a se retirarem ainda desta vez? Houve um afluxo de certeza quando se conheceu a tomada do palácio de Inverno, e logo a adesão dos motociclistas à insurreição. Mas estavam aí dois factos que se relacionavam ainda com o mecanismo da insurreição. Foi só agora que se descobriu efectivamente o seu sentido histórico. A insurreição vitoriosa tinha colocado sob o congresso dos operários e dos soldados a base inquebrável do poder. Os delegados votavam desta vez não pela revolução, mas por um acto de governo de um significado infinitamente maior.

Escutai, povos! A revolução vos convida à paz. Ela será acusada de ter violado os tratados. Mas ela orgulha-se disso. Romper com as sangrentas alianças de rapina – é um grande mérito na História. Os bolcheviques ousaram. Eles foram os únicos a ousar. O orgulho rebenta nos nossos corações. Os olhos inflamam. Todos de pé. Ninguém fuma. Parece que ninguém respira. O secretariado, os delegados, os convidados, os homens da guarda unem-se num hino de insurreição – nós encontrámo-nos todos de pé, retomando os acentos arrebatantes da Internacional. Um velho soldado de cabelos cinzentos chorava como uma criança. Alexandra Kollontai pestanejava rapidamente os olhos para não chorar. A potente harmonia se espalhava na sala, furando vidros e portas, e subia para o céu.»

Era para o céu? Ou antes para as trincheiras de outono que delimitavam a velha Europa crucificada, para as cidades e aldeias devastadas, para as mulheres e mães de luto. «De pé, condenados da terra; de pé, forçados da fome! …» As palavras confundiam-se com o acto governamental. É aí que lhes vinha o som da acção directa. Cada um se sentia maior e mais significante nesse momento. O coração da revolução alargava-se ao mundo inteiro. «Obteremos a libertação...» O espírito de independência, de iniciativa, de ousadia, os felizes sentimentos dos quais os oprimidos são desprovidos nas circunstâncias habituai – tudo isso era trazido agora pela revolução … «Pela sua própria mão!» Com uma mão potente, milhões de homens que derrubaram a monarquia e a burguesia vão agora abafar a guerra. A guarda vermelha do bairro de Vyborg, o obscuro soldado cicatrizado que veio da frente, o velho revolucionário que passou anos nas masmorras, o jovem marinheiro de barba negra do Aurora todos juravam levar até ao fim a luta final e decisiva. «Nós construiremos um mundo para nós, um mundo novo!» Nós construiremos? Nessa palavra escapando aos nossos peitos humanos estavam já incluidos os futuros anos da guerra civil e os próximos planos quinquenais de trabalho e de privações. «Aquele que não era nada será tudo! Tudo? Se a realidade do passado se transformou mais de uma vez num hino, porquê o hino não se tornará a realidade de amanhã? Os capotes das trincheiras já não têm ar de vestuário do homem dos trabalhos forçados. Os barretes de pêlo, o tecido rasgado, se erguem de outra maneira sobre os olhos brilhantes. «Acordai género humano!» Era inconcebível que ele não se revelasse nas calamidades e nas humilhações, da lama e do sangue da guerra?

«Todo o secretariado, Lénine à cabeça, estava de pé e cantava, rostos exaltados, inspirados, e olhares brilhantes.» Assim testemunha um céptico que contemplava com um sentimento penoso o triunfo do outro.» Gostaria tanto de me juntar aí – confessa Sokhanov – me confundir num só e mesmo sentimento, num mesmo estado de ânimo, com esta massa e os seus chefes. Mas eu não podia.»

Os últimos acentos do refrão tinham desaparecido, mas o congresso continuava ainda de pé, massa humana em fusão, levantada pela grandeza do que ela vivia. E numerosos foram os olhares que se fixaram sobre o homem atarracado, pequeno, de pé na tribuna, cabeça extraordinária, de traços simples, de maçãs do rosto salientes, rosto mudado pelo momento por causa do queixo barbeado, cujos olhos pequenos de aparência ligeiramente mongol tinham um olhar penetrante. Não era visto desde há quatro meses, mesmo o seu nome teve tempo de se destacar do seu personagem vivo. Mas não, ele não é um mito, aí está no meio dos seus – e quantos dos «seus» agora! — tendo entre suas mãos as folhas de uma mensagem, de paz aos povos. Mesmo os que eram os mais próximos dele, os que conheciam bem seu lugar no partido, sentiram pela primeira vez completamente o que ele significava para a revolução, para o povo, para os povos. Era ele que tinha feito a educação. Era ele que tinha ensinado. Uma voz saiu do fundo da assembleia gritou algumas palavras de saudação dirigidas ao chefe. A sala parecia esperar esse sinal. Viva Lénine! As emoções pelas quais tinham passado, as dúvidas ultrapassadas, o orgulho da iniciativa, o triunfo, as grandes esperanças, tudo se confundia numa erupção vulcanica de reconhecimento e entusiasmo. O testemunho céptico nota secamente: «Produz-se uma incontestável subida dos espíritos … Saudavam Lénine, gritavam hurra, lançavam os bonés pelo ar. Cantou-se a Marcha Fúnebre em memória das vítimas da revolução. E, novamente, aplausos, gritos, bonés lançados pelo ar.»

O que o congresso tinha vivido nesses minutos, o povo inteiro devia viver no dia seguinte, mesmo com menos intensidade. «É preciso dizer – escreve, nas suas memórias, Stankevitch que o gesto audacioso dos bolcheviques, sua aptitude atravessar o arame farpado, os quatro anos que nos tinham separado dos povos vizinhos produziam por eles próprios uma imensa impressão.» Mais brutalmente, mas não menos nitidamente, se exprime o barão Budberg no seu jornal íntimo: «O novo governo do camarada Lénine começa por decretar a paz imediata … Actualmente, é um golpe de mestre para atrair a si a massa dos soldados; constatei segundo o estado de espírito de vários regimentos que visitei hoje; o telegrama de Lénine sobre uma trégua imediata de três meses e sobre a paz consecutiva, produziu por todo o lado explosões de alegria. Agora nós perdemos as nossas últimas oportunidades de salvar a frente.» O que essa gente compreendia por aí ao falar de salvar a frente que eles próprios tinham perdido – e já há bastante tempo, unicamente, a salvação das suas próprias posições sociais.

Se a revolução tinha encontrado nela a sua audácia de atravessar o arame farpado em Março e Abril, ela teria podido ainda operar, por um certo tempo, uma união do exército, com a condição de reduzir ao mesmo tempo a metade ou um terço dos seus efectivo e de constituir assim, pela sua política exterior, uma posição de força excepcional. Mas a hora dos actos corajosos só suou em Outubro, quando já não se podia sonhar em salvar uma parte qualquer do exército, mesmo por pouco tempo. O novo regime devia tomar em consideração os gastos não somente da guerra czarista, mas também o desperdício feito pelo governo provisório. Em tão terríveis circunstâncias, sem saída para todos os outros partidos, o bolchevismo era o único capaz de remeter o país no bom caminho, abrindo, pela Revolução de Outubro, fontes inesgotáveis de energia popular.

Lénine está de novo na tribuna, desta vez com algumas páginas do decreto sobre a propriedade agrária. Ele começa por acusar o governo derrubado e os partidos conciliadores que, ao arrastarem a questão da terra, levaram o país à insurreição camponesa. «Há mentira e imposturas cobardes no que eles dizem das pilhagens e da anarquia nos campos. Onde e quando as pilhagens e a anarquia foram provocadas pelas medidas razoáveis?» O projecto de decreto não foi recopiado em múltiplos exemplares para serem distribuídos: o relator tem entre mãos o único rascunho, e está escrito, segundo as lembranças de Sukhanov, «tão mal que Lénine se confunde e finalmente ficou empanado. Alguém na multidão que se apertava contra a tribuna, veio ao seu socorro. Lénine cede voluntariamente o seu lugar e o papel indecifrável.» Essas pequenas dificuldades não menorizam de forma alguma, aos olhos do parlamento da plebe, a grandeza do que se realizava.

O teor do decreto encontra-se em duas linhas do primeiro artigo: «A propriedade da terra dos nobres é abolida imediatamente sem qualquer direito de compra.» As terras do nobres, os domínios da Coroa, as propriedades dos mosteiros e das igrejas, com o seus animais e equipamento, são colocados à disposição dos comités agrários do cantão e dos sovietes de deputados camponeses do distrito, esperando a Assembleia constituinte. Os bens confiscados, como propriedade pública, são colocados sob controlo dos sovietes locais. As terras dos camponeses pobres e dos cossacos das bases escapam à confiscação. O decreto não conta mais que uma trintena de linhas: é uma machadada no nó górdio.

Ao texto essencial acrescenta-se uma instrução mais extensa, inteiramente emprestada aos próprios camponeses. Nas Izvestia dos Sovietes camponeses, tinha sido imprimido, a 19 de Agosto, o resumo de duzentos e quarenta e dois cadernos dados pelos eleitores a seus representantes no primeiro congresso dos deputados camponeses. Ainda que esse resumo dos cadernos tivesse sido elaborado pelos socialistas-revolucionários, Lénine não hesitou a incorporar esse documento, totalmente e integralmente, ao decreto «a título de direcção geral para a realização das grandes reformas agrárias». A carta diz em substância: «O direito de propriedade privada sobre a terra e anulada para sempre.» «O direito de utilizar a terra é outorgada a todos os cidadãos … que desejam trabalhá-la com as suas próprias mãos.» «

O trabalho salariado não é tolerado.» «A exploração da terra deve ser igualitária, isto é, o chão é distribuído entre os trabalhadores, tendo em conta as condições locais, segundo uma norma de trabalho ou de consumo».

Se o regime burguês tinha sido mantido, sem falar duma coligação com os proprietários nobres, o resumo redigido pelos socialistas-revolucionários teria ficado como uma utopia inviável, ou então transformar-se em mentira consciente. Não teria sido realizável em todas as suas partes, mesmo sobre o domínio do proletariado. Mas a sorte desse formulário modificou-se radicalmente no momento que o poder o considerava de nova maneira. O governo operário dava à classe camponesa um prazo para fazer verificações efectivas sobre o seu programa contraditório.

«Os camponeses querem guardar para eles a pequena propriedade, fixar uma norma igualitária … proceder periodicamente a novas igualizações … escrevia Lénine, em Agosto. Então que seja assim! Sobre esse ponto, nem um socialista razoável será em desacordo com os camponeses pobres. Se as terras são confiscadas, o domínio dos bancos é minado; se o material é confiscado, o domínio do capital também é minado, e o poder político passando ao proletariado, o resto … será sugerido pela própria prática.»

Numerosos foram, não somente inimigos mas amigos, os que não compreenderam esta atitude perspicaz, pedagógica numa grande medida, do partido bolchevique em relação à classe camponesa e do seu programa agrário. A repartição igualitária das terras – replicava por exemplo Rosa Luxemburg – não tem nada em comum com o socialismo. Mas, sobre esse assunto, os bolcheviques, eles também, não tinham, bem entendido, ilusões. Pelo contrário, a estrutura mesmo do decreto testemunha a vigilância crítica do legislador. Enquanto que o resumo dos cadernos declara que toda a terra, a dos proprietários nobres como a dos camponeses, «torna-se o bem de toda a nação», a lei fundamental silencia a nova forma de propriedade agrária. Mesmo um jurista de grandes vistas deve parar com horror diante desse facto que a nacionalização da terra, novo princípio social de uma importância histórica mondial, é instituída sob forma de instrução acrescentada à lei fundamental. Portanto, não há aí negligência de redacção. Lénine queria sobretudo não ligar à priori o partido e o poder soviético, no domínio histórico ainda inexplorado. Aí, também, ele unia a um atrevimento sem exemplo a maior circunspecção. Ficava ainda por determinar pela experiência como os próprios camponeses compreendiam que a terra se tornaria «o bem de toda a nação». depois de ter dado um salto em frente, era preciso fortificar as posições no caso onde seriam obrigados de recuar: a repartição das terras dos proprietários nobres entre os camponeses, não sendo por ela própria uma garantia em relação à contra-revolução burguesa, excluía em qualquer caso uma restauração da monarquia feudal.

Não se podia falar de «perspectivas socialistas» senão na condição de estabelecer e de manter o poder do proletariado; ora, manter esse poder, isso não se podia de outro modo senão dar apoio resoluto ao camponês no seu empreendimento revolucionário. Se a repartição das terras consolidava politicamente o governo socialista, ela era inteiramente justificada como medida imediata. Era preciso tomar o camponês tal como a revolução o tinha encontrado. Ele não podia ser reeducado senão por um novo regime, não de uma só vez, mas durante vários anos, no decurso de várias gerações, com a assistência de uma nova técnica e uma nova organização económica. O decreto, combinado com o resumo dos cadernos, significou para a ditadura do proletariado a obrigação não somente em considerar atentamente os interesses do trabalhador agrícola, mas também tolerar as suas ilusões de pequeno proprietário. Era claro antecipadamente que, na revolução agrária, não haveria etapas e viravoltas. A instrução anexa não era de forma alguma a última palavra. Ela representava somente um ponto de partida que os operários consentiam ocupar ao ajudar os camponeses a realizar as suas reivindicações progressistas e acautelando os seus passos falsos.

«Não podemos ignorar – dizia Lénine no seu relatório – a decisão da base popular, mesmo quando não estamos de acordo com ela … Nós devemos dar às massas populares inteira liberdade de acção criadora … Em resumo, e tudo está aí, a classe camponesa deve obter a firme certeza que os nobres não existem mais nos campos, e é preciso que os próprios camponeses decidam de tudo e organizem a sua existência.» Oportunismo? Não, realismo revolucionário.

Antes que as ovações terminassem, o socialista-revolucionário de direita Piianykh, que se apresenta em nome do comité camponês, levantou um protesto furioso a propósito da detenção à qual foram submetidos os ministros socialistas. «Nestes últimos dias, realizou-se qualquer coisa – grita o orador, batendo sobre a mesa num acesso de raiva – qualquer coisa que nunca se viu em qualquer revolução. Nossos camaradas, membros do Comité executivo – Maslov e Salazkine, foram presos. Exigimos a sua libertação imediata!» «Se um só cabelo cai de suas cabeças!» — exclama um outro emissário, com capote de soldado, de tom ameaçador. Um e outro têm pelo congresso a aparência de fantasmas.

No momento da insurreição, havia, na prisão de Dvinsk acusados de bolchevismo, cerca de oito centos individuos; em Minsk, cerca de seis mil; em Kiev, quinhentos e trinta e cinco, sobretudo soldados. E quantos havia noutros lugares do país, atrás das grades, membros dos comités de camponeses! Enfim, um bom número de delegados mesmo do congresso, a começar pelo secretariado, tinham passado depois de Julho pelas prisões de Kerensky. Não é de admirar que a indignação dos amigos do governo provisório não tenha suscitado nesta assembleia uma grande emoção. Para cumulo da desgraça levantou-se do seu lugar um delegado desconhecido de todos, um camponês da província de Tver, de cabelo grande, vestido com uma pele fina de cordeiro, e, tendo saudade com cortesia os quatro cantos da assembleia, conjura o congresso em nome dos seus eleitores, em não hesitar a prender o comité executivo de Avksentiev inteiro: «não são representantes camponeses, são cadetes … O lugar deles é na prisão.» Assim se erguia em frente do outro duas personagens: o socialista-revolucionário Piianykh, parlamentar experiente, com poder de ministro, que odiava os bolcheviques; e, de outro, um desconhecido camponês de Tver que trazia a Lénine, em nome dos seus eleitores, calorosas felicitações. Duas camadas sociais, duas revoluções: Piianykh falava em nome da de Fevereiro, o camponês de Tver militava por Outubro. O congresso fez ao delegado em pele de carneiro uma verdadeira ovação. Os emissários do comité executivo saem proferindo invectivas.

«A fracção dos socialistas-revolucionários de esquerda acolhem o projecto de Lénine como o triunfo da sua própria ideia», declara Kalegaiev. Mas, por causa da extrema importância da questão, é indispensável debatê-la nas diferentes fracções. Um maximalista, representante da extrema-esquerda do partido socialista-revolucionário que se decompôs, exige um voto imediatamente. «Nós deveríamos homenagear o partido que, desde do primeiro dia, sem grandes conversas, aplica uma tal medida.» Lénine insiste para a suspensão da sessão seja de qualquer modo a mais curta possível. «Notícias tão importantes para a Rússia devem ser impressas logo pela manhã. Sem atrasos!» Porque enfim o decreto sobre a questão agrária não é somente a base do novo regime, mas é o instrumento duma insurreição que ainda tem que conquistar o país. Não é em vão que John Reed nota nesse momento uma exclamação imperiosa que fura o tumulto das vozes na sala: «Quinze agitadores na sala nº 17. Imediatamente! Partida para a frente!»

À uma da manhã, um delegado das tropas russas na Macedónia vem se queixar que estas tenha sido esquecidas pelos dois governos que se sucederam em Petrogrado. O apoio à paz e pela terra está assegurado do lado dos soldados que se encontram em Macedónia! Tal é a nova verificação do estado de espírito de um exército que, desta vez, se encontra num canto recuado do Sudeste europeu. Kamenev comunica logo depois: o 10º batalhão de motociclistas, chamado da frente pelo governo, entra nessa manhã em Petrogrado e, de igualmente como os que lhe precederam, deu a sua adesão ao congresso dos sovietes. Vivos aplausos provam que as provas renovadas sem parar da força que se possui não parecerão nunca inúteis.

Após uma resolução adaptada unanimemente e sem debate, declarando que é um dever honroso para os sovietes das localidades em não tolerar os progromes que seriam exercidos contra os judeus e qualquer outra pessoa por individuos tarados, submete-se ao voto o projecto de lei agrária. Contra um voto diante de oito abstenções, o congresso adopta com uma nova explosão de entusiasmo o decreto que mete fim ao regime de servidão, base das bases da velha sociedade russa. Doravante, a revolução agrária é legalizada. Por aí mesmo a revolução do proletariado adquire um sólido apoio.

Resta um último problema: a criação de um governo. Kamenev lê o projecto elaborado pelo Comité central dos bolcheviques. A administração dos diversos domínios da vida do Estado foi confiada às comissões que devem trabalhar na realização do programa anunciado pelo congresso — «em estreita união com as organizações de massa dos operários, das operárias, dos marinheiros, dos soldados, dos camponeses e dos empregados.» O poder governamental é concentrado entre as mãos de um colégio formado pelos presidentes dessas comissões, sob o nome de «Soviete dos Comissários do Povo». O controlo sobre a actividade do governo pertence ao congresso dos sovietes e ao seu comité executivo central.

Para compor o primeiro Soviete dos Comissários do Povo, sete membros do comité central do partido bolchevique foram designados: Lénine, como chefe do governo, sem pasta; Rykov, como comissário do Interior; Miliutine, como dirigente da Agricultura; Noguine, na cabeça do Comércio e Indústria; Trotsky, nos Assuntos Exteriores; Lomov, na Justiça, Estaline, como presidente da comissão das nacionalidade. A Guerra e a Marinha são confiadas a um comité que se compõe de Antonov-Ovssenko, Krylenko e Dybenko; na cabeça do comissariado do Trabalho foi colocado Chliapnikov; a Instrução será dirigida por Lunatcharsky; a tarefa penosa e ingrata do aprovisionamento foi confiada a Teodorocitch; os Correios e os Telegráfos ao operário Glebov. Ninguém foi instalado no posto das Vias de comunicação: a porta continua aberta para um entendimento com as organizações dos ferroviários.

Esses quinze candidatos, quatro operários e onze intelectuais, tinha no seu passado anos de prisão, de deportação e de emigração; cinco deles tinha sido presos sob o regime da república democrática; o futuro Primeiro só saiu na véspera de uma saída clandestina sob a democracia. Kamenev e Zinoviev não entraram no Conselho dos Comissários do Povo: o primeiro foi designado como presidente do novo Comité central, o segundo como redactor do órgão oficial dos sovietes. «Quando Kamenev leu a lista dos Comissários do Povo – escreveu Reed – aplausos explodiram após cada nome, particularmente após os de Lénine e de Trotsky.» Sukhov acrescentou a esses nomes o de Lunatcharsky.

Contra a proposição do governo que se opuseram, se pronunciou, num grande discurso, o representante dos internacionalistas unificados, Avilov, outrora bolchevique, redactor do jornal de Gorki. Ele enumerou conscienciosamente as dificuldades que se levantavam diante da revolução nos domínios da política interior e exterior. É preciso «dar-se claramente conta de uma coisa: onde iremos? … Diante do novo governo se colocam sempre as mesmas velhas questões: a do pão e a da paz. Se o governo não pode resolver essas duas questões, ele será derrubado». O pão falta no país. Ele está entre as mãos dos camponeses ricos. Nada a dar para substituir o pão: a indústria afunda-se, faltam os combustíveis e as matérias-primas. Estocar trigo por medidas obrigatórias, é difícil, é lento e é perigoso. É preciso, por consequência criar um governo tal que não somente os camponeses pobres, mas os mais ricos tenham simpatia por ele. Para isso é preciso uma coligação.

«É ainda mais difícil obter a paz.» À proposição do congresso concernante uma trégua imediata, os governos da Aliança não darão resposta. Os embaixadores aliados aprontam-se já a partir. O novo poder se encontrará isolado, a sua iniciativa pacífica ficará em suspenso. As massas populares dos países beligerantes estão ainda, pelo momento, muito longe duma revolução. Duas consequências podem se apresentar: ou o esmagamento da revolução pelas tropas de Hohenzollern, ou uma paz separada. As condições da paz, nos dois casos, mostrar-se-ão terríveis para a Rússia. Para acabar com todas as dificuldades, só poderá haver «a maioria do povo». A infelicidade encontra todavia na cisão da democracia, onde a esquerda quer criar em Smolny um governo puramente bolchevique enquanto que a direita organiza na Duma municipal o Comité de salvação público. Para a salvação da revolução é necessário criar um poder comporto dos dois grupos.

É no mesmo espírito que se exprime o representante dos socialistas-revolucionários de esquerda, Kareline. Não se pode realizar o programa adaptado sem os partidos que abandonaram o congresso. Na verdade, «os bolcheviques não são responsáveis pela saída deles». O programa do congresso deveria unificar toda a democracia. «Nós não queremos caminhar na via do isolamento dos bolcheviques, porque nós compreendemos que ao destino destes últimos se liga o de toda a revolução: a sua perca é da própria revolução.» Se eles, socialistas-revolucionários de esquerda, afastavam contudo a proposição de entrar no governo, o desejo deles provinha da boa intenção: manter as mãos livres para intervir entre os bolcheviques e os partidos que tinham abandonado o congresso. Nesta intervenção, os socialistas-revolucionários de esquerda viam pelo momento a sua tarefa principal. Eles apoiarão a actividade do novo poder no seu esforço para resolver as questões urgentes. «Ao mesmo tempo, eles votam contra o governo proposto. Numa palavra, o jovem partido confundia tanto que podia.

«Para a defesa dos bolcheviques – conta Sukhanov, cuja inteira simpatia ia para Avilov e que inspirava nos bastidores Kareline – Trotsky apresentou-se. Ele foi brilhante, veemente, e, em muitos pontos, ele tinha razão. Mas ele não queria compreender no que assentava o centro do argumento dos seus adversários...» O centro do argumento residia numa diagonale ideal. Em Março tinham tentado traçar entre a burguesia e os sovietes conciliadores. Agora, os Sukhanov sonhavam com uma diagonal entre a democracia conciliadora e a ditadura do proletariado. Mas as revoluções não se desenvolvem em diagonal.

«Nós nos inquietámos várias vezes – diz Trotsky – dum eventual isolamento da ala esquerda. Há alguns dias, quando a questão da insurreição tinha sido levantada abertamente, disseram-nos que nós corriam à perdição. E, se se julga segundo a imprensa política, os grupos de forças que existiam, a insurreição comportava para nós a ameaça de uma inevitável catástrofe. Contra nós se erguiam não somente bandas de contra-revolucionários, mas os partidários da defesa nacional de todas as corres; não havia somente os socialistas-revolucionários de esquerda, de uma das suas alas, para trabalhar corajosamente connosco no comité militar revolucionário: a outra ala ocupava uma posição de neutralidade expectativa. E todavia, mesmo nessas condições desfavoráveis, quando, parece, nos abandonaram, a insurreição foi vitoriosa …

«Se as forças reais eram efectivamente contra nós, como foi que nós obtemos a vitória quase sem efusão de sangue? Não, os isolados, não éramos nós, eram o governo e os pretensos democratas. Pelas suas hesitações , pelos seus procedimentos conciliadores, eles próprios tinham-se apagados das fileiras da verdadeira democracia. Nossa grande vantagem, como partido, consiste no que nós concluímos uma coligação com as forças de classe, criando a união dos operários, dos soldados e dos camponeses mais pobres.

«Os grupos políticos desapareciam, mas os interesses essenciais da classes continuam. É vencedor o partido que é capaz de ver e satisfazer as exigências essenciais da classe … Nós podemos nos orgulhar da coligação da nossa guarnição, principalmente do elemento camponês, com a classe operária. Ela sofre, esta coligação, a prova do fogo. A guarnição de Petrogrado e o proletariado entraram ao mesmo tempo numa grande luta que se tornará um exemplo clássico na história da revolução de todos os povos.

«Avilov falou das imensas dificuldades que nos esperam. Para eliminar essas dificuldades, ele propôs a conclusão de uma coligação. Mas aí, ele não tenta de forma alguma dar o sentido dessa fórmula e dizer: qual coligação, — de grupos, de classes ou simplesmente de jornais? …

«Diz-se que a cisão da democracia provém de um mal entendido. Quando Kerensky enviou contra nós batalhões de choque, quando, com o apoio do comité executivo central, nós tivemos as nossas comunicações telefónicas cortadas no momento mais grave da nossa luta contra a burguesia, quando nos golpeiam sucessivamente – ainda se pode falar de mal-entendido? …

«Avilov diz-nos: nós temos pouco pão, é preciso uma coligação com os partidários da defesa nacional. Mas será que esta coligação aumentará a quantidade de pão? A questão do pão é a de um programa de acção. A luta contra a perturbação exige o emprego de um método determinado em baixo e não de agrupamentos políticos do alto.

«Avilov falou de uma aliança com a classe camponesa: mas, mais uma vez, qual classe camponesa se trata? Hoje, aqui mesmo, o representante dos camponeses da província de Tver reclamava a prisão de Avksentiev. É preciso escolher entre o camponês de Tver e Avksentiev, que encheu as prisões com os membros dos comités rurais. Nós afastamos resolutamente a coligação com os elementos ricos ( kulaks ) da classe camponesa em nome da coligação da classe operária com os camponeses mais pobres. Nós estamos com os camponeses de Tver contra Avksentiev, estamos com eles até ao fim e indissoluvelmente.

«Aquele que persegue a sombra de uma coligação isola-se definitivamente da vida. Os socialistas-revolucionários de esquerda perderão seu apoio nas massas enquanto julgarão dever opor-se ao nosso partido. Cada grupo opondo-se ao partido do proletariado, ao qual se juntaram os elementos pobres do campo, se isola da revolução.

«Abertamente, diante de todo o povo, levantámos o estandarte da insurreição. A fórmula política desse levantamento é: todo o poder aos sovietes – por intermédio do Congresso dos sovietes. Dizem-nos: vocês não esperaram o congresso para fazer o vosso golpe de Estado. Nós bem esperámos, mas foi Kerensky que não quis esperar: os contra-revolucionários não dormiam. Nós, como partido, considerámos como nossa tarefa criar a possibilidade real para o congresso dos sovietes tomar o poder. Se o congresso tinha sido cercado pelos junkers, de qual maneira teriam-mos tomado o poder? Para realizar essa tarefa, era preciso um partido que arrancasse o poder à contra-revolução e que vocês dizem: «Aí está, o poder, e vosso dever é tomá-lo?» ( Tempestade de aplausos.)

«Mesmo se os partidários da defesa nacional de todas as matizes, na sua luta contra nós, não tenham parado diante de nada, nós não os rejeitámos, propusemos ao congresso inteiro para que tomasse o poder. Como é preciso deformar a perspectiva para falar, depois de tudo o que se passou, do alto desta tribuna, a nossa «intransigência»? Quando o partido, negro de pólvora, avança sobre eles e lhes diz: «Tomemos o poder juntos! — eles correm para a Duma municipal e, aí, aliam-se com autênticos contra-revolucionários. São os traidores à revolução com os quais jamais faremos aliança!

«A fim de lutar pela paz – diz Avilov – é preciso uma coligação de conciliadores. Ao mesmo tempo admite que os Aliados não querem concluir a paz … Os imperialistas aliados – declara Avilov – troçaram de Skobelev, democrata de margarina. Mas se vocês fazem bloco com os democratas em margarina, a causa da paz será assegurada.

«Há duas vias na luta pela paz. Uma: opor aos governos dos países aliados e inimigos da força mora e material da revolução. A outra: um bloco com Skobelev, o que significa um bloc com Terchtchenko e uma completa subordinação ao imperialismo dos Aliados. Na nossa declaração sobre a paz, nós dirigimo-nos simultaneamente aos governos e aos povos. Mas está aí uma simetria puramente formal. Bem entendido, nós não esperamos influenciar os governos imperialistas pelos nossos manifestos; todavia, enquanto que existirem esses governos, não os podemos ignorar. Mas colocamos todas as nossas esperanças que a nossa revolução desencadeará a revolução europeia. Se os povos insurgidos da Europa não esmagam o imperialismo, nós seremos esmagados – sem dúvida. Ou então a Revolução russa levantará um turbilhão de luta no Ocidente, ou os capitalistas de todos os países abafarão a nossa revolução.»

«Há um terceiro caminho», lança um a voz na sala. «O terceiro caminho – responde Trotsky- é o do comité executivo central que, por um lado, envia delegações aos operários da Europa ocidental e que, por outro lado, alia-se com os Kichkine e os Konovalov. É o caminho da mentira e da hipocrisia na qual nós não iremos nunca!

«Bem entendido, não dizemos que será somente o dia do levantamento dos operários europeus que fixará a data da assinatura do tratado de paz. É possível também que a burguesia, assustada pela insurreição iminente dos oprimidos, se apresse a concluir a paz. Os prazos aqui não estão fixados. É impossível prever como isso se presentará de forma concreta. Importa e é indispensável fixar o método de luta, idêntico no seu princípio tanto na política exterior como na política interior. A união dos oprimidos em todo o lado e todos os lugares – eis a nossa via.»

«Os delegados do congresso – escreve Reed – saudaram esse discurso com longas salvas de aplausos, vibrando com a ideia audaciosa de uma defesa da humanidade.» De qualquer modo, nenhum bolchevique não teria podido então ter a ideia de protestar contra o facto que a sorte da República soviética, num discurso oficial em nome do partido bolchevique, fosse colocado sob a dependência directa do desenvolvimento da revolução internacional.

A lei dramática desse congresso consistia em que todo acto se realizasse ou mesmo fosse interrompido por um breve intermédio no decurso do qual apareciam de repente sobre a cena um personagem de outro campo, para formular um protesto, para ameaçar, ou então para dar um ultimato. O representante do Vikjel (Comité executivo da União dos Ferroviários ) pediu a palavra agora e sem demora: ele necessita de largar uma bomba na assembleia antes que o voto sobre a questão do poder seja feito. O orador, sobre o rosto do qual Reed pôde ler uma hostilidade intransigente, começa por lançar uma acusação: a sua organização, «a mais potente em Rússia» não foi convidada ao congresso. — É o comité executivo central que não os convidou, lhe gritam de todos os lados. — Que se saiba bem: a decisão primitiva do Vikjel para o apoio do congresso dos sovietes foi adiada! O orador apressou-se a ler o ultimato que já tinha sido enviado por telegrama a todos os países: o Vikjel condena a tomada do poder por um só partido; o governo deve ser responsável diante «toda a democracia revolucionária»; esperando a criação de um poder democrático, o Vikjel é o único mestre da rede ferroviária. O orador acrescentou que as tropas contra-revolucionárias não obterão acesso a Petrogrado; em geral, as deslocações das tropas não se farão doravante senão sobre uma ordem do comité central executivo tal que tinha sido precedentemente combinado. Em caso de repressão em relação aos ferroviários, o Vikjel pára o abastecimento de Petrogrado!

O congresso saltou logo. Os dirigentes do sindicato dos ferroviários tentavam tratar com o governo no mesmo pé de igualdade, de potência a potência. Enquanto que os operários, os soldados e os camponeses tomam em mão a direcção do Estado, o Vikjel quer ditar a lei aos operários, aos soldados e aos camponeses. Ele tenta converter o sistema do dualismo do poder já derrubado em moeda de troca. Tentando tomar apoio não sobre os seus efectivos, mas sobre a importância exclusiva dos caminhos de ferro na vida económica e cultural do país, os democratas do Vikjel desvendam toda a caducidade dos critérios da democracia formal nas questões essenciais da luta social. Na verdade, a revolução não é avarenta de grandes ensinamentos!

O momento escolhido pelos conciliadores para dar o golpe é em todo o caso propício. Os membros do secretariado estão preocupados. Felizmente, o Vikjel não é de forma alguma o mestre absoluto sobre as vias de comunicação. Em diferentes localidades, os ferroviários fazem parte dos sovietes municipais. Aqui mesmo, no congresso, o ultimato de Vikjel encontra uma resistência. «Toda a massa de ferroviários da nossa região – declara o delegado de Tachkent – se pronunciam pela entrega do poder aos sovietes.» Um outro representante dos operários da via dit do Vikjel que é «um quadro político». Admitamos que seja um exagero. Apoiando-se sobre uma camada superior bastante numerosa de empregados do caminho de ferro, o Vikjel conservou mais forças vivas que as outras organizações superiores dos conciliadores. Mas pertence, sem dúvida, ao mesmo tipo que os comités do exército ou o Comité executivo central. A sua órbita leva-o a uma queda rápida. Os operários, em todo o lado, se destacam dos empregados. Os empregados subalternos opõem-se aos superiores. Insolente ultimato do Vikjel vai obrigatoriamente acelerar esse processo.

«Não pode ser de forma alguma questão de dizer que o congresso não seria regular – declara Kamenev com autoridade. O quorum do congresso foi estabelecido não por nós, mas pelo antigo Comité executivo central... O congresso é o órgão supremo das massas operárias e dos soldados.» E passa-se à ordem do dia simplesmente!

O Soviete dos Comissários do Povo é validado por esmagadora maioria. A resolução de Avilov reúne, segundo uma avaliação demasiado generosa de Sukhanov, cerca de cento e cinquenta votos, pela maior parte socialistas-revolucionários de esquerda. O congresso aprova a seguir unanimemente a composição do novo Comité executivo central; sobre cento e um membros – sessenta e dois bolcheviques, vinte e nove socialistas-revolucionários de esquerda. O Comité executivo centra deve em seguida completar-se com representantes dos sovietes camponeses e das organizações do exército eleitas de novo. As fracções que abandonaram o congresso gozam do direito de enviar ao Comité executivo central seus delegados sobre a base de uma representação proporcional.

A ordem do dia do congresso está esgotada. O poder dos Sovietes foi criado. Tem o seu programa. O trabalho pode começar, e as tarefas não faltam. Às cinco e um quarto da manhã, Kamenev fecha o congresso constitutivo do regime soviético. Quem corre à gare! Quem volta para casa! E quem na frente, nas fábricas, nos quartéis, nas minas e nas aldeia longínquas! Com os decretos do congresso, os delegados vão levar e fermento da insurreição proletária a todas as extremidades do país.

Nessa manhã, o órgão central do partido bolchevique, que tinha retomado o velho nome de Pravda ( A Verdade ), escrevia:

«Eles querem que nós sejamos os únicos a tomar o poder, para que sejam sós a resolver as terríveis dificuldades que se colocam ao país … Então, tomamos o poder sós, mas nos apoiando sobre os votos do país e contando com a ajuda amigável do proletariado europeu. Mas, tendo tomado o poder, aplicaremos aos inimigos da revolução e aos que a sabotam, uma luva de ferro. Eles sonharam com a ditadura de Kornilov … Nós lhes daremos a ditadura do proletariado …»


Inclusão 22/112016